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OPINIÃO novembro de 2004 • C I Ê N C I A H O J E • 59 A importância da filosofia parao ensino de ciências tem sido há muito negligenciada. Muitas das discussões de pensadores co- mo Popper, Kuhn, Lakatos e Feye- rabend permitem sugerir modelos pedagógicos que rompam com o tradicional caráter linear e atem- poral do ensino, substituindo-as por uma visão mais dinâmica do processo ensino-aprendizagem. O filósofo austríaco Karl Pop- per (1902-1994) considera a ima- ginação o princípio motor da ciência. Assim, cientistas formu- lam hipóteses que são testadas através da experimentação. Se tais hipóteses mostram-se inade- quadas, criam-se outras, que se- rão sujeitas a novos testes, em um contínuo que aumenta o poder explanatório das teorias, aproxi- mando-as da verdade. A ciência é essencialmente transitória pois, em um dado momento, a melhor teoria é a que melhor suporta as tentativas de refutação. Assim, a ciência se desenvolve através da relação indissociável entre hipó- teses, confirmações e refutações. A atitude crítica é fundamental: aprendemos com os erros. Para Popper, apenas hipóteses que podem ser falseadas fazem O ensino de ciências, principalmente nos níveis fundamental e médio, é em geral prejudicado pela visão de que o conhecimento científico é um conjunto de invenções e descobertas individuais, profundas e imutáveis, o que é reforçado por livros didáticos e pela mídia. Pode-se evitar essa imagem distorcida mostrando aos alunos que o desenvolvimento da ciência é um processo dinâmico, sujeito a erros e vinculado ao contexto histórico. As idéias de alguns pensadores sobre a história e a filosofia da ciência podem ajudar a encontrar formas de realizar essa mudança pedagógica. parte da ciência (ou seja, a ciên- cia avança não pela comprovação de sentenças básicas, mas por sua rejeição, que exige novas hipóte- ses). Contrariando a linha posi- tivista da indução, ele afirma que o pensamento científico é basea- do em hipóteses e experimentos/ deduções: “Não há, pois, indução (...), nunca argumentamos pas- sando dos fatos para as teorias.” Todo experimento ou observação é influenciado por hipóteses existentes. Esse conceito popperiano – o falseacionismo – é tido como in- gênuo por alguns pensadores, que não aceitam a existência de ex- perimentos com o poder de fal- sear teorias. O húngaro Imre Laka- tos (1922-1974) propõe uma rein- terpretação de Popper: o falseacio- nismo sofisticado. Para Lakatos, as hipóteses são científicas se pu- derem ser falseadas não por um único experimento, mas por um corpo de idéias que possa substi- tuir a hipótese original. Esse ‘pro- grama de pesquisa’, termo criado por Lakatos, engloba teorias, ex- perimentos e a observação. Outro austríaco, Paul Feyera- bend (1924-1994) defende que o desenvolvimento das ciências Filosofia e ensino de ciências: uma convergência necessária Adolfo Ricardo Calor Programa de Pós-graduação em Entomologia (doutorando), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP) Charles Morphy Dias dos Santos Programa de Pós-graduação em Entomologia (doutorando), USP OPINIÃO � OPINIÃO 60 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 35 • nº 210 ocorre por um processo dinâmi- co, baseado no não-absolutismo e na não-uniformidade das teorias. Ou seja, quanto mais teorias, me- lhor. Ele considera a ciência um empreendimento anárquico, que não deve seguir princípios fixos ou metodologias específicas. Para Feyerabend, tudo vale na investi- gação científica. Já o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), no livro A es- trutura das revoluções científi- cas, estabelece que o padrão de desenvolvimento da ciência fun- damenta-se na mudança de ‘para- digmas’ por meio de ‘revoluções’. Paradigmas são conjuntos de hi- póteses aceitos pela comunidade científica e que fornecem, por um tempo, problemas e soluções às questões levantadas pelos prati- cantes da ciência. Segundo Kuhn, a imagem de realizações científi- cas acabadas, desvinculadas de um contexto histórico, compro- mete a compreensão do processo de construção da ciência. A transitoriedade das teorias científicas não é discutida no en- sino de ciências nos níveis funda- mental e médio e, por vezes, se- quer no superior. Há professores que tendem a tratar a ciência como um conjunto de invenções e descobertas individuais, herméti- cas e fixas, visão essa reforçada por parte dos livros didáticos e pela grande mídia, que se limitam a expor as idéias centrais das teo- rias e suas aplicações imediatas. No ensino de ciências, a ado- ção de uma perspectiva dinâmi- ca, baseada na idéia de teorias transitórias, seria benéfica. Essa visão contrapõe-se à linearidade e à falta de contextualização his- tórica encontradas nas escolas de nível médio e fundamental, e pode ser uma ferramenta útil para a formação de alunos críticos e com capacidade de reflexão. A filosofia popperiana pode ser- vir como guia para várias etapas do processo de ensino-aprendiza- gem. Ao assumi-la desde o pre- paro da aula até a sua exposição, o professor aproximará o aluno do processo de construção da ciên- cia, levando-o a desenvolver uma concepção própria do mundo na- tural sem perder a noção dos prin- cípios científicos. A orientação do professor deve deixar claro que a ciência não é apenas o reflexo de sensações individuais sobre o mundo, mas uma fusão destas às hipóteses e teorias construídas na tentativa de explicar a realidade para além do que é percebido por nossos sentidos físicos. O positivismo ainda presente na prática pedagógica desconsi- dera o aluno como sujeito da ação científica e o transforma em sim- ples receptor passivo do produto ‘final’ dessa atividade. Tratar a ciência como verdade absoluta, resultado do trabalho de cientis- tas geniais, desestimula e distan- cia o aluno, desvinculando o ensi- no de ciências da própria ciência. A ciência deve ser vista como uma atividade passível de erros – fundamentais na construção do conhecimento – desempenhada por pesquisadores atuantes em uma comunidade científica que faz parte do complexo de relações e interações da sociedade. A desmistificação do cientista tam- bém recairá sobre o professor, a partir do momento em que ele apresenta seu campo de estudo como aberto a mudanças e críti- cas. Para o educador brasileiro Maurício Tragtenberg (1929- 1998), o professor é dono de um saber inacabado e o aluno de uma ignorância transitória. Considerar o contexto históri- co durante a exposição dos con- teúdos evita a distorção da real prática da ciência e permite ao professor definir essa atividade como a busca pela solução de pro- blemas e geração de tecnologias dentro de uma sociedade. Por outro lado, o professor ar- risca-se a encenar um monólogo ao propor a troca, por parte dos alunos, da certeza do senso co- mum pela incerteza científica. Nesse caso, o resultado seria um aumento ainda maior do desinte- resse do estudante em relação à ciência. É importante considerar essa possibilidade, embora ela signifique um julgamento nega- tivo, a priori, das qualidades e potencialidades dos alunos, além de uma desconsideração da capa- cidade do docente. As teorias não podem ser disso- ciadas do ambiente em que foram criadas, e isso independentemen- te do modo como surgiram: atra- vés de insights, sonhos, estudo ou trabalho árduo. A evolução é um exemplo. Tida como o princípio unificador da biologia, ela quase sempre é considerada o produto da mente do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), desconsiderando seus predeces- sores e influências. Vale a pena trazer para a aula o histórico da construção da teoria, os proble- mas e questões levantadas e, prin- cipalmente, os erros cometidos e suas implicações, da antigüidadegrega aos tempos atuais. O francês Jean-Baptiste La- marck (1744-1829) teve impor- Tratar a ciência como verdade absoluta, resultado do trabalho de cientistas geniais, desestimula e distancia o aluno, desvinculando o ensino de ciências da própria ciência OPINIÃO novembro de 2004 • C I Ê N C I A H O J E • 6 1 tância capital no desenvolvimen- to do evolucionismo, apesar de suas hipóteses errôneas referen- tes ao uso e desuso e à herança dos caracteres adquiridos. Poucos livros didáticos mostram Lamar- ck como um pioneiro da crítica ao ‘fixismo’ na biologia, por ter enfatizado o papel do tempo para a origem das espécies, hipótese aproveitada pelas teorias evolu- tivas posteriores. Além de Lamarck, é necessá- rio destacar o inglês Alfred Wal- lace (1823-1913), também pai da teoria da evolução e o responsá- vel pela descoberta da seleção na- tural, mas apesar disso geralmen- te desconhecido do grande públi- co. A contextualização histórica mostrará aos alunos que os cien- tistas não são trabalhadores soli- tários, fechados em laboratório, e sim homens de um tempo, inse- ridos em um contexto social am- plo e que recebem influências, assim como influenciam outros pesquisadores e personagens de seu período. Antes de tudo, a boa formação do professor é imprescindível. A aula não pode se ater à apresenta- ção superficial dos livros didáti- cos, mas deve ser acrescida das discussões filosóficas e históricas pertinentes. A leitura é funda- mental para o professor, incluin- do as obras originais e compên- dios sobre os tópicos estudados. É papel do docente aproximar os alunos do conhecimento cien- tífico moderno, propondo-lhes que as novas teorias partam do co- nhecimento prévio, em menor ou maior grau. A ele cabe tratar a ciência como um processo contí- nuo, não hermético, possibilitan- do ao aluno aceitar o novo e esti- mulando, paralelamente, a refle- xão e a análise crítica, com cria- tividade e imaginação. O emba- samento científico-filosófico for- nece ao aluno ferramentas úteis para a compreensão do processo de construção do conhecimento, no qual ele também se insere. Por vezes, nota-se a convergên- cia entre o falseacionismo e algu- mas correntes do construtivismo, uma vez que estas defendem a in- serção do aluno na prática do en- sino, utilizando e valorizando seus saberes (ou seja, o senso comum). Certos modelos constru- tivistas, contudo, podem levar à desvalorização da prática do ensino de ciências por não incen- tivarem a construção do conhe- cimento fundamentado cientifi- camente, dando demasiado valor ao senso comum. A supervalo- rização da experiência sensorial como fonte única geradora de conhecimento cria problemas tanto para a compreensão quan- to para a formulação de concei- tos. A abordagem voltada exces- sivamente para o senso comum deve ser evitada pelo professor, o que não significa tratar como irrelevantes os saberes trazidos à aula pelos alunos. Assumir que a investigação científica não termina com os re- sultados obtidos, mas parte de hipóteses de trabalho para se de- senvolver, é um dos caminhos para um ensino de ciências me- nos apático e mais associado à prática científica. O estímulo à reflexão e à crítica fundamenta- das, a partir de uma abordagem falseacionista, pode auxiliar, as- sim, na propagada formação de cidadãos. ■ Einstein Pasteur Da Vinci 0800-7278999 Eles não liam Ciência Hoje das Crianças. Imagine se tivessem lido... ASSINE www.ciencia.org.br Sabin Galileu Newton
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