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A questão da psicanálise selvagem e da análise leiga na atualidade Pergunto o que escreveria Freud em seu artigo Psicanálise Selvagem se presenciasse o (mau) uso que fazem da Psicanálise atualmente. É assustador o número de instituições oferecendo cursos com a garantia de uma prática clínica aos que neles se matriculam chegando ao absurdo de oferecer um documento – que nunca existiu na história da Psicanálise – como ‘prova’ de tal prática. Na carona destas instituições, muitas pessoas oferecem escuta se dizendo psicanalista, e o paciente, na sua ignorância sem culpa, fica a mercê de fracassos – na melhor das hipóteses – ou, muito freqüentemente, sofrem danos irreparáveis. É sabido – não por todos, já que ainda há os que acreditam que somente psicólogos e/ou médicos podem exercer a Psicanálise – que não há uma graduação que funcione como um pré-requisito para ser um psicanalista. Mas esse distanciamento entre a universidade e a formação psicanalítica não pode ser mal interpretado a ponto da Psicanálise ser levada num tom descomprometido. Por exemplo, uma propaganda do tipo ‘tenha uma renda extra com psicanálise, sua nova profissão’ é uma afronta à prática analítica que se pretende séria e demanda investimento e dedicação constante. O fato de se insistir que a formação psicanalítica seja diferenciada de uma formação acadêmica tem sua razão e ela não é qualquer. A Psicanálise se direciona ao saber inconsciente. Saber este que não se aprende, mas se experimenta. A invenção freudiana não é uma ciência, posto que a ciência visa alcançar uma verdade absoluta e imutável. Para a Psicanálise toda a verdade é meia já que se trata da verdade inconsciente que comporta necessariamente uma falta. E, além do mais, Psicanálise é uma ética e não uma profissão. Tanto que não há um regulamento com leis que possam dar conta de sua prática. Todas as tentativas em regulamentá-la felizmente foram fracassadas, e se depender dos psicanalistas ela jamais será regulamentada. Pois qualquer lei engessaria a práxis psicanalítica impossibilitando que ela se realize de acordo com o funcionamento do inconsciente que comporta suas próprias leis. Portanto, uma instituição que oferece um documento (diploma, carteira) que garanta o exercício da Psicanálise precisa, no mínimo, ser questionada. A respeito da formação universitária – graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado… – nada tem a ver com uma condição para exercer a Psicanálise, cito Freud em A questão da análise leiga: ‘Talvez venha a acontecer (…) que os leigos não sejam realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas qualidades que se teria o direito de esperar deles’. Portanto não é a formação acadêmica que vai decidir se alguém está apto a ocupar o lugar de analista. Pode parecer ser terra de ninguém, mas embora qualquer um possa fazer a formação de analista não significa que um qualquer possa. E isso faz toda a diferença. Freud em seu texto Análise terminável e interminável toca na questão da formação: ‘onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade.’ Ou seja, o Pai da Psicanálise é pontual quando declara que esse é o passo inicial indispensável a ser dado por quem deseja fazer uma clínica psicanalítica. É avançando no saber de seu próprio inconsciente que se é possível conduzir uma análise de um outro que, por sua vez, vai trilhar o seu caminho em direção à sua própria verdade. Mas apenas se submeter à análise não é tudo, é preciso ainda se engajar em um estudo teórico constante com outros pares e fazer supervisão dos casos clínicos. Esse é o tripé clássico fundamental para que se ‘forme’ um psicanalista. E aqui coloco ‘forme’ entre aspas pois é importante frisar que, na verdade, ele estará sempre em formação. O que impede radicalmente que o simples cumprimento de uma carga horária garanta o exercício da ética psicanalítica. Lacan, como não podia deixar de ser a partir de seu retorno a Freud, sempre se propôs a pensar e repensar a questão da formação. Ele dizia que ‘o analista só se autoriza por si mesmo e por alguns outros’. Entendendo, minimamente, esses ‘outros’ como os pares, o psicanalista que o conduz em análise e os próprios pacientes que o reconhecem como tal e o sustentam no lugar de analista. Por fim, não há problema em se oferecer cursos de psicanálise – até porque isso alimenta o estudo teórico essencial na formação. A crítica irredutível é quanto à garantia da permissão de clinicar através dos mesmos. Isso sim é perigoso e beira o charlatanismo. E eu nem me ocupei em dissertar sobre o inadmissível fato dos que ocupam cargos religiosos e misturam religião com Psicanálise em suas práticas… E quanto àquele que não tem a intenção de seguir o percurso psicanalítico como prática, mas deseja fazer uma análise? Qual o cuidado necessário para que não corra o perigo de cair nas mãos de um ‘falso’ psicanalista? A verdade é que garantia não há, mas é preciso ficar atento aos que se oferecem como psicanalista dentre outras práticas. Quem se diz ser tantas coisas, nada é efetivamente. Mesmo porque fica inviável uma prática psicanalítica junto com outras visto que a Psicanálise carrega uma singularidade por conta do seu compromisso com o saber inconsciente que, ao ser descoberto por Freud, trouxe consigo um teor totalmente subversivo. Quem quiser e estiver apto a praticar psicoterapia, escuta religiosa, hipnose, misticismo entre outras coisas, deve fazê-lo defendendo com unhas e dentes sua prática se preocupando em exercê-la bem e será reconhecido. Mas não pode se nomear psicanalista. “Uma psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista.” (LACAN, 1998, p. 331) Flávia Albuquerque ____________________ Psicanalista
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