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Madeleine Ker DEPOIS DA TEMPESTADE

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Depois da Tempestade
"Voyage Of The Mistral"
Madeleine Ker
Resumo
O vento soprava enfunando as velas do Mistral. Da ponte do iate, que se aproximava da terra, Nicolette já podia aspirar o perfu​me de flores silvestres e plantas aromáticas que vinham da praia. Estavam contornando o litoral da Somália, mais um dos países afri​canos da rota do longo cruzeiro que só iria terminar na Inglaterra. E ali estavam ela, Alex... e o mar! Fizera loucuras para acom​panhar aquele homem que a atraía de uma forma mágica e selvagem. Mas não queria que ele a visse apenas como uma mulher vul​gar para distraí-lo nas horas de calmaria. A viagem estava apenas começando, por certo iriam enfrentar violentas tempestades. E ela? Teria forças para enfrentar a tempestade de paixão e de loucura que era Alex St. Cloud?
Disponibilização do livro : Valeria O.
Digitalização Joyce
Revisão: Rejane
CAPÍTULO I
Durante todo o dia os trovões haviam ecoado pelos montes pre​nunciando uma forte tempestade. Entretanto, o belo céu azul da África não dava a menor indicação de que a chuva estivesse prestes a cair.
Despreocupada, Nicolette empreendeu o caminho de volta ao car​ro que deixara estacionado na estrada, enquanto dava um passeio a pé pela pequena reserva de caça.
Nuvens ameaçadoras, semelhantes a enormes bolas de lã, começa​ram a cobrir com incrível rapidez as montanhas azuis de Serengeti. Agora o trovão não era mais uma ameaça distante, transformara-se num barulho ensurdecedor que começava a assustar Nicolette.
Repentinamente, o clarão de um raio cortou o céu escuro, seguido de um forte estrondo que pareceu sacudir os montes e os campos à sua volta.
Nicolette tremia, enquanto girava inutilmente a chave para dar a partida no Ford. O motor chiou um pouco e depois silenciou de vez. Balbuciando uma prece ela tentou novamente, sem sucesso. Decidi​damente, o meio de uma enorme reserva de caça, habitada por leões e hienas, entre outros animais ferozes, não era o melhor lugar para um desarranjo no motor.
Agora, cada vez que girava a chave, só conseguia um ruído seco; obviamente a bateria estava esgotada. Nicolette golpeou o volante com raiva. Que terrível falta de sorte! Estava mesmo azarada ultima​mente! À sua volta, apenas a vegetação densa e amarelada, um mar de capim seco, onde se destacavam aqui e ali um cacto ou uma acá​cia. Olhou para aquela paisagem deserta, com medo de encontrar re​pentinamente os olhos dourados de um leão.
Mas, afinal de contas, o que ia fazer agora? Não era muito en​graçado ficar encalhada numa estrada poeirenta, bem no meio de Serengeti, a quinze quilômetros do acampamento, com uma tempes​tade prestes a cair. Devia estar louca, quando partira de automóvel sozinha, depois do almoço. Havia deixado os outros cinco companhei​ros de safári no acampamento, jogando cartas, pois não queria des​perdiçar seu último dia na reserva. No dia seguinte, estariam partindo de volta a Mombasa, para subirem a bordo do Elsie, o enorme iate de Julian, e navegarem de volta à Inglaterra.
Olhou para o céu, agora com um tom mais cinzento. Os espaços entre os relâmpagos e os trovões estavam cada vez mais curtos. A tempestade estava se aproximando. Será que conseguiria alcançar o acampamento antes que a chuva desabasse? Virou-se no banco para olhar a estrada, atrás dela. Nada. Nenhuma visão confortante de outro carro, na estradinha. Nada a não ser a imensa savana. E, pior que tudo, pensou Nicolette com amargura, era muito pouco provável que alguém resolvesse viajar com um tempo daqueles. . . Nessa tarde, portanto, não haveria tráfego por ali. De fato, ninguém, a não ser uma idiota total, teria saído do acampamento.
— Droga! — resmungou.
Lembrou-se então da recomendação do administrador da reserva, para que ninguém saísse dos carros, dentro dos limites da reserva.
— Serengeti não é um zoológico — ele insistiu, os pálidos olhos azuis, muito sérios. — Existem animais soltos por aí que muitas ve​zes atacam os seres humanos. Nunca saiam de um automóvel, não importa sob que pretexto.
— Mas se o automóvel encrencar? — alguém perguntou.
— Então o que a pessoa tem a fazer é levantar os vidros e ficar sentada quietinha — ele respondera. — Cedo ou tarde, o socorro vai chegar. Nós patrulhamos regularmente a reserva, portanto não há razão para preocupações. Mas, se a pessoa sair do carro e tentar voltar a pé, provavelmente acontecerá o pior. . .
Na ocasião, Nicolette tinha ficado apavorada. Mas agora, suando dentro do carro, as palavras do administrador começaram a parecer muito teatrais. Afinal, ela não vira um único animal enquanto guiava, naquela tarde. Como sempre, seus pensamentos estavam em Mark, e por isso mesmo durante o passeio não havia prestado atenção na estrada.
Agora, além de alguns pássaros e o estranho lagarto à beira da estrada, o mato parecia tão vazio como se ela fosse a última criatura viva na terra. Um trovão ribombou violento, e Nicolette limpou o suor do rosto.
Com que regularidade eles deviam patrulhar as estradas? Uma vez por dia? Uma vez por ano? Nicolette suspirou, frustrada. A ideia de férias no Quénia, com suas fabulosas reservas de caça e belíssimas praias, lhe parecera uma perfeita escapada para o sofrimento causado por Mark Macmillan. Poderia livrar-se por uns tempos daquelas in​certezas e dúvidas que estavam transformando sua vida num inferno.
Ela imaginara palmeiras e enormes copos de refrescos exóticos, num ambiente confortável, onde se podia sentar e apreciar os animais ao longe e escutar os tambores das tribos locais à noite. E, no entanto, o que via era aquela paisagem árida, escurecida pelas nuvens pesadas e assustadoras e um clima insuportavelmente quente. Ainda mais ago​ra, presa dentro daquele carro alugado, a quilómetros de qualquer lugar, sem esperança de socorro, sem água e sem. . . Olhou no porta-luvas. Sem nada para comer também.
Passou a mão pela testa examinando a savana com seus grandes olhos castanhos.
A ideia de ficar ali, suando sem parar, por mais um ou dois dias. . . ou morrer de fome, ou ser atingida por um raio, fazia com que a possibilidade de topar com algum animal feroz e faminto no mato parecesse menos assustadora. Quinze quilômetros podiam parecer uma grande distância. Mas a estrada era reta e ela era uma jovem saudá​vel de vinte e três anos. Bem, vinte e dois e nove meses. E ficar encharcada pela chuva até que seria uma boa coisa depois daquele calor maldito que sentia ali dentro do carro fechado. Além disso, ninguém devia saber por onde procurá-la.
Tendo tomado uma resolução, Nicolette pôs as longas pernas para fora do carro, trancou as portas e começou a caminhar ao longo da estrada coberta de terra vermelha, em direção ao acampamento da reserva. Estava mais agradável ao ar livre. Olhou para trás, para o Ford azul, achando que tinha tomado a decisão certa. Esboçou um suave sorriso, que acentuava a beleza de seu rosto. Imagine só, ficar sentada dentro daquele carro o dia inteiro!
A imagem de um esqueleto sentado pacientemente atrás do volan​te passou por sua mente. Que fim irônico seria para uma mulher do século vinte: morrer de fome, presa dentro de sua pequena gaiola mecânica, tímida demais para enfrentar o mundo lá fora.
Era um pensamento divertido. Afinal de contas, havia até um certo encanto numa caminhada de vários quilômetros através de uma pe​rigosa reserva de caça, habitada por leões ferozes. Até podia ver os olhos do administrador da reserva, arregalados de surpresa e admira​ção quando friamente ela lhe dissesse que sua preciosa reserva não era nem de perto tão perigosa como ele gostava de alardear.
Mas, quanto mais se distanciava na estrada de terra vermelha e perdia de vista o Ford azul, seu coração ficava apertado. Estava completamente sozinha no meio das savanas africanas tão hostis e peri​gosas. Subitamente a jornada a sua frente parecia muito longa e talvez nada agradável. Quinze quilômetros! E todos aqueles leões! Ela os apreciava deitados ao sol, àsmargens do enorme lago. Pare​ciam enormes gatos domésticos, mas aquelas presas. . .
Nicolette parou e olhou para trás, pronta para correr o mais de​pressa que pudesse para sua pequena gaiola mecânica, com suas por​tas sólidas, seu teto à prova de chuva e seus bancos confortáveis. O trovão soou novamente, soturno. Mas ela afastou aqueles pensamen​tos e continuou em frente, corajosa.
Logo sua mente voltou ao assunto que a perseguia: Mark Mac-millan. O rico e inteligente Mark, com seu sorriso despreocupado. O inteligente Mark, que não conseguia decidir se o noivado de ambos era para valer ou não...
— Não é descaso da minha parte, Nicky — dissera ele, fazendo um leve carinho no rosto dela. — Eu gosto muito de você. Mas é que. . . bem, eu não estou ainda muito seguro. Não tenho mais cer​teza de coisa nenhuma. Vá e aproveite bastante o seu safári. Eu ficarei aqui em Londres tentando tomar uma decisão. Nós resolve​remos tudo quando você voltar. Está bem?
Ela concordara, passiva, tentando não mostrar como se sentia in​feliz. Mark podia não ter certeza se a amava, mas ela sabia que estava perdidamente apaixonada. Nunca conhecera antes alguém como ele, inteligente, sofisticado, vitorioso. Tudo que ele tocava parecia se transformar em ouro. Tinham pontos de vista semelhantes em re​lação à arte, à música e a várias outras coisas. Pareciam ter sido feitos um para o outro.
E, o que era mais importante, os beijos de Mark a introduziam num mundo novo, desconhecido e excitante. Ela era tão inocente antes de encontrá-lo, sabia tão pouco sobre si mesma e sobre o mundo! Naquela noite, quando se deitaram juntos no sofá e ela per​mitira que as mãos e os lábios dele explorassem seu corpo pela primeira vez. . . aquela noite ainda a deixava sem fôlego. Ele lhe provocara novas sensações. Sensações deliciosas e confusas, que ela nunca suspeitara que existissem. Descobrira uma fome, um desejo que a inquietava e atraía ao mesmo tempo. Ela o impedira de ir mais longe, para aborrecimento dele. Nicolette percebera que precisava impor algum limite ou acabaria perdendo o autocontrole, mergulhan​do sem querer no turbilhão da paixão.
Ela olhou distraída para os montes ao longe e as árvores espinhen-tas, indiferente ao mundo que a cercava. Mark parecia saber tanto sobre. . . certas coisas! Ficava imaginando onde ele poderia ter apren​dido tudo aquilo e imediatamente sentia um imenso ciúme. Mas aqui​lo agora era passado. Porque ela o amava e ele. . . Será que ele a amava? Mas claro que sim! Lembrou-se que, quando conversaram sobre um possível noivado, Mark ficara ansioso, e segurara sua mão, olhando profundamente nos seus olhos castanhos. Na falta de seus pais — e ela tinha certeza de que eles adorariam Mark — nada havia que impedisse o compromisso.
Já os pais de Mark, inicialmente, a encararam com um certo des​dém. A sra. Macmillan tinha o título de lady e o sr. Macmillan era o filho de lorde Beltrano. Ou seria sir Cicrano, filho de Beltrano? Mas, de qualquer modo, ter como nora uma moça que estava traba​lhando no comércio com restauração de objetos de arte não lhes parecia uma perspectiva muito agradável. Nicolette sentia que aos poucos eles acabariam aceitando-a. Até que, de repente, as coisas começaram a piorar com Mark. Ele começou a olhar para ela com um ar de dúvida em seus olhos azuis, a bocejar quando estava em sua companhia, a insistir em dormir com ela e depois irritar-se quan​do ela negava. Finalmente ele falou que não estava muito seguro dos próprios sentimentos, que não estava mais seguro de nada. Pela milésima vez Nicolette se perguntou o que teria acontecido entre os dois. Seria alguma coisa que ela fizera? Alguma coisa que. . .
Nicolette deu meia volta com o coração batendo fortemente, os pensamentos voando de Londres para o calor abafado da savana. Alguma coisa tinha atravessado a estrada, atrás dela! Tinha certeza! Ficou imóvel, apurando os ouvidos, esperando a repetição do ruído. Patas ou cascos? Provavelmente era um pequeno antílope, disse a si mesma. O céu escurecido trovejou. O silêncio que se seguiu era te​nebroso. O mato esperava. Até mesmo o chiado incessante das cigar​ras tinha parado.
Nicolette continuava a andar, sentindo-se muito pequena na vas​tidão da savana. Estava calçada com elegantes botas de couro que comprara em Mombasa e os saltos altos dificultavam seus passos na terra fofa e seca da estrada. Afastou uma gota de suor que escorria pela sua fronte, pensando preocupada se o vento não levava para longe seu cheiro. Será que alguma fera estaria agora farejando curio​sa aquele odor estranho, composto de carne humana quente, tecidos, couro, suor e perfume francês?
A paisagem à sua volta estava completamente parada. Tentou pen​sar outra vez em Mark. Tinham resolvido se separar por três sema​nas. Ela iria passar as férias na África e ele ficaria trabalhando na Inglaterra. O que estaria a sua espera quando ela voltasse? Uma reconciliação romântica? Ou ele iria acabar o caso definitivamente? E será que ela se importaria mesmo com isso?
Mas que ruído era aquele? Não era possível que pressentissem seus passos na terra fofa! Todos os animais estariam agora se abrigando sob alguma árvore, esperando a tempestade próxima. A jaqueta que usava estava começando a ficar manchada de suor nas axilas. Quanto será que já tinha andado? Talvez dois quilômetros. Talvez nem isso. Nervosa, tirou a jaqueta e colocou-a sobre o ombro.
Ia ser bom voltar para Londres. Por sugestão de Mark, viera ao Quênia com seu amigo Julian Mitchell. Fizera a viagem de Londres até Mombasa no Elsie, um belo iate, com um poderoso motor, o que, segundo Mark, era uma ótima oportunidade.
— Há um leito vago no Elsie — dissera ele. — E o mais impor​tante é que Julian e os quatro amigos pretendem ir até Serengeti. Vai ser ótimo ir com eles, não é mesmo?
A princípio Nicolette não ficara muito entusiasmada. Ela não con​fiava muito em Julian e nem no grupo milionário e pretensioso que ele frequentava. Além disso, o longo cruzeiro diminuiria o tempo que pretendia passar em Serengeti. Mas Mark fora insistente. E, como sempre, fizera o que ele queria.
A viagem, desde a partida da Inglaterra, fora bastante agradável. Tendo descoberto logo que Nicolette não era da sua "classe", os outros cinco a deixaram mais ou menos livre para fazer o que queria. Ela tomara longos banhos de sol, e lera incontáveis livros, enquanto observava sem interesse o grupo se divertindo à moda deles.
Contavam piadas que somente eles próprios entendiam, faziam re​ferências a pessoas que ela desconhecia, bebiam assustadoramente, e curtiam brincadeiras peculiares à alta classe. Nicolette estava disposta a não parecer uma pobre coitada a quem tinham feito um favor. Imaginava o que diria seu pai sobre seus cinco companheiros de viagem. O "Quinteto da Fama" como ela os chamava intimamente.
A despeito do céu cada vez mais sombrio, a estrada à sua frente estava envolta numa brisa escaldante. Novamente olhou por cima dos ombros. Era difícil afastar a sensação desagradável de que estava sendo vigiada. Talvez devesse ter ficado trancada no carro.
Será que o ""Quinteto da Fama" tinha tido cabeça para mandar gente à sua procura, quando percebeu que ela não havia retorna​do? Consultou o relógio. A estas horas provavelmente deviam estar tomando Martini seco e Pina Colada, rindo histéricos de suas pró​prias piadas particulares.
Nicolette fez uma careta. Fora preciso que ela convivesse com os amigos de Mark para perceber que tipo de mentalidade era a deles. Olhou para trás. Sua camiseta estava molhada e grudava desagrada​velmente no corpo. Quando chegasse ao acampamento tomaria um longo banho morno e um copo de refresco bem gelado. E depois pe​diria mais um...
Um leve ruído a fez voltar-se imediatamente, em pânico. Havia algo por ali! Algo que a seguia, por dentro do capim alto. Ficou imóvel, os ouvidos tentando captar o menor som. Subitamente uma imagem lhe veio a mente, enchendo-a de terror. As hienas! Lembrou-se daquelas cabeças enormese feias, das mandíbulas que podiam tri​turar ossos como se fossem torradas, dos dentes que rasgavam até despedaçar!
Em Serengeti ela aprendera que as hienas não eram meramente comedoras de carniça, como a opinião popular acreditava. Eram tam​bém caçadoras, e caçadoras cruéis, as mais impiedosas da África, com seu andar sinistro, sua cabeça escura e enorme, os olhos de fogo.
— Oh meu Deus! — murmurou, trêmula, com o rosto pálido de medo. Olhou para o céu, desesperada.
Um relâmpago surgiu parecendo a explosão de uma bola de fogo, seguido do ribombar do trovão, um barulho tão violento como se o céu estivesse sendo partido por mãos gigantescas. Nicolette estre​meceu violentamente. As primeiras gotas de chuva começaram a cair, batendo no chão poeirento. A estrada se estendia interminável a sua frente, em direção a uma paisagem vazia e sinistra.
Como pudera, imaginar que na África só havia florestas e bana​neiras ondulantes? Este imenso céu cor de chumbo era tão hostil quanto o de um deserto. O mato era seco e sem vida, e até mesmo a terra vermelha parecia árida, chupando as enormes gotas de água que caíam. Com muito medo de novamente olhar para trás, ela con​tinuou a andar sob a chuva cada vez mais forte. Logo estava enchar​cada, os cabelos louros aderindo desagradavelmente ao rosto, pingan​do ainda mais água pelas costas.
Mais um trovão que parecia abalar o universo! Não era um trovão como os que ela conhecia na Inglaterra; este era primitivo, de uma violência capaz de destruir mundos. O trovão parecia varrer todo o céu, e parar bem em cima de sua cabeça, enquanto a chuva caía, copiosa, como se o telhado do céu tivesse desmoronado.
Novamente o mesmo ruído atrás dela, desta vez bastante alto a
ponto de ser ouvido em meio àquela violenta tempestade. Era um barulho muito nítido, que vinha do mato. Olhou em volta, vendo que a vegetação estava balançando. Seria por causa da chuva ou...
Um urro soou no meio do aguaceiro e Nicolette correu.
Seu coração parecia ter subido para a garganta, respirava com dificuldade, e andava aos tropeços na lama que se formara com a água da chuva. Caiu, e se levantou, escorregou e caiu novamente.
A chuva implacável transformara a estradinha num rio lamacento e suas elegantes botas estavam agora imundas. Olhou outra vez para trás e o sangue gelou em suas veias. Dois vultos escuros estavam se aproximando dela, pela estrada. Hienas! Ela se abaixou, petrificada, escondida atrás de um arbusto.
Se ficasse imóvel, será que escaparia? Não. Elas farejariam seu cheiro, cheiro de um ser humano com medo, o que significaria que seu alimento estava ali por perto. Nicolette sentia-se completamente aterrorizada. Ficou de pé mais uma vez e correu pela lama procu​rando desesperadamente alguma árvore, algum lugar onde pudesse se esconder. Sem perceber, estava gritando o nome de Mark.
— Mark. . . Mark, ajude-me. . .
Olhou novamente por cima do ombro. Elas ainda estavam ali atrás! Os dois vultos escuros, as cabeças abaixadas, estavam cada vez mais perto. Em pânico, exausta demais para continuar a fugir, Nicolette caiu de joelhos. Seu coração estava acelerado, como se fosse arre​bentar, a garganta seca. Então duas luzes vararam a chuva e uma forma branca começou a se aproximar.
Seu coração quase parou! Depois deu um salto no peito, mas um salto de alegria! Era um automóvel, um Range Rover, com janelas escuras, enfrentando a chuva e a lama e vindo em sua direção. Reu​nindo todas as suas forças, ela ficou outra vez de pé e acenou, deses​perada. Sob o barulho dos trovões, o veículo parou a seu lado. Um homem alto, com botas e uma jaqueta militar, saltou e veio até ela.
Nicolette cambaleou para a frente e caiu nos braços dele, apertando o rosto contra aquele peito largo, balbuciando palavras de gratidão. Ele a envolveu com seus braços fortes e a amparou no momento em que seus joelhos fraquejaram, devido a tanta emoção. Ele a levou até o banco do carro. Já mais segura, com seu corpo reagindo ao susto, Nicolette ainda tremia convulsivamente, os olhos fechados. Final​mente os abriu.
— Bem-vinda a bordo — gracejou o homem alto de rosto bron​zeado, com uma barba escura.
— Graças a Deus você apareceu — disse ela, vendo aquele olhar calmo e cinzento, como se envolto em neblina. — Salvou a minha vida! Duas hienas estavam me perseguindo e. . .
— Hienas? — perguntou ele, a voz profunda e grave um pouco incrédula.
Nicolette voltou-se para onde ele estava olhando. Parados na chu​va, desanimados e infelizes, estavam dois filhotes de javali. Suas ca​ras, naturalmente macambúzias, pareciam agora ridículas no meio
da chuva e da lama. Viu-os fazerem meia-volta e se embrenharem no mato com as caudas erguidas.
— Oh. . . — suspirou ela.
— Não precisa ficar tão desapontada — disse ele. — Podiam facilmente ser duas hienas. — Deu a volta no carro, e se sentou atrás do volante. — Mas o que estava fazendo fora de seu carro?
Ela olhou para o homem barbudo e ensaiou um sorriso.
— Ele quebrou e então eu resolvi voltar a pé para o acampa​mento.
— No meio de uma tempestade? Sozinha e desarmada? — per​guntou ele, meio surpreso.
— Bem. . . Eu não sabia se alguém viria à minha procura. Mas, graças a Deus, você apareceu. — Os olhos cinzentos de bruma a olhavam, fixamente. — São somente quinze quilômetros. . . — bal​buciou ela, tentando se justificar — ... e eu não imaginava que a tempestade fosse cair tão depressa. . .
— Não precisa se defender — disse ele, compreensivo. — Se queria mesmo se matar, o problema é seu. — Olhou-a de alto a baixo. — Mocinha, você está mesmo uma tristeza.
Foi então que ela reparou que estava sem a jaqueta.
— Oh! Minha jaqueta! — exclamou aflita. — Eu devo ter dei​xado cair no meio da estrada!
— Quando estava sendo perseguida por hienas? — disse ele, com ironia e ela ficou vermelha.
— Todo o meu dinheiro está dentro dela. . . e as chaves do carro. Ele ergueu a mão morena e forte.
— Ok, eu entendi o recado. Vamos dar uma olhada.
O carro partiu pela estrada enlameada de terra vermelha. Nicolette, com a cabeça grudada na janela, sentiu-se vagamente perturbada pelo homem calmo a seu lado.
— Muito obrigada por ter me encontrado — disse ela. — Não sei o que teria feito se você não tivesse aparecido.
— Não precisa agradecer. Não é todo dia que eu sou abraçado e beijado por uma linda estranha. — Ela olhou rapidamente para ele, mas seu rosto estava impassível.
— Procurou muito tempo? — Nicolette perguntou.
— Eu não estava a procura de ninguém — disse ele, com impa​ciência. — Na verdade, eu estava a caminho para visitar um amigo.
— Oh! — exclamou ela novamente.
As maneiras daquele homem eram enganadoramente amáveis. A barba cerrada dava-lhe uma aparência feroz e, com as botas fortes e jaqueta de combate, poderia muito bem ser um soldado ou um lenhador. Mas a voz era calma e autoritária, e as mãos ao volante, embora fortes e obviamente acostumadas a trabalhos pesados, não eram grosseiras. Os olhos cinzentos encontraram outra vez os dela, com aquela leve ironia. Eram olhos desconcertantes, a calma apa​rente escondendo uma ousadia e uma coragem pouco comuns.
— Espero que esteja de olho na estrada, para encontrar sua ja​queta — disse ele, e novamente ela enrubesceu.
— Lá está! — gritou Nicolette.
Imediatamente ele parou e, agradecendo afobada, ela saiu para bus​cá-la. As bofas de salto alto deslizaram no chão escorregadio e com um grito engasgado ela viu-se estatelada no meio de uma poça. Com a lama grudada em seu corpo, lutou para ficar de pé outra vez, olhan​do rapidamente para o carro. O vidro escuro escondia o rosto do motorista. Por outro lado, refletia o seu, corado e confuso. Pegou a jaqueta, conferiu se as chaves ainda estavam no bolso e voltou, esfre​gando um braço machucado.
Quando abriu a porta, encontrou dois olhos frios.
— Tem alguma idéía do estado em que está? — perguntou ele. Nicolette abaixou o olhar para os jeans imundos e para a jaqueta enlameada em sua mão. Afastouos cabelos dourados da testa e olhou para ele.
— Não tenho o hábito de andar suja assim — disse desanimada.
— Estou contente em saber — respondeu ele, um brilho de humor nos olhos. — Incomodava-se de viajar lá atrás?
— O que disse?
— Este carro não é meu — falou ele, sério. — Não quero estra​gar os bancos, senhorita. . .
— Mercury. Nicolette Mercury.
— . . .srta. Mercury. Tenho certeza que encontrará onde se sen​tar, lá atrás. Talvez o estepe do pneu. . .
Humilhada, ela subiu na parte de trás, e se ajeitou entre caixas de ferramentas, sentindo-se exatamente como um cachorro sujo, rejeita​do pelos donos.
— E o meu carro? — perguntou.
— Imagino que seja alugado. Pois então é melhor que o deixe onde está e depois avise a companhia.
— Ah! Realmente você me salvou a vida, sabe? Ainda que as hienas não me encontrassem, eu poderia ter sido fulminada por um raio!
— Está bem, então me deve um favor, já que insiste — disse ele, olhando-a pelo espelho retrovisor. — Conte-me uma coisa, quem é Mark?
— Co. . . como? — gaguejou ela, sem entender a razão da per​gunta dele.
— Quando se atirou em meus braços você estava balbuciando alguma coisa sobre Mark.
— Sim — respondeu ela, embaraçada. — Acho que estava mesmo. Ele é. . . ele é o meu noivo. . .
— Ah! Eu pensei que poderia ser o seu santo protetor.
Ela olhou desconfiada para ele, através do banco. Um homem grande, de ombros largos e peito forte. Os olhos que estavam fixos na estrada eram de um cinza quase prateado. Os olhos aguçados de um caçador ou de um marinheiro. O nariz era reto, arrogante, um nariz normando, com os traços do rosto muito firmes. Mas a parte inferior do rosto estava escondida atrás de uma espessa barba negra, onde ela agora percebia alguns cabelos dourados.
— No começo eu pensei que você fosse funcionário da reserva — disse ela. Ele não respondeu nada.
— Você não é um guarda da reserva, é? — ela insistiu.
— O quê? Oh, não. . . Estou aqui de férias.
— Vai ficar em Serengeti muitos dias?
— Não. Vou embora hoje mesmo.
— Ah, sim... — falou desapontada, sem mesmo entender por quê.— Nós vamos embora amanhã.
— Você não devia ter saído sozinha, com um tempo destes — disse ele, olhando-a pelo espelho. — Mark não vai ficar zangado com você?
— Bem. . . não. Na verdade, Mark está na Inglaterra. — Ele a olhou intrigado. — Eu vim a Serengeti com alguns amigos.
— Ah... a última escapada de solteira, antes das algemas do matrimônio?
— Não exatamente. Nós dois resolvemos. . . — mas se calou. Não tinha que dar explicações sobre sua vida particular a esse estranho. — Nossas férias não coincidiram, foi isso.
Os olhos do homem ainda a examinavam pelo espelho. Depois ele fez um movimento quase imperceptível com os ombros, como se aquilo não o interessasse. Logo os enormes portões de madeira do Acampamento Bubi apareceram à frente deles, com duas enormes pre​sas de elefantes, de cada lado.
Nicolette indicou o caminho até o chalé que dividia com Julian e seus amigos. Chalé era uma palavra modesta, para a construção mais cara e luxuosa do acampamento. Quando ele a ajudava a saltar do Range Rover, as duas outras moças, Geraldine e Samantha, apare​ceram na porta.
— Nicky querida! — exclamou afetadamente Samantha, as pul​seiras de ouro batendo no copo que carregava na mão. — Pobre​zinha! O que aconteceu a você?	
— O carro quebrou — disse ela, terrivelmente consciente do esta​do lamentável em que se encontrava, em contraste com a elegância impecável das duas mulheres, que agora olhavam para o seu salvador com interesse. — Este cavalheiro me encontrou.
— Mas que amor! — ronronou Geraldine, os olhos castanhos claros brilhando ao encarar aquele homem alto e atlético. Estendeu para ele uma mão carregada de anéis. — Meu nome é Geraldine Parker.
Ele a cumprimentou com um gesto rápido, sem falar. Seus olhos cinzentos observando-as, com os copos de bebida nas mãos, as sofis​ticadas roupas "para safári" feitas de camurça e seda pura, as jóias de ouro e os brilhantes.
Nicolette sabia exatamente o que ele estava pensando: milionárias vigaristas. A pronúncia afetada, os rostos pretensiosos proclamavam o que elas eram. Neste instante Julian Mitchell apareceu, também com o copo na mão, o rosto bonito mas inchado de bebida, anunciando que ele já estava bêbado.
— Nicky, menina levada, o que foi que aprontou? — perguntou ele, depois de tirar o cigarro dos lábios. — O que aconteceu? E onde está o carro?
— Ele enguiçou — explicou Samantha, dando-lhe um sorriso sedu​tor. — E este amável cavalheiro deu a ela uma carona.
— Foi muita bondade sua — disse Julian com suas maneiras esnobes, sorrindo com superioridade. — Meu nome é Julian Mitchell.
— Alexander St. Cloud — respondeu o homem barbado, pegando com má vontade a mão que Julian lhe oferecia. Os olhos de Julian se iluminaram.
— É parente de Amory St. Cloud?
— Acho que não.
— Muito bem, meu caro, entre e tome alguma coisa. . .
— Por favor, não se incomode — interrompeu Alexander, com calma. Havia um brilho irônico no olhar dele, enquanto observava o grupo. — Estou realmente com pressa. Tenho que encontrar uma pessoa dentro de alguns minutos.
— Por favor, não vá ainda — murmurou Geraldine, lançando-lhe um olhar provocante. — Só um drinque, sim?
— Sim, entre, meu caro — insistiu Julian. — Afinal de contas o sol já está acima do. . . — parou de falar, e depois apontou um dedo triunfante para Alexander St. Cloud. — Eu o peguei! Você é filho de Paul St. Cloud, não é?
O outro concordou, consultando o relógio.
— Sou sim. Conhece o meu pai?
— Claro, foi ele quem construiu o meu barco! — exclamou Julian. E olhando para as outras: — Paul St. Cloud é o melhor projetista de barcos que existe. Estou encantado em vê-lo novamente, meu caro. Agora você não escapa, tem que aceitar um drinque e. . .
— Receio não poder — disse Alexander com firmeza. — E tam​bém. . . Nicky não está precisando de um bom banho quente?
Imediatamente Samantha e Geraldine chegaram perto de Nicky com gritinhos de simpatia. O homem barbado se livrou finalmente deles, e entrou no jipe com um movimento elástico. Deu um aceno rápido e partiu. As duas moças imediatamente cessaram de demonstrar tantos cuidados e ficaram olhando para o Range Rover, que se afastava.
— Quem era o homem mascarado? — perguntou Geraldine.
— Puxa, Nicky — acrescentou Samantha. — Como conseguiu descobri-lo? É o cara mais sexy que. . .
— Ei, você! — protestou Julian, com uma risadinha. Samantha era sua namorada e ele pegou possessivamente no braço dela. — Não comece a se interessar por outro homem, Sam. Você está comigo.
— Mas é claro, benzinho — disse ela sorrindo e beijando-o. — Então? Ouem é ele?
— O pai dele é um dos grandes projetistas de barcos da Grã-Bre-tanha. É dono do Estaleiro St. Cloud. Eles são engenheiros navais. Quanto a Alex... eu o encontrei uma vez, em Londres. Bom sujeito, mas um pouco duro demais. Parece que ele não trabalha com o pai. O negócio dele é aviação. Talvez seja piloto.
Geraldine ficou olhando para o Range Rover.
— Você precisa nos apresentar quando voltarmos à Inglaterra — disse ela, com sua voz ronronante. — Ele parece um homem que vale a pena conhecer, não importa no que trabalhe.
— Ele não gosta de mulheres do seu tipo, querida — comentou Samantha com um risinho maldoso.
— Acha mesmo? Pois eu gostaria de ter certeza.
— Mas, para falar sério, eu não acredito que Alex St. Cloud teria dinheiro para pagar suas peles, querida Geraldine — comentou Julian com sarcasmo. — Parece que escutei boatos que a firma dele tinha falido.
— Mas que pena — comentou Geraldine. — Será que é por isso que ele está de barba? Para fugir de credores?
— Ele não parecia estar fugindo de ninguém — disse a outra. — É melhor entrarmos, estou ficando molhada.
Todos abandonaram a varanda, deixando Nicolette sozinha. Nin​guém estava preocupado com ela, pensou ressentida.
Então lembrou-se dos olhossurpreendentes de Alex St. Cloud. Olhos duros e calmos, que desprezavam o mundo. Certamente ele não era homem de estar fugindo de nada. Quando o encontrasse da pró​xima vez, tinha que lhe agradecer melhor. Suspirou, olhando para sua figura coberta de lama. Um banho quente seria divino. Tirou a lama mais grossa das botas, endireitou as costas doloridas e entrou atrás dos outros.
CAPÍTULO II
Mas Nicolette não encontrou mais Alexander St. Cloud. Dois dias depois, estava de volta a Mombasa. O iate de Julian já estava pronto, à espera no ancoradouro. Era um barco grande e elegante, que se destacava entre as outras embarcações que enchiam o porto. O Elsie parecia exatamente o que era, um brinquedo caro de um homem rico. Julian tratava o barco como uma extensão de seu ego vaidoso. Nico​lette odiava a maneira como ele arrogantemente abria caminho entre as embarcações menores e mais fracas, nos portos apinhados. Muitas vezes Julian podia ser inacreditavelmente tolo e prepotente.
O Elsie fora reabastecido e equipado. Eles passaram pela Imigração e pela Alfândega e agora Julian estava fazendo a vistoria final, com um copo de conhaque na mão.
Nicolette tinha subido à parte mais alta da embarcação, na casa do leme, para apreciar a vista do porto e dar seu adeus especial ao Quênia.
Estava a caminho de casa. Voltava para Mark. Aquele pensamento não a deixou feliz, como antes. Será que ela também estava insegura? Olhou a cidade que se espalhava em volta do porto, com suas belas palmeiras, brilhando ao sol.
O porto fervilhava com barcos de toda a espécie, mas, a despeito daquela frenética atividade, não havia abalroamentos. Parecia existir um código instintivo, que protegia a todos. Eram embarcações de todos os tipos: desde os barcos árabes para navegação costeira com suas velas latinas, até botes pequenos e toscos, além de traineiras de pesca. Os veleiros navegavam entre eles, tão graciosos como damas da so​ciedade.
Do outro lado do porto um rebocador estava ajeitando um navio cargueiro prestes a atracar, e uma flotilha de barcos de quilha chata estava se espalhando para lhe dar espaço.
O Elsie estava se preparando para zarpar. Julian já tinha posto os motores para funcionar. Sentada calmamente na casa do leme, Nico-lette olhava toda aquela movimentação do porto com tristeza. Não queria ir embora do Quênia ainda. O tempo que passara naquele lindo pais tinha sido muito curto, curto demais para apreciar sua mágica atração.
Nesse momento Julian estava na roda do leme, queixando-se que ele estava enguiçado. Ela olhou com preocupação para o copo de conhaque na mão livre. Por que ele precisava beber tanto? Por que logo agora, quando estavam prestes a zarpar? Viu-o tomar mais um gole da bebida, com o rosto mais inchado e vermelho do que habitual​mente e em seguida abrir toda a válvula reguladora da pressão. As máquinas gemeram, levantando uma enorme vaga de água túrgida na popa. Frank Saunders foi até a casa do leme.
— Está com problemas, Julian?
— Eu mesmo resolvo — respondeu ele de mau humor.
Frank encolheu os ombros e voltou à sua cerveja. Samantha e Geraldine já estavam em seus postos favoritos no convés superior, meti​das em seus minúsculos biquinis, já envoltas em óleo de bronzear.
Nicolette voltou sua atenção para o porto fervilhante, observando um grupo de meninos negros que pescavam numa canoa. O cargueiro tinha conseguido enfim atracar e o som triunfante do seu apito ecoou pelos ares, enquanto os pesqueiros de quilha chata se afastavam caute​losos. Um alegre grupo de veleiros estava agora atravessando o meio do porto.
— Ótimo! — exclamou Julian, com agressivo bom humor. — Ve​nham todos agora dar adeus ao Quênia. Aqui vamos nós, Inglaterra!
Tomando o resto da bebida que ainda sobrara no copo, Julian guiou o barco, que lentamente se afastava do cais. Os meninos na canoa remaram frenéticos para saírem da frente, e Nicolette ficou assustada.
— Por favor, Julian, tenha cuidado. . . está tão cheio de barcos!
— Sei o que estou fazendo — respondeu ele, rindo.
Seu rosto estava coberto de suor, e Nicolette sentiu um nó no estômago. Fez uma prece, para que chegasse ao alto-mar sem nenhum acidente. . . Julian estava extremamente agitado.
— Vá com calma — disse ela. — Você está indo depressa demais. . .
— Não seja tão rabugenta, garota. Deixe tio Julian mosirar como é que se faz. . .
Ele estava agora manobrando o iate entre um grupo de pequenos pesqueiros, e Nicolette estremeceu quando por pouco ele não foi em cima de um deles. Viu os rostos zangados dos africanos quando pas​saram ao lado deles. Julian riu. A entrada do porto estava atulhada de veleiros, esperando a hora de pegarem o alto-mar, e ele tocou o apito, impaciente. O Elsie então parou, e ficou boiando, no mar agitado.
Julian passou a Nicolette seu copo para que ela o tornasse a encher. Ela sacudiu a cabeça, negando-se.
— Espere até sairmos do porto — pediu.
Julian olhou-a zangado, mas nada disse. Geraldine apareceu nesse momento na porta, o corpo brilhante de óleo. 
— Estamos esperando o quê? — perguntou ela. Julian fez um gesto, mostrando com desprezo, os barcos à frente.
— Esses malditos veleiros -— respondeu ele. — Olhe só, como sempre, estão entupindo o porto. Isso não devia ser permitido. — Olhou seu sofisticado relógio de ouro. — Eu quero estar no mar por volta do meio-dia, com todos os diabos!
Antes que Nicolette pudesse impedi-la, Geraldine tinha servido a ele mais uma dose, e lhe entregava o copo.
— Isto vai acalmar você — disse ela, sorrindo. Ele bebeu tudo e Nicolette sentiu sua preocupação aumentar. Geraldine olhava, incon​sequente, para as velas à frente deles.
— É uma bela vista — comentou.
— O que tem de bonito? — retrucou ele. — Um bando de idiotas brincando de andar de barco! Mas que inferno, por que essa corja não se apressa? Assim vamos ficar aqui o dia todo!
Subitamente o vento soprou e por um instante fez-se um espaço entre os veleiros. Julian agarrou o timão.
— Pronto! — exclamou. — Chegou a nossa chance. Vou passar agora. . . para o diabo esta fila! — Ele abriu o apito e o Elsie seguiu para a frente, no meio do vazio que tinha se formado por causa do vento.
— Julian! — gritou Nicolette. — Pare! Vai acabar batendo em alguém. . .
— Vou uma ova! — foi a resposta grosseira.
Geraldine segurou no ombro dele, os olhos castanhos brilhando de excitação. A quilha branca cortava a água como uma faca. . . mas o espaço que num instante fora grande agora começava a diminuir.
Um iatista, manobrando sozinho um catamaran conseguiu na última hora se livrar, e Julian teve que fazer uma rápida manobra para evitar um segundo barco. Para seu horror, Nicolette viu um terceiro barco bem à frente do caminho do Elsie, um belo veleiro cinzento, com uma enorme vela branca e preta. Estava bem na rota do Elsie!
— Julian! — Nicolette escondeu o rosto nus mãos, enquanto ele tentava girar o timão, sem parar de praguejar.
Depois de uma pausa ansiosa, um baque surdo fez todos perderem o equilíbrio e serem atirados longe. Nicolette descobriu o rosto a tempo de ver a linda vela passar colada ao convés. Alguém gritou, ouviu-se o ruído de um copo quebrado e Geraldine conseguiu fazer calar o apito. Um silêncio mortal se seguiu, enquanto o Elsie fazia um círculo, ainda afugentando os barcos à sua frente.
Julian olhou para trás com uma expressão perturbada. O iate que eles tinham abalroado adernara e a vela preta e branca estava incli​nada sobre a água. Ao longo do casco brilhante havia um enorme arranhão, e um homem tinha caído ao mar. Seu salva-vidas laranja brilhava na água enquanto ele nadava de volta ao barco danificado.
— Espero que ele esteja bem — murmurou Geraldine. Com evidente esforço, Julian tentou recuperar o sangue-frio.
— Mas claro que ele está bem — disse, agitado, agarrando a corda do apito. — Vamos dar o fora daqui antes que a polícia do porto. . .
— Não! — gritou Nicolette, ficando na frente dele. — Está louco,Julian? Alguém pode ter morrido e. . .
— Oh, bobagem — interrompeu Geraldine, irritada. — Não diga besteiras! Olhe só o homem subindo de volta. E olhem, o iate está em pé, novamente.
A alta vela voltou a ficar na posição perpendicular. Em volta, os veleiros começaram a se aproximar do Elsie, de todos os lados, e eles começaram a escutar gritos revoltados.
— Vou dar o fora! — disse Julian, nervoso e segurando na corda para apitar. Então Nicolette fechou os punhos, pronta para tirar o apito da mão dele.
— Ahoy, Elsie! Ahoy! — Um barco tinha chegado bem ao lado deles e um homem de meia-idade com o rosto mostrando toda a sua indignação olhou para eles.
— Eu vi tudo! — ele gritou. — Você foi bem em cima dele, seu idiota!
— Ele estava na minha frente — retrucou Julian, a mão ainda segurando a corda.
— Nada disso! Foi você quem foi para cima dele. De qualquer modo é melhor que volte e preste assistência, jovem. . . Um tripulante está ferido.
— Oh, não! — protestou Geraldine. — Realmente, Julian, você às vezes parece um idiota!
Samantha e os outros dois estavam agora na casa do leme.
— Volte até o veleiro, Julian — aconselhou Frank.
Julian estava nervoso, com o rosto muito vermelho, mas conseguiu pôr o motor em movimento. Fez a manobra vagarosamente, em direção ao barco cinzento que estava à deriva nas águas turvas.
— Espero que todos vocês me defendam, se houver encrenca — ele murmurou.
Quando o Elsie chegou perto do outro barco, ele colocou no rosto um sorriso despreocupado.
— Ahoy! — chamou, tentando ler o nome do barco. — Mistral, não é? Tudo bem aí?
Um rosto furiosamente zangado olhou para cima, com um nariz normando, e uma barba negra.
— Deus todo-poderoso! — exclamou Alexander St. Cloud. — Eu devia ter adivinhado que eram vocês, seus idiotas! Está bêbado, seu imbecil?
— Tenha calma — pediu Julian. — Está tudo em ordem aí em baixo?
— Não, nada está em ordem aqui embaixo! — respondeu Alexan​der St. Cloud, os olhos cinzentos fuzilando. — Você quebrou o braço do meu tripulante e ele está perdendo sangue.
Foi só então que Nicolette viu o homem deitado na popa, uma mancha vermelha de sangue na madeira branca. Sentiu a náusea cres​cendo dentro dela, e escutou Frank praguejando baixinho. Alexander St. Cloud parecia querer assassinar todos eles.
— Deus do céu! — gritou ele. — Não fiquem aí parados. Ajudem-me a subir no seu navio de guerra. . . ele tem que ir para o hospital. E depressa!
O médico saiu da sala de operações tirando as luvas e olhando sem simpatia para eles. "Estrangeiros ricos", Nicolette imaginou que ele estaria pensando. Ele olhou para os rostos preocupados com um sorriso contrafeito.
— Quem é o sr. St. Cloud? — perguntou com gentileza.
— Não está aqui, no momento; foi até lá embaixo dar um telefo​nema — disse Julian. — Mas o meu nome é Julian Mitchell e eu sou. . .
— Ah, sim. É o homem cujo barco causou todo o dano no braço do sr. Franklin.
— Bem... — retrucou Julian, meio embaraçado. — Isto é um bocado de exagero, doutor. Eu estava. . .
— Como está o sr. Franklin? — perguntou Nicolette.
O médico voltou para ela o olhar cansado, e depois sorriu leve​mente.
— Está bem. Sofreu uma fratura exposta na parte superior do braço — explicou. — É um ferimento sério, e ele perdeu muito sangue mas parece que não haverá complicações. A fratura vai consolidar perfeitamente.
Tirou a outra luva com expressão carrancuda. Nicolette deu um suspiro de alívio e ele olhou para ela.
— É amiga do sr. Franklin?
— Não. Eu estava a bordo do outro barco. O Elsie.
— Ah... — A expressão do seu rosto mudou.
Foi então que Alexander St. Cloud chegou na sala de espera, com um ar preocupado.
— Como está ele, doutor? Sou Alex St. Cloud.
— Seu amigo está bem — respondeu o médico, afável. Em seguida, repetiu o que já havia dito a Nicolette. — Ele poderá ter alta dentro de uma semana, talvez menos.
Quando o médico saiu para o corredor, Alex virou-se para eles, com uma expressão dura no rosto barbado.
— Espero que estejam muito orgulhosos de si mesmos! — ex​clamou.
Samantha adiantou-se sorrindo amável.
— Não fique assim, Alex. . .
— Não me chame de Alex!
— Sr. St. Cloud, como queira — continuou ela, sem se abalar. — Seu tripulante estará como novo, dentro de algumas semanas. Não fique assim zangado. . .
— Como novo? — repetiu ele, irritado. — O que pensa que ele é? Um tipo de eletrodoméstico? — Virou-se para Julian, que estava mordendo os lábios, e, por um instante, Nicolette pensou que ele ia dar-lhe um soco. — E quanto a você "capitão". . . — enfatizou a palavra com sarcasmo — . . .devia ser julgado por estar bêbado guiando o barco.
— Calma aí, meu velho. . .
— Eu senti o cheiro do conhaque em seu bafo — continuou Alex. — Meu Deus, gostaria que vocês, marinheiros amadores, ficassem velejando no Lago Lomond, e não em alto-mar, pondo a vida dos outros em perigo.
Nicolette tentou um tímido sorriso.
— Sr, St. Cloud... — começou ela — ... Alex, nós todos senti​mos muito por seu amigo. E pelo seu barco — murmurou, morta de vergonha pelos outros.
Alex St. Cloud olhou zangado para ela, como se estivesse em dúvida se deveria também tratá-la com dureza.
— Crianças ricas — disse ele afinal, olhando friamente para o grupo. — Crianças ricas e idiotas! Vou ver Pete.
Passou no meio deles e entrou na enfermaria onde estava o amigo.
— Bom sujeito. . . não foi o que você disse, Julian? — caçoou Samantha, o belo rosto fazendo uma careta despreocupada. — Pensei que ele ia avançar em você.
— Pois eu não o culparia se ele tivesse avançado. — Nicolette falou com uma voz revoltada, quase sem pensar. Todos se viraram para ela.
— E por que não, Nicolette? — Os olhos de Samantha estavam frios.
— Porque ele tem razão. Vocês são realmente crianças ricas e irresponsáveis — disse ela, agitada. — Será que não percebem que quase mataram um homem? Poderiam ter matado a ambos. . .
— Ora, acabe com isso — avisou Geraldine. — Você também estava no barco, sabe muito bem!
— Claro que sei! E estou terrivelmente envergonhada!
Eles olharam para ela por alguns instantes e depois Julian tirou do bolso um maço de cigarrilhas.
— Não adianta ficarmos brigando agora — disse ele, soltando uma baforada bem em cima do aviso: "Não Fume". — O melhor a fazer é voltarmos ao hotel e tentarmos conseguir os mesmos quartos, até amanhã. — Depois se virou para Nicolette: — Vamos, Nicky.
— Verei vocês depois — ela disse, aborrecida.
Ele encolheu os ombros num gesto de indiferença, mas depois pensou melhor, e olhou para ela.
— Você veio somente porque Mark Macmillan é nosso amigo — disse ele. — De outro modo, nunca teria posto o pé em meu iate. Quero que se lembre, Nicolette, que você teve umas belas férias inteiramente de graça no Elsie. . . Não brinque com sua sorte. — Ele a olhou bem nos olhos, e depois deu um sorrizinho cínico. — Enten​deu, Nicky? Ótimo. Vamos nos ver mais tarde, no hotel. Agora estou com vontade de beber alguma coisa.
Ela os viu sair com aquela inata arrogância das pessoas de sua classe, tentando lutar contra as lágrimas de humilhação. Decidiu sentar-se no banco. Uma mulher negra, sentada à sua frente, olhava-a com curiosidade. Nicolette fechou os olhos e se inclinou no encosto, lembrando-se do abalroamento. Provavelmente o conserto seria dis​pendioso. E ela sabia que tinha razão; eles poderiam ter matado os dois tripulantes do Mistral.
Pensou no que seu pai teria dito vendo aquilo. O pai, tão grande e forte, que a ensinara a velejar antes mesmo de ter dez anos de idade. Ele era tão preocupado com as normas de segurança no mar! Lem​brou-se do rosto alegre, dos braços poderosos que jogavam sua menininha para o ar e depois a apanhavam, cheios de vigor. E então, um belo dia, ele fora velejar pelo Canal, numa manhã de cerração, e ela nunca mais o vira.
Somente o pequeno barco fora encontrado. Sua morte a deixara completamente só. Ela agora só tinha o túmulo damãe, a quem nunca conhecera. Nunca poderia esquecer de como a morte estava sempre presente no mar.
Quanto a Julian e os outros. . . o sofrimento e a dor não faziam parte de suas vidas. Eles não compreendiam. Somente o prazer inte​ressava a eles, não importava quem ferissem pelo caminho. Abriu os olhos e Alex St. Cloud entrou na saleta, o rosto amargurado.
Ela se levantou, nervosa e foi ao seu encontro.
— Que diabo está fazendo aqui? — resmungou ele.
— Eu... eu fui sincera quando disse que sentia muito, pelo que nós fizemos — disse ela, torcendo as mãos, sem coragem de enfren​tar seu olhar zangado. — Sei que é imperdoável... o que Julian fez. Mas eles são irresponsáveis mesmo, você tem razão. Eles não sabem agir de outra maneira e. . .
— Então eles a mandaram ficar para chegar a um acordo?
— Não — respondeu ela, encarando-o. — Eu só queria tentar explicar a você. Eles são mesmo uns cretinos, infantis. . . mas algum dia vão crescer. E eu queria novamente dizer o quanto senti. Eu estava na casa do leme, e devia ter impedido Julian, mas não consegui. E estou muito aborrecida...
— Está bem — olhou-a friamente — Agora é melhor que corra para eles. Você é o cachorrinho deles, não é?
— O que quer dizer com isso? — perguntou ela com dignidade, o rosto corado.
— Você é a parente pobre, não é? — disse ele, com desdém. — Dá para ver que você não é do grupo. Então eles a deixam sempre por perto para fazer o trabalho sujo, não é? Como pedir desculpas para os idiotas que eles encontram pelo caminho. É isso?
— Está enganado, sr. St. Cloud — disse ela olhando-o de frente, terrivelmente magoada. — Eu não sou mesmo do grupo deles. E eu somente vim com eles porque Julian é amigo de Mark. Mas não sou cachorrinho de ninguém.
Ele a olhou por um instante e depois insistiu:
— Pois bem, vá atrás deles, seja você o que for. Você me deixa doente!
Nicolette se virou, ferida. Era compreensível a raiva que ele sentia e não havia mais nada que ela pudesse fazer. Será que não era ver​dade o que ele dissera? Será que ela estava se tornando a parente pobre no grupo milionário em que Mark vivia? Virou-se para Alex.
— Antes de ir. . . Seu amigo já voltou a si?
— Sim — disse ele — Por quê?
— Gostaria de falar com ele.
— Mas que idiotice é essa?
— Tenho o pressentimento que o sr. Franklin não será tão ran​coroso quanto o senhor — disse ela, controlada.
Passou por ele e entrou na enfermaria. No fundo encontrava-se deitado um homem, o rosto pálido e cansado. Estava com o peito enfaixado e um dos braços em cima das cobertas, preso a uma com​plicada armação de alumínio. Nicolette mordeu os lábios. Se, pelo menos, os outros tivessem visto isso. . . o resultado de sua estupidez.
Ela se inclinou para o rosto pálido c ele abriu os olhos, surpreso.
— Sr. Franklin — começou ela — meu nome é Nicky Mercury. Eu estava no Elsie. . . o barco que bateu no seu. — Ele fez um leve sinal com a cabeça, os olhos embaçados pelas drogas e pela dor. — Quero lhe dizer que sinto muito. Foi uma coisa imperdoável. Sinto de todo o meu coração.
Ele a olhou com os cansados olhos azuis e depois sorriu. Abriu a mão, e ela a segurou entre as suas.
— Eu ficarei bom — murmurou ele. — Bons médicos. Boas enfer​meiras. Ficarei bom. . . não se preocupe. — Sorriu outra vez, logo contraindo o rosto, e fechando os olhos. Nicolette pôs a mão dele com cuidado sobre a coberta e se levantou. Alex estava perto dela, olhando-a desconfiado.
— Ele não vai poder velejar durante todo este ano — disse ele asperamente. Depois seu olhar pousou na armação de metal no braço do amigo, e voltou a encará-la friamente. Sem uma palavra, deu meia-volta e foi embora.
Nicolette saiu atrás, devagar, ele a estava esperando.
— Escute, diga a Mitchell que ele terá a responsabilidade de todas as despesas com o Mistral. Vai lhe custar um bom dinheiro... o barco tinha acabado de sair do estaleiro. Quanto a Pete, eu pagarei as despesas com o hospital. Não quero que aquele cachorro pague o tratamento. E diga-lhe também para arrumar um bom advogado. Um muito bom. — Deu as costas para ela, se afastando.
— Diga você — exclamou Nicolette, com calma.
Ele parou e deu meia-volta, olhando para ela com fúria.
— Eu. . . eu quero pedir desculpas pela maneira vergonhosa que Julian e os outros o trataram, Alex. . .
— Economize seu fôlego — respondeu ele, sarcástico. — Estou cheio de ouvir a voz de todos vocês.
— Seu barco. ... ficou muito danificado?
— Vai conseguir velejar — respondeu ele, secamente. — Embora não seja provável que eu consiga encontrar algum tripulante aqui nesta maldita cidade.
— O Mistral não pode ser pilotado por uma só pessoa? — ela perguntou, amável.
— Não com segurança — disse ele, baixando os olhos para ela, ainda zangado. — Precisa de no mínimo duas pessoas. Preferivelmente três. Mas por que está interessada?
— Eu me sinto responsável — ela respondeu com delicadeza.
— Devia, mesmo — disse ele, taciturno.
Ela continuou atrás dele, depois parou ao seu lado na enorme porta do hotel.
— Está com muita pressa de voltar à Inglaterra? — perguntou ela.
— Estou sim. Uma pressa enorme. Há um comprador em potencial para o Mistral em Londres, Bjorn Olafsen. Ele é um grande corredor de regatas. E ele está com pressa. Quer o Mistral para a Regata Trans-Atlântica. Se eu não conseguir levá-lo a tempo e consertá-lo em doze dias, meu pai vai perder a venda para o seu maior concorrente.
— O Elsie complicou as coisas para você, não é?
— Não o Elsie — disse Alex, sombrio. — A tripulação dele.
— Sinto muito — ela começou a dizer mas não prosseguiu ao ver o brilho perigoso em seus olhos. — Vejo que também me odeia. Vou deixá-lo sossegado.
Antes dela se afastar, ele a olhou em silêncio, mas repentinamente começou a falar:
— O Mistral é o melhor barco que o meu pai já projetou — desa​bafou Alex. Custa milhares de libras projetar e construir um barco tão sofisticado quanto este. É muito importante para meu pai começar a vender logo. Além do mais, se um iatista tão conhecido como Olaf​sen competir com o Mistral, e mostrar aos outros profissionais o que ele é capaz de fazer. . . então os meses de trabalho começarão a ser pagos. Sim, os seus amigos me complicaram a vida.
— E o que está pretendendo fazer? — perguntou ela.
— Não tenho a menor ideia — respondeu ele. — Agora mesmo estou providenciando para que Pete volte para casa logo que os médi​cos permitam. Depois vou ficar sentado, esperando que me apareça alguém que entenda de barcos.
Novamente ele fez menção de partir.
— Alex. . .
— E agora o que é?
— Alex, se acontecer de eu encontrar alguém que gostaria de ir com você... há algum lugar para onde eu possa telefonar?
— Sim — respondeu ele, intrigado. — Pode ligar para o Iate Clube. É só chamar o capitão do Mistral.
— Boa sorte — ela disse então, vendo-o afastar-se na noite.
A gargalhada imbecil de Julian chegava até ali no saguão. Como se aquele som lhe fizesse mal, Nicolette saiu para a calçada. Começou a caminhar pelas ruas movimentadas de Mombasa. A noite, a cidade fervilhava, cheia de perfumes e sons. Comprou um sorvete de um vendedor ambulante, e olhou distraída as vitrinas enfeitadas com artigos para turistas.
O porto estava iluminado, os barcos parecendo brinquedos colo​ridos, o cheiro de curry e outros temperos enchendo o ar. A figura de Nicolette, com seus seios grandes e firmes, os belos cabelos louros que passavam dos ombros atraíam os olhares masculinos, mas ela nem percebia.
Sentou-se perto de um monumento, olhando para a baía escura, com seus barcos coloridos. Como sempre, seus pensamentos voaram para Mark Macmillan. Sabia que o acidente daquele dia abriria ainda mais a brecha que havia entre ambos; ele apoiaria Julian, não im​portava de quem fosse a razão. Mark e seus amigos sempre se uniam, num sentimento de classe social, sem consideração pelos direitos das outras pessoas. Pessoas como ela própria. Começara a perceber que o mundo deMark estava cheio de fios invisíveis. Mas ele era assim e nunca mudaria por causa dela. Será que perdera o amor dele? Sentiu um arrepio percorrer seu corpo, quando se perguntou se não seria ela que deixara de amá-lo.
Pelo menos tinha o consolo de poder voltar ao seu trabalho. Ficava completamente absorta quando cuidava de limpar e restaurar alguma tela preciosa, às vezes coberta por uma camada de sujeira que tirava o brilho das cores originais. Sua especialidade era a restauração de quadros a óleo, e apesar de tão jovem já começava a ficar conhecida no mundo da arte. Principalmente por causa de um Rubens, que fora rasgado por um maníaco, e que ela recuperará com tanta meticulosi​dade. Fora até entrevistada pela TV. A partir de então as galerias procuravam-na sempre que o trabalho exigia competência e dedicação.
Conhecera Mark em casa dos pais dele, quando a chamaram para recuperar uma coleção de segunda classe de marinhas. A sra. Macmillan tinha esperanças que, com a restauração, os quadros provassem ser de maior valor, o que naturalmente não acontecera.
Nicolette se levantou, desanimada, tirando o pó das calças com​pridas. Ainda indiferente aos olhares masculinos, ela voltou para o hotel, devagar.
Já no quarto, deitou-se na cama, infeliz. Muitas coisas tinham mu​dado naquelas vinte e quatro horas, mas ela não sabia bem o quê. Era como se até agora usasse óculos cor-de-rosa para ver o mundo e de repente os tivesse tirado.
Lembrou-se dos rostos no iate, naquela manhã. Feios, egoístas, covardes. Sempre soubera que eram superficiais, acreditando-se muito sofisticados e interessantes, escondendo personalidades fracas. Mas agora ela os vias sob a verdadeira luz: infantis, corruptos, usando a própria fortuna e privilégios para invadir a vida dos outros. Não havia nada de atraente em nenhum deles!
Num impulso súbito, pegou o telefone na mesinha ao lado e pediu à telefonista uma ligação internacional. Deu o número de Mark, em Londres. Quando a voz dele, esnobe e fanhosa por causa da bebida, chegou até ela, percebeu que ligara no momento errado. Havia nele um tom agressivo, que nas últimas semanas ela aprendera a temer.
— Mark? Sou eu.
— Como vai você? Como vai o Quênia?
Ela suspirou, percebendo que afinal de contas não queria falar com ele. Odiava quando Mark ficava bêbado.
— Só queria escutar sua voz — ela disse num falso tom de des-contração. — Não quero aborrecê-lo. . .
— Bobagem. Quais são as últimas?
Ela então lhe contou sobre o acidente. Ele escutou em silêncio. Depois perguntou, agressivo:
— E daí? O que esperava que Julian fizesse?
— Bem — balbuciou, sem querer brigar com ele. — Julian pode​ria reconhecer que estava errado, o que seria bem mais cavalheiresco e. . .
— Desde quando você entende de cavalheirismo? — perguntou ele com impertinência. Nicolette enrubesceu e preferiu igonrá-lo.
— . . .e, em segundo lugar, ele realmente deve a Alex os reparos.
— Estou vendo que também agora entende de leis. . .
— Pode ser que eu não entenda de leis — ela respondeu com toda a calma que pôde. — Mas eu entendo de navegação. E Julian estava errado. Não, pior! Ele foi criminosamente negligente. E estava bêbado!
— Antes de começar a fazer acusações, lembre-se que Julian proporcionou a você férias gratuitas, Nicky. Não morda a mão que a alimenta, menina.
— Eu paguei a minha parte — ela retrucou — e você bem sabe que eu preferia ter vindo de avião. Eu... eu não queria vir no Elsie. E quanto a Julian, ele podia ter matado Alex, hoje.
— Alex? — repetiu ele — Você parece estar muito íntima desse sujeito que eu nem sei quem é.
— Garanto que ele pelo menos é decente — disse ela, começando a se irritar. — Salvou-me a vida em Serengeti, se quer mesmo saber.
— Verdade? — Mark perguntou com ar de pilhéria — Conte! Estou louco para saber.
Ela contou a história o mais secamente possível, e no fim ele resmungou.
— Hum... até parece que você está apaixonada por este paradig​ma de virtude, minha cara Nicky. . . não está?
— Você está bêbado, Mark — respondeu ela. — Acho que não estou gostando de falar com você.
— Espere — ele se calou um instante, em seguida prosseguiu com uma voz que a deixou intrigada. — Nicky, alguém falou sobre mim com você?
— O tempo todo. . . você é o principal assunto de nossas con​versas — ela respondeu. — Por quê?
— Bem. . . não é nada.
— Mark — perguntou ela, paciente. — O que é?
— Bem, eu estava imaginando se alguém não teria dito. . . mas não é nada. Esqueça.
— Você está irritante, Mark. Algum problema?
— Não, eu é que estava querendo saber se você estava aborrecida com alguma coisa. . . — respondeu ele, misterioso.
Ela estava irritada agora. Sabia que ele havia aprontado alguma e a estava provocando para forçá-lo a dizer o que era. Esse costume dele já estava se tornando muito cansativo para ela.
— Mas é claro que estou aborrecida, Mark. . . com o acidente. Odeio a idéiá de voltar para casa no Elsie!
— Mas só por isso, Nicky? Não aconteceu mais. . . mais alguma outra coisa?
Ela notou a insinuação na voz dele.
— O que está querendo dizer?
— Ninguém contou nada a você?
— Sobre o quê?
— Oh. . . — ele riu. — Você sabe. . . mexericos. . .
— Por que alguém iria falar sobre você?
— Oh, eu não sei — respondeu ele, confuso.— Foi só uma ideia, Nicky. . . Pensei que alguém poderia comentar alguma coisa sobre mim. . . e Gerry. . .
— Geraldine? E você? — Nicolette balançou a cabeça, atordoada. — Que tipo de mexericos?
— Você está querendo me atormentar? — perguntou ele, pare​cendo um pouco nervoso.
Por alguma louca razão, Mark pensou que ela havia descoberto alguma coisa sobre ele e Geraldine. . .
— Mark, você e Geraldine discutiram por alguma coisa?
— Não discutimos, menina — disse ele, rindo outra vez. — Escute, para começar, foi tudo um acidente. . . Começou naquele fim de semana, na Escócia, quando você pensou que nós estávamos passean​do a cavalo. . .
Nicolette estava tão chocada que não conseguia falar. Mark con​tinuou:
— Não precisa fugir de mim, Nicky, imagino o que aconteceu. Aquele linguarudo do Frank sempre teve ciúmes de mim e Geraldine. É bem típico dele contar tudo a você. . . me pegar pelas costas. O que foi que ele disse, exatamente?
— Mark — perguntou ela, quase num sussurro. — Há quanto tempo isto continua?
— Eu já disse a você. . . Desde a Escócia. Talvez um ano.
— E vocês têm. . . dormido juntos?
— Não seja infantil — disse ele. — É claro que temos dormido juntos! — Depois do silêncio dela, ele continuou: — Nicky? Você entende, eu e você não. . . não tínhamos relações. Um sujeito precisa de distração, na vida.
— Você não faz outra coisa, além de se divertir — disse ela, aper​tando na mão o aparelho. — Nós íamos nos casar!
— Nós ainda podemos nos casar — disse ele, com total falsidade na voz. — Se você quiser. . .
— Se eu quiser!
— Estou desconfiado que você está caidinha por este tal de St. Cloud e me passou para trás. Não precisa esconder isso de mim, Nicky. . .
— Passei você para trás? Está falando como um menino!
— Quer dizer que você não. . . não se entregou a ele?
— É isto mesmo que pensa de mim? — perguntou ela, sem poder acreditar no que ouvia.
— Não poria a mão no fogo por você. . . às vezes você pode ser bem malvada. . .
— Para ser sincera... — ela retrucou indignada — ... Alex é meu amante sim! E eu vou voltar com ele, no Mistral!
— Posso então concluir que o compromisso que havia entre nós está acabado? — disse ele parecendo muito aliviado.
— Mark, você forçou toda essa conversa, não forçou? Você queria que eu soubesse. Estava morto de vontade de me contar este seu romance sujo com Geraldine. . .
— Calma agora. . . — exclamou Mark, e ela notou que ele se sentia vagamente culpado.
— Se você queria acabar com o que havia entre nós por que não me disse sinceramente? — disse furiosa. — Não precisa chegar a esse ponto!
— Escute aqui, Nicky, não seja criança. . .Ela bateu o telefone e escondeu o rosto nas mãos, explodindo em lágrimas ardentes.
Quando se acalmou um pouco, pegou outra vez o fone sentindo a cabeça rodando. Alex a levaria com ele? Provavelmente não. Na ver​dade, era certo que não! Ele obviamente a associara à dissoluta tri​pulação do Elsie. E agora não podia se arriscar a não ser aceita por ele. Um plano louco começou a se formar em sua mente. Pediu a telefonista local que ligasse para o late Clube.
A voz de Alex soou fria e impessoal:
— Sim?
— Encontrei seu tripulante — disse ela. — Quando parte de Mombasa?
— O mais rápido possível, é lógico — respondeu ele. — A maré sobe hoje às três da madrugada. Eu poderia zarpar a esta hora, o Mistral está preparado. Por quê?
O coração de Nicolette estava aos saltos. Três da manhã. . . ainda estava escuro. E haveria ainda tempo. . . quem sabe daria certo! Pensou nos olhos penetrantes de Alex. Será que conseguiria enganar aquele homem? Quem sabe! Quem sabe, ao menos por algumas horas.
— Conheci um rapaz num bar esta noite — disse ela. — Parece que é estudante. Ele mencionou que estava querendo uma passagem para voltar para casa. Foi roubado. . . perdeu todo o dinheiro.
— Bem, quem é ele? — perguntou Alex. — Qual é o nome?
— Oh. . . ah. . . era Timmy — respondeu ela. — Mas também pode ser Tommy.
— Isto não tem importância — disse ele, impaciente. — Sabe onde encontrá-lo?
— Oh, sim.
— Onde?
— Bem — ela ficou indecisa — ele disse que ia sair esta noite. Eu não sei bem onde. Quer que eu entre em contato com ele, quando voltar?
— Não. Eu mesmo falo com ele — respondeu Alex. — Onde está hospedado?
— Eu não tenho certeza. Escute — disse ela, desesperada — Eu falarei com ele logo que voltar e o mandarei ao seu barco. Será que serve assim?
— Acho que não tenho escolha — disse Alex, depois de uma pausa. — Olhe, este rapaz está metido em alguma encrenca? Drogas ou coisas assim?
— Oh, não! — exclamou ela. — Nada disso.
— E como você sabe?
— Não tem o tipo — ela afirmou convicta. — Mas eu sei que ele está ansioso para arranjar uma maneira de voltar.
— Está bem, diga a ele que eu pagarei de acordo com a tabela do Sindicato dos Marinheiros. E faça com que esteja no barco o mais depressa possível. Está bem?
— Está bem — respondeu ela, radiante.
— Se ele chegar até três da madrugada, zarparemos imediatamente. Entendeu?
— Direi a ele — prometeu Nicolette.
Estava começando a fazer mentalmente a lista de coisas que pre​cisaria. Será que haveria ainda alguma farmácia aberta?
— Escute, como é mesmo o seu nome? — perguntou Alex.
— Nicoletle Mercury.
— Isto mesmo. E todos a chamam de Nicky, não é?
— Às vezes — respondeu ela.
Ele não podia adivinhar que ela odiava aquele apelido com que Mark desde o princípio teimara em chamá-la.
— Nicky, se mandar este tal de Timmy ou Tommy para o Mistral esta noite, ficarei muito contente.
— Farei o possível.
— Sim. . . olhe, desculpe se fui grosseiro com você. . .
— Eu compreendo. Agora mesmo vou atrás dele.
Com um apressado adeus, ela desligou, e correu para o elevador, contando seu dinheiro. Será que conseguiria? Estaria escuro, sorte dela. E o disfarce só teria que durar algumas horas. Uma vez em mar alto, ele não poderia voltar.
Encontrou logo uma farmácia aberta, onde comprou tesoura, tinta para cabelo, aspirinas, pinturas, pílulas contra enjoo, cola. 
Com os braços carregados, Nicolette correu pelas ruas apinhadas até o hotel. No elevador, consultou o relógio: quase dez e meia.
— Droga! — praguejou.
Não teria muito tempo.
CAPÍTULO III
Eram duas e meia quando o táxi finalmente chegou ao cais deserto com os faróis iluminando o caminho através da escuridão total. Alex St. Cloud levantou o olhar dos mapas que estava examinando, o coração se alegrando. Será que sua sorte estava mudando?
Um vulto franzino, metido num abrigo enorme desceu do auto​móvel e olhou hesitante os iates silenciosos. Vendo a lâmpada pen​durada no convés do Mistral, acenou para Alex. Pagou o táxi e carregou suas sacolas para bordo do belo iate cinzento. Alex aumentou a luz do lampião, e um clarão amarelado iluminou a prancha de subida. Foi ao encontro do recém-chegado, um rapazinho magricela.
— Sr. St. Cloud? — perguntou o rapaz, com uma voz rouca. — Meu nome é Tommy Watson. Foi Nicky quem me mandou.
— Alô — respondeu Alex, examinando desconfiado o rapaz, na luz fraca. Cabelos pretos curtos, um rosto surpreendentemente deli​cado, um bigodinho preto, muito engraçado. Havia algo familiar naquele garoto.
— Eu já não o vi antes? — perguntou Alex.
— Acho que não, chefe. Está procurando um tripulante, correto. chefe? 
— Sim — respondeu Alex, olhando o rapaz de cima para baixo. 	— Tem experiência de velejar?
— Claro — disse o rapaz, confiante. — O meu velho, quando estava vivo, gostava de me levar, sempre que saía. Sei pelo menos as coisas básicas.
Alex começou a se sentir mais confiante. Este rapazinho, apesar da aparência um pouco frágil, poderia servir.
— Sabe ler a bússola?
— Muito bem. E também sei cozinhar e limpar. — As sobran​celhas de Alex se ergueram. O rapaz tossiu, afobado e olhou para cima. — E também sei ler o radar — disse, a voz outra vez rouca.
— E mapas?
— Como eu disse, chefe, eu sei um pouco. Mas logo aprenderei o que ainda não sei.
Alex olhava o rapaz com um crescente interesse. Era muito magro, e sua fragilidade era quase feminina.
— Não sou milionário, Tommy, tudo o que posso pagar é a tabela do sindicato.
— Para mim está ótimo, chefe. — respondeu o rapaz, com aquela curiosa voz. — Tudo o que realmente quero é a minha passagem para casa.
— Você foi bem claro. A maré vai começar a subir. . . — Alex consultou o relógio — ...em dez minutos. Pode zarpar imedia​tamente?
— Claro, chefe — respondeu o rapaz, com um sorriso.
Aquele bigode decididamente era um bocado cô	mico! Sem dúvida, o pobre o deixara crescer para parecer mais velho e mais másculo. Mas os suaves olhos castanhos que enfrentavam os seus, sem piscar, eram firmes. Embora não parecesse forte, enfiado nas roupas folgadas, havia nele uma tal determinação que Alex começava a apreciar. Olhou as mãos dele. Eram pequenas demais, quase delicadas. Mas para Alex elas pareciam competentes. Subitamente, um pensamento o assaltou.
— Quantos anos tem, Tommy? O rapaz pareceu confuso.
— Ah . . . vinte, chefe.
— Vamos — disse Alex, com calma. — Não tem nem dezoito. Quantos anos você tem? Quinze? Dezesseis?
— Tenho dezessete, chefe — respondeu o garoto. — Já completos. Mas Alex sabia que ele estava mentindo.
— Você está em alguma encrenca, senhor Watson, não está? — perguntou com calma. — O que é? Polícia?
— Não — o rapaz respondeu, aflito. — Nada do tipo, chefe, eu juro. Eu sou decente, eu juro. É o que se pode chamar de proble​mas de família.
— Que tipo de problemas de família?
— Bem, se quer mesmo saber, meus pais morreram recentemente. Só me restou a tia Joan e ela está...
— Muito bem — disse Alex, seus belos olhos cinzentos brilhando, compassivos. — Não precisa dizer mais nada. Vou ficar com você, Tommy. . . E sem perguntas. . . Ok?
— Bárbaro! — exclamou o rapaz, a voz agora fina.
Alex teve pena dele. Pobre garoto sem lar, tão obviamente feliz por ter arranjado um amigo.
— Tommy! — exclamou Alex. — Por favor, não me chame de "'chefe". Meu nome é Alex. Ou "capitão" se preferir.
— Certo, capitão — disse o garoto, sorrindo, mostrando belos dentes brancos.
Mais uma vez Alex sentia que havia algo familiar naquele garoto. . . O que seria? Sorriu de volta, e apertou a mão de Tommy com ani​mação. O rapaz vacilou. Coitado, não era realmente muito forte.
— E tem certeza que vai aguentar o trabalho, Tommy? — per​guntou novamente em dúvida.
— Claro que sim, ch. . . capitão. Sou forte como um cavalo, sou mesmo!
Alex disfarçou um sorriso.
— Temos cinco minutos para aproveitarmos a maré, Hércules.Leve sua bagagem para a cabine da proa, e vamos zarpar.
— Sim, senhor — disse Tommy.
E Nicolette dirigiu-se, radiante, para a sua cabine.
O Mistral zarpou na madrugada vermelha, as velas enfunadas pela brisa da manhã que vinha do continente africano, em direção ao mar. A água cintilava à frente do elegante iate cinzento, como prata líquida. Nicolette sentia-se emocionada diante de toda aquela beleza. Obedeceu silenciosamente às ordens de Alex, e por volta das seis horas a África era somente um ponto violeta a estibordo.
Quando o sol se levantou no céu, o oceano tornou-se profunda​mente azul, e o céu ficou azul-cobalto. Logo fazia um intenso calor, e a brisa salina do mar tinha varrido todos os cheiros da terra.
A atividade diminuiu e o Mistral se pôs na rota prevista. Nicolette desceu até a cozinha, enquanto Alex conferia novamente os mapas, e começou a preparar o café da manhã. Ele levantou o olhar surpreso, quando ela trouxe um prato fumegante de bacon e ovos até a ponte.
— Está com um cheiro delicioso — comentou ele, sorrindo. — Onde aprendeu a cozinhar?
— Cozinhando — ela sorriu. — Eu tive que cozinhar quando minha velha morreu. Meu velho não cozinhava nada. Deus tenha sua alma — acrescentou comicamente.
Alex concordou, olhando para o mar.
— Minha mãe morreu quando eu ainda era criança — disse ele. — Ficamos eu e meu pai. . . como você, parece.
— Verdade? O que o seu pai faz? — perguntou ela, procurando manter a voz o mais rouca possível.
— Projeta barcos — Alex sorriu. — Ele desenhou este aqui.
— Bárbaro... e o senhor, capitão? Está na mesma profissão?
— Não. Eu projeto aviões e helicópteros.
— Puxa! Aposto que é muito rico! — exclamou ela, ajeitando o bigode, que estava começando a coçar muito.
Quando poderia revelar quem era? Talvez quando estivessem bem longe da costa.
— Não, eu não sou rico, Tommy — respondeu Alex, sorrindo. — Ganho para viver, somente. Mas espero que as coisas melhorem logo, assim que pagar as minhas dívidas. Escute, por que não tira este agasalho? Vai ficar um inferno de quente daqui a pouco, e seria melhor que ficasse de camiseta.
— Eu... sim... — respondeu ela, sentindo-se enrubescer. — É que eu peguei um belo resfriado e. . .
— Mas por que não disse? — perguntou Alex, pondo o prato de lado, e parecendo preocupado. — Vou buscar alguma coisa para você tomar. Está com dor de cabeça?
— Hum. . . não. . . isto é. . . estou. . .
— Pronto, tome dois destes.
Relutante, Nicolette engoliu as aspirinas com a água da caneca que ele lhe estendeu. Alex pegou a caneca para jogar fora o resto da água e de repente parou, rígido, olhando atônito para dentro. Havia algo flutuando na água, algo escuro e cabeludo: o bigode de Nicolette!
Os olhos cinzentos de Alex encontraram os dela, surpresos, e ime​diatamente seu rosto se transformou.
— Que loucura é essa?
Nicolette tossiu, aflita. Pelo menos, agora ela podia deixar aquela voz rouca de lado.
— Acho que lhe devo uma explicação, sr. St. Cloud — começou ela.
— Meu Deus! Você! Nicolette Mercury!
— Receio que sim. Eu. . .
Ele se aproximou dela, o rosto transtornado de raiva. A princípio ela teve medo de que ele a atacasse e recuou. Mas ele agarrou-a pelos braços, com mãos inacreditavelmente fortes.
— Que espécie de brincadeira é essa? — ele perguntou. — Quem a mandou se meter aqui, sua peste?
— Ninguém me mandou — disse ela, engasgando. — Está me ma​chucando. . .
— É o que quero! Que diabo pretendia, me enganando deste modo?
— Eu sabia que você nunca me aceitaria a bordo se eu sugerisse — disse ela. — Por favor, solte-me!
— Soltar você? — ele a sacudiu fortemente. — Eu devia mesmo
era jogá-la aos tubarões!
— Eu queria somente ajudá-lo — disse ela, muito nervosa. — Afinal de contas, você mesmo disse que eu lhe devia um favor. . . Não se lembra?
— Um favor? Eu não estava assim tão desesperado — exclamou ele, empurrando-a para longe. — Baixe a vela, agora mesmo, srta. Mercury. Vamos voltar para Mombasa.
— Por favor, espere! — pediu ela, correndo atrás dele. — Não
vale a pena voltar agora...
— Vale sim — afirmou ele. — Vou desembarcar você e devolvê-la a seus amigos, sua pequena fujona!
— Eles já devem ter partido — exclamou ela, aflita. — E, de qualquer modo, não vou mais pôr meus pés no Elsie.
— Estou pouco ligando aonde você vai ou não, desde que saia do meu barco — retrucou ele. — E se não baixar agora mesmo a vela, baixo eu.
— Você está com tanta raiva que não consegue nem mesmo pen​sar, não é verdade? — ela disse com calma. — Está tão convencido que sabe tudo! Mas o que vai fazer, se me desembarcar? Ficar mofan​do em Mombasa, durante semanas? Não deve algo a seu pai?
— Deixe que eu decida isso — respondeu Alex. — Não vou arris​car o barco de meu pai com uma boneca mimada como você!
— Já viu o que posso fazer esta manhã — defendeu-se ela. — Parte da história é verdadeira. Eu sei velejar.
— Sim, eu tenho ampla evidência de sua capacidade — caçoou ele, mostrando os estragos no deque que o Elsie tinha feito.
— Eu não estava na roda do leme, àquela altura, sr. St. Cloud — reagiu ela. — Por que me culpar? Você mesmo disse que eu não parecia ser do grupo. E, se quer mesmo saber, eu tentei impedir que Julian abalroasse o seu iate.
— E não teve muito sucesso, não é?
— Não foi culpa minha. Eu tentei!
— Se suas tentativas são desse tipo, tenho medo do que possa fazer com o meu barco.
— Então leve-me de volta para Mombasa. E apodreça lá!
— Eu prefiro apodrecer em Mombasa do que afundar com você — replicou ele, os olhos cinzentos de bruma agora tempestuosos.
— Eu não preciso aprender nada a respeito de segurança no mar — disse Nicolette com contida emoção. — Aquela parte da história também era verdade. Meu pai morreu afogado no Canal, há cinco anos atrás.
Ele a olhou, a raiva sumindo.
— Sinto muito, eu não sabia.
— E realmente ele me ensinou a navegar, quando eu ainda era muito pequena — continuou no mesmo tom de voz. — Posso mesmo lhe ajudar, sr. St. Cloud.
Ele olhou para ela, examinando os cabelos escuros e curtos, o volumoso abrigo, que ela usara para disfarçar as formas. Reparou que os cabelos estavam muito mal cortados. E ela usara uma base de maquilagem escura, para que a pele parecesse morena e grosseira.
— Você estragou seus lindos cabelos louros — exclamou ele, sem pensar. — Esta tinta vai sair?
— Eu não sei — ela admitiu, preocupada. Ele olhou para ela, desconfiado.
— Por que quer me ajudar, srta.. . . Mercury?
— Porque eu estava no Elsie — respondeu ela, com sinceridade. — E queria, de algum modo, compensar o mal que lhe causamos. Principalmente porque parece provável que Julian Mitchell não tenha intenção de honrar sua obrigação. Mas também porque eu pessoalmente lhe devo um favor. Nunca saberá como eu fiquei feliz ao ver o seu Range Rover surgir no meio daquela tempestade, naquele dia. Acho que nunca senti tanto medo na vida.
— E quanto a Mitchell. . . e os outros? Eles não sabem nada deste seu plano maluco?
— Eu lhes deixei um bilhete — respondeu ela. — E não creio que vão sentir a minha falta.
— E o querido Mark? O que ele dirá quando souber desta. . . sua brincadeira?
— Para ser franca. . . — ela começou a contar, mas se arrependeu. — Não me importo com o que ele vai dizer.
O vento passava pelo cordame. O sol estava alto no céu e Nicolette suava naquele abrigo que roubara do quarto de Julian. Alex St. Cloud olhou para ela, os olhos cinzentos pensativos.
— Vai levar mais tempo de viagem no Mistral do que levaria no Elsie — disse ele.
Os olhos dela não revelavam nenhum medo.
— Eu o ajudarei — afirmou. — Se não me levar de volta a Mom​basa, vai conseguir levar o Mistral para a Inglaterra a tempo.
Nicolette sabia que ele agora ia ceder. Alex a olhou com aqueles belos olhos de bruma como se a visse pela primeira vez.
— Parece que não tenho outra escolha — disse, amargo. — E realmente você bem que pode ajudar a

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