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Octavio Paz CLAUDE LEVI STRAUSS OU O NOVO FESTIM DE ESOPO

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Octavio Paz
CLAUDE LÉVI-STRAUSS 
OU O NOVO FESTIM DE ESOPO
Editora Perspectiva
1977
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Título do original
Lévi-Strauss o el Nuevo Festín de Esopo
© Octavio Paz
Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 – São Paulo – Brasil Telefone: 288-8388
1977
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SUMÁRIO
1. Uma Metáfora Geológica. Comércio Verbal e Comércio Sexual: Valores, Signos, Mulheres.
2. Símbolos, Metáforas e Equações. A Posição e o Significado. Ásia, América e Europa. Três Transparentes: O Arco-íris, o Veneno e a Doninha. O Espírito: Algo que é Nada.
3. Intermédio Discordante. Defesa de uma Cinderela e outras divagações. Um Triângulo Verbal: Mito, Épica e Poema
4. Qualidades e Conceitos: Pares e Parelhas, Elefantes e Tigres. A Reta e o Círculo. Os Remorsos do Progresso. Ingestão, Conversão, Expulsão. O Fim da Idade do Ouro e o Começo da Escritura.
5. As Práticas e os Símbolos. O Sim ou o Não e o Mais ou Menos. O Inconsciente do Homem, e o das Máquinas. Os Signos que se Destroem: Transfigurações. Taxila
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1.	UMA METÁFORA GEOLÓGICA.
COMERCIO VERBAL E COMÉRCIO SEXUAL: VALORES, SIGNOS, MULHERES.
Há cerca de quinze anos um comentário de Georges Bataille sobre Les structures élémentaires de la parenté revelou-me a existência de Lévi-Strauss. Comprei o livro, e após várias e infrutíferas tentativas, abandonei sua leitura. Minha boa vontade de aficcionado da antropologia e meu interesse pelo tema (o tabu do incesto) se chocaram com o caráter técnico da obra. No ano passado um artigo em The Times Literary Supplement (Londres) voltou a despertar a minha curiosidade. Li apaixonadamente Tristes tropiques, e a seguir, com deslumbramento crescente, Anthropologie structurale, La pensée sauvage , Le totémisme aujourd'hui e Le cru et le cuit. Este último é um livro particularmente difícil: o leitor sofre uma espécie de vertigem intelectual ao seguir o autor em sua sinuosa peregrinação através da selva de mitos dos índios bororé e gê. Percorrer esse labirinto é penoso, mas fascinante: muitos trechos desse “concerto” do conhecimento me exaltaram, outros me iluminaram e alguns me irritaram. Embora leia por prazer e sem tomar notas, a leitura de Lévi-Strauss me revelou tantas coisas e despertou em mim tais interrogações que, quase sem perceber, fiz alguns apontamentos. Este texto é o resultado de minha leitura.
Resumo de minhas impressões e meditações, não tem qualquer pretensão crítica.
Os escritos de Lévi-Strauss têm uma importância tríplice: antropológica, filosófica e estética. Sobre o primeiro mal é necessário dizer que os especialistas consideram fundamentais seus trabalhos sobre o parentesco, os mitos e o pensamento selvagem. A etnografia e a etnologia americanas lhe devem estudos notáveis; além disso, em quase todas as suas obras há muitas observações dispersas sobre problemas da pré-história e da história do nosso continente: a antiguidade do homem no Novo Mundo, as relações entre a Ásia e a América, a arte, a cozinha, os mitos indo-americanos...
Lévi-Strauss desconfia da filosofia mas seus livros são um diálogo permanente, quase sempre crítico, com o pensamento filosófico e particularmente com a fenomenologia. Por outro lado, sua concepção da antropologia como parte de uma futura semiologia ou teoria geral dos signos e suas reflexões sobre o pensamento (selvagem e civilizado) são de certo modo uma filosofia: seu tema central é o lugar do homem no sistema da natureza. Em sentido mais reduzido, embora não menos estimulante, sua obra de “moralista” tem também um interesse filosófico: Lévi-Strauss continua a tradição de Rousseau e Diderot, Montaigne e Montesquieu. Sua meditação sobre as sociedades não-européias se resolve em uma crítica das instituições ocidentais, e esta reflexão culmina na última parte de Tristes tropiques por uma curiosa profissão de fé, desta vez francamente filosófica, em que oferece ao leitor uma espécie de síntese entre os deveres do antropólogo, do pensador marxista e a tradição budista. Entre as contribuições de Lévi-Strauss à estética citarei os estudos sobre a arte indo-americana – um sobre o dualismo representativo na Ásia e na América, outro em torno do tema da serpente com o corpo repleto de peixes – e suas idéias brilhantes, embora nem sempre convincentes, sobre a música, a pintura e a poesia. Pouco direi sobre o valor estético de sua obra. Sua prosa me faz pensar na de três autores que talvez não sejam de sua predileção: Bergson, Proust e Breton. Neles, como em Lévi-Strauss, o leitor se defronta com uma linguagem que oscila continuamente entre o concreto e o abstrato, a intuição direta do objeto e a análise: um pensamento que vê as idéias como formas sensíveis e as formas como signos intelectuais... A primeira coisa que surpreende é a variedade de uma obra que pretende ser apenas antropológica; a segunda, a unidade do pensamento. Esta unidade não é a da ciência, mas a da filosofia, embora se trate de uma filosofia antifilosófica.
Lévi-Strauss aludiu em diversas ocasiões às influências que determinaram a direção de seu pensamento: a geologia, o marxismo e Freud. Uma paisagem se apresenta como um quebra-cabeças: colinas, rochedos, vales, árvores, barrancos. Essa desordem possui um sentido oculto; não é uma justaposição de formas diferentes, mas a reunião em um lugar de distintos tempos-espaços: as capas geológicas. Como a linguagem, a paisagem é diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo: é a história condensada das idades terrestres e é também um entrelaçado de relações. Um corte vertical revela que o oculto, as capas invisíveis, e uma “estrutura” que determina e dá sentido às mais superficiais. À descoberta intuitiva da geologia se uniram, mais tarde, as lições do marxismo (uma geologia da sociedade) e da psicanálise (uma geologia psíquica). Esta tríplice lição pode ser resumida em uma frase: Marx, Freud e a geologia lhe ensinaram a explicar o visível pelo oculto. Isto é, a buscar a relação entre o sensível e o racional. Não uma dissolução da razão no inconsciente, mas uma busca da racionalidade do inconsciente: um super-racionalismo. Estas influências constituem, para continuar usando a mesma metáfora, a geologia do seu pensamento: são determinantes em um sentido geral. Não menos decisivas para a sua formação foram a obra sociológica de Marcel Mauss e a lingüística estrutural.
Já disse antes que os meus comentários não são de ordem estritamente científica; examino as idéias de Lévi-Strauss com a curiosidade, a paixão e a inquietude de um leitor que deseja compreendê-las porque sabe que, como todas as grandes hipóteses da ciência, estão destinadas a modificar nossa imagem do mundo e do homem. Assim, não me proponho a situar seu pensamento dentro das modernas tendências da antropologia, embora seja evidente que, por mais original que nos pareça, este pensamento faz parte de uma tradição científica. O próprio Lévi-Strauss, aliás, em sua Leçon inaugurale no Collège de France (janeiro de 1960), assinalou suas dívidas para com a antropologia anglo-americana e a sociologia francesa. Mais explícito ainda, em vários capítulos da Anthropologie structurale e em muitas passagens de Le totémisme aujourd’hui, revela e esclarece suas coincidências e discrepâncias com Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown. Sobre isso vale a pena sublinhar que várias vezes recordou que os seus primeiros trabalhos foram concebidos e elaborados em estreita união com a antropologia anglo-americana. Não obstante, foram as idéias de Mauss que o preparam para receber a lição da lingüística estrutural e saltar de uma maneira mais total que os outros antropólogos do funcionalismo ao estruturalismo. Durkheim já afirmara que os fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos ou religiosos eram “projeções da sociedade”: o todo explicava as partes. Mauss recolheu esta idéia, mas advertiu que cada fenômeno possui características próprias e que o “fato social total” de Durkheim era composto por uma série de planos superpostos:cada fenômeno, sem perder sua especificidade, alude aos outros fenômenos. Por tal razão, o que conta não é a explicação global mas a relação entre os fenômenos: a sociedade é uma totalidade porque é um sistema de relações. A totalidade social não é uma substância nem um conceito mas “consiste finalmente no circuito de relações entre todos os planos”.
Em seu famoso ensaio sobre a dádiva, Mauss adverte que o presente é recíproco e circular: as coisas que se intercambiam são também fatos totais; ou, dito de outro modo: as coisas (utensílios, produtos, riquezas) são veículos de relação. São valores e são signos. A instituição do potlach – ou qualquer outra análoga – é um sistema de relações: a dádiva recíproca assegura, ou melhor, realiza a relação. Portanto, a cultura de uma sociedade não e a soma de seus utensílios e objetos; a sociedade é um sistema total de relações que engloba tanto o aspecto material quanto o jurídico, o religioso e o artístico. Lévi-Strauss recolhe a lição de Mauss e servindo-se do exemplo da lingüística, concebe a sociedade como um conjunto de signos: uma estrutura. Passa assim da idéia da sociedade como uma totalidade de funções à de um sistema de comunicações. É revelador que Georges Bataille (La part maudite) tenha extraído conclusões diferentes do ensaio de Mauss. Para Bataille não se trata tanto de reciprocidade, circulação e comunicação, mas de choque e violência, poder sobre os outros e autodestruição: o potlach é uma atividade análoga ao erotismo e ao jogo, sua essência não é distinta da do sacrifício. Bataille pretende desentranhar o conteúdo histórico e psicológico do potlach; Lévi-Strauss considera-o como uma estrutura atemporal, independentemente de seu conteúdo. Sua posição o defronta com o funcionalismo da antropologia saxônica, o historicismo e a fenomenologia.
Mais adiante tratarei mais detidamente o tema da relação polêmica entre o pensamento de Lévi-Strauss e o historicismo e a fenomenologia. Todavia, é oportuno esboçar desde já suas afinidades e diferenças com os pontos de vista de Malinowski e de Radcliffe-Brown. Para o primeiro, “os fatos sociais não se reduzem a fragmentos dispersos; o homem vive-os, realiza-os, e esta consciência subjetiva, tanto como suas condições objetivas, é uma forma de sua realidade”. Malinowski teve o grande mérito de mostrar experimentalmente que as idéias que uma sociedade tem de si mesma são parte inseparável da própria sociedade e desta maneira revalorizou a noção de significado no fato social; mas reduziu a significação dos fenômenos sociais à categoria de função. A idéia de relação, capital em Mauss, resolve-se na função: as coisas e as instituições são signos por ser funções. Por sua vez, Radcliffe-Brown introduziu a noção de estrutura no campo da antropologia. Só que o grande sábio inglês pensava que “a estrutura é da ordem dos fatos: algo dado na observação de cada sociedade particular...” A originalidade de Lévi-Strauss reside em ver a estrutura não só como um fenômeno resultante da associação dos homens mas como “um sistema regido por uma coesão interna – e esta coesão, inacessível para o observador de um sistema isolado, revela-se no estudo das transformações, graças às quais se redescobrem propriedades similares em sistemas diferentes na aparência” (Leçon inaugurale). Cada sistema – formas de parentesco, mitologias, classificações etc. – é como uma linguagem que pode ser traduzida à linguagem de outro sistema. Para Radcliffe-Brown a estrutura “é a maneira durável que os grupos e os indivíduos têm de se constituir e de se associar no interior de uma sociedade”; portanto, cada estrutura é particular e intraduzível às outras. Lévi-Strauss pensa que a estrutura é um sistema e que cada sistema é regido por um código que permite, caso o antropólogo consiga decifrá-lo, sua tradução a outro sistema. Por último, diversamente de Malinowski e de Radcliffe-Brown, para Lévi-Strauss as categorias inconscientes, longe de serem irracionais ou simplesmente funcionais, possuem uma racionalidade imanente, por assim dizê-lo. O código é inconsciente – e racional. Nada mais natural, em conseqüência, que visse no sistema fonológico da lingüística estrutural o modelo mais acabado, transparente e universal dessa razão inconsciente subjacente em todos os fenômenos sociais, trata-se de relações de parentesco ou de fabulações míticas. Certo, não foi o primeiro a pensar que a lingüística era o modelo da investigação antropológica. Só que, enquanto os antropólogos anglo-americanos a consideraram como um ramo da antropologia, Lévi-Strauss afirma que a antropologia é (ou será) um ramo da lingüística. Ou seja: parte de uma futura ciência geral dos signos.
Arriscando-me a repetir o que outros disseram muitas vezes (e melhor do que eu), devo deter-me e esclarecer um pouco a relação particular que une o pensamento de Lévi-Strauss com a lingüística.� Como se sabe, o trânsito do funcionalismo ao estruturalismo se opera, na lingüística. A idéia de que “cada item da linguagem – oração, palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para encher uma função, geralmente de comunicação” se superpõe outra: “nenhum elemento da linguagem pode ser valorizado se não é considerado em relação com os outros elementos”.� A noção de relação se converte no fundamento da teoria: a linguagem é um sistema de relações. Por sua vez Ferdinand de Saussure já realizara uma distinção capital: o caráter dual do signo, composto de um significante e de um significado, som e sentido. Esta relação – ainda não inteiramente explicada – define o campo próprio da lingüística: cada um dos elementos da linguagem, inclusive os menores, “possuem dois aspectos: um, o significante, e outro, o significado”. A análise deve levar em conta esta dualidade e proceder do texto à frase e desta à palavra e ao morfema, a unidade mínima dotada de significado. A investigação não se detêm neste último porque a fundação da fonologia permitiu um passo decisivo: a análise dos fonemas, unidades que, “apesar de não possuir significado próprio, participam da significação”. A função significativa do fonema consiste em que designa uma relação de alteridade ou oposição em relação aos outros fonemas; embora o fonema careça de significado, sua posição no interior do vocábulo e sua relação com os outros fonemas tornam possível a significação. Todo o edifício da linguagem repousa sobre esta oposição binária. Os fonemas podem decompor-se em elementos menores, que Jakobson chama de “feixe ou conjunto de partículas diferenciais”.� Como os átomos e suas partículas, o fonema é um “campo de relações”: uma estrutura. Isso não é tudo: a fonologia revela que os fenômenos lingüísticos obedecem a uma estrutura inconsciente: falamos sem saber que, cada vez que o fazemos, pomos em movimento uma estrutura fonológica. Portanto, a fala é uma operação mental e fisiológica que repousa sobre leis estritas e que, não obstante, escapam ao domínio da consciência clara.
Saltam à vista as analogias -da lingüística, por um lado, com a física, a genética e a teoria da informação; por outro, com a “psicologia da forma”. Lévi-Strauss se propôs aplicar o método estrutural da lingüística à antropologia. Nada mais legítimo – a linguagem não só é um fenômeno social como constitui, simultaneamente, o fundamento de toda sociedade e a expressão social mais perfeita do homem. A posição privilegiada da linguagem converte-a em um modelo de investigação antropológica: “como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; corno eles, não adquirem esta significação a não ser com a condição de participar de um sistema; como os sistemas fonológicos, os sistemas de parentesco são elaborações do espírito ao nível do pensamento inconsciente; por fim, a repetição de formas de parentesco e regras de matrimônio, em regiões distanciadas e entre povos profundamente diferentes, nos faz pensar que, como no caso da fonologia, os fenômenos visíveis são o produto do jogo de leis gerais embora ocultas... Em uma ordem distinta de realidades, osfenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo dos lingüísticos”.� Não se trata, é claro, de transpor a análise lingüística à antropologia, mas de traduzi-la em termos antropológicos. Entre as formas da tradução há uma que Jakobson chama “transmutação”: interpretação de signos lingüísticos por meio de um sistema de signos não-lingüísticos. Neste caso a operação consiste, ao contrário, na interpretação de um sistema de signos não-lingüísticos (por exemplo: as regras de parentesco) por meio de signos lingüísticos. Não me estenderei na descrição das formas, sempre rigorosas e às vezes extremamente engenhosas, que assume a interpretação de Lévi-Strauss.
Assinalo apenas que o seu método se funda mais em uma analogia do que em uma identidade. Além disso, adianto uma observação: se a linguagem – e com ele a sociedade inteira: ritos, arte, economia, religião – é um sistema de signos, que significam os signos? Um autor muito citado por Jakobson, o filósofo Charles Peirce, diz: “O sentido de um símbolo é sua tradução em outro símbolo”. Ao contrário de Husserl, o filósofo anglo-americano reduz o sentido a uma operação: um signo nos remete a outro signo. Resposta circular e que se destrói a si mesma: se a linguagem é um sistema de signos, um signo de signos, que significa este signo de signos? Os lingüistas coincidem com a lógica matemática, embora por motivos opostos, no horror à semântica. Jakobson tem consciência desta carência: “Depois de haver anexado os sons da palavra à lingüística e constituído a fonologia, devemos incorporar agora as significações lingüísticas à ciência da linguagem”. Assim seja. Enquanto isso, observo que esta concepção da linguagem termina em uma disjuntiva: se só tem sentido a linguagem, o universo não-lingüístico carece de sentido e inclusive de realidade; ou então, tudo é linguagem, desde os átomos e suas partículas até os astros. Nem Peirce nem a lingüística nos dão elementos para afirmar a primeira ou a segunda hipótese. Tríplice omissão: em um primeiro momento subtrai-se o problema do nexo entre som e sentido, que não é simplesmente o efeito de uma convenção arbitrária como pensava Ferdinand de Saussure; em seguida, exclui-se o tema da relação entre a realidade não-lingüística e o sentido, entre ser e significado; por último, omite-se a pergunta central: o sentido da significação. Advirto que esta crítica não é inteiramente aplicável a Lévi-Strauss. Correndo mais riscos que os lingüistas e os partidários da lógica simbólica, o tema constante de suas meditações é precisamente o das relações entre o universo do discurso e a realidade não-verbal, o pensamento e as coisas, a significação e a não-significação.
Em seus estudos sobre o parentesco, Lévi-Strauss procede de maneira contrária à maioria dos seus predecessores: não pretende explicar a proibição do incesto a partir das regras de matrimônio, mas serve-se da primeira para tornar mais inteligíveis as segundas. A universalidade da proibição, quaisquer que sejam as modalidades que adote neste ou naquele grupo humano, é análoga à universalidade da linguagem, quaisquer que sejam, também, as características e a diversidade dos idiomas e dialetos. Outra analogia: é uma proibição que não aparece entre os animais – pelo que se pode inferir que não tem uma origem biológica ou instintiva – e que, não obstante, é uma complexa estrutura inconsciente como a linguagem. Enfim, todas as sociedades a conhecem e a praticam, mas até agora – apesar de abundarem as interpretações míticas, religiosas e filosóficas – não temos uma teoria racional que explique sua origem e sua vigência. Lévi-Strauss rechaça, com razão, todas as hipóteses que pretenderam explicar o enigma do tabu do incesto, desde as teorias finalistas e eugenéticas até a de Freud. A propósito deste último assinala que atribuir a origem da proibição ao desejo pela mãe e ao assassinato do pai pelos filhos, é uma hipótese que revela as obsessões do homem moderno mas que não corresponde a nenhuma realidade histórica ou antropológica. É um “sonho simbólico”: não é a origem mas a conseqüência da proibição.
A regra não é puramente negativa; não tende a suprimir as uniões, mas a diferenciá-las: esta união não é lícita, mas aquela sim. A regra é composta de um sim e de um não, oposição binária semelhante à das estruturas lingüísticas elementares. É um crivo que orienta e distribui o fluir das gerações. Cumpre assim uma função de alteridade e mediação – diferenciar, selecionar e combinar – que converte as uniões sexuais em um sistema de significações. É um artifício “pelo qual e no qual se cumpre o trânsito da natureza à cultura”. A metamorfose do som bruto em fonema se reproduz na da sexualidade animal em sistema de matrimônio; em ambos os casos a mutação se deve a uma operação dual (isto não, aquilo sim) que seleciona e combina – signos verbais e mulheres. Do mesmo modo que os sons naturais reaparecem na linguagem articulada, mas já dotados de significação, a família biológica reaparece na sociedade humana, mas já transformada. O “átomo” ou elemento mínimo de parentesco não é o biológico ou natural – pai, mãe e filho – mas está composto por quatro termos: irmão e irmã, pai e filha. É impossível seguir Lévi-Strauss em toda a sua exploração e por isso me limito a citar uma de suas conclusões: “O caráter primitivo e irredutível do elemento de parentesco é uma conseqüência da proibição do incesto... na sociedade humana um homem só pode obter uma mulher de outro homem, que lhe entrega sua filha ou sua irmã”. A interdição não tem outro objeto fora o de permitir a circulação de mulheres, e neste sentido é a contrapartida da obrigação de doar, estudada por Mauss.
A proibição é recíproca e graças a ela se estabelece a comunicação entre os homens: “As regras de matrimônio e os sistemas de parentesco são uma espécie de linguagem” – um conjunto de operações que transmitem mensagens. A objeção de que as mulheres são valores e não signos e as palavras signos e não valores, Lévi-Strauss responde que, sem dúvida, as segundas eram também valores (hipótese que não me parece descabida, se pensarmos na energia que ainda irradiam certas palavras); no que diz respeito às mulheres: foram (e são) signos, elementos desse sistema de significações que é o sistema de parentesco... Não sou antropólogo e deveria calar-me. Aventuro, em todo caso, um tímido comentário: a hipótese explica com grande elegância e precisão as regras de parentesco e de matrimônio pela proibição universal do incesto, mas, como se explica a própria proibição, sua origem e sua universalidade? Confesso que me custa aceitar que uma norma tão inflexível e na qual não é infundado ver a fonte de toda a moral – foi o primeiro Não que o homem opôs à natureza – seja apenas uma regra de trânsito, um artifício destinado a facilitar o intercâmbio de mulheres. Além disso, noto a ausência da descrição do fenômeno; Lévi-Strauss nos descreve a operação das regras, não aquilo que regulam: a atração e a repulsão pelo sexo oposto, a visão do corpo como um entrelaçado de forças benéficas ou nocivas, as rivalidades e as amizades, as considerações econômicas e as religiosas, o terror e o apetite que desperta uma mulher ou um homem de outro grupo social ou de outra raça, a família e o amor, o jogo violento e complicado entre veneração e profanação, medo e desejo, agressão e transgressão – todo esse território magnético, magia e erotismo, que cobre a palavra incesto. Que significa este tabu que nada nem ninguém explica e que, embora pareça não ter justificação biológica nem razão de ser, é a raiz de toda proibição? Qual é o fundamento deste Não universal? É verdade que este Não contém um Sim: a proibição não apenas separa a sexualidade animal da sexualidade social mas, como na linguagem, este Sim funda o homem, constitui a sociedade. A proibição do incesto nos faz defrontar, noutro plano, com o próprio enigma da linguagem: se a linguagem nos funda, nos dá sentido, qual é o sentido deste sentido? A linguagem nos dá a possibilidade de dizer, mas que querdizer dizer? A pergunta sobre o incesto é semelhante à do sentido da significação. A resposta de Lévi-Strauss é singular: estamos diante de uma operação inconsciente do espírito humano e que, em si mesma, carece de sentido ou fundamento, mas não de utilidade: graças a ela – e à linguagem, o trabalho e o mito – os homens são homens. A pergunta sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta sobre a significação do homem 'e esta na do espírito. Portanto temos que penetrar numa esfera em que o espírito opera com maior liberdade, pois que não se defronta nem com os processos econômicos nem com as realidades sexuais mas consigo mesmo.
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2. 	SÍMBOLOS, METÁFORAS E EQUAÇÕES. 
A POSIÇÃO E O SIGNIFICADO. ÁSIA, AMÉRICA E EUROPA. TRÊS TRANSPARENTES: O ARCO-ÍRIS, O VENENO E A DONINHA. O ESPÍRITO: ALGO QUE É NADA.
Diante do mito, Lévi-Strauss adota uma posição francamente intelectualista e lamenta a preferência moderna pela vida afetiva, à qual atribui poderes que não tem: “É um erro acreditar que idéias claras podem nascer de emoções confusas”.� Critica também a fenomenologia da religião que trata de reduzir a “sentimentos informes e inefáveis” fenômenos intelectuais só aparentemente distintos dos de nossa lógica. A pretensa oposição entre pensamento lógico e pensamento mítico revela apenas a nossa ignorância: sabemos ler um tratado de filosofia mas não sabemos como devem ser lidos os mitos. Certo, temos uma clave – as palavras de que estão feitos – mas seu significado se nos escapa porque a linguagem ocupa no mito um lugar semelhante ao do sistema fonológico dentro da própria linguagem. Lévi-Strauss inicia sua demonstração com esta idéia: a pluralidade de mitos, em todos os tempos e em todos os espaços, não é menos notável que a repetição em todos os relatos míticos de certos procedimentos. O mesmo sucede no universo do discurso: a pluralidade de textos resulta da combinação de um número muito reduzido de elementos lingüísticos permanentes. Portanto, a elaboração mítica não obedece a leis distintas das lingüísticas: seleção e combinação de signos verbais. A distinção entre língua e fala, proposta por Ferdinand de Saussure, também é aplicável aos mitos. A primeira é sincrônica e postula um tempo reversível; a segunda é diacrônica e seu tempo é irreversível. Ou, como dizemos em espanhol Io dicho, dicho está”. O mito é fala, seu tempo alude ao que passou e é um dizer irrepetível; ao mesmo tempo, é idioma: uma estrutura que se atualiza cada vez que voltamos a contar a história.
A comparação entre mito e linguagem conduz Lévi-Strauss a buscar os elementos constitutivos do primeiro. Esses elementos não podem ser os fonemas, os morfemas ou os “semantemas”, pois se assim fosse o mito seria um discurso como todos os outros. As unidades constitutivas do mito são frases ou orações mínimas que, por sua posição no contexto, descrevem uma relação importante entre os diversos aspectos, incidentes e personagens do relato. Lévi-Strauss propõe que chamemos a essas unidades de mitemas. Já que um mito é um conto contado com palavras, como distinguir os mitemas das outras unidades puramente lingüísticas? Os mitemas são “entrelaçados ou feixes de relações mínimas” e operam em um nível superior ao puramente lingüístico. No nível mais baixo, encontra-se a estrutura fonológica; no segundo, a sintática, comum a todo discurso mítico propriamente dito. A estrutura sintática está para a mítica como a fonológica está para a sintática. Se a investigação consegue isolar os mitemas como a fonologia o fez com os fonemas, poder-se-á dispor de um. feixe de relações que formem uma estrutura. As combinações dos mitemas devem produzir mitos com a mesma fatalidade e regularidade com que os fonemas produzem sílabas, morfemas, palavras e textos. Os mitemas são ao mesmo tempo significativos (dentro da narrativa) e pré-significativos (como elementos de um segundo discurso: o mito). Graças aos mitemas, os mitos são fala e idioma, tempo irreversível (narrativa) e reversível (estrutura), diacronia e sincronia. Novamente, com a ressalva de expor mais completamente meus pontos de vista no final deste trabalho, antecipo uma reflexão: se um mito é uma paralinguagem, sua relação com a linguagem é inversa à do sistema de parentesco. Este último é um sistema de significações que se serve de elementos não-lingüísticos; o mito opera com a linguagem como se esta fosse um sistema pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do mito. O sistema de parentesco se decifra por meio de uma clave superior: a linguagem; qual seria a clave paralingüística para decifrar o sentido dos mitos? E essa clave seria traduzível a da linguagem? Em suma, os mitos nos defrontam outra vez com o problema do sentido da significação.
Em seu ensaio La structure des mythes, prelúdio a outros trabalhos mais ambiciosos, Lévi-Strauss serve-se da história de Édipo como pedra-de-toque de suas idéias. Não lhe interessa o conteúdo do mito nem pretende oferecer uma nova interpretação, mas tenta, isto sim, decifrar a sua estrutura: o Sistema de relações que o determina e que, provavelmente, não é diverso do de todos os outros mitos. Busca uma lei geral, formal e combinatória.	Não sem franzir o cenho o de mais de um antropólogo e muitos helenistas e psicólogos, recolheu o maior numero possível de versões; em seguida, isolou as unidades mínimas, os mitemas, que aparecem nessas variantes. Alguns criticaram este procedimento: como podem ser determinados objetivamente os mitemas? A objeção não tem valor se se recorda que uma das características dos mitos é a recorrência de certos temas e motivos. Inclusive desta maneira podem se reconstruir versões incompletas e ainda descobrir-se mitemas que, por esta ou aquela razão, não aparecem em nenhuma versão. Tal é o caso do defeito físico de Édipo, que não figura nas variantes conhecidas. Uma vez determinados os mitemas, Lévi-Strauss inscreveu-os em um cartão, dispostos em colunas horizontais e verticais. Cada mitema designava um feixe de relações, isto é, era a expressão concreta de uma função de relação. Reproduzo, muito simplificado, o quadro de Lévi-Strauss:
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	1
	2
	3
	4
	
	Édipo mata Laio, seu pai
	
	
	Édipo se casa com sua mãe
	
	Édipo imola a Esfinge
	Édipo: pés inchados
	
	Etéocles mata o seu irmão
	
	
	Antígona enterra o seu irmão
	
	
	
Se lemos da direita para a esquerda, contamos o mito; se de cima para baixo, penetramos em sua estrutura. A primeira coluna corresponde à idéia de relações de parentesco demasiado íntimas (entre Édipo e sua mãe, Antígona e seu irmão); a segunda descreve uma desvalorização dessas relações (Édipo assassina o seu pai, Eteócles o seu irmão) ; a terceira se refere à destruição dos monstros; a quarta a uma dificuldade para caminhar. A relação entre a primeira e a segunda coluna é óbvia: une-as um duplo e contrário descomedimento: exagerar ou minimizar as relações de parentesco. A relação entre Édipo e a Esfinge reproduz a de Cadmos e o dragão: para fundar Tebas o herói deve matar o monstro. É uma relação entre o homem e a terra que alude ao conflito entre a crença na origem terrestre de nossa espécie (autoctonia) e o fato de que cada um de nós é filho de um homem e de uma mulher. Em conseqüência, a terceira coluna é uma negação dessa relação e reproduz, noutro nível, o tema da segunda coluna. Muitos mitos representam os homens nascidos da terra como inválidos, coxos ou de andar vacilante. Embora o significado do nome de Édipo não seja claro, a análise confirma que, como os de seu pai e de seu avô (o primeiro, coxo, e o segundo, surdo), alude a um defeito físico”.� Portanto, a quarta coluna afirma o que nega a terceira e, novamente em outro nível, repete o tema da primeira. Portanto, a relação entre a terceira coluna e a quarta é da mesma índole que a da primeira e da segunda. Estamos diante de uma dupla parelha de contradições: a primeira está para a segunda assim como a terceira está para a quarta. Esta fórmula pode variar: a primeiraé homóloga da quarta, a segunda da terceira. Em termos morais: o parricídio se nega com o incesto; em termos cosmológicos: negar a autoctonia (ser um homem de fato e de direito) implica em matar o monstro da terra. O defeito se paga com o excesso. O mito oferece uma solução ao conflito por meio de um sistema de símbolos que operam à maneira dos sistemas da lógica e da matemática.
Ao encontrar a estrutura do mito de Édipo, Lévi-Strauss se torna apto para aplicar as mesmas leis combinatórias a mitos de outras civilizações. Boas assinalara que as adivinhações são um gênero quase completamente ausente entre os índios da América do Norte. Há duas exceções: os bufões ou palhaços cerimoniais dos pueblo – segundo os mitos nascidos de um comércio sexual incestuoso – que divertem os espectadores com adivinhanças; e certos mitos dos índios algonquines, relativos a corujas que proferem enigmas, os quais, sob pena de morte, o herói deve resolver.. A analogia com o mito de Édipo é dupla: por um lado, entre o incesto e adivinhação; por outro, entre a esfinge e as corujas. Portanto, há uma relação entre incesto e adivinhação: a resposta a um enigma une dois termos inconciliáveis e o incesto a duas pessoas também inconciliáveis. A operação mental em ambos os casos é idêntica: unir dois termos contraditórios. Esta relação se reproduz em outros mitos, só que de maneira inversa. Por exemplo, no mito do Grial. No de Édipo, um monstro postula uma pergunta sem resposta; no mito celta, há uma resposta sem pergunta. Com efeito, Perceval não se atreve a perguntar o que é e para que serve o recipiente mágico. Em um caso, o mito apresenta uma personagem que abusa do comércio sexual ilícito e que, ao mesmo tempo, possui tal sutileza de espírito que pode resolver a adivinhação da esfinge; no outro, há uma personagem casta e tímida que não ousa formular a pergunta que dissipará o encantamento. Comércio sexual ilícito = solução de um enigma que planteia a união de dois termos contraditórios; abstinência sexual = incapacidade para perguntar. O conflito entre a autoctonia e a origem real, sexual, dos homens, exige uma solução inversa. A existência da esfinge (autoctonia) implica a desvalorização dos laços consangüíneos (parricídio) ; o desaparecimento do monstro, o exagero dos mesmos laços (incesto). Embora Lévi-Strauss se abstenha de estudar os mitos das civilizações históricas (o mito de Édipo é antes uma ilustração de suas idéias do que um estudo de mitologia grega), observo que a mesma lógica se desenvolve no mito de Quetzalcoatl. Diversos investigadores dedicaram notáveis estudos ao tema e mal se faz necessário recordar, por exemplo, a brilhante interpretação de Laurette Sejourné. Não obstante, o método de Lévi-Strauss oferece a possibilidade de estudar o mito mais como uma operação mental que como uma projeção histórica. Os elementos históricos não desaparecem, mas ficam integrados nesse sistema de transformações que abarca desde os sistemas de parentesco e as instituições políticas até a mitologia e as práticas rituais. Advirto que o estruturalismo não pretende explicar a história: o acontecimento, o suceder, é um domínio que não toca; contudo, do ponto de vista da antropologia, tal como a concebe Lévi-Strauss, a história é apenas uma das variantes da estrutura. O mito de Quetzalcoatl é um produto histórico – seja ou não histórica a sua personagem central – na medida em que é uma criação religiosa de uma sociedade secreta; ao mesmo tempo, é uma operação mental sujeita à mesma lógica dos outros mitos – sem excluir os mitos modernos, como o da Revolução. Apenas limitar-me-ei aqui a assinalar certos traços e elementos significativos: Tezcatlipoca, deus coxo e senhor de magos e feiticeiros, intimamente associado ao mito dos sacrifícios humanos, tenta Quetzalcoatl e leva-o a cometer o duplo pecado de adultério e incesto (Quetzalcoatl se embebeda e deita-se com sua irmã). Ao inverso do que ocorre com Édipo, salvador de Tebas ao decifrar o enigma da esfinge, Quetzalcoatl é vítima do engano do feiticeiro, e assim perde o seu reino e ocasiona a perda de Tula. Os astecas, que se consideraram sempre os herdeiros da grandeza de Tula, representaram outra vez o mito de Quetzalcoatl (quero dizer: celebraram-no, viveram-no) no momento da conquista espanhola, só que ao inverso. Talvez o mito de Quetzalcoatl, caso se consiga decifrar a sua estrutura, possa nos dar a chave dos mistérios da história antiga do México: o fim das grandes teocracias e o princípio das culturas históricas (a oposição entre Teotihuacán e Tula, poderia dizer-se, para simplificar), e a atitude dos astecas diante de Cortés.
Na segunda parte de seu ensaio Léví-Strauss recorre a vários mitos dos índios pueblo para ampliar a sua demonstração. Neles também se manifesta uma oposição de termos inconciliáveis: autoctonia e nascimento biológico, mudança e permanência, vida e morte, agricultura e caça, paz e guerra. Estas oposições nem sempre são evidentes, porque às vezes os termos originais foram substituídos por outros. A permutação de um termo por outro tem por objeto encontrar termos de mediação entre as oposições. A forma de operação do pensamento mítico não é distinta da de nossa lógica; difere no emprego dos símbolos, porque em lugar de proposições, axiomas e signos abstratos serve-se de heróis, deuses, animais e outros elementos do mundo natural e cultural. É uma lógica concreta e não menos rigorosa que a dos matemáticos. A posição dos termos de mediação é privilegiada. Por exemplo, a mudança implica em morte para os índios pueblo; pela intervenção do mediador agricultura se transforma em crescimento vital. Guerra, sinônimo de morte, transforma-se em vida por obra de outra mediação: caça. A oposição entre animais carnívoros e herbívoros se resolve em outra mediação: a dos coiotes e auras que se alimentam de carne como os primeiros mas que, como os herbívoros, não são caçadores. A mesma operação de permutação rege a carreira dos deuses e dos heróis. A cada oposição corresponde um mediador, de modo que a função dos messias se esclarece: são encarnações de proposições lógicas que resolvem uma contradição. Algo semelhante ocorre com os gêmeos divinos, os deuses hermafroditas e uma estranha personagem, o palhaço mítico, que aparece em muitos mitos e ritos. A penetração psicológica, neste caso, não é menor que o rigor lógico: o riso, como se sabe, dissolve a contradição em uma unidade convulsiva que nega os dois termos da oposição. Entre esses palhaços míticos existe um, o Ash boy, que ocupa na mitologia dos pueblo um lugar semelhante ao da Cinderela no Ocidente: os dois são mediadores entre a obscuridade e luz, fealdade e beleza, riqueza e pobreza, o mundo de baixo e o de cima. A relação entre a Cinderela e o Ash boy adota a forma de inversão simétrica. Mais adiante encontraremos de novo esta relação entre alguns mitos e lendas européias e outros da América”.�
A ambigüidade do mediador se explica não tanto por motivos psicológicos como por sua posição no interior da fórmula: é um termo que permite dissolver ou transcender a oposição. Por tal razão um termo positivo (deus, herói, monstro, animal, planta, astro) pode transformar-se em um negativo: suas qualidades dependem de sua posição dentro do mito. Nenhum elemento possui significação própria; a significação brota do contexto: Édipo é “bom” ao imolar a Esfinge; é “mau”, ao casar com sua mãe; é “débil” ao andar com dificuldade; “forte”, quando mata o pai. Cada termo pode ser substituído por outro, contanto que haja entre eles uma relação necessária. Os mitos obedecem às mesmas leis da lógica simbólica; se se substitui os nomes próprios e os mitemas por signos matemáticos, o mito e suas variantes, inclusive as mais contraditórios, podem se condensar em uma fórmula... Ao concluir seu estudo, Lévi-Strauss afirma que o mito “tem por objeto oferecer um modelo lógico para resolver uma contradição – algo irrealizável se a contradição é real”. Observo, em conseqüência, uma diferença entre o pensar mítico e o do homem moderno:no mito se desenvolve uma lógica que não se defronta com a realidade e sua coerência é meramente formal; na ciência, a teoria deve submeter-se à prova da experimentação; na filosofia, o pensamento é crítico. Aceito que o mito é uma lógica mas não vejo como possa ser um saber. Por último, o método de Lévi-Strauss proíbe uma análise do significado particular dos mitos: por um lado, pensa que esses significados são contraditórios, arbitrários e, de certo modo, insignificantes; por outro, afirma que o significado dos mitos se desenvolve numa região que está mais além da linguagem.
O sistema de simbolização se reproduz sem cessar. O mito engendra mitos: oposições, permutações, mediações e novas oposições, Cada solução é “ligeiramente distinta” da anterior, de modo que o mito “cresce como uma espiral”: a nova versão o modifica e, ao mesmo tempo, o repete. Por isso a interpretação de Freud, independentemente de seu valor psicológico, é mais uma versão do mito de Édipo. Poderia acrescentar-se que o estudo de Lévi-Strauss constitui outra versão, já não em termos psicológicos, mas lingüísticos e de lógica simbólica. Este é o tema, justamente, de Le cru et le cuit. Análise de cerca de duzentos mitos sul-americanos, opera como um aparelho de transformações que os engloba e os “traduz” em termos intelectuais. Esta tradução é uma transmutação e daí que, como diz o seu autor, seja “um mito dos mitos americanos”. Le cru et le cuit responde de certo modo a minha pergunta acerca do significado dos mitos: à maneira dos símbolos de Peirce, o sentido de um mito é outro mito. Cada mito desenvolve o seu sentido em outro que, por sua vez, alude a outro, e assim sucessivamente até que todas essas alusões e significados tecem um texto: um grupo ou família de mitos. Esse texto alude a outro e mais outro; os textos compõem um conjunto, não tanto um discurso mas um sistema em movimento e perpétua metamorfose: uma linguagem. A mitologia dos índios americanos é um sistema e esse sistema é um idioma. Outro tanto pode dizer-se da mitologia indo-européia e da mongólica: cada uma constitui um idioma. Por outro lado, o significado de um mito depende de sua posição no grupo e daí que, para decifrá-lo, seja necessário ter em conta o contexto em que aparece. O mito é uma frase de um discurso circular e que muda constantemente de significado: repetição e variação”.�
Esta maneira de pensar nos põe diante de conclusões vertiginosas. O grupo social que elabora o mito, ignora o seu significado; aquele que conta um mito não sabe o que diz, repete o fragmento de um discurso, recita uma estrofe de um poema cujo princípio, fim e tema desconhece. O mesmo ocorre com os seus ouvintes e com os ouvintes de outros mitos. Ninguém sabe que esse relato é parte de um imenso poema: os mitos se comunicam entre si por meio dos homens e sem que estes o saibam. Idéia não muito distanciada da dos românticos alemães e dos surrealistas: não é o poeta que se serve da linguagem e sim esta que fala através do poeta. Há uma diferença: o poeta tem consciência de ser um instrumento da linguagem e não estou certo de que o homem do mito saiba que o é de uma mitologia. (A discussão deste ponto e prematura: basta dizer, por enquanto, que para Lévi-Strauss a distinção é supérflua, pois pensa que a consciência é uma ilusão.) A situação descrita por Le cru et le cuit é análoga à dos executantes de uma sinfonia que estivessem incomunicados e separados pelo tempo e pelo espaço: cada um tocaria o seu fragmento como se fosse a obra completa. Nenhum deles poderia escutar o concerto porque para ouvi-lo teria que estar fora do círculo, longe da orquestra. No caso da mitologia americana esse concerto começou há milênios e hoje umas poucas comunidades dispersas e agonizantes repetem os últimos acordes. Os leitores de Le cru et le cuit são os primeiros que escutam essa sinfonia e os primeiros que sabem que a escutam. Mas, será que a ouvimos realmente? Escutamos uma tradução ou, mais exatamente, uma transmutação: não o mito, mas outro mito. Nisto consiste o paradoxo do livro de Lévi-Strauss e o paradoxo do mito. A razão é a seguinte: embora a linguagem do mito, diferentemente da poesia, seja facilmente traduzível a qualquer idioma, o verdadeiro discurso mítico é, como a música, intraduzível. No mito, conforme já disse, a linguagem articulada desempenha a mesma função que o sistema fonológico no discurso comum: o mito serve-se das palavras como nós, ao falarmos, nos servimos dos fonemas. Portanto, a linguagem do mito, a história contada com palavras, é uma estrutura inconsciente e pré-significativa sobre a qual se edifica o verdadeiro discurso mítico. Por isso Lévi-Strauss afirma que há uma relação de verdadeiro parentesco entre o mito e a música, e não entre aquele e a poesia. A diferença desta última, o mito pode ser traduzido sem que nada de apreciável se perca na tradução; à semelhança da primeira, o discurso mítico constitui uma linguagem própria e intraduzível. A meu ver esta analogia não é perfeita: se no mito há dois níveis, um propriamente lingüístico e outro paralingüístico, na música não encontramos o primeiro nível. Em troca, em seu primeiro nível mito e poema estão construídos de palavras e no segundo os dois são objetos verbais, um feito de mitemas e outro de metáforas e equivalências. Voltarei a isto e examinarei ponto por ponto as razões que movem Lévi-Strauss a sustentar a singular identidade entre música e mito.
Le cru et le cuit é apenas o começo de uma tarefa vastíssima: determinar a sintaxe da mitologia do continente americano. Lévi-Strauss rechaça o método da re construção histórica não só por razões de princípio – embora estas sejam fundamentais, como já se viu – mas porque é impossível determinar os empréstimos que se fizeram umas às outras as sociedades indo-americanas desde o fim do Pleistoceno até nossos dias: a América foi uma “Idade Média sem Roma”. Sua exploração repousa, em troca, sobre esta evidência: os povos que elaboraram esses mitos “utilizam os recursos de uma dialética de oposições e mediações dentro de uma comum concepção de mundo”. A análise estrutural confirma assim as presunções da etnografia, da arqueologia e da história sobre a unidade da civilização americana. Não é difícil inferir que esta investigação desembocará em uma empresa ainda mais ambiciosa: uma vez determinada a sintaxe do sistema mitológico americano, será preciso relacioná-la com a dos outros 'sistemas: o indo-europeu, o da Oceania, o da África e o dos povos mongolóides da Ásia. Aventuro desde já uma hipótese, nada gratuita, pois a obra de Lévi-Strauss nos oferece indícios suficientes para postulá-la: entre o sistema indo-europeu e o americano a relação há de ser de simetria inversa, tal como o mostra o Ash boy norte-americano e a Cinderela européia. Este exemplo não é o único: as constelações de Órion e do Corvo cumprem funções inversas embora simétricas entre os índios do Brasil e os gregos. O mesmo sucede com o costume do charivari (chocalhada) na Europa Ocidental e o ruído ritual com que os mesmos índios brasileiros enfrentam os eclipses: em ambos os casos se trata de uma resposta a uma desunião ou a uma união antinatural, sexual no Mediterrâneo e astronômica na América do Sul.
A figura do triângulo é central no pensamento de Lévi-Strauss. Por isto, embora seja temerário, não será ocioso perguntar-se se a velha oposição entre Oriente e Ocidente, o mundo indo-europeu e o mongólico, não se resolve em uma mediação americana anterior à chegada dos europeus à nosso continente. O sistema mitológico americano poderia ser o ponto de união, a mediação entre os dois sistemas míticos contraditórios. Salto sobre uma fácil objeção – “o mundo americano é parte da área mongolóide” – porque a antigüidade do homem na América permite considerar as culturas índias como criações originais, já que não autóctones. A relação entre a Índia e a América seria assim de simetria inversa, não só no espaço como no tempo: o subcontinente índio é o ponto de convergência real, histórico, entre aárea mongolóide e a indo-européia, do mesmo modo que o continente americano seria o ponto de coincidência, não-histórico, entre ambas. Outra relação contraditória: o sistema mitológico indo-europeu predomina na índia, enquanto que a mitologia americana possui a mesma origem da mongolóide. A mediação indo-ária carrega o acento no indo-europeu; a americana, no mongolóide. No caso da América, as perspectivas desta suposição são portentosas, já que os indo-americanos ignoraram de todo os sistemas míticos das outras duas áreas. À maneira de Lévi-Strauss se poderia dizer que as civilizações se comunicam entre si sem que aqueles que as elaboram se dêem conta. A universalidade da razão – uma razão maior que a razão crítica – ficaria demonstrada pela ação de um pensamento que ainda há pouco chamamos de irracional ou pre-lógico.
Não sei se Lévi-Strauss aprovaria de todo esta interpretação de seu pensamento. Eu mesmo julgo-a apressa da. Em Tristes tropiques e noutras obras alude ao problema das relações entre Ásia e América e se inclina por uma idéia cada vez mais popular entre os estudiosos: a indubitáveis analogias entre certos traços da civilização americana, da China e do sudeste da Ásia, só podem ser conseqüência de imigrações e contatos culturais entre ambos os continentes. Lévi-Strauss vai mais longe e aventura a existência de um triântico subártico que uniria a Escandinávia e o Labrador com o norte da América e a este com a China e o sudeste asiático. Esta circunstância, diz, tornaria mais compreensível o estreito “parentesco do ciclo do Graal com a mitologia dos índios da América setentrional”: os celtas e a civilização escandinava subártica teriam sido os transmissores. É estranho que apele para a história a fim de explicar estas analogias: toda a sua tentativa se dirige antes a ver neste tipo de coincidência não a conseqüência da história mas de uma operação do espírito humano. Seja como for, não creio traí-lo se afirmo que a sua obra tenta resolver a heterogeneidade das histórias particulares em uma estrutura atemporal. Às pretensões da história universal, que inutilmente tenta reduzir a pluralidade das civilizações a uma só direção ideal – ontem encarnada na Providência e hoje desencarnada na idéia do progresso – opõe uma visão vivificante: não há povos marginais e a pluralidade das culturas é ilusória porque é uma pluralidade de metáforas que dizem a mesma coisa. Há um ponto em que se cruzam todos os caminhos; este ponto não é a civilização ocidental e sim o espírito humano que obedece, em todas as partes e em todos os tempos, às mesmas leis.
Le cru et le cuit parte do exame de um mito dos índios Bororo relativo à origem da tempestade e mostra sua conexão secreta com outros mitos dos mesmos índios. Depois descobre os nexos deste grupo de mitos com os das sociedades vizinhas até explorar um sistema imenso que se estende em um território não menos imenso. Reduz as relações de cada mito e de cada grupo de mitos a “esquemas de relações” que por sua vez revelam afinidades ou isomorfismos com outros esquemas e grupos de esquemas. Nasce assim “um corpo de múltiplas dimensões” que, sem cessar, se transforma e que torna interminável sua tradução e sua interpretação. Esta dificuldade não é demasiado grave: o propósito de Lévi-Strauss não é tanto estudar todos os mitos americanos quanto decifrar sua estrutura, isolar seus elementos e termos de relação, descobrir a forma de operação do pensamento mítico. Por outro lado, se o mito é um objeto em perpétua metamorfose, sua interpretação também obedece à mesma lei. O livro de Lévi-Strauss recolhe e repete, não sem mudá-los, temas de seus livros anteriores e adianta motivos e observações que seus livros futuros elaborarão – nunca exatamente, mas à maneira das variações de um poema. Sua tentativa me recorda, noutro nível, a de Mallarmé: tanto Un coup de dés como Le cru et le cuit são aparatos de significações. Esta coincidência não é fortuita: Mallarmé antecipa muitas tentativas modernas, tanto na esfera da poesia, da pintura e da música como na do pensamento. Mallarmé parte do pensamento poético (selvagem) até o lógico e Lévi-Strauss do lógico para o selvagem. A anexação da razão lógica pelos símbolos da poesia coincide em um momento com a reconquista da lógica sensível pela razão crítica.
Ao mostrar a relação entre os mitos Bororo e Gê, o antropólogo francês descobre que todos eles têm como tema, nunca explícito, a oposição entre o cru e o cozido, a natureza e a cultura. Os mitos do jaguar e do porco selvagem, associados aos da origem da planta do tabaco, aludem à descoberta do fogo e à cozedura dos alimentos. Por meio do sistema de permutações que descrevi acima de forma sumária e grosseira, Lévi-Strauss passa em revista 187 mitos nos quais se repete esta dialética de oposição, mediação e transformação. Um após outro, em uma espécie de dança – poesia e matemática – se sucedem os símbolos contraditórios: o contínuo e o descontínuo, a vida breve e a imortalidade, a água e os ornamentos funerários, o fresco e o corrompido, a terra e o céu, o aberto e o fechado – as aberturas do corpo humano convertidas em um sistema simbólico da ingestão e da dejeção – a rocha e o lenho apodrecido, o canibalismo e o vegetarianismo, o incesto e o parricídio, a caça e a agricultura, a fumaça e o trovão... Os cinco sentidos se transformam em categorias lógicas e a esta chave da sensibilidade se superpõe uma astronômica que se transforma em outra construída da oposição entre ruído e silêncio, fala e canto. Todos esses mitos são metáforas culinárias, mas por sua vez a cozinha é um mito, uma metáfora da cultura.
Três símbolos me chamaram a atenção: o arco-íris, a doninha e o veneno para a pesca. Os três são mediadores entre a natureza e a cultura, o contínuo e o descontínuo, a vida e a morte, o cru e o podre. O arco-íris significa o fim da chuva e a origem da enfermidade; de ambas as maneiras é um mediador: no primeiro aspecto porque é um emblema da conjunção benéfica entre céu e terra e no segundo porque encarna a fatal transição entre a vida e a morte. O arco-íris é um homólogo da doninha, animal lascivo e pestilento: um atributo a liga com a vida e outro com a morte (putrefação). O timbó é um veneno que os índios usam para pescar e assim é uma substância natural utilizada em uma atividade cultural ambígua (pesca e caça são transformações da guerra). Nos três símbolos a ruptura ou descontinuidade essencial entre natureza e cultura, cujo exemplo máximo e central é a cozinha, se adelgaça e se atenua. Seu caráter equívoco não provém só do fato de serem depositários de propriedades contraditórias, mas de que são categorias lógicas difíceis de pensar: neles a dialética das oposições está a ponto de se desvanecer. Por sua própria transparência são, diria, elementos impensáveis – algo assim como o pensamento que se pensa. Para recriar a descontinuidade, o arco-íris se desagrega (origem do cromatismo, que é uma forma atenuada da continuidade natural); o veneno nega por sua função a sua natureza (é uma substância mortífera que dá vida); e a doninha se transforma, em certos mitos de exaltados e sinistros matizes sexuais, de homólogo da doença e da “mulher fatal” em nutriz e introdutora da agricultura. Não é estranho que em um momento de sua exposição Lévi-Strauss associe o cromatismo do Tristão wagneriano com o veneno e aos dois com infortúnio de Isolda, a doninha.
O verdadeiro tema de todos esses mitos é a oposição entre a cultura e a natureza tal como se expressa na criação humana por excelência: a cocção dos alimentos pelo fogo domesticado. Tema prometéico de múltiplas ressonâncias: cisão entre os deuses e os homens, a vida contínua do cosmo e a vida breve dos humanos, mas também mediação entre a vida e a morte, o céu e a água, as plantas e os animais. Seria ocioso enumerar todas as ramificações desta oposição, pois engloba todos os aspectos da vida humana. É um tema que nos conduz ao centro da meditação de Lévi-Strauss: o lugar do homem na natureza. A posição da cozinhacomo atividade que justamente separa e une o mundo natural e o humano não é menos central que a proibição universal do incesto. Ambas estão prefiguradas pela linguagem, que é o que nos separa da natureza e o que nos une a ela e a nossos semelhantes. A linguagem significa a distância entre o homem e as coisas tanto quanto a vontade de anulá-la. A cozinha e o tabu do incesto são homólogos da linguagem. A primeira é mediação entre o cru e o podre, o mundo animal e o vegetal; o segundo entre a endogamia e a exogamia, a promiscuidade dissoluta e o onanismo do uno. O modelo de ambos é a palavra, ponte entre o grito e o silêncio, a não significação da natureza e a insignificância dos homens. Os três são crivos que filtram o mundo natural anônimo e o transmutam em nomes, signos e qualidades. Transformam a torrente amorfa da vida em quantidade discriminada e em famílias de símbolos. Nos três o tecido da rede (crivo) é composto de uma substância impalpável: a morte. Lévi-Strauss quase não a cita. Talvez o proíba o seu orgulhoso materialismo. Ademais, de certo ponto de vista, a morte é apenas outra manifestação da imortal matéria vigente. Mas, como não ver nessa necessidade de diferenciar entre natureza e cultura para em seguida introduzir um termo de mediação entre ambas, o eco e a obsessão de nos sabermos mortais?
A morte é a verdadeira diferença, a raia divisória entre o homem e a corrente vital. O sentido último de todas essas metáforas é a morte. Cozinha, tabu do inces to e linguagem são operações do espírito, mas o espírito é uma operação da morte. Embora a necessidade de sobreviver pela alimentação e pela procriação seja comum a todos os seres vivos, os artifícios com que o homem enfrenta esta fatalidade o convertem em um ser à parte. Sentir-se e saber-se mortal é ser diferente: a morte nos condena à cultura. Sem ela não haveria nem artes nem ofícios: linguagem, cozinha e regras de parentesco são mediações entre a vida imortal da natureza e a brevidade da existência humana. Aqui Lévi-Strauss coincide com Freud e, noutro extremo, com Hegel e com Marx. Mais próximo dos dois últimos do que do primeiro, em um segundo movimento o seu pensamento procura dissolver a dicotomia entre cultura e natureza – não pelo trabalho, pela história ou pela revolução, mas pelo conhecimento das leis do espírito humano. O mediador entre a vida breve e a imortalidade natural é o espírito: um aparelho inconsciente e coletivo, imortal e anônimo como as células. Por isto me parece ser um homólogo do arco-íris, do veneno para pescar e da doninha. Como esses três elementos vivazes e fúnebres, por sua origem está do lado da natureza e por sua função e seus produtos do lado da cultura. Nele se apaga quase completamente a oposição entre morte e vida, a significação distinta do homem e a não significação infinita do cosmo. Diante da morte o espírito é vida e diante desta, morte. Desde o principio o entendimento humano esbarrou diante da impossibilidade lógica de explicar o nada pelo ser ou o ser pelo nada. Talvez o espírito seja o mediador. Na esfera da física se chega a conclusões semelhantes; o Professor John Wheeler, em uma recente reunião da Physical Society, afirma que é impossível localizar um acontecimento no tempo ou no espaço: antes e depois, aqui e ali são noções que carecem de sentido. Há um ponto no qual “something is nothing and nothing is something”... O tema do espírito e o do sentido da significação são gêmeos, mas antes de abordá-los devo examinar as relações entre o mito, a música e um hóspede não convidado a esse festim de Esopo que é a obra de Lévi-Strauss: a poesia.
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3.	INTERMÉDIO DISCORDANTE.
DEFESA DE UMA CINDERELA E OUTRAS DIVAGAÇõES. UM TRIANGULO VERBAL: MITO, ÉPICA E POEMA.
Le cru e le cuit é um livro de antropologia que adota a forma de um concerto. Não é a primeira vez que uma obra literária se serve de termos e formas musicais, embora, de modo geral, tenham sido os poetas a se servirem da música e não os homens de ciência. Certo, desde Apollinaire e Picasso a relação entre poesia e pintura foi mais íntima do que a entre poesia e música. Creio que agora a relação está a ponto de mudar, tanto pela evolução da música contemporânea como pelo renascimento da poesia oral. Ambas, música e poesia, encontrarão nos novos meios de comunicação um terreno de união. Além disso, vários poetas modernos – Mallarmé, Eliot e, entre nós, José Gorostiza – deram às suas criações uma estrutura musical, enquanto outros – Valéry, Pellicer, Garcia Lorca – acentuaram a relação entre poesia e dança. Por sua vez os músicos e os dançarinos sempre viram nas formas poéticas um modelo ou arquétipo de suas criações. O parentesco entre poesia, música e dança é natural: as três são artes temporais. Lévi-Strauss justifica a forma de seu livro pela índole da matéria que estuda e pela própria natureza de seu método de interpretação: acredita que existe uma verdadeira analogia; não, como seria de esperar, entre a poesia e o mito, mas entre o mito e a música. E mais ainda: na esfera da análise dos mitos se apresentam “problemas de construção para os quais a música já inventou soluções”. Deixo de lado esta afirmação enigmática e me limitarei a discutir as razões que o levam a postular uma relação particular entre o pensamento mítico e o musical.
O fundamento de sua demonstração se condensa nesta frase: “Música e mito são linguagens que transcendem, cada um à sua maneira, o nível da linguagem articulada”. Esta afirmação provoca imediatamente duas observações. Em primeiro lugar, a música não transcende a linguagem articulada pela simples razão de que o seu código ou clave – a gama musical – não é lingüística. Em um sentido estrito a música não é linguagem, embora seja lícito chamá-la assim por metáfora ou por extensão do termo. Como as outras artes não verbais, a música é um sistema de comunicação análogo, e não idêntico, à linguagem. Para transcender algo há que passar por esse algo e ir mais além: a música não transcende a linguagem articulada porque não passa por ela. A segunda observação: “como o mito, embora em direção contrária, a poesia transcende a linguagem”.� Graças à mobilidade dos signos lingüísticos, as palavras explicam as palavras: toda frase diz algo que pode ser dito por outra frase, todo significado é um querer dizer que pode ser dito de outra maneira. A “frase poética” – unidade rítmica mínima do poema, cristalização das propriedades físicas e semânticas da linguagem – nunca é um querer dizer: é um dizer irrevogável e final, em que o sentido e som se fundem. O poema é inexplicável, exceto por si mesmo. Por um lado, é uma totalidade indissociável e uma mudança mínima altera toda a composição; por outro lado, é intraduzível: além do poema há apenas ruído e silêncio, um sem-sentido ou uma sem-significação que as palavras não podem nomear. O poema aponta para uma região a que aludem também, com a mesma obstinação e a mesma impotência, os signos da música. Dialética entre som e silêncio, sentido e não-sentido, os ritmos musicais e poéticos dizem algo que só eles podem dizer, sem dizê-lo nunca de todo. Por isso, corno a música, o poema “é uma linguagem inteligível e intraduzível”. Sublinho que não só é intraduzível para as outras línguas como para o idioma em que está escrito. A tradução de um poema é sempre a criação de outro poema; não é uma reprodução mas uma metáfora equivalente do original.
Em suma, a poesia transcende a linguagem porque transmuta esse conjunto de signos móveis e intercambiáveis que é a linguagem em um dizer último. Tocada pela poesia, a linguagem é mais plenamente linguagem e, simultaneamente, cessa de ser linguagem: é poema. Objeto composto de palavras, o poema desemboca em uma região inacessível às palavras: o sentido se dissolve, ser e sentido são o mesmo... Lévi-Strauss reconhece em parte o que eu disse: “Na linguagem a primeira cifra não-significante (a fonológica) é meio e instrumento de significacão da segunda; a dualidade se restabelece na poesia, que recobra o valor virtual da significaçãoda primeira para integrá-la na segunda...” Admite que a poesia muda a linguagem mas pensa que, longe de transcendê-la, se encerra assim mais totalmente em suas malhas: desce do sentido aos signos sensíveis, regressa da palavra ao fonema. Direi somente que me parece um perverso paradoxo definir desta maneira a atividade de Dante, Baudelaire ou Coleridge.
Música e mito “requerem uma dimensão temporal para manifestar-se”. Sua relação com o tempo é peculiar porque o afirmam só para negá-lo. São diacrônicos e siri crônicos: o mito conta uma história e, como o concerto, se desenvolve no tempo irreversível da audição; o mito se repete, se reengendra, é tempo que volve sobre si mesmo – o que passou está passando agora e voltará a passar – e a música “imobiliza o tempo que transcorre... de modo que ao escutá-la acedemos a uma espécie de imortalidade”. Numa obra anterior Lévi-Strauss já tinha sublinhado a dualidade do mito, que corresponde à distinção entre língua e fala, estrutura atemporal e tempo irreversível da elocução. A analogia entre música e mito é perfeita, só que pode estender-se à dança e, de novo, à poesia. As relações entre dança e música são tão estreitas que me poupam toda explicação. No caso da poesia se reproduz a dualidade sincrônica e diacrônica da linguagem, embora em um nível mais elevado, já que a segunda clave ou cifra, a significativa, dá condições para que o poeta construa um terceiro nível não sem semelhanças com o da música e, está claro, com o que Lévi-Strauss descreve em Le cru et le cuit. O tempo do poema é cronométrico e, do mesmo modo, é outro tempo que é a negação da sucessão. Na vida diária dizemos: o que passou, passou; mas no poema aquilo que passou regressa e encarna outra vez. O poeta, diz o centauro Ouiron a Fausto, não está encadeado no tempo: fora do tempo Aquiles encontrou Helena. Fora do tempo? Melhor dizer, no tempo original... Inclusive nos poemas épicos e nas novelas históricas o tempo da narrativa escapa à sucessão. O passado e o presente dos poetas não são os da história e os do periodismo; não são aquilo que foi nem aquilo que passa, mas o que está sendo, o que se está fazendo. Gesta, gestação: um tempo que se reencarna e se re-engendra. E reencarna de duas maneiras: no momento da criação e no da recriação, quando o leitor ou o ouvinte revive as imagens e ritmos do poema e convoca esse tempo flutuante que regressa... “Nem todos os mitos são poemas mas, neste sentido, todos os poemas são mitos”. (El arco y la lira, p. 64.) Poemas e mitos coincidem em transmutar o tempo em uma categoria temporal especial, um passado sempre futuro e sempre disposto a ser presente, a presentificar-se. Assim pois, as relações da música com o tempo não são essencialmente distintas das da poesia e da dança. A razão é clara: são três artes temporais que, para se realizar, devem negar a temporalidade.
As artes visuais repetem esta relação dual, não com o tempo mas com o espaço: um quadro é um espaço que nos remete a outro espaço. O espaço pictórico anula o espaço real do quadro; é uma construção que contém um espaço possuidor de propriedades análogas às do “tempo congelado” da música e da poesia. Um quadro é um espaço em que vemos outro espaço; um poema é um tempo que transparece outro tempo, fluido e imóvel juntamente. A arquitetura, mais poderosa do que a pintura e a escultura, altera ainda mais radicalmente o espaço físico: não só vemos um espaço que não é real como vivemos e morremos nesse segundo espaço. A estupa� é uma metáfora do monte Meru, mas é uma metáfora encarnada ou, mais exatamente, petrificada: nós a tocamos e a vemos como um verdadeiro monte. O teatro, a dança e o cinema – artes temporais e espaciais, visuais e sonoras – combinam essa parelha de dualidades: o palco e a tela são um espaço que cria outro espaço sobre o qual desliza um tempo cromático que é reversível como o da poesia, da música e do mito.
A música e o mito “operam a partir de um duplo contínuo, externo e interno”. O primeiro consiste, no caso do mito, em “uma série teoricamente ilimitada de ocorrências históricas ou tidas por tais, dentre as quais cada sociedade extrai um número pertinente de acontecimentos”; pelo que diz respeito à música, cada sistema musical escolhe uma gama entre a série de sons fisicamente realizáveis. quase desnecessário observar que o mesmo acontece com a dança: cada sistema seleciona, dentro dos movimentos do corpo humano e mesmo dos animais, alguns que constituem o seu vocabulário. A dança de Kerala (katakali) serve-se de uma gama mímica, enquanto que na européia há uma espécie de sintaxe do salto e da contorsão. Na poesia sânscrita se louva a graça elefantina das bailarinas e no Ocidente o cisne e outras aves são os modelos de comparação da dança. Na poesia o contínuo sonoro da fala se reduz a alguns metros e é sabido que cada língua prefere apenas um ou dois: o octossílabo e o hendecassílabo em espanhol, alexandrino e eneassílabo em francês. Não é apenas isto: cada sistema de versificação adota um método distinto para constituir o seu cânone métrico: versificação quantitativa na antigüidade greco-romana, silábica nas línguas românicas e acentuai nas germânicas. Como a clave sonora é também semântica, cada sistema é composto por uma série de regras estritas que operam no nível semântico como a versificação no sonoro. A arte de versificar é uma arte de dizer que não combina todos os elementos da linguagem, mas um grupo reduzido. Enfim, mitos e poemas se assemelham de tal modo que não só os primeiros empregam com freqüência as formas métricas e os procedimentos retóricos da poesia como a própria matéria dos mitos – “os acontecimentos” a que alude Lévi-Strauss – são também matéria de poesia. Aristóteles chama mitos aos argumentos ou histórias das tragédias. Ao escrever a Fábula de Polifemo y Galatea, Góngora não só nos presenteou com um poema que ocupa na poesia do século XVII o lugar que Un coup de dés ocupa na do século XX, como nos ofereceu uma nova versão do mito do cíclope.
O “contínuo interno” reside no tempo psicofisiológico do ouvinte. A longitude da narrativa, a recorrência dos temas, as surpresas, paralelismos, associações e ruptu ras provocam no auditório reações de ordem psíquica e fisiológica, respostas mentais e corporais: o interesse do mito é “palpitante”. A música afeta de maneira ainda mais acentuada nosso sistema visceral: carreira, salto, imobilidade, encontro, desencontro, queda no vazio, subida ao cimo. Não sei se Lévi-Strauss notou que todas estas sensações podem se reduzir a esta dualidade: movimento e imobilidade. Estas duas palavras evocam a dança, que é a verdadeira parelha da música. A dança nos convida a nos transformarmos em música: pede-nos que a acompanhemos; e a música nos convida a dançar: pede-nos que a encarnemos. O feitiço da música provém de que o compositor “retira aquilo que o ouvinte espera ou lhe dá algo que não esperava”. A palavra surpresa diz de maneira muito imperfeita este sentimento de “espera enganada ou recompensada mais além do previsto”. A mesma dialética entre o esperado e o inesperado se desenvolve na poesia. É uma característica comum a todas as artes temporais e que faz parte inclusive da oratória: um jogo entre o antes, o agora e o depois. Ao nível sonoro os ouvintes esperam uma rima ou uma série de sons e se assombram de que o poeta resolva a seqüência de forma imprevista. Nada me fez mais viva esta sensação do que escutar uma recitação de poemas em urdu, uma língua que desconheço: o auditório escutava com avidez e aprovava ou se desconcertava quando o poeta lhe oferecia algo distinto do que aguardava. Etiemble diz que a poesia é um exercício respiratório e muscular em que intervém tanto a atividade dos pulmões como a da língua, dos dentes e dos lábios. Claudel e Whitman insistiram sobre o ritmo de inspiração e expiração do poema. Todas estas sensações as reproduz o ouvinte e o leitor. Ora, como em poesia “the sound must seem an echo of the sense”, esses exercícios fisiológicos possuem um significado; repetiçãoe variação, ruptura e união são procedimentos que geram reações ao mesmo tempo psíquicas e físicas. A dialética da surpresa, diz Jakobson, foi definida pelo poeta Edgar Allan Poe, “o primeiro que valorizou, do ponto de vista métrico e psicológico o prazer que gera o inesperado ao surgir do esperado, um e outro impensáveis sem o seu contrário”.
Na música e nos mitos há “uma inversão de relação entre emissor e receptor, 'pois o segundo se descobre significado pela mensagem do primeiro: a música vive em mim, eu me escuto através dela... O mito e a obra musical são como um diretor de orquestra cujos ouvintes fossem os silenciosos executantes”. Outra vez: poeta e leitor são momentos de uma mesma operação; depois de escrito o poema, o poeta fica só e são os outros, os leitores, os que se recriam a si mesmos ao recriar o poema. A experiência da criação se reproduz em sentido inverso: agora o poema se abre diante do leitor. Ao penetrar nessas galerias transparentes, desprende-se de si mesmo e se interna no “outro ele mesmo”, até então desconhecido. O poema nos abre ao mesmo tempo as portas da estranheza e do reconhecimento: eu sou esse, eu estive aqui, esse mar me conhece, eu te conheço, em teus pensamentos vejo a minha imagem repetida mil vezes até a incandescência... O poema é um mecanismo verbal que produz significados só e graças a um leitor ou um ouvinte que o coloca em movimento. O significado do poema não está no que quis dizer o poeta mas no que diz o leitor por meio do poema. O leitor é este “silencioso executante” de que fala Lévi-Strauss. É um fenômeno comum a todas as artes: o homem se comunica consigo mesmo, se descobre e se inventa, por meio da obra de arte.
Se os mitos “não têm autor e existem apenas encarnados em uma tradição”, o problema que a música apresenta é mais grave: tem um autor mas ignoramos como se escrevem as obras musicais. “Não sabemos nada das condições mentais da criação musical”: por que só alguns secretam música e são inumeráveis os que a amam? Esta circunstância e o fato de que “entre todas as linguagens só a musical seja inteligível e intraduzível”, convertem o compositor “em um ser semelhante aos deuses e a própria música no mistério supremo das ciências humanas – um mistério que resiste às mesmas e que guarda as chaves de seu progresso”. Lévi-Strauss chama os aficcionados da pintura de “fanáticos”; este parágrafo é um exemplo de como o fanatismo, agora musical, ajudado pela fatal tendência à eloqüência das línguas latinas, pode extraviar os espíritos mais altos. O mistério da criação musical não é mais recôndido nem mais tenebroso do que o mistério da criação pictórica, poética ou matemática. Ainda não sabemos porque alguns homens são Newton e outros Ticiano. O próprio Freud disse que pouco ou nada sabia do processo psicológico da criação artística. A diferença numérica entre os criadores de obras musicais e os aficcionados da música se repete em todas as artes e ciências: nem todos são Whitman, Darwin ou Velázquez, mas muitos compreendem e amam as suas obras. Tampouco é exato que a música seja a única linguagem “inteligível e intraduzível”. Já disse que o mesmo sucede com a poesia e a dança. Acrescento agora os exemplos da pintura e da escultura: como traduzir a arte negra, a da antigüidade Greco-romana ou a japonesa? Cada “tradução” é uma criação ou transmutação que se chama cubismo, arte renascentista, impressionismo. Nenhuma obra de arte é traduzível e todas são inteligíveis – se possuímos a chave.
Lévi-Strauss não faz uma distinção, a meu ver capital, entre clave (código ou cifra) e obra. A clave da música é mais ampla do que a da poesia, mas é menos do que a da pintura. O sistema musical europeu repousa na gama de notas e é mais extenso do que o sistema poético francês, baseado na estrutura fonológica dessa língua; contudo, basta passar de fronteira musical e viver na China ou na índia para que a música ocidental dixe de ser inteligível. A linguagem das artes visuais e mais extensa – não mais universal – porque sua clave, como diz Lévi-Strauss, se “organiza no seio da experiência sensível”. A clave da pintura – cores, linhas, volumes -- é mais sensível do que intelectual e, portanto, é acessível a maior número de homens, independentemente de sua língua e de sua civilização. À medida que aumenta a perfeição e a complexidade da clave, sua popularidade decresce. A clave das matemáticas é menos extensa e mais perfeita do que a fala corrente. A clave lingüística, pela mesma razão de perfeição e de complexidade, é menos extensa do que a musical e assim sucessivamente até chegar à dança, à pintura e à escultura. Dir-se-á que a música usa uma linguagem própria “e que não é suscetível de nenhum uso geral”, enquanto que as palavras do poeta não são distintas das do comerciante, do clérigo ou do revolucionário. Repetimos: a música não é linguagem articulada, característica que a une à pintura e às outras artes não-verbais. Neste sentido, a linguagem das cores e das formas também é um domínio exclusivo da pintura, embora sua clave seja menos elaborada e perfeita que a da música. Portanto, a primeira distinção que se deve fazer é entre estruturas verbais e estruturas não-verbais. Por ser a linguagem o mais perfeito dos sistemas de comunicação, as estruturas verbais são o modelo das não-verbais. No universo propriamente lingüístico a poesia e a matemática se encontram em situação de oposição simétrica: na primeira, os significados são múltiplos e os signos inamovíveis; na segunda, es signos são movíveis e o significado unívoco. É claro que a música e as outras artes não-verbais participam desta característica da poesia. A ambigüidade é o signo distintivo da poesia e esta propriedade poética converte em artes a música, a pintura e a escultura.
Se das claves se passa às obras, o juízo de Lévi-Strauss torna-se ainda mais injusto. A universalidade de uma obra não depende de sua clave mas de sua mensagem. Explico-me. Aceitarei por um momento essa infundada pretensão que vê na linguagem musical um sistema de comunicação mais perfeito que o lingüístico: Debussy é mais perfeito e universal do que Shakespeare, Goya ou os relevos de Baharut que, com tanta razão, o sábio francês admira? Com uma clave “sensível” El Greto cria uma obra espiritual e Mondrian uma pintura intelectual que se limita com a geometria e a teoria binária da cibernética. Com uma clave que, segundo Lévi-Strauss, deve pouco aos sons naturais, Stravinski escreve a Sagração da Primavera, poema das forças e dos ritmos naturais. A universalidade e o caráter das obras não depende da clave e sim desse imponderável, verdadeiro mistério, a que chamamos de arte ou criação. A confusão entre clave e obra talvez explique os desdenhosos juízos de Lévi-Strauss sobre a pintura abstrata, a música serial e a concreta. Sobre esta última seria preciso dizer que, como a eletrônica, é parte da busca de uma estrutura sonora inconsciente, ou seja, de unidades concretas naturais. Essa tentativa recorda a “lógica concreta das qualidades sensíveis” de La pensée sauvage . Aliás, em um dos livros mais poéticos e estimulantes que li nos últimos anos (Silence) diz John Cage: “A forma da música nova é diversa da antiga, mas possui uma relação com as grandes formas do passado, a fuga e a sonata, do mesmo modo que há uma relação entre estas duas últimas”. Em arte toda ruptura é transmutação.
Páginas adiante, guiado pelo demônio da analogia, Lévi-Strauss adverte na música as seis funções que os lingüistas atribuem às mensagens verbais. Essas seis funções, repetimos, aparecem também na dança e, está claro, nas outras artes. Embora música e dança não sejam linguagem articulada, são sistemas de comunicação muito semelhantes à linguagem e daí que sua mensagem seja o equivalente de uma das funções lingüísticas: a função poética. Segundo Jakobson, esta função não está centralizada no emissor, no receptor, no contato entre ambos, no contexto da mensagem ou na clave, mas sobre a própria mensagem. Assim, a função poética distingue os afrescos

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