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Bianca Mocci Passaro Clecia Bastos Gerardi Como eu vivo é a maior homenagem para meu filho... Universidade São Marcos São Paulo, 2006 2 Bianca Mocci Passaro Clecia Bastos Gerardi Como eu vivo é a maior homenagem para meu filho... TCC- Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia da Universidade São Marcos sob orientação da Profª Drª Silvia Ancona - Lopez. Universidade São Marcos São Paulo, 2006 3 Como eu vivo é a maior homenagem para meu filho... Bianca Mocci Passaro Clecia Bastos Gerardi BANCA EXAMINADORA ___________________________ Profª. Ivana Moraes de Alencar ____________________ Profª. Drª Gabriela Casellato _______________________________ Profª. Drª Silvia Ancona - Lopez Trabalho apresentado e aprovado em: _04_/_12_/2006 4 AGRADECIMENTOS A colaboradora desta pesquisa, pela sua disponibil idade e carinho em relatar sua experiência, permitindo que parti lhássemos de seus conteúdos mais íntimos, para que, de maneira ética, pudéssemos elaborar nosso trabalho. A nossa querida orientadora Silvia Ancona - Lopez que nos guiou nessa trajetória, apontando-nos sempre com precisão, cuidado e compreensão a uma direção a seguir. A Professora Ivana Moraes de Alencar, grande responsável por ter plantado o interesse e a possibil idade de levarmos à frente nosso tema. A nossa querida amiga Daniela Tramujas, por ter proporcionado o contato com a nossa colaboradora. Aos nossos f iéis companheiros e famil iares, que conviveram diariamente com as conseqüências deste trabalho. Para vocês o nosso profundo agradecimento. A todos os nossos amigos, que de maneira distante ou próxima, sempre estiveram ao nosso lado quando foi preciso. Bianca M. Passaro e Clecia B. Gerardi 5 DEDICATÓRIA - 1 Dedico este trabalho a meus pais que sempre me apoiaram e acima de tudo acredi taram e embarcaram neste meu sonho. A vocês dois, o meu profundo e eterno agradecimento. Ao meu namorado Fernando Azevedo, companheiro leal , que por meio da sua paciência e compreensão, me ajudou a real izar esta obra com prazer e segurança. Agradeço em especial a minha amiga e parceira, por ser uma mulher de mente br i lhante e cr iat iva, que sempre me convidou a correr r iscos e ousar, d iante das dúvidas e incerteza, encontradas em nosso caminho. In Memória: À minha avó Aida, que ao perder seu f i lho me inspirou, através do nosso eterno laço de afeto. “Vó, a saudade é grande, mas o amor é para sempre”. Ao meu quer ido amigo Renato de Cicco Porto, um muito obr igado, por ter me ensinado a viver, apesar das barreiras e da sociedade. Bianca M. Passaro 6 DEDICATÓRIA - 2 Dedico este trabalho ao amigo, companheiro e amado marido Alessandro Gerardi , por sempre estar ao meu lado. Obrigado pelo car inho, pela compreensão e pr inc ipalmente pela cumpl ic idade. Aos meus quer idos e amados f i lhos, L ino e Alessandro, pessoinhas que me inspiram a v iver . Aos meus adorados pais, pessoas que sempre acreditaram e apoiaram meus sonhos, por mais d i f íceis que parecessem. E, em especial , agradeço a minha quer ida amiga e parceira deste t rabalho. Pessoa maravi lhosa. Obr igada pela amizade incondicional e por ter apostado neste trabalho. Clecia B. Gerardi 7 “Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós; leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, mas não há os que levam nada; há os que deixam muito, mas não há os que deixam nada. Essa é a maior responsabilidade de nossas vidas e a prova evidente que duas almas não se encontram por acaso”. Antoine de Saint-Exupéry 8 GERARDI, C. B. PASSARO, B. M., Como eu vivo é a maior homenagem para meu filho . Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia da Universidade São Marcos, 2006. p 114. RESUMO O objetivo deste trabalho é compreender a vivência de uma mãe que perdeu seu fi lho, juntamente com sentimentos e signif icados dessa experiência. O interesse por este tema partiu da dif iculdade que observamos das pessoas ao falarem da morte, principalmente quando se trata de entes queridos. Para conhecermos essa vivência, uti l izamos abordagem qualitativa, e como instrumento uma entrevista semi- dirigida, sendo uma única mãe entrevistada, relatando a experiência de perder seu único f i lho. Uti l izamos uma perspectiva fenomenológica, seguindo as etapas de investigação apresentadas por Yolanda C. Forghieri, tendo como base, envolvimento existencial e distanciamento reflexivo, a f im de uma possível compreensão de signif icados. Por meio da fala dessa mãe procuramos subsídios para uma melhor compreensão daquilo que ela vivenciou ao perder seu fi lho. Na busca de um referencial teórico que embasasse nosso trabalho nos deparamos com alguns autores, que nos auxil iaram para uma melhor compreensão do tema e análise dos dados. Entendemos que para essa mãe a vida ganhou um novo sentido, ela vive por amor ao seu fi lho, e, esse amor trouxe a necessidade de comparti lhar a sua experiência com outras mães, levando-a a escrever um livro. Ela encontrou na religião apoio para aliviar seu medo e sua dor. Sentiu o despreparo da sociedade em lidar com a perda e também a dif iculdade em encontrar mais profissionais que l idem com esta questão. Palavras Chave: Morte de um fi lho, Perda, Luto. 9 SUMÁRIO RESUMO INTRODUÇÃO 10 Capítulo I CAMINHO DA PESQUISA 17 Objetivo 17 1.1. – Caminhos 17 1.2. – Colaboradora 20 1.3. – Entrevista 20 1.4. – Trabalhando com o Depoimento 21 Capítulo II MEDO DO DESCONHECIDO 25 Capítulo III POR QUE COMIGO? 30 Capítulo IV RITUAL: UMA DOR NECESSÁRIA 37 Capítulo V LUTO: PROCESSO DE ELABORAÇÃO 42 5.1. – Luto não complicado 45 5.2. – Luto complicado 48 5.3. – O quê acontece após o luto? 49 Capítulo VI ANÁLISE DA ENTREVISTA 52 6.1. – Encontro 526.2. – Relações: Filho e Amigos 53 6.3. – Sociedade e Psicoterapia 56 6.4. – Reações e Sentimentos 62 6.5. – Rituais 71 6.6. – O que fazer? 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS 78 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 83 Anexo I - Transcrição da Entrevista 88 Anexo II - Termo de consentimento l ivre e Esclarecido 109 Anexo III - Grupos de Apoio ao luto 113 10 INTRODUÇÃO ealizar este trabalho com uma mãe que perdeu seu fi lho signif ica uma experiência rica e penosa. Rica por entrar em um mundo desconhecido e cheio de sentimentos, e penosa por comparti lhar de uma dor considerada entre outras, a mais sofrida de todas. Para Bowlby (2004) a perda de uma pessoa amada é considerada uma das experiências mais intensas e dolorosas, que o ser humano pode sofrer. É penosa não só para quem a vivencia, mas também para quem está próximo. É um ato de nos confrontarmos com a nossa própria impotência. O objetivo dessa pesquisa, por meio da abordagem qualitativa, é chegar o mais próximo possível da vivência de uma mãe que perdeu subitamente seu fi lho (em um acidente de carro) e também compreender sentimentos e reações, para um possível entendimento do luto enquanto processo. Essa proximidade e a busca de compreensão surgiram como uma tentativa de responder a algumas questões iniciais que tínhamos, sendo elas: Como seria possível sobreviver à morte de um fi lho? O que mudaria na mãe após a perda? Quando uma mãe perde um fi lho, o que realmente ela perde? Após o luto, a morte ganharia um novo sentido? R 11 O interesse sobre o tema parte também da dif iculdade que observamos nas pessoas ao falarem da morte, principalmente quando se trata da perda de entes queridos. Não se fala em morte e se pensa o menos possível. Na busca de um embasamento teórico que nos auxil iasse a compreender o tema escolhido, nos deparamos com alguns autores, entre eles Kovács (2003), Casellato e Motta (2002), Worden (1998), entre outros, que nos levaram a um conhecimento mais profundo sobre o assunto. A princípio é necessário entendermos que não há somente um tipo de morte durante o processo evolutivo. Segundo Kovács (1992) cada indivíduo traz consigo uma representação da morte, pois cada sujeito é inserido em uma cultura, em uma crendice. Um outro aspecto importante para autora é a representação que cada indivíduo atribui a morte. Freqüentemente a morte amedronta, é vista como fim, como perda de consciência que vem acompanhada pelo medo da solidão, da separação de quem se ama, o medo do desconhecido e muitos outros. A morte de um ente querido associa-se ao luto. Conforme Kovács (2003) o luto trata-se de um processo que afeta o signif icado que se dá à vida, já que nela provoca profundas transformações. De acordo com Kuhn (apud Parkes, 1998) o enlutado traz a sensação de que não foram os mortos que partiram, mas os que ficaram é que foram ejetados do mundo, que até então, lhes era famil iar. 12 Kovács (2003) ressalta a idéia da perda e da elaboração como sendo elementos contínuos no processo de desenvolvimento humano. A morte nos fala de um vínculo, de uma perda real e concreta, de uma irreversibil idade. Conforme Bowlby (apud Casellato e Motta, 2002) a maneira de enlutar-se seria, portanto, uma resposta à separação que mudaria dependendo da qualidade dos vínculos estabelecidos primariamente. Para Bromberg e Kovács (1996): A inf luência é mutuamente recíproca entre o luto e o c ic lo v i ta l da famíl ia. O ajustamento à real idade após a morte de um dos elementos da famíl ia é um trabalho a ser resolvido a curto e longo prazo. (p. 116) Após a descrição de algumas implicações da morte e do luto, cabe nesse momento falarmos especif icamente da morte de um fi lho. Pois, há diferenças de luto a partir do t ipo de morte. De acordo com Casellato e Motta (2002) podem ocorrer vários t ipos de perda, porém a morte de um fi lho é reconhecida socialmente como a mais intensa, é algo inigualável. Para as autoras: Esta mãe vive um fracasso social e, sente-se cobrada em seu contexto social , como se t ivesse falhado em sua função materna de proteger o f i lho e com isso garant ir a sua sobrevivência a qualquer custo. (p. 101) Segundo Casellato (1998) quando ocorre a morte de um fi lho por acidente, esse evento apresenta-se precoce e inesperado, sendo um 13 processo de elaboração bastante difíci l que causa uma potencialidade de desorganização, paralisação e impotência. Conforme Viorst (2004) a perda de um fi lho é sentida como um golpe. O que leva os pais a se perguntarem, como continuar a viver com este fato?. Neste momento a mente f ica imobil izada com o choque e, assim, a uma dif iculdade de compreender o sentido das palavras. Há uma vaga sensação de uma imensa perda, porém, será somente com o tempo, que a mente e a memória se reunirão, e assim, talvez compreenderão a verdadeira extensão daquilo que ocorreu. Segundo Bromberg e Kovács (1996) a morte de um fi lho tem efeitos sobre o sistema famil iar. O luto dos pais é freqüentemente misturado com a raiva, culpa e a auto-reprovação por sua inabil idade em impedir a morte, bem como a sensação de estarem sendo vít imas de uma injustiça. Sou pr is ioneira da v ida. É assim que as horas se arrastam a cabeça a mi l , o coração em chamas. Eu imploro para a noi te chegar e eu esquecer, nas poucas horas que consigo dormir , que estou v iva e que meu amado f i lho morreu. L indo, amado! (KELLER, 2005, p. 33) É provável, que neste momento da vida a mãe tenha uma sensação de fracasso, até mesmo de pecado, só pelo fato de continuar a viver depois da morte de seu fi lho. Não se sente merecedora de estar vivendo quando o seu fi lho está morto, e surge a sensação de não ter encontrado um meio de dar sua própria vida pela dele. Para Viorst (2004) a culpa é um dos sentimentos que possivelmente aparecem nas mães, levando-as a pensamentos de 14 falhas em relação a pessoa amada e que agora está morta. Surge também uma culpa por sentimentos negativos perante o f i lho que morreu. Neste momento apegar-se a dor pode parecer um ato de fidelidade, ao passo que ceder ao tempo pode parecer uma traição. Como dissemos anteriormente, tudo que narramos a respeito da morte enquanto f initude, do luto e da perda de um fi lho, nos mostra ser um fenômeno importante a ser estudado, e para isso pensamos em nos aproximarmos de uma pessoa envolvida neste processo, para então questioná-la sobre o sentido particular de sua vivência. Encontramos na uti l ização do método fenomenológico, aplicado à pesquisa de caráter psicológico, uma forma de investigação que suspende toda e qualquer hipótese ou teoria existente sobre o assunto. Buscamos nos dirigir ao fenômeno, para poder entender e captar seus signif icados. A partir dessa abordagem, é necessário falarmos da preocupação que tivemos ao escolher essa mãe. Acreditamos que para uma melhor elaboração deste trabalho, partindo do princípio de sermos graduandas de Psicologia, seria importante que a mãe escolhida já t ivesse exposto de alguma forma a sua vivência, e, junto a isso, seria fundamental que ela já t ivesse passado por um processo psicoterápico. A partir desses critérios pudemos prosseguir com a pesquisa. Entendemos que seria possível realizar esse trabalho, mesmosabendo que é um assunto difíci l a ser tratado, por isto, mobil izamo- nos para desenvolver esta pesquisa com tanto rigor, não apenas por 15 ser um trabalho de conclusão de curso, mas também por considerarmos que chegar próximo a essa dor é também compreender o luto enquanto processo ocasionado após uma perda. Esperamos que com este trabalho possamos de alguma forma contribuir para a Psicologia, pois acreditamos que este assunto seja de extrema relevância para a sociedade que deseja compreender melhor essa experiência, e para os profissionais que trabalham diretamente com seres humanos, que a qualquer momento da vida perderam ou perderão alguém. Para isso, a informação e o conhecimento são fundamentais. Antecipando o que se segue, adiantamos que nosso trabalho se constitui a partir de quatro capítulos teóricos, no qual apresentaremos alguns conhecimentos que já foram expressos a respeito da morte; do luto materno e suas características; discutiremos também sobre rituais, e, f inalizando nossa parte teórica, falaremos sobre o luto e suas vertentes. Apresentaremos também um capítulo específico descrevendo a nossa metodologia de abordagem fenomenológica, descrita passo a passo, como procedemos com a pesquisa. Desenvolvemos nossa análise baseada nas falas da nossa colaboradora, e por f im apresentaremos as nossas considerações finais, onde discutiremos a experiência dessa mãe, juntamente com o embasamento teórico descrito nos capítulos a seguir. 16 “O ponto de partida, na maioria das vezes não será o mesmo ponto de chegada. Nem mesmo pode-se esperar ser o mesmo ser, no ponto final da caminhada”. Cléa Rubiane 17 CAPÍTULO I CAMINHO DA PESQUISA BJETIVO: Buscar compreender, a partir de uma perspectiva fenomenológica a vivência de uma mãe que perdeu seu fi lho e procurar compreender sentimentos e reações para um possível entendimento do luto enquanto processo derivante após uma perda. 1.1. CAMINHOS Inicialmente, a única certeza que tínhamos era de estudarmos o tema luto e também de que gostaríamos de trabalhar com pessoas e suas vivências. No início não havia caminhos e nem perspectivas. Foi por meio de muitas leituras, conversas e pesquisas que começamos a nos famil iarizarmos e a nos interessarmos mais pelo tema. Realizamos um estudo qualitativo, pois aprendemos que no mundo da investigação é interessante não seguir caminhos já traçados, como também é fundamental ter em mente a certeza do que queremos, deixando de lado as análises e interpretações racionais, sejam elas científ icas ou não. Foi assim, que nos deparamos com a O 18 fenomenologia, abordagem esta, que nos trouxe a clareza de como prosseguirmos com nossa pesquisa. Forghieri (1993) ressalta que em uma pesquisa fenomenológica existam dois momentos: o envolvimento existencial que requer que o pesquisador, a princípio procure colocar fora de ação os conhecimentos por ele já adquiridos sobre a vivência que está pretendendo investigar, para então nela penetrar de modo espontâneo e experimental. A autora (1993) descreve que: A part i r daí , é necessár io deixar surgir à intuição, percepção, sent imentos e sensações que brotam em uma total idade, proporcionando uma compreensão global, intui t iva e pré- ref lexiva dessa vivência. (p. 60) Em um segundo momento deve ocorrer um distanciamento reflexivo, para permitir uma reflexão sobre sua compreensão e tentar captar e enunciar, descr it ivamente, o seu sentido ou o signif icado daquela vivência em seu existir. Porém, o distanciamento não chega a ser completo, pois ele deve sempre manter um elo com a vivência. Partindo da necessidade de compreensão, procuramos ir o mais próximo possível do fenômeno. Este é o método da fenomenologia que pressupõe que não haja nenhum conhecimento e nenhum conceito anterior sobre a questão a ser investigada, buscando-se, então, possíveis signif icados. Para Josgri lberg (apud, Oliveira, 2006): Retomar as coisas mesmas s igni f ica retomar onde elas são v iv idas e onde elas cobram sentido para a v ida e para existência. (p. 34) 19 Segundo Forghieri (1993) o psiquismo humano é muito amplo e complexo, apresenta aspectos que não podem ser atingidos diretamente, pela observação externa. Tal é o caso da vivência, ou das experiências vividas, que só podem ser alcançadas diretamente, pelo próprio sujeito. Por meio da experiência vivida pela mãe entrevistada, buscamos compreender como ela sobreviveu a uma morte que é t ida como um percurso não natural da vida. A partir daí desenvolvemos capítulos, versando sobre: “Medo do Desconhecido”; “Por que comigo?”; “Ritual: uma dor necessária”; “Luto: Processo de Elaboração”. Conforme Noé (apud Oliveira, 2006) quando um fenômeno se apresenta ele ocorre sob três aspectos em relação a quem o observa: sua relativa ocultação, sua gradativa revelação e sua relativa transparência. A esses três aspectos correspondem, igualmente, três formas de apreensão: a vivência, a compreensão e o testemunho. Compreender e testemunhar são as tarefas principais do pesquisador. Para Forghieri (1993) o sentido que uma situação tem para a própria pessoa é uma experiência íntima que geralmente escapa à observação do psicólogo, pois, o ser humano não é transparente e para desvendar sua experiência o pesquisador precisa de informações a esse respeito, fornecidas pela própria pessoa, por isso o método fenomenológico é um recurso apropriado para pesquisar a vivência. 20 1.2. COLABORADORA A fim de atingirmos nosso objetivo, foi entrevistada Márcia (nome fictício) de 48 anos, moradora da cidade de São Paulo. Perdeu seu fi lho Pedro (nome fictício) aos 23 anos de idade em um acidente de carro, há três anos. Conhecemos esta mãe através de uma amiga de sala, que nos proporcionou o contato com a entrevistada. Esta mãe foi escolhida por ser autora de um livro no qual relata a experiência que teve ao perder seu f i lho. É importante falarmos que esta mãe também já participou e trabalhou como organizadora de um projeto, onde mães e pais enlutados participam para comparti lhar suas vivências. Desta forma, consideramos que Márcia seria passível de ser incluída em nossa pesquisa sem que isso lhe proporcionasse maiores danos. O encontro ocorreu em seu apartamento, pois entendemos que este seria um local mais apropriado para a entrevistada narrar sua vivência. Procuramos esclarecer a Márcia do que se tratava, o objetivo da pesquisa, e o porquê da escolha do tema. Foi também explicada toda a questão ética que envolve o trabalho através da apresentação do Termo de Consentimento. (Anexo - II) 1.3. ENTREVISTA Usamos a entrevista como procedimento, uma vez que ela explora a compreensão que o indivíduo tem da sua experiência e procura saber qual o sentido que tem para ele. Optamos pela modalidade de 21 entrevista semi-dirigida, pois esta favorece a narrativa l ivre do participante, com o discernimento de manter a temática da pesquisa. Para que a entrevista se desenvolvesse, partimos inicialmente de uma única questão: Conte-nos sobre a sua vivência ao perder seu fi lho? A partir desta, trabalhamos os seguintes temas: Sobrevivência; Luto e Sentimentos. Segundo Queiroz (apud Oliveira, 2006) a entrevista busca o depoimento pessoal, o qual é definido como relato de algo que o informante presenciou, experimentou ou de alguma forma conheceu. A entrevistafoi conduzida de modo que favorecesse a descrição da vivência dessa mãe, respeitando o tempo de discurso e de sentimentos vigentes no momento da entrevista. Uti l izamos como instrumento a gravação, sendo previamente questionada à entrevistada a autorização para tal procedimento, e se esta poderia ser uti l izada. A entrevista encontra-se no Anexo – I. 1.4. TRABALHANDO COM O DEPOIMENTO Foi feita a transcrição l i teral do depoimento, para que a partir da textualização do conteúdo gravado pudéssemos penetrar nessa experiência, a f im de tentarmos entender os fatos da maneira como foi vivenciado. Como o discurso é apresentado tal qual nos foi relatado, convidamos o leitor a atribuir novos signif icados que considerem pertinentes. 22 Antes de iniciarmos o processo de análise propriamente dito, procuramos ler atentamente o relato, fazendo assim, um mergulho nas falas. Colocamo-nos a mercê do discurso para acompanhar o movimento do outro, deixamo-nos envolver, ver e ouvir com os olhos e os ouvidos do outro. Para isso saímos de nós mesmas, das nossas idéias, sentimentos e crít icas, para podermos estar no outro, como se fosse um processo de identif icação com a fala do outro. A partir deste momento, iniciamos o “envolvimento existencial”, o pesquisador suspende qualquer teoria e passa a mergulhar na vivência do sujeito entrevistado. Após entrarmos em contato com a entrevista, iniciamos o “distanciamento reflexivo”, por meio do qual procuramos retirar daquilo que foi falado alguns possíveis elementos signif icativos para o sujeito. Buscamos também chegar o mais próximo possível dos fenômenos pesquisados, para então, podermos verif icar aquilo que mais se sobressaiu, e objetivar todo o mergulho anterior. Procuramos dialogar com autores cujas idéias e posições nos serviram de auxíl io à compreensão da vivência. Ao analisarmos as falas da entrevistada, elegemos temas que foram ligados a certos termos ou afirmações que apareciam com freqüência no relato. São eles: Encontro; Relações: Filho e Amigos; Sociedade e Psicoterapia; Reações e Sentimentos; Rituais e O que fazer? A organização dos temas foi uma tarefa bastante difíci l, pois em 23 alguns casos nos atrevemos a fazer interferências, interpretações ou tentativas de explicação do que nos afigurava no relato. Após a realização deste trabalho, esperamos oferecer aos nossos futuros colegas psicólogos e às mães, o nosso modo de olhar e compreender o fenômeno, como graduandas de psicologia, objetivando colaborar na compreensão do tema. 24 “Quando em um relacionamento estão envolvidos um conjunto de fenômenos psíquicos, vivenciados e experimentados na forma de emoções, sentimentos, com estima, apego, ternura e carinho, desenvolve-se o que se denomina de afeto: em diferentes graus de complexidade, amor e paixão. É o sentimento existente em relação a nosso entes queridos, amigos e pessoas amadas”. Dr. Lunardi (apud Ebadi, 2003, p. 45) 25 CAPÍTULO II MEDO DO DESCONHECIDO Todo ser humano reconhece a possibi l idade de sua própria morte, mas apenas em raros momentos a percebe como verdadeiro. Por outro lado, para não viver angustiado perante esta certeza, para ocultar seu destino, ele se volta para a vida cotidiana, ocupando-se e preocupando-se com seu dia a dia ( . . .) (ANCONA-LOPEZ, 1996, p. 31) ara Kovács (1992) a morte sempre aparece envolta pelo medo, medo este, definido pela autora como um valor signif icante e uma reação emocional envolvendo sentimentos subjetivos de desagrado, preocupação e uma antecipação de quaisquer das várias facetas relacionadas à morte. A autora descreve um lado vital da morte, uma presença necessária em certa medida, representada como uma expressão do instinto de auto-conservação, uma forma de proteção à vida e uma possibil idade de superar os instintos destrutivos. Segundo Coelho (2000) as pessoas gostam de estar aqui, conspiram-se a favor da vida, por isso, sobrevive-se a dores imensas, porque a vida é nosso único espaço de pertencimento. Entende-se a idéia de morte como não sendo bem vinda, pois ela faz f indar a vida, P 26 impondo o desconhecido, a f initude, a cisão e o rompimento diante de cada um. A morte coloca em risco toda uma construção de vida, porque não diz quando chega e com isso as pessoas passam todo seu tempo tentando estar aptos para a vida, e não para a morte. Seguindo as idéias da autora, a morte é a grande angústia humana, l imita o existir de todos os homens e, apesar das crenças e religiões, coloca um limite à vida na terra da forma como foi concebida, é um evento universal. Para Heidegger (2002): No domínio públ ico, pensar na morte já é considerado um temor covarde, uma insegurança da pré-sença e uma fuga s in is tra do mundo. O impessoal não permite a coragem de se assumir a angúst ia com a morte. (p. 36) Viorst (2004) fala do medo da morte como sendo sem dúvida um sentimento que a maioria das pessoas não pode suportar. Vive-se em uma sociedade na qual a morte é negada, é deixada de lado, porém, não se nega a mortalidade. No entanto, a conscientização dessa mortalidade poderia enriquecer o amor pela vida, sem fazer da morte, a nossa morte, e sim algo aceitável, natural do ciclo humano. Negar a morte, conforme Viorst (2004), signif ica jamais permitir a nós mesmos o confronto com a ansiedade provocada por visões dessa últ ima separação. Esta negação facil i ta a caminhada através dos dias e das noites sem que pensemos no abismo diante de nossos pés. A autora fala também de uma dif iculdade em encarar a nossa própria morte sem ficarmos apavorados. Há um medo do aniquilamento 27 e do não-ser. Temos medo de ir rumo ao desconhecido. Medo de ficar sozinhos e desamparados. Por isso, é tão difíci l pensar em nossa própria morte, e, também, a de nossos entes queridos. Conforme Heidegger (apud Coelho, 2000) a morte não é apenas o f im da existência, mas um dos elementos constitutivos da própria vida. Seria a única possibil idade existencial que independeria de quaisquer forças sociais, para atuar. Assim, a morte nos iguala a todos, é inexorável, irrevogável, direito e destino de todo ser vivo. É o f im colocando a vida enquanto existência restrita num espaço, que a avalia. É o l imite, que verdadeiramente ordena a ação humana no tempo. Para Heidegger (2002): A morte vem ao encontro como um acontecimento conhecido, que ocorre dentro do mundo. Como ta l , e la permanece na não-surpresa caracterís t ica de tudo aqui lo que vem ao encontro na cot idianidade. (p. 35) Ao se perder um ente querido, aquele de que se amava passa agora a ser um desconhecido, a vida toma a forma de um grande vazio no lugar deixado pela pessoa que não está mais presente. Nesse momento, aquele que partiu, pode ser visto, por muitos, como se estivesse descansando ou abandonando as pessoas que faziam parte de sua vida. Quem morre si lencia a tudo, pois a palavra não mais o atingirá. O morto deixa quem o amou, sem aviso, e numa hora sempre imprópria. Segundo Kovács (1989) a mortenos fala de representações que envolvem duas pessoas, uma que é perdida, e a outra que lamenta esta 28 falta, um pedaço de si que se foi. O morto, em parte, é internalizado nas memórias e lembranças. A morte como perda supõe um sentimento, uma pessoa e um tempo. Conforme Parkes (apud, Coelho, 2000) aos enlutados caberá viver um difíci l momento, cumprindo as chamadas tarefas do luto, contando com o tempo para aplacar a dor da perda. À família caberá reorganizar-se, redistribuindo tarefas ou mesmo pontuando o lugar vazio deixado pelo membro que se foi. Morrer é certo. Kübler-Ross (2004) fala de uma defesa crescente que o homem tem contra a morte e contra a incapacidade de prevê-la, e precaver-se contra ela. Em nosso inconsciente não é concebida a idéia de morte, somente a crendice de sermos imortais. Mas a autora acredita que enfrentar a realidade da morte é a chave para viver uma vida signif icativa. Para Kübler-Ross (apud Papalia, 2000): É a negação da morte que é parcialmente responsável pela vida vazia e sem propósito das pessoas; pois quando você vive como se fosse viver para sempre, torna-se muito fác i l adiar as coisas que você sabe que deve fazer. Em contraste, quando você compreende plenamente que cada dia em que você desperta poder ia ser seu úl t imo dia, você aprovei ta o tempo deste dia para crescer, para tornar-se mais quem você realmente é, para estender a mão a outros seres humanos. (p. 577) Para Leis (2003) é no meio da massa, vivendo uma existência inautêntica, que se aprende a não enfrentar a morte. Com isso a morte está frequentemente acompanhada por uma idéia. Então, ninguém morre sem ter uma idéia do que ela signif ica. Este mesmo autor descreve: 29 Cada um tem que morrer sua própr ia morte, mas que isso só é possível no confronto com a cul tura de uma época que transforma o autênt ico em inautênt ico, na luta contra uma cul tura da massi f icação e do anonimato, na luta de uma cul tura que, a inda gostando de chamar-se ref lexiva, atenta permanentemente contra o desenvolv imento do eu. (p. 06) A morte faz parte da vida humana, ela é a f inalização de toda uma existência, é algo que não se pode fugir ou se l ivrar. Conforme Jamaril lo (2006) a morte é um tema profundo, dramático e misterioso, pois faz parte de algo desconhecido e impensável. Contudo, se o ser humano deseja tornar-se dono de sua própria morte, assim, como sua l iberdade e autonomia, é indispensável pensar previamente nela, e assimilá-la na vida como uma realidade presente. 30 CAPÍTULO III POR QUE COMIGO? Uma das coisas mais dif íceis de aceitar é a morte de um fi lho. Você cogita: por que eu? Por que ele? É um rude lembrete: a morte não segue horário previsível, ela escolhe seu próprio tempo e lugar. Embora dolorosa esta experiência possa ser um impulso para o amadurecimento dos que lhe aceitam o desafio. Há duas escolhas quando morre o ser amado: viver sofrendo, com remorsos e culpa mal distorcido por uma fachada: ou enfrentar tais sentimentos, superá-los e deles emergir com a aceitação da morte e um compromisso com a vida. (MIZE apud FREITAS, 2000, p. 56) ste capítulo discutirá algumas características do processo de enlutamento materno em diferentes dimensões. A partir de algumas leituras, deparamo-nos com o termo “mito do amor materno”, entendemos que seria cabível oferecer um outro olhar em direção ao amor de uma mãe pelo seu f i lho. Segundo Casellato e Motta (2002) o mito da mãe sagrada, devotada, unicamente ao fi lho, resisti há tempos. É algo construído historicamente, apesar dos insistentes movimentos das mulheres. As autoras descrevem: A maternidade é um fato social total que só se desvela se compreendido histor icamente nas suas vertentes bio lógicas e psicológicas, cul turais e sócio-econômicas e não de um modo essencial ista seja qual for a “essência” e le i ta ou a sua just i f icação. (p. 98) E 31 Conforme Badinter (1985) o amor materno não é apenas instintivo. É um sentimento sujeito a imperfeição, dependente não só da história da mãe, mas também da humanidade. Para Casellato e Motta (2002) instaurou-se socialmente que as mães eram consideradas a “dona do saber”, levando-as a uma tendência de culpá-las por tudo de bom ou ruim que acontecesse aos seus f i lhos. Quando uma mãe perde seu fi lho, com toda essa bagagem emocional envolvida, o luto será determinado pelo vínculo estabelecido nessa relação. Entendemos que a morte de um fi lho, em geral é intensa e trata-se da interrupção, de um corte na seqüência esperada. Para Freitas (2000) o desejo dessa mãe é, então, de reunir-se ao f i lho querido, ou sair da vida por não suportá-la. Como houve uma quebra no processo evolutivo, ela se pergunta: para que continuar vivendo? O porquê dessa injustiça? Estas são questões que procuram respostas muitas vezes não encontradas. Segundo Casellato e Motta (2002) ao perder um fi lho, a mãe passará por um grande impacto que se divide em quatro dimensões: individual; conjugal; famil iar e social. A dimensão individual é uma construção subjetiva, e só experienciada pela mãe que sofreu a perda de um fi lho. A mãe enlutada perde um pedaço de si mesma, a esperança, a perspectiva de um futuro, a função de cuidadora e sua própria identidade. As autoras ressaltam que (2002): 32 Para a maior ia das pessoas o f i lho é a cont inuidade dos pais e de sua imorta l idade, por meio da perpetuação dos genes. E o s igni f icado dessa relação será inf luenciado pela caracter ís t ica do sujei to e pelas projeções dos pais por ele. (p. 107) Segundo Weiss (apud Coelho, 2000) o luto individual transcreve três principais tarefas de elaboração: - ser capaz de conviver com a dor da memória; - achar meios de ter uma vida de qualidade e responder adequadamente a demanda dos papéis sociais a serem cumpridos. As autoras Casellato e Motta (2002) descrevem que na dimensão conjugal, a morte de um fi lho tem efeitos no relacionamento afetivo do casal, cada um possui uma forma de experienciar o seu pesar; freqüentemente, também, ocorrem problemas sexuais, e em muitos casos o divórcio acontece permeado por essas mudanças signif icativas. Estes pais apresentam uma gama de sentimentos ambivalentes, evidenciando que a morte de um fi lho quebra de maneira definit iva um padrão estabelecido pondo em risco a estabil idade possível e necessária para se conviver. Conforme Parkes (1998) muitas vezes a morte é personif icada como algo que foi feito para elas e procuram alguém para culpar. A culpa é dirigida contra qualquer pessoa que possa ter contribuído para o sofrimento ou para a morte. Essa forma de pensar ocorre com a maioria dos casais, quando um coloca a culpa sobre o outro. Para Casellato e Motta (2002) a dimensão famil iar também é afetada, pois a perda de um fi lho é uma transição que implica em uma reorganização famil iar. Surge a necessidade dos membros da família 33 desenvolver regras, papéis e expectativas que refletem diretamente em suas crenças e principalmente nas estratégias de enfrentamento do luto. Segundo Bromberg e Kovács (1996) após a crise, mudanças ocorrem, surge a necessidade de um rearranjo do sistema famil iar, como conseqüência haverá a construção de uma nova identidade de cada membro e a busca eterna por um novo nível de equilíbrio. De acordo com Coelho (2000):Relata que algumas pessoas descobrem no processo de luto uma força que desconheciam ter , assim como mecanismos fac i l i tadores e soluções cr iat ivas podem surgir após a dor in ic ial da perda, como uma forma de reorganização. Na medida em que cot id ianamente se reage a perdas e frustrações; o luto é entendido como um contexto de vida e não um processo isolado. (p. 30) Seguindo as idéias das autoras, Casellato e Motta (2002), na dimensão social, a perda de um fi lho é um evento signif icativo, por ser algo ameaçador e impactante. A sociedade reage muitas vezes inadequadamente por não saber l idar com os pais enlutados, e por acrescentarem expectativas místicas erronias, em relação a qualquer t ipo de luto. Alguns exemplos descrevem como alguns destes mitos são seguidos pela sociedade: todos os pais reagem da mesma forma; o luto dos pais diminui com o tempo e os enlutados deveriam sentir-se melhor porque outras pessoas amadas estão vivas. 34 Conforme Coelho (2000) o sofrimento do luto está relacionado às alterações da saúde física e mental. O luto ainda é uma dor sem nome, nem lugar na sociedade. É estritamente importante neste momento falar do sentimento de “culpa” que tende a aparecer ao perder um fi lho. Conforme D’ Assumpção (2001) a culpa frequentemente acompanha a morte e o enlutado. Este sentimento por vezes vem acompanhado de palavras infelizes, por culpar-se de ter sido incompetente para impedir a morte de seu fi lho, ou até mesmo por questionar a atenção que foi dada ao fi lho quando vivo. Segundo Casellato e Motta (2002) a morte desmascara a onipotência, atando todo e qualquer movimento da mãe em torno da salvação de seu fi lho. Muitas mulheres abandonam suas vidas e se castigam pela incapacidade de manter seu fi lho vivo e, principalmente por estarem vivas. Um outro sentimento presente no processo de elaboração da perda será a “raiva”. Sentimento este, que adequadamente expresso com o decorrer do tempo retornará a períodos de tranqüil idade, até minimizar esses confl i tos. De acordo com D’ Assumpção (2001) a compreensão da raiva muda com o tempo, em um primeiro momento gera-se uma carga emocional bastante intensa. No entanto, essa expressão deve ser esgotada e vivenciada corretamente para que esse sentimento não se 35 perpetue. Caso isso não ocorra, poderá ocorrer a repressão desse sentimento. A “tr isteza”, também, é um sentimento que provavelmente qualquer enlutado irá sentir. Para Markham (2000) a diferença será a profundidade dessa tristeza e do período que ela perdura. Não se sabe se a tr isteza desaparece um dia, porém esta pode tornar-se mais suportável. O fato é que o enlutado se acostumará com esse sentimento permanente ou não. Reogarnizar a vida, de acordo com Jaramil lo (2006) é um desafio de reconstrução e de reaprendizagem de um ambiente que foi modif icado, é um compromisso que se faz para continuar a viver. O reinserir-se no mundo ocorre lentamente e gradativamente. Conforme Tavares (2003) é na aceitação que se dá o encontro com a gratidão e a alegria que a presença física da pessoa que perdemos nos possibil i tou. A abertura é a aposta no futuro de que ainda é possível viver. A fel icidade é momentânea, tem aspectos circunstanciais. A alegria é diferente, e será nela que poderemos assegurar que a qualidade de vida não será apenas sobrevivência. A culpa, a raiva e a tr isteza são sentimentos intensos no decorrer deste processo de elaboração até a aceitação. De acordo com Pires (2005): A cada dia que passa a perda avoluma-se, o sofr imento aumenta, o vazio, a ausência e a saudade tornam-se insuportáveis. Temos um medo de enlouquecer, ju lgamos não sermos capazes de agüentar tamanho sofr imento. Parece-nos impossível vol tar a sair desta s i tuação. (p. 23) 36 Mas, é importante saber, que aceitar todo esse sofrimento não é conformar-se, não é esquecer da pessoa amada, mas, sim, uma possibil idade de continuar a viver dignamente. O capítulo a seguir discutirá sobre rituais, pois acreditamos que este apresentará aspectos relevantes para um processo de elaboração. 37 CAPÍTULO IV RITUAL: UMA DOR NECESSÁRIA Veio à missa de um mês, é só assim que a gente se dá conta do tempo passando. Que horror, que susto, quando o Padre Franco disse a intenção da missa: levei um choque. Como se eu estivesse recebendo a notícia naquele minuto. Consegui entender porque os r ituais são sábios e necessários; e existem, nas mesmas épocas, em todas as rel igiões. Eles têm uma razão de ser; desde o velório, a missa de sétimo dia, de um mês, tudo. É através deles que a gente vai se dando conta do que aconteceu, vai absorvendo a tragédia, realizando a perda ( . . . ) As cerimônias são como um tranco que a gente leva para despertar para a real idade. É dif íci l demais; mas são importantes, já que precisamos, efet ivamente, voltar à realidade. (PACIORNIK; PACIORNIK, 2004, p. 55) o realizarmos esta pesquisa, nos deparamos com os rituais, sendo eles diferentes maneiras de concretizar a perda. Porém salientamos que o ritual também possui um aspecto de cronif icação do luto, ele pode atrapalhar dependendo do estado psíquico da pessoa. Uma outra questão importante a ser evidenciada é a dif iculdade da sociedade em suportar a morte e suas manifestações. Há uma supressão do luto, e também há uma exigência de domínio e controle desta situação de perda. De acordo com Firth (apud Bowlby, 2004) uma questão importantíssima a ser abordada são as práticas de rituais funerais, principalmente quando se trata de um processo de luto. O autor fala em A 38 um benefício aos vivos e não aos mortos, já que são realizados para os que ficam. Para Heidegger (2002): O f inado que, em oposição ao morto, fo i ret i rado do meio dos que f icaram para trás é objeto de ocupação nos funerais, no enterro, nas cer imônias e cul tos dos mortos. E isso porque, em seu modo de ser, e le é ainda mais do que um instrumento dado no mundo c ircundante e passível de ocupação. Junto com ele, na homenagem do cul to, os que f icaram para trás são e estão com ele, no modo de uma preocupação reverencial . O f inado deixou nosso mundo e o deixou para t rás. É a part i r do mundo que os que f icam ainda podem ser e estar com ele. (p. 18-19) Segundo Firth (apud Bowlby, 2004) estes rituais proporcionam aos enlutados a l idar com suas incertezas, a expressar publicamente seu pesar e a introduzi- los a um novo papel social que passam a desempenhar. Permite a todos os outros membros da comunidade tomar conhecimento público de sua perda e também o direciona a uma complexa troca de papéis. Este mesmo autor, fala destes rituais como sendo uma oportunidade para os vivos ainda expressar gratidão aos mortos, e praticar certos atos considerados benéficos para a pessoa que se foi. É uma maneira de acreditar que tudo esteja conforme os desejos da pessoa, pois é neste últ imo encontro que ainda se tem uma presença, mesmo que esta já seja ausente. Essas práticas levam a um reconhecimento das perdas e dão o suporte correspondente, além de poderem expressar seu luto abertamente e proporcionar o tempo necessário para a compreensão de tais perdas. Casellato e Motta (2002) falam da importância das pessoas 39 participarem desses rituais que envolvama perda, já que a morte física ou social não ocorre concomitantemente. Vivenciar um ritual proporciona a chance de uma despedida, um meio aceitável. É fundamental tanto para reorganização pessoal, quanto para a família em geral. Para Coelho (2000) o luto é um evento individual e coletivo, um momento de crise pessoal e famil iar que demonstra sua importância simbólica para a coletividade, na medida em que é ritualizado na maioria das sociedades. As autoras, Casellato e Motta (2002), abordam também a possibil idade de ausência de rituais. Neste caso, poderá haver um prejuízo ou até mesmo o adiamento do processo de elaboração da perda. Esta ausência, bem como a negação em participar dos eventos, pode oferecer um comprometimento ou dif iculdade em torno da aceitação ou compreensão da morte. Seguindo as idéias das autoras, a sociedade apresenta um importante papel na elaboração desta perda. No entanto, por ela definir a duração do luto, encorajar os enlutados a l imitar seu isolamento e voltar a juntar-se à comunidade, corre-se o risco de prejudicar o processo de elaboração desta perda. Conforme Tavares (2003) a criação de rituais de elaboração pode favorecer a cada componente da família enlutada uma singular forma de expressão. Para McGoldrick; Walsh (apud, Tavares, 2003): 40 A perda envolve três partes fundamentais: pr imeiro um r i tual para reconhecer e fazer o luto da perda; segundo um r i tual para simbol izar o que os membros da famíl ia incorporam ou levam com eles da pessoa morta e o terceiro um r i tual para s imbol izar o prosseguimento da vida. (p. 81) As datas possuem um importante signif icado para os sobreviventes em relação à pessoa falecida. De acordo com Casellato e Motta (2002) o luto pela morte de um fi lho reacende-se com maior intensidade em datas de aniversário de vida e de morte, e também nos encontros famil iares. Embora não seja algo que aconteça especif icamente na morte de fi lhos, mas também na morte de outras pessoas queridas. Para D’ Assumpção (2001): A ocorrência dessas datas durante os pr imeiros anos de luto, são extremamente s igni f icat ivas af inal será o pr imeiro natal , o pr imeiro aniversár io da pessoa, sem a pessoa. Geralmente a opção das pessoas é de não comemorar aquela data; Isso não é o melhor que se pode fazer, pois desconhecer que é natal , f ingir que não é páscoa poderá ser p ior do que assumir a real idade dessas celebrações. (p. 51) Segundo Tavares (2003) não existem rituais que sejam considerados certos ou outros que sejam errados, as referências são de ações que façam sentido para que a situação possa ser gradualmente assimilada. Kovács (2003) nos fala da compreensão da função destes rituais. Os ritos fúnebres funcionam como uma possibil idade de exercício comunitário para um comparti lhamento de sentimentos, ajudando a compreender a separação do corpo e o do f im. 41 Para os enlutados, a compreensão de que sua vida não será mais a mesma será essencial para uma boa elaboração do luto, tema apresentado no capítulo a seguir. 42 CAPÍTULO V LUTO: PROCESSO DE ELABORAÇÃO O luto não contém fórmulas mágicas, porque elas não existem. Não traz regras específ icas, porque cada pessoa é diferente das outras. Não existem dores iguais, não existem sofrimentos iguais, não existem formas de superação da dor, também iguais. (D’ ASSUMPÇÃO, 2001, p. 12) luto surgirá por meio de uma perda, de um rompimento signif icativo na vida de uma pessoa, em cada cultura e em cada momento do desenvolvimento individual. Tavares (2003) descreve o luto como sendo uma contingência, um processo de assimilação da perda, um ritual de expressão de alguns sentimentos mais profundos e íntimos de nossa existência. Está ao lado da morte, como evento, e também da vida, como um processo. É aprender a se separar sem se perder. Neste momento é importante falarmos do termo pesar, pois é necessário apontarmos a diferença que existe entre o luto. De acordo com Tavares (2003) o pesar é um sentimento de perda diante de uma conexão interrompida ou quebrada. São todos aqueles sentimentos que aparecem envoltos a perda. O pesar é uma reação psicológica da perda. O primeiro sentido do pesar é a perda do objeto perdido que se torna insubstituível, O 43 enquanto que a dor em alta dimensão toma incontáveis espaços na vida do enlutado. Para as autoras Bromberg e Kovács (1996) o luto só ocorre quando houver um vínculo signif icativo que tenha sido rompido, que ocorrerá a partir de uma relação previamente existente que determinará a qualidade do luto. Ao falarmos em vínculos, é estr itamente importante citarmos a teoria do apego de Bowlby (apud Worden, 1998). Nesta construção o autor fala dos fortes laços afetivos que o ser humano tende a ter, e da forte reação emocional que ocorre quando estes laços f icam ameaçados ou são rompidos. Esses laços surgiriam de uma necessidade de segurança e proteção, iniciando-se cedo na vida, dir igindo-se a poucas pessoas específicas e tenderiam a durar por grande parte do ciclo vital. Esses laços, ao sofrerem situações de perigo, dariam origem a determinadas reações muito específicas, levando a uma resposta de intensa ansiedade e de forte protesto. Segundo Worden (1998) depois que alguém passa por uma perda, há certas tarefas do luto que deveriam ser realizadas para que houvesse um restabelecimento do equilíbrio, para então, o processo do luto ser completo. O essencial seria que a pessoa enlutada cumprisse tais tarefas antes que o luto fosse realizado. Para o autor estas tarefas se classif icam em quatro processos. São elas: “aceitação a realidade da perda”, envolvendo não só a 44 aceitação intelectual, mas também a emocional; “elaboração da dor”, levando-se em conta que nem todas as pessoas vivenciam a dor na mesma intensidade, sendo mais difíci l de l idar na época da perda; “ajustamento a um ambiente onde está faltando a pessoa que faleceu”, há diferentes signif icados para as pessoas, isso depende da relação com a pessoa falecida e dos vários papéis que o morto desempenhava, e, por f im, o “reposicionamento da pessoa que sofreu a perda relacionada a termos emocionais à pessoa que faleceu e, assim, continuar a viver”, não signif ica que as lembranças de uma relação signif icativa simplesmente caiam no esquecimento. Esses processos não se apresentam em uma seqüência certa, eles podem ocorrer em uma outra ordem, o importante é que a pessoa passe por eles. Worden (1998) também fala de uma defesa que pode aparecer em todas as tarefas. Dependendo do grau, já é esperada. Porém, quando aparece de maneira muito intensa, pode vir a interferir no desenvolvimento destas tarefas. Achamos importante ressaltar que apresentaremos somente dois t ipos de lutos Luto Não Complicado, e Luto Complicado, pois estes são necessários ao nosso trabalho. Mas, é importante salientarmos, que há outros t ipos de lutos, tais como: Luto Antecipatório; Luto não Franqueado; Luto Crônico; Luto não autorizado, entre outros. 45 5.1 – Luto não complicado Para Casellato e Motta (2002): As mães sentem-se roubadas e trapaceadas, exib indo como caracter ís t icas especialmente intensas do luto a obsessão em querer controlar e entender o que aconteceu; o sent imento de culpa, a recorrência de sent imentos de pesar, a ident i f icação com o f i lho morto e a necessidade de expressar a dor e fa lar sobre a exper iência viv ida. (p. 109) Tavares (2003) acredita que facil i tar o luto é abrir espaço, motivar e inspirar a troca de sentimentos favorecendo todas as gerações para que possam ter modelos que lhes facil i tem integrar as perdas posteriores. A mesma autora descreve que a dor de perder, não precisa ser sinônimo de amargura, é algo que nos atinge, nos deixa impactados, feridos, abatidos, e não tem necessariamente que nos derrotar. A dor também oferece a oportunidade de um mergulho interior, levando a revisão de valores, projetos e propósitos de vida. A grande ultrapassagem é desenvolver a capacidade de transformação dentro de nós mesmos, sem trapacearmos. Para Worden (1998) um luto não complicado engloba uma gama de sentimentos e comportamentos que são comuns depois de uma perda. Entre os sentimentos esperados estão: - Tristeza, é o mais comum encontrado no luto. - Raiva, pode ser um dos sentimentos mais confusos para a pessoa que ficou, derivado da frustração ou de uma vivência regressiva. 46 - Culpa e auto-recriminação , freqüentemente irracional, há uma diminuição com o decorrer da realidade. - Ansiedade , pode variar desde uma leve sensação de insegurança a um forte ataque de pânico. - Solidão, sentimento freqüentemente expresso pelas pessoas que ficaram. - Fadiga, se assemelha a apatia ou indiferença, desamparo presente com freqüência nas primeiras fases da perda. - Choque, geralmente ocorre em casos de morte súbita, porém, é possível ocorrer em outras situações de perda. - Anseio, normal ao luto, quando diminui pode ser um sinal de que o luto está terminado. - Emancipação, sentimento posit ivo depois da morte. - Alívio, frequentemente associado à culpa. - Estarrecimento , funciona como uma espécie de defesa a tantos sentimentos que surgem ao mesmo tempo. Worden (1998) também fala das sensações físicas que vêm associadas às reações agudas ao luto. As mais comuns são: vazio no estômago, aperto no peito, nó na garganta, hipersensibil idade ao barulho, sensação de despersonalização, falta de ar, fraqueza muscular, falta de energia e boca seca. Também é importante ressaltar os pensamentos comuns nas primeiras fases do luto e que geralmente desaparecem depois de pouco 47 tempo. Entre eles: a descrença, confusão, preocupação, sensação de presença e as alucinações. O autor também descreve comportamentos específicos que aparecem associados a reações normais do luto, sendo eles: distúrbio do sono ou despertar precoce; distúrbio do apetite, manifestando-se tanto em termos de comer excessivamente, quanto de comer pouco; comportamento aéreo, tendendo a esquecer das coisas, ou agir de forma distraída, ou fazer coisas que possam prejudicar; isolamento social levando a uma possível perda de interesse pelo mundo externo; sonhos com a pessoa que faleceu; evitar coisas que levam a pessoa que faleceu a desencadear sentimentos dolorosos ; procurar e chamar pela pessoa que faleceu; suspiros; hiperatividade, na tentativa de aliviar a inquietação; choro, alívio do estresse emocional; visitar lugares ou carregar objetos que lembram a pessoa que morreu e usar objetos preciosos que pertenciam a pessoa que faleceu. Conforme Tavares (2003) ignorar ou apressar essas tarefas é correr o risco de f icar preso ao luto mal elaborado. Para Papalia (2000) é fundamental saber que o luto assume diversas formas e padrões para cada pessoa. Será a partir destas representações que acontecerá as diversas maneiras de l idar com as perdas, sem fazer com que essas pessoas pensem que suas reações são atípicas. 48 5.2 – Luto Complicado Segundo Casellato e Motta (2002): Todos os processos de luto contr ibuem para a reorganização do sujei to diante da cr ise instalada em sua v ida após a perda. Estes mesmos fatores inadequados ou insuf ic ientes podem di f icul tar o processo de adaptação e elaboração da perda, chegando a trazer comprometimentos psiquiátr icos que deverão ser cuidados por prof iss ionais da área. (p. 117) De acordo com Worden (1998) os fatores relacionais definem o tipo de relacionamento que a pessoa tinha com aquele que morreu. O tipo que mais impede um luto adequado é aquele que é altamente ambivalente com hosti l idade não-expressa, aquele que é altamente narcísico. Ainda, há casos, que a morte pode abrir velhas feridas. O autor relaciona o luto complicado a fatores circunstanciais , como por exemplo, a perda sendo incerta; a fatores históricos, como pessoas com tendência para um luto complicado; a fatores de personalidade , como pessoas que não toleram extremos de estresse emocional; e a fatores sociais, a perda seria socialmente não comentada, negada ou agiria como se nada tivesse ocorrido. Um outro fator importante, também, é a ausência de uma rede de apoio social. Conforme Worden (1998) as reações de um luto complicado, podem ser denominadas como: “crônicas”, sendo aquelas que têm uma duração excessiva e nunca chegam a um término satisfatório; “retardadas”, seriam aquelas inibidas, suprimidas ou postergadas; “exageradas”, a pessoa se sentir ia sobrecarregada e recorreria a conduta mal-adaptada, sendo possível levar a transtornos psiquiátricos 49 maiores e as “mascaradas”, seriam aquelas mascaradas por sintomas físicos, ou por algum tipo de conduta aberrante ou mal-adaptada. Segundo Casellato e Motta (2002) os fatores de risco de um luto complicado iniciam primeiramente como fatores predisponentes e intrapsíquicos da pessoa enlutada, juntamente com as circunstâncias da perda, como a causa e o t ipo de morte. Posteriormente seriam as características da relação prévia com a pessoa falecida e por f im a ausência do suporte social e a intensidade do sofrimento farão a diferença. 5.3 – O que acontece após o luto? A partir do andamento da pesquisa, compreendemos que seria importante falarmos das conquistas que podem ocorrer após o luto. Enfatizando que sempre dependerá de como a pessoa l idará com o seu processo de luto. Compreendemos que é difíci l passar por ele, mas é necessário para uma boa resignif icação de vida. Conforme Jaramil lo (2006) conseguir vivenciar bem o luto implica, antes de mais nada, em um compromisso pessoal com a mudança na vida, considerando o tempo, esforço e paciência. Refazer a vida, recuperar seu sentido e reorganizá-la são tarefas penosas, mas pertencentes ao processo de luto. Seguindo as idéias do autor, passar por este caminho implica possivelmente em sentir uma nova força interior e poder arriscar e 50 descobrir novos propósitos para a vida. O luto bem elaborado pode ser um fator de enriquecimento pessoal, uma possibil idade de transformação e uma perspectiva diferente de compreensão da vida e da morte. De acordo com Jaramil lo (2006): Uma tragédia é uma l ição de humildade, de f lexibi l idade, de humanidade, que em geral nos obr iga a reestruturar o nosso s is tema pessoal de crenças para inc lu ir a possibi l idade de perdas e da própr ia morte. (p. 215) De acordo com Agostinho (apud Pires, 2005) a vida passa a ter um outro signif icado. Aprende-se a l idar melhor com os problemas, com as angústias e com os medos. O sofrimento ensina a dar valor às pequenas coisas da vida, é importante não fugir dele, pois será através do sofrimento, que, possivelmente,chegar-se-á a algo benéfico para si e para os outros. 51 “Há duas formas de viver a sua vida. Uma é acreditar que não existe milagre, a outra é acreditar que todas as coisa são um milagre”. Albert Einstein 52 CAPÍTULO VI ANÁLISE DA ENTREVISTA 6.1- Encontro “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. (Vinicius de Moraes) encontro com Márcia ocorreu em sua residência, em um final de semana, na cidade de São Paulo. Ao chegarmos ao local, Márcia nos recebeu com muita receptividade e disposição. Sua primeira fala foi: “demorei para chegar, pois passei no mercado para comprar algumas coisinhas para tomarmos um lanche, que mãe que não se preocupa com essas coisas...” Neste momento f icamos surpreendidas. Como uma mãe que perde seu único f i lho, ainda sente-se mãe? É estranho de pensar e principalmente de ouvir. Essa frase de Márcia justif ica-se por meio de uma compreensão que Rando (apud Fonseca, 2004), ao analisar esse tipo de comportamento, faz de pessoas que perdem alguém querido. Para o autor a pessoa que passa por uma perda necessita reajustar-se a um novo mundo sem esquecer-se do velho, é uma procura de adaptar-se a novos modos de ser no mundo, e a partir de novos conceitos buscar O 53 uma nova identidade. O autor descreve esse tipo de comportamento como sendo uma forma saudável de l idar com a perda. Junto a isso, entendemos que há algo que aparece como irrevogável, “não existe ex-mãe, nem ex-fi lho”. Não há definição no dicionário para quem perde um fi lho. Neste momento, percebemos que Márcia não abdicou de seu papel materno. E foi a partir daí, que o nosso trabalho começou a ganhar sentido. A entrevista transcorreu tranqüilamente. Somente em alguns momentos Márcia se mostrou emocionada ao decorrer de suas falas. 6.2- Relações: Filho e Amigos É natural que a maioria das mães sinta seus fi lhos como um pedaço de si, é uma relação que se pode denominar como um amor incondicional que acompanha toda a gestação e todo desenvolvimento humano. Márcia mostra-nos, por meio da sua entrevista, uma forte relação com seu fi lho. Para trabalhar a relação de que ele era meu filho, que podia até ser meu amigo, mas principalmente ele era meu filho; eu era mãe dele (...) O homem que eu mais amei na minha vida, incondicionalmente. Esse tipo de relação segundo Badinter (1985) foi construído ao longo da história, há uma nova concepção de mãe. A maternidade tornou-se um papel gratif icante na sociedade, trazendo consigo sentimentos de desejos, de ideais e superações, sendo, ao mesmo 54 tempo, uma experiência complexa e repleta de sentimentos contraditórios. Mas acreditamos que o amor de uma mãe, não é somente uma construção social, vai muito além do que uma racionalização. É um amor que já faz parte de uma relação entre mãe e f i lho, é um sentimento incondicional, não há “por quê” e nem “para quê”. O Pedro, às vezes falava para mim: mãe me ama menos, eu não tenho culpa que sou só eu (...) Para Badinter (1985) atualmente as mães passam muito mais tempo com seus fi lhos do que ocorria antigamente. Estabelecem-se laços nestas relações que se tornam cada vez mais difíceis de serem rompidos. É neste contexto, que Márcia demonstra uma intensa relação com seu fi lho. Pode-se falar que essa angústia, que Pedro sentia, poderia ser ocasionada por questões que Márcia acreditava ter falhado, e que já vinha ao longo de sua história. Geralmente são questões psicológicas e que, dentre outros fatores, podem levar a uma relação excessiva de amor e culpa. De modo que Márcia ao expressar seu amor por seu f i lho sufocava-o. Entendemos que quando o amor é direcionado a alguém que não se encontra preparado para recebê-lo, possivelmente gera uma culpa por não conseguir amar de forma recíproca. 55 (...) o filho tem que romper com a mãe para crescer, mas eu acho que é muito difícil romper com filho. Alguns autores, como Winnicott, falam que mães deveriam frustrar seus f i lhos para que eles se percebessem como sujeitos. Porém, fala-se pouco das dif iculdades que essas mães têm em executar essa tarefa, principalmente quando esse rompimento é algo definit ivo. Um outro t ipo de relação que aparece de maneira muito signif icativa na entrevista, é a relação de Márcia com os amigos de Pedro, principalmente depois de sua morte. Para ela, esses encontros tornaram-se uma possibil idade de alegrias, recordações, e principalmente momentos de redescobertas sobre seu f i lho. Eu falei, pô, se eles amaram tanto o meu filho, e eles são também importantes para meu filho, então, têm muito Pedro neles, e têm muito deles no Pedro, então foi uma cena “não” de substituição, nunca fiz isso, nunca.... Pires (2005) fala de um contorno e uma aceitação para se continuar a viver. O encontro, com pessoas que fizeram parte desta relação de amizade, torna-se uma maneira de recordar momentos vividos no passado. Márcia deixa claro que essas relações não substituem seu fi lho, mas complementam, fortalecem e distraem sua vida. Alguns pais 56 buscam nos amigos do fi lho que faleceu, uma parte de sua história que para eles f icou perdida. Questionar atitudes, travessuras, momentos fel izes é uma das formas de manter a memória e a lembrança de seu fi lho ativa em sua mente. Fazendo isso, não se permite que essa lembrança caia no esquecimento, no vazio e na escuridão. E aí óbvio! éramos cinqüenta e quatro, e agora(...) mas têm uns vinte e três que são assim, dos “jantares da tia Márcia” (...) Têm vários tipos [pessoas] e todos eles são possibilidades de vida, né! então é muito bom estar com eles. [amigos] Para Tavares (2003) a criação de rituais pode favorecer a elaboração do enlutado, sendo eles uma singular forma de expressão. Não existem rituais que sejam certos ou errados, o importante é que façam sentido e assim, possam gradualmente ser assimilados. 6.3- Sociedade e Psicoterapia Uma outra questão que aparece de forma muito intensa, é o despreparo da sociedade em relação às pessoas em processo de perda. Márcia fala da dif iculdade que as pessoas têm em lidar com a morte. Acreditamos que essa dif iculdade venha do próprio medo de morrer e também de saber que a morte é para todos, ninguém está desprovido dela. 57 E, aí você começa aprender a ouvir merda e não registrar, quando a coisa é boa eu registro, quando não é... eu ouvi: “você parece à família Kennedy”, “quem mandou não ter outros filhos”, “eu acho que agora você não vai agüentar”, então a gente escuta isso na hora da fila de condolências (...) então eu ouvia e pensava... A pessoa está falando meleca no seu ouvido, certeza. “Ah! ele está melhor aonde tá”, “Deus dá, Deus tira”, então as pessoas falam, porque a gente não sabe lidar com a vida, imagina lidar com a morte, né! Segundo Leis (2003) no renascimento e nas primeiras fases da modernidade, conservavam-se os ensinamentos para aprender a morrer por meio da leitura de textos e tratados medievais. Incorporavam-se rituais, pois se acreditava que existia a arte de morrer. As pessoas sofriam, sentiam e reflet iam sobre a própria morte na ocasião da morte dos outros. Hoje, a morte é apontada em outra direção, ela é vista como um buraco negro, uma zona obscura e mal resolvida da condição humana. Com isso, a morte não foi substituída por nada,apenas pelo si lêncio. Eu fico ouvindo, mas eu não escuto, porque eu não consigo mais. A minha tolerância para a ignorância ficou, que para a pessoa não é ignorância, mas para mim é!(...) Márcia mostra-nos a diferença que faz quando ouvi e quando escuta. O seu ouvir está apenas na sua presença física, enquanto que 58 o seu escutar é a junção entre a presença física e a psíquica. Quando se refere a sua tolerância para ignorância, percebemos que para ela, alguns aspectos da vida cotidiana do ser humano, não fazem mais sentido para sua vida. Desta forma ela nomeia essa falta de sentido como ignorância. De acordo com Coelho (2000) a vida de quem já perdeu alguém certamente f ica alterada. Porém, essa rotina, com o passar do tempo, e o distanciamento da perda, levará a mudanças de características, transformando-as em uma nova dinâmica e uma nova forma de existir. Portanto, haverá um processo de remodelação emocional e cognit ivo, de modo a adaptá-los à sua vida. (...) Então é muito difícil, porque as pessoas não sabem o que fazer com você; você não sabe o que fazer com você (...) Leis (2003) ressalta que para a sociedade moderna contemporânea a morte esta sendo transformada numa representação externa ao nosso eu. Assim a morte é um espetáculo, pois evidencia a crescente falta de contato físico e espiritual dos seres humanos com a experiência da morte, ela torna-se apenas uma representação simbólica, onde a nossa cultura mostra uma profunda rejeição em falar sobre ela. Observamos também, que Márcia, pós a perda de seu fi lho, mudou a sua forma de relação com o mundo. Ela passou a atribuir 59 outros t ipos de signif icados e de sentidos a fatos que antes eram desapercebidos. (...) depois da morte do Pedro, a morte dele teve um impacto tamanho na minha vida, que NUNCA mais NADA que aconteça comigo ou com qualquer pessoa, não que eu não tenha compaixão, mas até isso ficou comprometido, eu sou honesta!(...) Então você fica um pouco amarga, um pouco cética, e ao mesmo tempo, você fica vendo a vida sem cor, você não tem mais filtro, mas é isso que eu tenho que trabalhar em mim, porque se eu for falar tudo que eu penso para as pessoas na hora, eu acho que eu não teria “uma relação”, em termos de trabalho, de amizade, nem de nada (...) Para Casellato (1998) esses sentimentos que Márcia descreve, podem ser explicados por ela ainda não ter superado velhos padrões de pensamentos, e ainda não ter desenvolvido um novo tipo de relação com seu fi lho, dif icultando a busca de novos modelos. É quase inevitável que a pessoa enlutada sinta-se em certos momentos desesperada, pelo fato de não ter impedido a morte da pessoa querida, e conseqüentemente o enlutado pode tornar-se deprimido e apático. Isso pode implicar em uma resignif icação de si mesma, de sua função e de seu papel social. Conforme já foi visto nos capítulos anteriores, Casellato e Motta (2002) ressaltam que uma mãe ao perder um fi lho, perde também sua função de cuidadora e sua própria identidade. Acreditamos que Márcia 60 em alguns momentos sente-se arrancada do mundo, algo foi retirado de si mesma. Um outro t ipo de relação que Márcia diz ser de extrema importância a todos que passam por um processo de enlutamento referente à morte, é o papel do psicólogo frente a essas situações de perda. Eu acho que é “ESCUTAR”. Agora, por exemplo, [acha] que os psicólogos poderiam ajudar escutando as pessoas. Poucas pessoas, tem a pré-disposição de ouvir, não é só escutar (...) É a nossa morte enquanto mãe, né! Então eu acho que deve ter mais livros, mais terapeutas que saibam da vida para poder saber da morte. Márcia nos faz refletir sobre as questões referentes às experiências que apenas quando alguém passa por elas, descobre o seu sentido. Porém, não é necessário ter passado por algo similar, mas é importante pelo menos, estar abertos à questão da morte. Para Casellato e Motta (2002) a dor dessas mães deveria ter uma forma de expressão e um tipo de acesso, para que de algum modo pudessem ser aliviadas e atendidas por diferentes profissionais da saúde. Esses profissionais deveriam ser auxil iados para que de alguma forma aprendessem a l idar com essas mães. 61 Kovács (2003) comenta sobre uma outra “visão” que ela traz desses profissionais da saúde. Eles também sofrem por não conseguir adiar a morte, ou por não ser capaz de aliviar o sofrimento do moribundo ou do enlutado. Esses profissionais vivenciam os seus l imites, sua impotência e sua finitude, nesse momento eles imaginam a sua própria terminalidade, e vivenciam a possibil idade de passar pela mesma situação do seu paciente, o que para ele pode ser extremamente doloroso. Por isso todos os profissionais, sejam eles de diferentes áreas, deveriam passar por um processo de reumanização da morte, o que na verdade é uma reumanização da vida, gerando, assim, uma revisão de suas práticas profissionais. Nesse momento, cabe dizermos que hoje, existem mais trabalhos nessa área, é um dos campos da psicologia que vem se desenvolvendo de forma intensa, porém, ainda necessita de maiores seguidores e aprofundamentos. (...) eu era uma sombra andando, aí eu falava assim: Eu não sei por que eu estou aqui? E ela [psicóloga] falava: “Nós, não sabemos, mas nós vamos descobrir, e aí me fala, como você está”? Ela me escutava. Às vezes eu nem escutava o que eu estava falando, às vezes eu não falava, e às vezes eu não escutava o que ela estava falando. Mas eu voltava, e isso me tirou de uma puta depressão (...) É importante falarmos do papel do psicólogo nesse caso, pois por meio da cumplicidade de Márcia com a sua terapeuta, ela conseguiu 62 entender a necessidade de encontrar um espaço para a expressão de sua dor, e também reorganizar seus confl i tos e angústias, onde possivelmente poderia ocorrer uma melhor forma de elaboração. Kovács (2003) ressalta que após a perda de pessoas signif icativas, há um aumento da freqüência com que os enlutados procuram cuidados psicológicos e psicoterâpicos. Esses são processos bastante intensos, que têm de ser abordados por diversos ângulos, porque necessitam de apoio e ajuda no processo de reorganização e elaboração da perda. 6.4- Reações e Sentimentos Achamos importante falar de reações e sentimentos, pois eles aparecem muito fortes no ser humano, principalmente quando se trata da morte e da vida. Em sua entrevista, Márcia mostra-nos sentimentos e reações intensas e confusas ao mesmo tempo. (...) porque o amor que uma mãe tem pelo filho, NÃO TEM SUBSTITUTO (...) Mesmo seu fi lho não estando mais presente, Márcia não deixou de amá-lo. Conforme Nuno (apud Pires, 2005) nada nem ninguém poderá substituir um fi lho perdido, ele apenas deixará de ser algo concreto, mas ainda continuará existindo para ela. 63 Márcia continua a viver mesmo sem desejar, continua a eleger novos objetivos, novos desejos, mas nada substituirá seu amor pelo seu fi lho, mesmo perdendo sua função de mãe. (...) você não quer mais viver e você está viva, você acorda e respira, você dorme e a última coisa que você lembra (não que você não lembrou o dia inteiro), a última coisa (...) Esta frase remete-nos a idéia de existência. Para Sapienza (2004) a existência é ser-no-mundo, é poder ser atingido, ser tocado o tempo todo por tudo. É sempre um poder adiante de um “para quê”, de um “a f im de quê”, e quando este se rompe, ou está ameaçado, a existência f ica machucada.
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