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FILOSOFIA - 1.pdf

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Terceiro Ato
A conquista do poder
Cena 1. O alvorecer de uma nova era............................. .... 117
Cena 2. O domínio da natureza.......................................... 130·
Cena 3. O homem domesticado......................................... 147
Epílogo '" 166
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Prólogo
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E, de repente, \0 homem ... Um dia, há nem tanto tempo
assim, est~rãí'ilíõ' animal destacou-se de seus ~ Se-
parou-se da natureza, colonízou-a, transcendeu-a, transformou-a.
o Inventou o casal) a família, a sociedade. E o poder, o amor, a guer-
ra ... Por quê? De onde lhe veio seu espíritode descoberta) sua,
sede de conquista? Sim, por que o homem~~.conio é que nós tor-
namos o que nós somos?
Pensãyamos que tudo já foi~ dito sobre as nossas origens,
acreditãvamcs'conhecer bem nossos primeiros ancestrais; e os
considerávamos, com certa condescendência, alienígenas primi-
tivos e pouco evoluídos. No entanto ... C2....quea ciência ora nosr
r~m por que nos.surpreender: não só a nossa própria natu-
reza - nossa aparência, nossa herança, nossa inteligência -, mas
t;;bém ~ssa própria cultura .: nosso; comportamentos, ;;-s-
sos modos de viver, nosso imaginári...Q.....:....já estavam selaJ;s, há
vários milênios, por nossos maisremotos3..ncestráis. E desde
então a nossa identidade não mudou muito. Em certo sentido,
estaríamosãlUda na ré-históilaããh~
- E o que avíamos descoberto em A mais bela história do
mundo, com Hubert Reeves, Joêl de Rosnay e Yves Coppens: o
ser humano resulta dessa longa evolução do universo e da vida
7
".
1
A MAIS BELA HISTÓRIA DO HOMEM
que, há 15 milhões de anos, impulsiona no sentido de uma com-
plexidade crescente: os átomos, as moléculas, as estrelas, as
células, os seres vivos e a nós, humanos, que não cessamos de
perguntar-nos de onde viemos ... Todos unidos, como os elos de
urna mesma cadeia, do Big Bang até a inteligência humana.
Descendemos, assim, de macacos e de bactérias, mas também
de estrelas e galáxias.
É a seqüência dessa fascinante epopéia que iremos narrar aqui.
~ No decorrer do período decisivo em que a inteligência toma as
rédeas da matéria, os acontecimentos se aceleram. Originariamen-
te não há mais que uma única e mesma população de caçadores-
coletores, tão pequena que quase arneaçada de 'desapareceri-nôs
somos, de certo modo, sobreviventes da História ... CdI6$ando
desde 100.000 anos atrás o planeta, étses aventureiros se multipli-
cam e desenrolam uma inédita série de invenções: a arte, o sagra-
do.ia religião. Depois, por volta de 10.000 anos atrás [ístó é,
10.000 anos antes de Cristo), a sedentarização, a agricultura, a
criação e seus corolários: a propriedade, as, hierarquias, as desi-
gualdades ... Em suma, a sociedade já organiza'\Ia e logo em segui-
da o Estado ... Como se uma fantástica engrenagem tivesse arras-
tado os homens sobre a encosta irresistível da civilização.
Seguindo estas páginas, poder-se-ão encontrar algumas se-
melhanças entre as revelações da ciência e algumas de nossas
crenças. A luz doBig-Bang já fazia lembrar a do Velho Testame!l~
to ("Faça-se a luzl "); as origens da vida faziam ecoar, em bela har-
monia, mitos antigos. Descobrir-se-á aqui que a savana paleolítí-
ca faz lembrar, de algum modo, um paraíso na Terra; e que o gru-
po de colonos fundadores da humanidade pode muitõbe~
encontrar um lugar dentro dos escritos bíblicos ... Mas,r~ità-
mos: a religião é do domínio da fé. A ciência, do domínio dos
fatos. E os dois universos não estão em competição.
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PRÓLOGO
.:J
Nossa narrativa fundamenta-se, por sua vez, na abundância
de descobertas mais recentes. Acreditávamos que o essencial já
havia sido encontrado, que o planeta já havia sido 'stificientemen-
te explorado, os solos. revirados, as cavidades penetradas ... No
entanto, de alguns anos para cá; não paramos de exumar maravi-
lhas: fÓsseis em quantidade, grutas de beleza inimaginável, vestí-
gios de moradias e de cidades que nos lançam urna luz nova sobre
nós mesmos. Também os métodos foram renovados: passamos a
não deixar mais nada ao acaso. Estudamos o menor pedaço de
osso, o mínimo resíduo de carvão, um ínfimo pólen e um dimi-
nuto grão. Os restos' de uma antiga fogueira por vezes bastam
para reconstituir como eram as refeições de nossos ancestrais,
seu habitat, a paisagem que os rodeava e até mesmo as relações
sociais que os ligavam ...
Além da arqueologia, toda uma série de disciplinas modernas
veio contribuir com seus tijolos para esta construção. São biólo-
gos que se põem a ouvir os cromossomos e encontram, na intimi-
dade de nossos genes, os traços da colonização passada; físicos,
cujos imensos aceleradores de partículas conseguem datar alguns
átomos de pinturas incrustadas em uma rocha; lingüistas, que
estabelecem a genealogia de nossos dialetos; etnólogos que adivi-
nham, nas culturas do planeta, os gestos e as crenças de anta-
nho ... E ainda os botânicos, os neurofisiologístas, os zoólogos e
até os artistas ... Todos passaram a colaborar para lançar um olhar
novo sobre nossas origens.
Mas fiquem tranqüilos: apesar do impressionante desenvol-
vimento das ciências, não utilizaremos aqui nada de seu jargão.
Como no caso da história de mundo anterior, esta narrativa
dirige-se a todos, adultos e adolescentes} seja qual for seu nível
,de conhecimentos. A regra do gênero é simples: colocamos todas
as perguntas, sobretudo as mais ingênuas} exatamente como o
fazem as crianças, pois as perguntas delas são sempre as mais
--.,
9
A MAIS BELA HISTÓRIA DO HOMEM
pertinentes. E perguntamos não só o que a ciência sabe a respei-
to, mas também como ela veio a saber.
Nossa comédia humana se desenrola em três atos que con-
tam três conquistas - a do território, a do imaginário e a do
poder - em um diálogo com três dos melhores especialistas nes-
sas questões. Os maiores pesquisadores são muitas vezes exce-
lentes divulgadores, exatamente porque eles conseguem ter uma
visão distanciada de seu próprio trabalho e sabem captar seu sen-
tido mais profundo. A especialização é, pois, rara, mas nossos
três interlocutores, felizmente, fazem parte dela: são cientistas
que gozam de reconhecimento mundial, personalidades de exce-
ção, e são igualmente talentosos narradores. No decorrer de um
verão, em locais de escavações em que se exuma uma cidade do
passado, ou no interior mesmo de misteriosas grutas ornamenta-
das, eles se prestaram ao jogo de uma conversação espontânea. O
livro é fruto desses encontros bastante amistosos, dominados
pela paixão, pelo humor e não raro pela emoção.
Nosso Primeiro ato se abre em uma savana natal, no momen-
to em que o animal humano busca destacar-se de seus primos
simiescos. Será que o faz por curiosidade? Ou por necessidade?
Os primeiros caçadores-coletores abandonam o berço africano e
tomam-se viajantes. Uma vez conquistada a Terra, a nação dos
homens se multiplica e se diversifica. As cores da pele modi-
ficam-se, as línguas se multiplicam. É a primavera dos povos, das
etnias. E nela, já presente, a mistura, a globalização ...
Desde logo, portanto, a unidade da espécie se estabelece. A
partir desse fundo comum, os humanos vão inventar toda uma
gama de modos de viver, de tradições, de comportamentos. Por
que se diferenciam assim do mundo selvagem? O que é que os
leva a diferenciar-se? Como o meio ambiente opera sua seleção?
É impossível recortar a população em categorias, diz-nos hoje a
10
PRÓLOGO
ciência. A noção de raça humana não tem sentido preciso. Cada
ser humano é'portador dos mesmos tipos de genes-de seu vizi-
nho. Mas por que há peles negras e peles brancas? O que faz real-
mente a.diferença? Essas questões, evidentemente, são prenhes
J 1
de conseqüências.
André Langaney não costuma esquivar-se delas. Em criança
ele queria ser zelador do JardimZoológico e marcava as formigas
e os caracóis para conseguir acompanhâ-los pela marca. Rapida-
mente compreendeu que era também interessante seguir a pista
do animal humano. Geneticista, especialista em populações, tor-
nou-se um dos primeiros a aplicar os modernos métodos da bio-
logia à compreensão do passado. Não se contentou com escruti-
nar os genes humanos ~,fundo de suas pipetas; foi cercá-Ias em
. alguns territórios privilegiados do Senegal oriental e da Groenlân-
dia. Esse pesquisador, que recebeu suas inovadoras lições nos Es-
tados Unidos e exerce cargos de grande responsabilidade no Mu_
i
,
seu do Homem, em Paris, e na Universidade é conhecido por súa
maneira franca de falar: está sempre pronto a entrar na arena para
evitar q~~ a tiência possa servir de pretexto a falsas diferenças ou
a reais discriminações.
No Segundo ato, os humanos se elevam às alturas. Erguem os
olhos para o céu) interrogam-se sobre suas origens e buscam
representar-se o mundo além do horizonte. Cerca de 30.000 anos
antes de Gauguin, Seurat ouPícasso, eles pegam lápis, pigmentos,
pincéis e vão cada vez mais longe ou ao mais fundo das grutas para
dizer de suas crenças e pintar suas visões. Começamos hoje a com-
preender com que mestria surpreendente esses ancestrais atua-
ram. E também com que fervor: ao decorarem as paredes de suas
cavernas, eles buscam comunicar com os espíritos, passar para o
outro lado do espelho. É nesse festival de arte e de beleza que se
desenvolve o sentido do sagrado e esboça-se a religião.
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~~~---. -----------;-------~----------~~~-~----~-------:-----~~~~~~~~......,
A MAIS BELA HISTÓRIA DO HOMEM
Nosso imaginário expressa-se, pois, aí, no segredo dos san-
tuários que ora não paramos de descobrir e de explorar. Por que
tais gestos gratuitos? Por que a arte se desenvolveu nas trevas? A
que deuses se dirigiam aqueles enigmáticos bisontes e aqueles
cavalos esculpidos? O que é que nos dizem esses híeróglífos da
pré-história?
Jean Clottes, Diretor Geral do Patrimônio, expert mundial
em grutas ornamentadas, há muito tenta meter-se na cabeça de
nossos antepassados. E consegue. Passa uma grande parte de sua
vida no silêncio das cavernas, mergulhado no estudo dos mais
antigos afrescos da humanidade. Níaux, Cosquer, Chauvet, todas
ele conhece de cor, é seu protetor, oficiante à testa do Comitê
Internacional de Arte Rupestre. Sua paixão vem também de sua
infância: quando pequeno, ele seguia seu pai, que era um dos pio-
neiros da espeleologia, pelos subsolos de Aude e de Aríege, As
primeiras ossaturas humanas que encontrou - quatro mil anos
de idade apenas, muito pouco! - decidiram sua vocação. O que
significa que, se ele conhece o valor das coisas do passado e por
isso delas fala em paixão, só nos cabe louvar seu entusiasmo
No Terceiro ato, uma idéia vem mudar o mundo. De que
espírito maligno ela brotou, dez mil anos antes de nossa era? Em
vez de se submeterem ao capricho das estações, de esfalfarem-se
fazendo cerco aos animais, os homens compreendem que é possí-
vel mandar na natureza e ousam um gesto novo: semeia-se o pri-
meiro grão, cria-se o primeiro carneiro. E é uma revolução! Por
todo o planeta humano dá-se uma parada, prepara-se a terra, os
humanos se instalam, construindo as primeiras casas, as primeiras
aldeias. A visão do mundo sofre uma reviravolta. Os modos de
vida também: a partir daí será preciso se organizarem, escolherem
chefes, tornarem permanentes seu território e sua autoridade. É
o começo do poder, um primeiro esboço do Estado ...
12
PRÓLOGO
Nossa cultura foi forjada nesse cadinho, há alguns milhões de
anos, e perdurou pelo menos até a revolução industrial do sécu-
lo XIX. Por que aquela idéia ancestral nasceu simultaneamente
em alguns focos precursores dispersas pelo planeta? Por que par-
tiu, maituma vez, do Oriente Próximo para"catequisar" a
Europa? Haveria uma lógica da evolução intelectual que poderia
ter conduzido os homens a tal reviravolta? Seria o poder um
resultado inevitável do sedentarismo?
Jean Guilaine, professor no Collêge de France, conhece
melhor que ninguém essa mutação profunda, essa "neolitização"
que modificou definitivamente o destino da humanidade. Du-
rante toda a infância ele estava mergulhado, como ele próprio
diz, em um ambiente rur;r>em um país cátaro, necessariamente
sensível à História. Tinha dezoito anos quando descobriu sítios
neolítícos síngulares. Seu futuro ficou assim traçado. Especialista r.
mundial a respeito desse período, ele passou-a percorrer a bacia.
do Mediterrâneo, auscultando os vestígios das primeiras povoa-,~r
ções, reconstituindo o quadro da vida dos primeiros sedentários.
Interrogar-se'sobre nossas origens é para ele um meio de esclare-
cer nossos atuais comportamentos e de abeberar-nos nas fontes
de nossa própria identidade.
Pois, na realidade, nós aí estamos ainda hoje, solidamente
plantados sobre o que adquirimos a partir do neolítico. O grande
canteiro de obras iniciado pelo homem há alguns milhões de anos
está exatamente chegando a seu final: o globo terrestre está con-
quistado, o mundo selvagem submetido. A humanização do
mundo, sua "artífícíalízação", está se completando. Não há mais
América por descobrir, mais terras a serem conquistadas. É o fim
da natureza, pelo menos em sua versão original. Talvez seja até o
fim de uma certa idéia de progresso.
13
A MAIS BELA HISTÓRIA DO HOMEM
É claro que, de nossos primeiros ancestrais até hoje, a paisa-
gem modificou-se: a cidade passou a ser planetária, o espaço
globalízou-se e o tempo tomou-se instantâneo. Não se troca mais
sílex e sim informações. O planeta reduziu-se; pode-se abrangê-
10 com o olhar distanciado dos satélites e analisá-Ia em sua globa-
lidade ... Mas será que realmente avançamos, daqueles tempos
pré-históricos para cá? Se nossas técnicas, nossos conhecimen-
tos, nossa visão de mundo indiscutivelmente progrediram, será
que podemos dizer o mesmo de nossos valores, de nossa "huma-
nidade", no sentido filosófico do termo? Tendo em vista este
nosso século, transbordante de saberes adquiridos, mas também
de barbáries inéditas, só podemos ter dúvidas. Abordaremos este
debate à guisa de epílogo.
Fim da natureza, portanto. Fim de um capítulo da aventura
terrestre. Mas que, inquestionavelmente, não é o fim da Histó-
ria. A história do homem e da mulher está apenas começando. O
planeta é hoje humano. Missão cumprida. E, agora, o que vamos
fazer dele? Como desenvolver-nos em um mundo que sabemos
ser limitado? Que nova idéia de evolução inventar? Como dar
prosseguimento a essa história para que ela continue sendo, ou
venha a ser, das mais belas? São questões com que nos defronta-
mos com incontestável urgência.
E vamos compreender por que ao longo destas páginas esse
olhar pousado sobre nosso passado nos sugere uma nova maneira
de pensar. Talvez seja necessário realizar uma outra revolução
conceitual, pelo menos tão decisiva quanto o foi a do neolítíco?
Pelo menos já sabemos que é preciso desconfiar das aparências:
sob nossas vestes de civilizados esconde-se uma pele ressequida,
vinda da noite dos tempos. O primata permanece em nós, ador-
mecido. Não devemos esquecer; estamos ainda na pré-hístória,
Cabe a nós saber mudar de pele.
\ Dominique Simonnet
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Primeiro Ato
A conquista do território
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