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247 Teorias Lingüísticas II 248 249 ABORDAGENS DA LINGÜÍSTICA CONTEMPORÂNEA DA ESTRUTURA AO USO Jan Edson Rodrigues Maria Leonor Maia dos Santos Introdução Nesta disciplina, vamos estudar algumas áreas de pesquisa lingüística atuais: Sociolingüística, Lingüística Interacional, Lingüística Funcional e Lingüística Cognitiva. Cada uma será apresentada por alguns princípios básicos, aspectos metodológicos, e um panorama do que é feito atualmente na área. Para iniciarmos o estudo, é interessante tomar conhecimento da distinção entre o formalismo e o funcionalismo em Lingüística. Forma e função Em lingüística, várias correntes são ditas formalistas, e várias outras são ditas funcionalistas. Algumas vezes elas são apresentadas como inconciliáveis por aqueles autores que optaram por alguma das duas denominações. Vamos tentar aqui apresentar uma caracterização geral dessas atitudes de pesquisa, a formalista e a funcionalista, para entender suas diferenças, e, ao final, gostaríamos de defender que, apesar de diferentes, ambas são úteis e corretas em Lingüística. Podemos nos aproximar inicialmente da oposição entre o formalismo e o funcionalismo em Lingüística pensando no papel central atribuído à forma ou à função da linguagem. Será que as línguas humanas têm uma certa forma, uma natureza intrínseca, e por isso servem para fazer certas coisas, ou será que as línguas têm certas funções, e por isso ganham determinada forma? Pense numa faca: ela tem uma forma de faca e por isso serve para cortar (a forma veio antes e determina o uso) ou ela tem a função de cortar e por isso foi feita com essa forma (o uso veio antes e determina a forma)? No caso da faca, que é um objeto fabricado e não da natureza, parece óbvio que foi o uso pretendido que motivou a forma. Mas imagine que você está num lugar onde não há facas, e sim muitas pedras, e precisa cortar com cuidado alguma coisa. Uma fruta bem grande e madura, como uma jaca, por exemplo, ou uma fruta-pão. Que tipo de pedra será melhor? Podemos pensar que as pedras que tiverem uma borda comprida e afiada serão a melhor escolha. A forma da pedra já está lá, e por isso ela serve para cortar a fruta. A forma, nesse caso, foi o que permitiu o uso. Isso se parece, é claro, como lembra José Borges Neto (BORGES NETO 2004:83) com o popular dilema do ovo e da galinha. O que veio primeiro? A forma, e então podemos usar algo para certo propósito, ou a função, e então modificamos as coisas para fazer o que queremos? Como o dilema do ovo e da galinha, essa é uma questão difícil de decidir, talvez impossível. No caso aqui, primeiro precisamos conhecer um pouco o que motiva as decisões dos formalistas e dos funcionalistas em Lingüística, a história dessas posições e o tipo de pesquisa que se faz em cada uma delas. Vamos começar pelo formalismo. Na verdade, há várias concepções de formalismo, o que é importante para entendermos as diversas reações funcionalistas. ABORDAGENS DA LINGÜÍSTICA CONTEMPORÂNEA DA ESTRUTURA AO USO Jan Edson Rodrigues Maria Leonor Maia dos Santos 250 Se caracterizarmos o formalismo de uma maneira bem ampla como a atitude de dar mais importância à forma da linguagem, vemos que essa é uma posição muito antiga. O estoicismo foi uma escola filosófica antiga, iniciada em Atenas por Zenon (ou Zenão) de Cítia, no início do século III a.C. Podemos citar como exemplo o trabalho dos filósofos estóicos, que nos séculos III e II a.C. se ocupavam, entre outras coisas, com o que há de comum em exemplos como os abaixo: Se não temos a última aula, os alunos podem ir pra casa mais cedo. De fato, não 1. temos a última aula. Então, os alunos podem ir pra casa mais cedo. Se o salário não foi depositado, minha conta está sem fundos. De fato, meu 2. salário não foi depositado. Então a minha conta está sem fundos. É claro que os exemplos dos filósofos estóicos eram outros, mas a idéia era encontrar uma forma comum a esses conjuntos de frases, alguma coisa como: Se acontece ISSO, acontece AQUILO. De fato, acontece ISSO. Então acontece AQUILO. Eles consideravam que era a forma comum que permitia que exemplos assim fossem usados de maneira eficiente numa argumentação. Não importa o assunto, se você construir frases seguindo o esquema, vai sempre ter o que ficou conhecido como um argumento válido, que deveria servir para convencer alguém. Numa definição informal, um argumento válido é um conjunto de afirmações seguido de uma conclusão, que tem a seguinte característica: se todas as afirmações fossem verdadeiras, a conclusão seria obrigatoriamente verdadeira. O silogismo é um tipo de argumento válido. Claro que você percebeu: a forma é o que permite certo uso, certa função, que nesse caso era uma argumentação. Aristóteles, que viveu entre 384-322 A.C e ficou conhecido, entre outros feitos, como o criador da lógica, também estudou formas semelhantes de argumentos válidos, como os seus famosos silogismos: Todos os professores de Letras da UFPB virtual são brasileiros. Jan e Leonor são 3. professores de Letras da UFPB virtual. Portanto, Jan e Leonor são brasileiros. Também nesse caso, a idéia era encontrar a forma subjacente que faz com que o argumento seja válido, não importando qual assunto abordado (compare com “Todos os mamíferos têm coração. As girafas são mamíferos. Portanto as girafas têm coração”). Tanto os estóicos como Aristóteles estavam interessados em caracterizar, nesse caso, a forma da linguagem usada na argumentação. Um exemplo diferente de formalismo muito antigo nos estudos da linguagem – ainda definindo o formalismo de uma maneira bastante frouxa – é a descrição gramatical tradicional. A preocupação em descrever paradigmas de flexão e unidades da oração são bons exemplos de preocupações formais. De algum modo, na descrição gramatical tradicional, supõe-se que há uma forma inerente à língua, e que essa forma pode ser descrita de maneira independente das situações de uso. A forma, nesse caso, 251 pode ser o padrão de flexão de um verbo (amava, amavas, amava, etc.), ou as partes da oração (sujeito, predicado, complementos, adjuntos, etc.). O que está em jogo é encontrar uma regularidade que já estava na língua e que não depende de estarmos conversando sobre futebol, preenchendo o requerimento de matrícula ou reclamando porque o vizinho deixou a calçada suja. Novamente, nesse caso, o que é importante é a forma, que existe antes da função e não é modificada pelo uso. Na Lingüística no século XX a situação é bastante complexa, porque nem todos concordam com o que é formalista e o que não é. Em primeiro lugar, vamos mencionar a preocupação de Ferdinand de Saussure, no Curso de Lingüística Geral, com a oposição entre língua e fala. A língua é geral, comum aos indivíduos de uma comunidade falante, em oposição à fala, que é individual e heteróclita, ou seja, composta por elementos variados e não homogêneos. O objeto da Lingüística, diz Saussure no Curso, é a língua, que não varia de uma situação de comunicação para outra, nem de um falante para outro. Vejamos o que diz Rodolfo Ilari acerca dessa opção saussureana: “Saussure opôs claramente o sistema, entendido como entidade abstrata, e os episódios comunicativos historicamente realizados. Além disso, estabeleceu com toda clareza que o objeto específico da pesquisa lingüística teria que ser a “regra do jogo”, isto é, o sistema, e não as mensagens a que ele serve de suporte.” (ILARI 2004: 57-58) É claro que a posição de Saussure é muito mais complexa do que a simples definição do par língua/fala, mas a caracterização da Lingüística como o estudo da língua (e não da fala) pode coexistir com uma postura formalista, ou pode ser interpretada como favorecendo uma postura assim. Aqui, não estamos mais pensando no formalismo da maneira ampla que utilizamos nos parágrafos anteriores.Formalismo aqui já não é simplesmente a atitude de valorizar e descrever a forma lingüística, mas vai além disso. A forma, nesse caso, além de importante, existe fora do uso e não depende dele, sendo mais estável do que a diversidade de enunciados possíveis, e é escolhida como objeto de estudo justamente por essa relativa estabilidade. É curioso observar, por outro lado, que o surgimento do funcionalismo também está muitas vezes associado às propostas saussureanas e aos seus seguidores, mas não vamos tratar disso nesta introdução. Como um segundo exemplo de formalismo mais próximo de nós, podemos lembrar o esforço dos lingüistas norte-americanos da primeira metade do século XX em descrever uma grande quantidade de línguas indígenas da América do Norte (como navajo, cherokee, choctaw, chickasaw, creek e seminole). Essas línguas eram ágrafas (não tinham escrita) e nunca haviam sido descritas, ou não havia descrições conhecidas. Um grande esforço foi feito então para elaborar métodos que permitissem aos lingüistas coletar grandes quantidades de dados, gravando ou anotando o que os falantes diziam, e depois “descobrir” a gramática da língua que estivesse sendo estudada. Por motivos que não vamos discutir aqui, alguns dos principais autores da época, como Leonard Bloomfield (1887-1949) e Zellig Harris (1909-1992), consideraram que toda descrição devia ser feita exclusivamente a partir dos dados, ou seja, o lingüista que estava estudando uma certa língua indígena não devia usar seu conhecimento de outras 252 línguas para fazer nenhuma hipótese acerca das palavras, sons ou sintaxe da língua estudada. Se você sabia, por exemplo, que muitas línguas têm uma distinção entre adjetivos e verbos, ou uma ordem básica sujeito-predicado, mesmo assim não podia usar isso na descrição, a não ser que esses padrões aparecessem nas falas que você tinha gravado ou anotado. Além disso, esses autores consideravam que o significado das palavras, frases e textos não devia ser levado em conta para se fazer a descrição. O lingüista deveria observar quais partes da língua combinavam com quais outras partes, sem precisar saber o significado dos enunciados, de maneira que a tarefa era perceber regularidades formais, sem se preocupar com a interpretação. As formas (fonéticas, morfológicas, sintáticas) já estavam todas nos dados coletados, era preciso descobri-las. Nem mesmo a significação das palavras e frases devia ser levada em conta, e portanto nada podia ser dito acerca do texto completo, ou de uma conversação. Mais uma vez, temos uma preocupação com extrair uma forma que já está na língua, e que independe do uso, da função. Você certamente notou que aqui há um aspecto do formalismo que é diferente, por exemplo, da gramática tradicional, ou da proposta saussureana. Nem a gramática nem Saussure propunham que o significado fosse deixado de lado para se fazer a descrição da língua. É claro que os estruturalistas norte-americanos que seguiam os métodos propostos por Bloomfield ou Harris sabiam que as palavras e frases têm significado, mas – talvez motivados pela necessidade de descrever tantas línguas diferentes – propunham que o estudo fosse feito sem levar isso em conta. Se o estudo devia ser feito sem levar em conta o significado (e muito menos as situações de uso, as intenções das pessoas, etc.) é claro que eles deviam pensar que a organização da língua não é influenciada pelo significado. Esse é um tipo de formalismo um pouco mais radical, porque o significado está sendo excluído do estudo. Entretanto, isso que estamos chamando de estruturalismo americano não era um grupo tão homogêneo. Aqueles que seguiam Edward Sapir (1884-1939) – e entre eles o brasileiro Mattoso Câmara Jr. (1904-1970) – não tentavam excluir o significado das descrições. Além disso, tanto os seguidores de Sapir, como de Bloomfield ou Harris, concordavam em considerar as línguas como intrinsecamente ligadas às culturas dos povos. Outro exemplo sempre citado de formalismo no século XX é a posição de Noam Chomsky (1928) e dos gerativistas. Eles não estão preocupados, como os estruturalistas da primeira metade do século, em descrever as línguas a partir de grandes quantidades de dados gravados. Pelo contrário, o trabalho dos lingüistas, no gerativismo, é tentar propor um padrão abstrato que explique não só as sentenças que já existem, que alguém já pronunciou, mas também todas as sentenças possíveis na língua. Além disso, o gerativismo mantém a hipótese de que as línguas são a manifestação de uma capacidade inata para a linguagem. Essa capacidade é biológica, típica da espécie humana: “vamos postular que o ser humano possui em seu aparato genético alguma coisa como uma faculdade de linguagem, 253 alocada no cérebro humano, uma hipótese plausível que se presta a marcar a diferença fundamental entre a espécie humana e todos os outros seres do planeta.” (MIOTO et al. 2007:22) Temos aqui então um tipo de formalismo diferente dos mencionados anteriormente: não só as características da linguagem são independentes do uso, da função, como são originadas na mente e na biologia, e não na cultura. Por outro lado, de uma maneira que lembra um pouco as preocupações dos estruturalistas com a exclusão do sentido, os gerativistas propõem a modularidade da descrição, isto é, sustentam que a descrição da sintaxe da língua é – ao menos na teoria – independente da fonologia e da semântica. Como você pode ver, temos grandes preocupações formais nessas três correntes lingüísticas estudadas. Mas formalismo não significa a mesma coisa em todas as ocasiões. Às vezes temos apenas uma preocupação com a descrição de formas, outras vezes se diz que o significado não deve ser utilizado na descrição, e outras vezes a natureza da língua é explicada a partir de características da mente. Os vários funcionalismos lingüísticos vão se opor a algumas dessas opções, ou a todas elas. Formalismo e Funcionalismo em Lingüística As teorias da linguagem sempre refletem concepções particulares do fenômeno lingüístico, concebidas em função das posturas científicas da tradição cultural em que estavam inseridas (o que é a língua, quem é o sujeito da linguagem, o que é lingüístico, o que é extralingüístico, etc.). Em cada época, as teorias lingüísticas definem, ao seu modo, a natureza e as características relevantes do fenômeno investigado. Podemos afirmar que os estudos do fenômeno lingüístico inserem-se em duas grandes tradições científicas, que correspondem a dois grandes paradigmas: o formalista e o funcionalista. O primeiro privilegia a estrutura interna da língua e o outro, cada vez mais forte em nossos dias, busca relacionar o lingüístico e o social. A Lingüística do século XX teve um papel decisivo na consideração da relação entre linguagem e sociedade: em um momento exclui do seu método toda consideração sobre a natureza social, histórica e cultural na observação, descrição, análise e interpretação do fenômeno lingüístico (referimo-nos, aqui, à constituição da tradição estruturalista, iniciada por Saussure em seu Curso de Lingüística Geral, em 1916). Em outro momento, traz para o centro dos estudos da linguagem a preocupação com toda sorte de fenômenos capazes de afetar, em situações comunicativas concretas, o uso que os falantes fazem da língua, seja a cultura, seja a sociedade, a história, a ideologia, etc. (esse momento corresponde parcialmente à introdução da Pragmática no fazer lingüístico). A relação entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre assumida como relevante, encontra-se diretamente ligada à questão da determinação do objeto de estudo da Lingüística: a língua. Isto é, embora se admita que a relação entre linguagem- sociedade seja evidente por si só, é possível privilegiar uma determinada óptica (“o ponto de vista determina o objeto”), e esta decisãorepercute na visão que se tem do fenômeno lingüístico, de sua natureza e caracterização. Saussure define a língua, por oposição à fala, como objeto central da Lingüística. Na visão do autor, a língua é o sistema subjacente à atividade da fala, mais concretamente, é o sistema invariante que pode ser abstraído das múltiplas 254 variações observáveis da fala. Da fala, se ocupará a Estilística, ou, mais amplamente, a Lingüística Externa. A lingüística, propriamente dita, terá como tarefa descrever o sistema formal, a língua. Inaugura-se, assim, a chamada abordagem imanente da língua, que, em termos saussurianos, significa afastar “tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema”. Saussure privilegia o caráter formal e estrutural do fenômeno lingüístico, embora reconheça a importância de considerações de natureza etnológica, histórica e política. Saussure institucionaliza a distinção entre uma Lingüística Interna oposta a uma Lingüística Externa. É essa dicotomia que dividirá, de maneira permanente, o campo dos estudos lingüísticos contemporâneos, em que orientações formais se opõem a orientações contextuais, sendo que estas últimas se encontram fragmentadas sob o rótulo das muitas disciplinas inter-relacionadas: Sociolingüística, Etnolingüística, Psicolingüística etc. Dentro da perspectiva funcionalista, a língua é conceituada como forma de interação social realizada por meio de enunciações: é um produto sócio-histórico. A concepção de língua como interação social influenciou os estudos que hoje se desenvolvem sobre a interação verbal, como a pragmática, a teoria da enunciação e a análise do discurso, e que adotam o princípio de que linguagem é ação e não meramente instrumento de comunicação. Assim, os dois grandes paradigmas da lingüística (formalismo e funcionalismo) têm diferentes concepções sobre a natureza geral da linguagem (natureza dos dados e evidências empíricas), os objetivos da lingüística, os métodos de estudo da ciência da linguagem. Segundo Leech (1983, p.46), os formalistas (como Chomsky), tendem a observar a linguagem principalmente como fenômeno mental. Já os funcionalistas (como 255 Halliday) tendem a percebê-la como um fenômeno social. Sobretudo, os formalistas estudam a linguagem como um sistema autônomo, enquanto os funcionalistas a estudam na relação com sua função social. Para Schiffrin, o funcionalismo está baseado em duas concepções básicas: a) a linguagem tem funções que são externas ao próprio sistema lingüístico; b) as funções externas influenciam a organização interna do sistema lingüístico. Para o formalismo, a língua é vista enquanto signo, sistema de regras estático, transparente, determinada, a-histórica, homogênea. Nesse sentido, sua unidade de análise é a gramatical, notadamente nos níveis fonológico, morfológico e sintático, no plano descritivo e explicativo das formas. Para o funcionalismo, a língua é tida como atividade sócio-histórica, opaca, indeterminada, heterogênea e, sua unidade de análise é a função que a língua exerce em contexto. Com isso, o objeto de estudo do formalismo é a competência lingüística, o papel do código na comunicação, as regularidades nas combinações dos constituintes, a identificação de enunciados bem formados ou não. Já o objeto de estudo do funcionalismo é a competência sócio-comunicativa, a análise de ações performativas dos usuários com um objetivo específico, em determinado contexto cultural e social, tendo em vista os conhecimentos partilhados. A língua, nesse sentido, não é usada apenas para descrever o mundo, mas para realizar ações dos usuários sobre o mundo ou mesmo sobre outros usuários. Não se trata apenas de atos de dizer, mas de atos de fazer no uso da língua. Ainda que os formalistas não neguem que a língua possua funções sociais e cognitivas, essas não interferem no sistema, nem constituem objeto de estudo da Lingüística. Por sua vez, ainda que os funcionalistas não neguem a forma, o discurso não é percebido apenas como uma seqüência de unidades lingüísticas, mas envolve, sobretudo, o contexto. De qualquer modo, os dois paradigmas ratificam uma visão dicotômica na relação entre forma/função; individual/social; sujeito/objeto; subjetivo/objetivo. Atualmente, os estudos lingüísticos e das ciências em geral buscam superar essa dicotomia, pleiteando uma visão holística dos fenômenos. 256 Síntese das características dos paradigmas Formalista e Funcionalista ASPECTO FORMALISTA FUNCIONALISTA CONTEXTO Texto Texto + informações extralingüísticas UNIDADE DE ANALISE Gramatical (morfema, fonema etc). Funcional (atos de fala) OBJETO DE ESTUDO Competência lingüística Competência sócio- comunicativa AQUISIÇÃO Capacidade inata Inferência a partir do uso LÍNGUA Código/sistema Atividade UNIVERSAIS LINGUÍSTICOS Decorrentes das propriedades inatas Decorrentes dos usos OBJETIVO DA ANÁLISE Descrever as regularidades e regras de boa ou má formação Explicar a adequação ou inadequação Hymes (1974) sugere que os aspectos abaixo indicados contrastam a abordagem estrutural e funcional: Paradigma estrutural Paradigma funcional 1. Estrutura da linguagem (código) como gramática. 1. Estrutura a língua como realização da fala 2. Análise do código antecede a análise do uso 2. A análise do uso é prioritária à do código 3. Função referencial – preenchimento dos usos semânticos como norma 3. Há um conjunto de funções estilísticas ou sociais 4. Elementos e estruturas são analiticamente arbitrários 4. Elementos e estruturas como etnograficamente apropriados 5. Equivalência funcional entre as línguas. Todas as línguas são essencialmente iguais 5. Diferenciação funcional entre as línguas, variedades, estilos 6. Há relação de homogeneidade entre código e comunidade 6. Comunidade de fala como matriz do código ou dos estilos de fala (organização da diversidade) 7. Conceitos fundamentais como: comunidade de fala, ato de fala, fluência, funções da língua são dados como garantidos ou arbitrariamente postulados 7. Conceitos básicos são tidos como problemáticos e merecem ser investigados 257 Dik (1978) também faz uma comparação detalhada entre formalismo e funcionalismo: PARADIGMA FORMAL PARADIGMA FUNCIONAL 1. Uma língua é um conjunto de sentenças 1. Uma língua é um instrumento de interação social 2. A função primária de uma língua é a expressão de pensamentos 2. A função primária de uma língua é comunicação 3. O correlato psicológico de uma língua é a competência: a capacidade de produzir, interpretar e julgar sentenças 3. O correlato psicológico de uma língua é a competência comunicativa: a habilidade promover interação social por meio da linguagem 4. O estudo da competência tem prioridade lógica e metodológica sobre o estudo do desempenho 4. O estudo do sistema da linguagem deve estar inserido dentro do seu sistema de uso 5. As sentenças de uma língua devem ser descritas independentemente do contexto e do funcionamento, dada a situação em que estão sendo usadas 5. A descrição dos elementos lingüísticos do uso da língua deve apresentar pontos de contato para a descrição do seu contexto. 6. A aquisição de linguagem é inata – a entrada de dados é restrita e não estruturada (teoria da pobreza de estímulo) 6. A criança descobre o sistema subjacente à língua e ao seu uso, auxiliada por uma entrada de dados lingüísticos extensiva e altamente estruturada, apresentados em contextos naturais. 7. Os universais lingüísticos são propriedades inatas ao organismo biológico e psicológico humano 7. Os universais lingüísticos são coerções inerentes aos objetivos da comunicação, à constituição dos usuários da língua e aos contextos onde a língua é usada. 8.Sintaxe é autônoma com respeito à semântica; sintaxe e semântica são autônomas com relação à pragmática e as prioridades vão da sintaxe via semântica em direção à pragmática. 8. A pragmática é o esquema no qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas; a semântica é subordinada à pragmática e as prioridades vão da pragmática via semântica para a sintaxe. 258 259 UNIDADE I SOCIOLINGÜÍSTICA 1. A sociolingüística e o paradigma funcionalista A Sociolingüística se posiciona no paradigma lingüístico representado pelo modelo teórico funcionalista. As várias definições de Sociolingüística como “o estudo da linguagem em relação à sociedade”; como uma “tentativa de construir um discurso coerente sobre o relacionamento entre uso da linguagem e os modelos sociais de vários tipos”; como “parte da lingüística que se interessa pela linguagem enquanto um fenômeno social e cultural”; como “o estudo da linguagem como fenômeno social”; como “o estudo das características das variedades da linguagem, as características de suas funções e as características de seus falantes, como estes três elementos interagem constantemente, mudam, e mudam um ao outro dentro de uma comunidade de discurso”; ou como o “estudo das várias realizações lingüísticas dos significados socioculturais em que a ocorrência de interações sociais cotidianas é relativa a culturas particulares, a sociedades, a grupos sociais, a comunidades lingüísticas, línguas, dialetos, variações, estilos” (Figueroa, 1994, p. 25) confirmam o objeto da Sociolingüística como sendo o mesmo do paradigma mencionado. Desta forma, levando-se em conta a natureza social da linguagem, as áreas de interesse da Sociolingüística incluem alguns fenômenos sociais e culturais, tais como as estruturas e padrões sociais; as variedades lingüísticas, como os dialetos e estilos; os grupos sociais, como as comunidades lingüísticas; as funções da linguagem na sociedade; a mudança lingüística; o sentido sociocultural e a interação social. O tema da Sociolingüística é definido por Aracil (1978) como sendo o “uso da língua – o enfoque sociolingüístico obviamente difere daquele da lingüística propriamente dita, centralizado nas condições existenciais. Enquanto a lingüística separa a língua das estruturas socioculturais não-lingüísticas, a sociolingüística a relaciona com elas”. Do mesmo modo, Romaine (1982) escreve: “O contraste entre lingüística propriamente dita e sociolingüística repousa no fato de que a estrutura da língua constitui o tema da lingüística, enquanto o uso da língua é deixado para a sociolingüística. Uma teoria sociolingüística, entretanto, pressupõe uma teoria lingüística; se é para ser verdadeiramente interativa, deve-se relacionar estrutura e uso.” Ao afirmar que “o tema da sociolingüística é o uso da linguagem” Figueroa (1994, p. 26) ressalta também que, em sendo a sociolingüística o estudo da enunciação (falada, escrita, simbolizada), várias questões precisam ser levadas em consideração: uma enunciação é a realização da língua em um contexto particular e não pode haver uma descrição adequadamente contextualizada de enunciação que exclua os agentes que produzem a enunciação, bem como os contextos em que a enunciação ocorre. A Sociolingüística moderna tem base nas teorias desenvolvidas por William Labov, na década de 1960, no contexto cultural dos Estados Unidos da América. A teoria de Labov, conhecida como Sociolingüística Variacionista – porque estuda os processos de variação e mudança lingüística segundo uma metodologia quantitativa, a partir de variáveis sociais e lingüísticas – é apenas um desdobramento da preocupação dos estudos da linguagem a partir da realidade social. Outros teóricos, UNIDADE I SOCIOLINGÜÍSTICA 260 simultaneamente a Labov, desenvolveram disciplinas sociolingüísticas, abordando dimensões diferentes da relação linguagem-sociedade. Um deles é Dell Hymes, que adota a dimensão interdisciplinar da linguagem, ocupando-se de aspectos culturais e etnográficos relativos aos usos lingüísticos de uma comunidade, sob forte influência da antropologia lingüística. Outro é John Gumperz, que se ocupa da dimensão interacional dos usos da linguagem, em eventos lingüísticos face a face. Essa teoria é denominada Sociolingüística Interacional. 2. Premissas da Sociolingüística: Relativismo 1. cultural Princípio que prega que uma crença e/ ou atividade humana individual deva ser interpretada em termos de sua própria cultura. Defende a validade e a riqueza de qualquer sistema cultural e nega qualquer valorização moral e ética dos mesmos Equivalência 2. funcional de todas as línguas A equivalência funcional entre línguas ou variedades significa que essas se equivalem, tanto em sua estrutura quanto em seu uso, ou seja, todas as línguas têm igual complexidade Heterogeneidade 3. lingüística regular Diferentemente do que sugerem as gramáticas pedagógicas, a língua não é um fenômeno homogêneo. A regra é a variação, a mudança, a heterogeneidade. Igualdade essencial 4. entre as variedades lingüísticas Não apenas as línguas são funcionalmente equivalentes. Dentro de uma comunidade lingüística, as variedades empregadas por grupos sócio-culturais diferentes são equivalentes, não podendo ser descritas como melhores, mais complexas ou mais bonitas do que outras variedades. Stella Bortoni aponta que o relativismo cultural é uma postura adotada nas Ciências Sociais, inclusive na Lingüística, segundo a qual uma manifestação de cultura prestigiada na sociedade não é intrinsecamente superior a outras. Quando consideramos que as variedades da língua portuguesa, empregadas na escrita ou usadas por pessoas letradas quando estão prestando atenção à fala, não são intrinsecamente superiores às variedades usadas por pessoas com pouca escolarização, estamos adotando uma posição culturalmente relativa e combatendo o preconceito baseado em mitos que perduram há muito tempo em nossa sociedade. Ainda no dizer de Bortoni (1997, p. 2), desde os anos sessenta a Sociolingüística vem lutando em favor do que chama de igualdade essencial das variedades lingüísticas e teve que lidar com as correlações entre os dialetos das crianças e seu sucesso educacional. Como exemplo, cita a pesquisa realizada por Kelmer Pringle e associados (Stubbs, 1980), que trata do desempenho na leitura, abaixo da média nacional, de crianças consideradas de classes sociais inferiores ou de minorias étnicas. Essa pesquisa 261 agrupou 11.000 alunos na faixa de sete anos em três grupos: leitores bons, médios e pobres, usando como parâmetro, sua performance no Teste de Reconhecimento de Palavras Southgate. A porcentagem de leitores fracos na classe alta foi de 7,1%; na classe média, 18,9% e na classe baixa, mais que 26,9%. O esforço da Sociolingüística tem sido o de tratar os conflitos dialetais como apenas diferenças e não deficiências. Para William Labov (1987, p. 10), no entanto, “a causa primária do fracasso escolar não é a diferença entre as linguagens, mas o racismo institucional”. 3. Dimensões da Variação/Mudança Lingüística: Uma concepção idealizada de norma nega qualquer tipo de validação às variedades lingüísticas. Estas, ao contrário da norma ideal, dizem respeito aos parâmetros lingüísticos que cada comunidade adota em função não apenas nas necessidades comunicativas, sociais e contextuais, mas em respeito a regras lingüísticas de mudanças, que operaram no decorrer do tempo sobre os princípios gerais daquela língua. Por exemplo, a língua portuguesa falada no Brasil sofreu, ao longo dos quinhentos anos de seu uso em nosso território, inúmeras transformações, seja pelo contato com outras línguas da colonização (as línguas indígenas, as línguas africanas, as línguas dos invasores), seja pelo convívio comas línguas dos imigrantes (japoneses, italianos, alemães), seja pela distância geográfica em relação aos centros onde as mudanças sociais eram mais freqüentes (os sertões em relação às capitais do Império, por exemplo), seja pelas necessidades de cada lugar (a instalação das indústrias no sudeste, a agricultura de subsistência no norte-nordeste, a produção canavieira nos litorais). Essas transformações são observadas com muita clareza no Brasil, basta que constatemos os contrastes entre as diversas regiões. O resultado é que temos um país em que a língua utilizada pela maioria dos falantes é o Português, e que no entanto, não se pode considerar essa língua como homogênea, já que apresenta variações que a tornam muito particular em relação às comunidades que as adotam. Essas variedades têm normas diferentes umas das outras, e essas normas são consensualmente utilizadas pelos falantes. Não se pode dizer, portanto, que uma variedade do português seja mais bem empregada do que outra, visto que seu uso é sempre coerente com a norma. Variedade lingüística não é erro ou desvio. É uma forma legitima de uso de uma língua que sofreu processos naturais de variação e mudança no seu desenvolvimento. A variação lingüística não ocorre apenas no Brasil, todas as línguas do mundo passam por esse processo, mas é mais fácil de notá-la em um país com a dimensão do nosso, pois o processo de mudança não é homogêneo, ou seja, não ocorre ao mesmo tempo em todas as regiões em que a língua é falada. As variações lingüísticas são, pois, as diferentes realizações de uma dada língua, que resultam de fatores de natureza histórica, regional, social ou contextual. Essas variações podem ocorrer nos níveis fonético e fonológico (a realização efetiva de um determinado som na língua, por exemplo o R retroflexo, utilizado no interior de São Paulo, para indicar pejorativamente a fala caipira), morfológico (a realização de uma concordância de número, em que apenas um termo recebe a marca do plural, como em as meninaØ), sintático (como a colocação pronominal, amplamente usada no Brasil, em orações do tipo “me dá um cigarro”) e semântico (encontrada na diferença lexical de diversas regiões, como os adjetivos doce e melado). O estudo da variação lingüística pode ser feito a partir da observação das 262 mudanças sob vários aspectos: a) o aspecto diacrônico (do grego dia+kronos = ao longo do tempo), que explica as manifestações diferentes de uma língua através dos tempos. No português brasileiro, é possível observar a mudança do português colonial com relação ao português moderno, especialmente pela presença de dados escritos daquela variedade, como também pelo uso de formas típicas do português colonial, preservadas nas variedades de algumas regiões do Brasil. b) o aspecto sincrônico (do grego sy’n = simultaneidade), que explica as variações num mesmo período de tempo, como os usos de uma variedade da atualidade em relação a outra, a exemplo do português falado no sul e no nordeste. Os demais aspectos, por sua relevância na explicação do Português Brasileiro, serão analisados em seção própria. 3.1. Variação diatópica, diafásica e diastrática. Entre os diversos processos de variação que ocorrem em uma determinada língua, destacaremos aqueles que dizem respeito aos contextos sociais que impõem a essa língua, normas de uso específicas, diferentes de outras normas encontradas em outras variedades. A variação diatópica (do grego topos = lugar), também reconhecida como variação geolingüística ou variação dialetal, é o tipo de processo relacionado a fatores geográficos, como o uso de pronúncia diferente em diferentes regiões, diferentes palavras para designar os mesmo conceitos, acepções diferentes de um termo de região para região, expressões ou construções frásticas próprias de uma região, etc. A variação diatópica diz respeito aos processos de identificação da norma lingüística com os usos aceitáveis em lugares ou regiões diferentes de onde se fala a língua padrão. Assim, pode-se perceber que os lugares que se afastam geograficamente do centro onde se usa a variedade padrão, adotam normas lingüísticas diferentes daquele. Isso pode acontecer por diversos motivos: as regras lingüísticas que afetaram a padrão podem não ter afetado essa variedade, os usos sociais da língua nessa região podem ser diferentes de outra, influências de outras línguas podem ser mais presentes no centro do que na região onde se fala a variedade não-padrão, etc. O exemplo clássico da variação diatópica é o falar rural em oposição ao urbano. Nesse exemplo, percebe- se que a mudança ocorreu com menos freqüência na variedade rural, que preserva várias formas do português medieval, enquanto que o falar urbano sofreu influências de diversos tipos, como processos de industrialização, de imigração, etc. A variação diafásica (do grego phasis = fala) é relacionada às diferentes situações de comunicação e a fatores de natureza pragmática e discursiva, que são impostos em função do contexto de uso da língua. Esses fatores levam o falante a adaptar-se às circunstâncias comunicativas, por meio da variação do registro de língua, seja para mais formal, ou para mais informal. Em lingüística, o termo registro designa a variedade da língua definida de acordo com o seu uso em situações sociais. Assim, registros lingüísticos são os diversos estilos que um falante pode usar em uma situação comunicativa dada. Em uma conversa informal com os amigos, por exemplo, utilizará um registro diferente do que utiliza em família, ou no emprego, ou na Universidade. A variação diastrática (do grego stratos = camada, nível) refere-se aos modos de falar que correspondem a códigos de comportamento de determinados grupos sociais. A variedade diastrática corresponde ao uso lingüístico partilhado por um grupo social, cujos membros mantêm entre si relações de identidade que os diferenciam em relação a outros grupos (por exemplo, o uso de gírias, de jargão profissional, etc.). 263 Entre os fatores relacionados à variação social, encontramos a classe social, situação ou contexto social, idade, sexo, etc. A classe social é um fator que tem estreita ligação com a escolha de variedades lingüísticas de uso. Em países como a Índia, em que o sistema de estratificação social é bastante fechado, a língua utilizada por uma casta superior, não pode ser usada por uma inferior. No Brasil, alguns membros da elite intelectual insistem em identificar a variedade padrão da língua com a classe alta. Essa identificação não procede, uma vez que tal classe se define em termos de poder econômico, e não em função de escolaridade. Pode-se dizer que num país mais agrícola do que industrializado, como o Brasil, o poder econômico se concentra mais nas mãos dos grandes produtores e fazendeiros e dos altos empresários da indústria do que na elite intelectual. Assim, a variedade lingüística em torno de classes, no Brasil, é mais aberta, não podendo ser identificada com uma classe apenas. Assim, é importante que se compreenda que um falante de uma variedade social pode utilizar outra variedade para comunicação, o que destaca a relevância de todas as variedades e sua adequação às necessidades de uso. A situação ou contexto social define a variedade lingüística a ser utilizada a partir da relação mutua entre dois falantes ao discutir um dado assunto, em uma dada situação. Há contextos que exigem maior formalidade, como os institucionais, relacionados à escola, ao trabalho, às atividades públicas; e contextos em que a informalidade é a regra a se seguir, como nos contextos privados. Assim, em relação à pessoa a quem se dirige, o falante pode utilizar uma variedade mais ou menos formal, dependendo se o seu interlocutor é mais velho, ou superior hierarquicamente, ou se trata de um par; dependendo também do lugar onde os falantes se encontram,se em um bar, uma igreja ou uma escola; bem como do tema sobre o que se conversa, um assunto sério, amenidades, etc. No que diz respeito à variação social, segundo os fatores sexo e idade, observa- se que alguns recursos expressivos, como o alongamento de vogais, o uso freqüente de diminutivos, entre outros são mais comuns na fala da mulher do que na do homem, enquanto que o registro social por meio de gírias, palavrões, etc. são mais freqüentes na variedade usada por esses. Gírias, palavrões e outras marcas do registro informal são também mais freqüentes nas variedades usadas por jovens (homens e mulheres) do que na faixa etária de mais idade. O uso de certos pronomes (como o tu) ocorre com mais freqüência entre jovens, enquanto certas pronúncias (como senhora, com o fechamento da vogal o) são mais comuns entre os mais velhos. Categorias de análise da sociolingüística Variante Identificação de formas usadas simultaneamente sem alteração de sentido Variável Fator ou grupo de fatores que determinam o uso de uma variante Variação Processo comum e natural às línguas. Pode ser instável ou estável. A análise das variantes define: A co-existência estável entre variantes – ocorre assim o fenômeno da 1. Variação; 264 A competição entre variantes com aumento do uso de uma delas – ocorre assim 2. a Mudança em curso Variáveis sociais (extralingüísticas): Sexo1. Idade2. Nível de Escolaridade3. Contexto Lingüístico (Região)4. Classe Social5. Etnia6. Rede social7. O peso dos fatores sociais tem sido minimizado, pois reformulações na teoria variacionista destacam motivações essencialmente lingüísticas para a variação/ mudança. Diante de duas variantes, por exemplo, /cantandu/ e /catanu/ (ambas referindo- se ao gerúndio do verbo cantar), o sociolingüista considera: Qual o contexto social de uso de uma das variantes pelo mesmo falante• Em que contextos específicos uma forma tende a ser usada pela comunidade • lingüística Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com faixa-etária do • falante? Há diferença no uso de uma das formas, segundo o nível de escolaridade do • falante? Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com o nível socioeconômico • do falante? Há diferença no uso de uma das formas, de acordo com o nível registro de • linguagem (formal ou informal) empregado pelo falante? 4. A Sociolingüística Interacional A Sociolingüística Interacional pode ser considerada como um desenvolvimento contemporâneo da Sociologia da Linguagem, da Etnografia da Comunicação e da própria Sociolingüística do tipo variacionista da qual William Labov (1966, 1972) é o principal representante. Atuantes da área de Sociologia como Goffman (1967, 1974) e Garfinkel (1967) contribuíram para alguns dos fundamentos da Sociolingüística Interacional, especialmente no que diz respeito à análise da conversação. Este primeiro influenciou muitos teóricos da Sociolingüística Interacional através de seus trabalhos sobre interação social. O último também o fez através de um modo particular de lidar com a sociologia, ao qual ele denominou Etnometodologia. Os filósofos da linguagem cotidiana (ou Ordinary Language Philosophers) como Strawson (1950), Austin (1962) e Grice (1968), estabelecidos principalmente em Oxford e que buscavam esclarecimento de conceitos à luz do emprego corrente dos termos da linguagem comum que os designam, também tiveram grande influência na fundamentação da teoria da Sociolingüística Interacional, no que diz respeito à pragmática e às teorias sobre atos de fala. As noções de contexto e competência comunicativa desenvolvidas por Hymes (1962) para sua Etnografia da Comunicação também forneceram subsídios para a análise interacionista proposta pela Sociolingüística Interacional, mas foi John 265 Gumperz (1971, 1982) quem desenvolveu e definiu o tipo particular de sociolingüística que é reconhecido atualmente como um paradigma distinto. Consoante Figueroa (1994) a Sociolingüística Interacional de Gumperz se diferencia das teorias que a precederam por ocupar-se do comportamento do indivíduo numa situação de comunicação face a face ao tratar a linguagem enquanto fenômeno social. Prática que até então não havia sido levada em conta por Labov e outros nomes da sociolingüística, preocupados especialmente com os “agregados populacionais”. Os pontos que separam Gumperz de Labov e tornam a Sociolingüística Interacional uma teoria distinta dos modelos anteriores são, em primeiro lugar, a escolha deste tipo de comunicação face a face, ou seja, um tipo que elege o indivíduo para ser o ponto de interesse da análise lingüística. Esta escolha exclui a análise baseada nas médias obtidas em comunidades de falantes, o que, na maioria das vezes, produz apenas generalizações estatísticas baseadas em dados coletados segundo métodos de inquéritos e não dados validados pela análise profunda da competência lingüística. O segundo ponto de divergência consiste no fato de o interesse de Gumperz concentrar- se no conhecimento individual e suas problemáticas: o que é partilhado desse conhecimento, como ele é distribuído e até que ponto ele é significante e generalizável; esta preocupação não se verifica no nível do discurso da comunidade lingüística. O terceiro ponto refere-se à aceitação, por Gumperz, da teoria do ‘comportamento individual’ que vê na interação uma constituinte da realidade social. Assim, a teoria de Gumperz se situa no terreno das interações humanas onde os significados, ordens e estruturas não são predeterminados, mas se desenvolvem na interação e se baseiam num conjunto complexo de fatores materiais, experienciais e psicológicos (Figueroa, 1994, p.113). Gumperz rejeita a separação de língua do seu contexto social e se interessa pelo conhecimento de como o comportamento lingüístico cria interpretações, de como as intenções individuais levam ao comportamento lingüístico, e de como o sucesso da comunicação está relacionado ao conhecimento sociolingüístico. A teoria da Sociolingüística Interacional enfoca diretamente “as estratégias que governam o uso, por parte do falante, dos conhecimentos lexicais, gramaticais, sociolingüísticos ou de outra natureza, na produção e interpretação das mensagens em contexto” (Figueroa, 1994, p.113). Este processo só é possível pelo uso de pistas de contextualização, ou “qualquer traço de forma lingüística que contribui para assinalar pressuposições contextuais”, que permitem acessar a forma como a intenção do locutor está sendo comunicada e interpretada. De forma um pouco diferente dos etnometodologistas, que ao analisar um ato conversação, procedem à seqüenciação do ato, à verificação de como este ato é conseqüência de um anterior, ou como é seguido sistematicamente por outro, Gumperz se ocupa mais da interpretação da intencionalidade conversacional do que da análise estrutural de ordem social. Os etnometodologistas desenvolveram unidades de análise, tais como turnos, pares adjacentes, tópicos, ações de reparo, entre outros, que também são utilizados por Gumperz ao fazer Sociolingüística Interacional, mas este inclui em sua análise traços lingüísticos de ordem supra-segmental, como entoação, ritmo, que são usualmente ignorados pelos analistas da conversação. A unidade mínima de significação social de que se ocupa a análise da Sociolingüística Interacional é a atividade ou evento de fala, termo definido como um “conjunto de relações sociais realizadas segundo um conjunto de esquemas em relação a algum propósito comunicativo” (Figueroa, 1994, p.13). A atividade de fala pressupõe a análise da interação entre os participantes, porque é através dela que as expectativas 266 dos participantes sobre as atividades subseqüentes, em relação ao curso de um evento de interação, são reavaliadas, desenvolvidas e até mudadas. Sendoassim, a interação produz um processo de interpretação de sentido dinâmico. A interação produzida através das trocas conversacionais é dotada de algumas propriedades dialógicas que permitem ao analista chegar a processos de inferência de sentido. Uma destas propriedades é a possibilidade de negociação das interpretações entre falante e ouvinte, cujos julgamentos são confirmados ou mudados segundo as reações que eles produzem no interlocutor. Assim, não é possível que um único enunciado produzido pelo falante seja suficiente para que o ouvinte faça inferência de tal ou qual interpretação. A segunda propriedade é a afirmação de que a conversação contém em si mesma, evidências internas do que será seu resultado. Gumperz dá como exemplo dessa propriedade a possibilidade de os participantes compartilharem ou não das convenções interpretativas, ou de serem bem sucedidos ou não em atingir os fins da teoria comunicativa. A Sociolingüística Interacional, vista deste modo, é uma teoria fundamentada no discurso e não no nível da sentença, e se interessa mais pela comunicação de intencionalidade do que de gramaticalidade. Os traços básicos de uma língua são classificados por Gumperz como traços nucleares ou centrais e traços marginais ou periféricos. A Sociolingüística Interacional se concentra no estudo dos traços considerados marginais, que tratam da função expressiva da linguagem e envolvem aspectos supra-segmentais como entoação, ritmo, escolha entre opções lexicais, fonéticas e sintáticas, além de sempre basear sua análise em termos de linguagem contextualizada, servindo aos propósitos da comunicação. A teoria lingüística vigente, por outro lado, considera apenas os traços nucleares que carregam informações referenciais. Estes traços são de cunho segmental e funcionam apenas ao nível da sentença. São alguns deles os fonemas segmentais, os marcadores gramaticais ou afixos, as categorias sintáticas básicas e alguns elementos de acentuação, que tratam da linguagem de forma descontextualizada e idealizada. 267 UNIDADE II LINGÜÍSTICA INTERACIONAL 1. A noção de interação na Lingüística: O interesse pelo fenômeno da interação social na Lingüística é geralmente atribuído à abordagem da linguagem verbal humana, em sua modalidade oral, por meio da análise das ações comunicativas entre os falantes e os ouvintes. Várias correntes teóricas da Lingüística, como as análises do discurso, a sociolingüística, a análise da conversação, etc. ao abordar o fenômeno interacional renovaram o enfoque dos estudos da linguagem, passando a ocupar-se com a chamada gramática oral. O funcionamento e o uso da língua em situações concretas no cotidiano dos falantes, assim como a função sócio-comunicativa das produções lingüísticas, nesse novo enfoque, passaram a ter prioridade sobre a análise formal das estruturas da língua. Essa mudança de foco de análise é geralmente denominada de mudança ou virada pragmática (do inglês, “pragmatic turn”). Virada pragmática: na virada pragmática o funcionamento e o uso da língua em situações concretas no cotidiano dos falantes têm prioridade sobre a análise formal, assim como a função sócio-comunicativa e o enquadre cognitivo das produções lingüísticas e não-lingüísticas. Entretanto, antes da própria virada pragmática, outras abordagens denominadas interacionistas já haviam se estabelecido no campo de estudos da linguagem, voltadas especialmente para a investigação da fala infantil (Lev Vygotsky, 1896- 1934) e dos processos sociais que motivam a produção dos enunciados verbais (Mikahil Bakhtin, 1895-1975). Lev Semionovitch Vygotsky Mikhail Mikhailovich Bakhtin A perspectiva de Vygotsky (1896-1934), denominada sócio-interacionismo ou interacionismo sociocultural, trata do papel das interações sociais aplicadas à gênese da linguagem e ao desenvolvimento cognitivo da criança. Em sua abordagem, a interação social e a linguagem são fundamentais para o desenvolvimento humano. O indivíduo, em sua opinião, não é apenas ativo, mas interativo, porque constrói conhecimentos e se constitui como sujeito a partir de relações intra e interpessoais. O desenvolvimento cognitivo se processa na internalização da interação social com os dados disponíveis culturalmente, em um processo construído de fora para dentro, ou seja, trata-se de um processo que caminha do plano social (relações interpessoais) para o plano individual interno (relações intra- pessoais). Nessa perspectiva, internalizamos conhecimentos, construímos papéis e funções sociais, no intercâmbio com outros sujeitos e conosco próprios. Bakhtin se opõe a uma noção de língua que seja fundada tanto em sua forma objetiva como na subjetividade pura. Ao invés disso, adota a concepção de dialogismo ou interação. Para o autor, a linguagem tem natureza sócio-ideológica. Há, portanto, entre linguagem e sociedade relações dinâmicas e complexas que se materializam nos enunciados constituídos em discursos. “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 1992, p. 109-110) UNIDADE II LINGÜÍSTICA INTERACIONAL 268 Os estudos da interação social consideram que a conversação (fenômeno lingüístico de base) é um dos lugares fundamentais onde se estabelecem o vínculo e a ordem social; onde se realiza a socialização dos indivíduos; onde os falantes adquirem suas capacidades comunicativas; e onde a língua é usada de maneira prototípica. Em razão disso, a organização da conversação não pode ser indiferente à organização social nem à estruturação dos recursos lingüísticos. Postula-se, então, que o fenômeno interacional integra, em termos lingüísticos, as dimensões pragmáticas (funcionais) e estruturais (formais) da linguagem. Duas hipóteses sobre essa questão são formuladas por Lorenza Mondada, lingüista suíça (2001, p.15): As formas lingüísticas são usadas como o recurso à interação. A 1. organização da interação explora estes recursos de acordo com suas especificidades e suas características formais. Em termos práticos, gerenciamos a interação através do emprego de estruturas lingüísticas (marcas sintáticas, discursivas, lexicais) que se organizam por modelos interativos seguidos em nossas práticas de linguagem. As formas lingüísticas não são apenas exploradas interacionalmente, mas 2. são configuradas também pela interação. Sua adequação à atividade de conversação não seria uma mera possibilidade, mas uma conseqüência do fato de que os falantes estruturam os recursos da língua para a interação. Ao propor as bases de uma Lingüística Interacional, teóricos como Lorenza Mondada reflete sobre as conseqüências de se adotar integralmente a dimensão interacional dos fenômenos lingüísticos. Algumas destas conseqüências são: o reconhecimento do papel constitutivo da interação social na própria • estruturação dos recursos lingüísticos, ou seja, a interação social não apenas estabeleceria os modelos para o uso da língua em suas situações comunicativas, mas a própria escolha dos recursos lingüísticos que usamos (as estruturas, os sentidos, a organização sintática) seria feita de acordo com a dinâmica interacional. o fato de que a análise interacional permite conceber um modelo de práticas • sociais dos falantes que expliquem os fenômenos dinâmicos e emergentes da linguagem, ou seja, os processos locais de variação sociale as mudanças lingüísticas (sintáticas, semânticas, pragmáticas) seriam decorrentes de alterações nos modelos interacionais utilizados nas práticas sócio-comunicativas dos falantes. Duas grandes tradições lingüísticas se estabeleceram fortemente a partir da segunda metade do século XX: a tradição do produto e a tradição da ação. 269 Tradição do Produto Tradição da Ação Iniciada ainda no século XIX com os neogramáticos se estendeu até Saussure e Chomsky, tornando-se paradigmática a partir do tratamento dado à língua pelo gerativismo, como sendo um produto bem definido da fonologia, da morfologia, da semântica e da sintaxe. Esta tradição tem como características o fato de que o aspecto estrutural é mais básico do que o aspecto do uso e de que a língua é autônoma e suficiente para centrar sua análise no nível da frase. A tradição da ação foi postulada, sobretudo, pelos pragmaticistas, analistas da conversação e etnometodólogos, que definem o funcionamento da língua em níveis de ação, desde os níveis estritamente lingüísticos até os da enunciação, da modalidade, da cognição, da situacionalidade, etc. A lingüística interacional subscreve essa tradição, em vista de seu objeto de estudo tratar-se de um tipo de ação intersubjetiva. Para Herbert Clark (1992, 1996) o uso da linguagem é, de fato, uma forma de ação conjunta, e por ação conjunta entende-se aquela que é levada a efeito por um conjunto de pessoas agindo coordenadamente em relação às outras. O uso da linguagem, portanto, incorpora ambos os processos individuais e sociais da interação social. 2. Objeto de Estudo da Lingüística Interacional: A comunicação face a face• O que as pessoas fazem ao usar linguagem é realizar ações intencionalmente. Em um dado nível de abstração elas negociam e conhecem uns aos outros, etc., em outro nível, fazem afirmações, pedidos, promessas, pedem desculpas, categorizam objetos, referem-se às pessoas e situam as coisas. Todas essas ações são conjuntas. Mas, o que são e como funcionam as ações conjuntas? Alguns dos traços mais elementares usados para entender a linguagem e seu uso como ação conjunta são apresentados por Clark (1996, p. 23), abaixo resumidos: A linguagem é fundamentalmente usada para propósitos sociais. O uso da língua é essencialmente performativo, isto é, todos os usos da língua envolvem atividades sociais sem as quais não haveria sentido em usá-la. Ilustra esta asserção o questionamento feito por Salomão (1999, p. 65): “A rigor, para que existiria linguagem? Certamente não para gerar seqüências arbitrárias de símbolos nem para disponibilizar repertórios de unidades sistemáticas. Na verdade, a linguagem existe para que as pessoas possam relatar a estória de suas vidas, eventualmente mentir sobre elas, expressar seus desejos e temores, tentar resolver problemas, avaliar situações, influenciar seus interlocutores, predizer o futuro, planejar ações”. 270 A linguagem é uma espécie de ação conjunta. Não pode haver uso solitário da língua, mas as ações de no mínimo dois indivíduos são exigidas para que as atividades lingüísticas tenham sentido. As ações conjuntas constituem a coordenação das ações individuais de pelo menos dois sujeitos, que podem estar face a face, ou distantes no tempo e no espaço. O uso da linguagem sempre envolve a significação do falante e a compreensão do interlocutor Esta afirmação põe em evidência o fato de que os significados não estão estavelmente nas estruturas das palavras, mas se revelam na situação comunicativa concreta. A compreensão lingüística depende do significado do falante associado às especificidades contextuais em que os enunciados são produzidos. Isto quer dizer que qualquer sentença, para ser compreendida, envolve o reconhecimento das intenções do falante dentro de um contexto situado sócio- culturalmente. O uso da linguagem geralmente tem mais de uma camada de atividade. Há muitos domínios de ação em uma única atividade discursiva. Cada um destes domínios (ou camadas de atividade) é definido por um conjunto de participantes, um lugar, um tempo, e um conjunto de ações executadas. A conversação em sua forma mais simples tem apenas um domínio de ação. No entanto, no decurso desta atividade, os participantes podem introduzir novas camadas de ação quando, por exemplo, contam uma história, uma piada, imitam uma personagem ou uma terceira pessoa, enfim, fazem da conversação um contexto rico para os diversos usos da linguagem. Para os estudos da comunicação face a face, talvez o traço mais elementar a partir do qual entendemos o objeto da lingüística interacional seja: O locus básico da linguagem é a conversação face a face. Esta afirmação aponta para o fato de que o contexto de uso da língua mais básico é aquele da conversação face a face. Toda uma tradição dos estudos da linguagem tem se voltado para a investigação deste contexto, a fim de elucidar os mais diversos propósitos, desde a aquisição da linguagem até os usos sócio-dialetais de variedades lingüísticas. 271 Koch (1992, p. 9; 66), por exemplo, encara a linguagem como atividade, forma de ação interindividual e lugar de interação que possibilita aos membros de uma comunidade executar ações, ‘jogar um jogo’. Bange (1983, p. 3) afirma que se a “conversação pode ser considerada a forma de base da organização da atividade de linguagem”, tal ocorre porque ela é, de fato, a forma de vida cotidiana, interativa, inseparável da situação. Para Fillmore (1981, p.152) a língua da conversação face a face é o uso mais básico e primário da linguagem, todos os outros sendo mais bem descritos em termos do modo como se desviam desta base. Clark (1996, p. 11) também reafirma a condição da conversação face a face como cenário básico de uso da língua. Para ele, a conversa é universal, não requer habilidade especial, e é essencial na aquisição da língua materna. A prioridade da conversação face a face sobre os demais cenários ocorre porque nestes faltam traços como a imediaticidade, o meio e o controle da interação face a face, os quais devem ser supridos por técnicas ou práticas especiais. A natureza destes traços dá à conversação face a face características que faltam aos cenários não básicos, como a co-presença, visibilidade, audibilidade e instantaneidade no enquadre da imediaticidade; a evanescência, a não registrabilidade e a simultaneidade como característicos do meio; e a improvisação, autodeterminação e auto-expressão, no quadro do controle das ações da linguagem. Traços da conversação face a face (CLARK & BRENNAN, 1991): IMEDIATICIDADE 1. Co-presença Os participantes partilham o mesmo contexto físico. 2. Visibilidade Os participantes se vêem mutuamente. 3. Audibilidade Os participantes ouvem um ao outro. 4. Instantaneidade Os participantes percebem as ações dos demais sem atraso perceptivo. MEIO 5. Evanescência O meio é evanescente – os sinais lingüísticos e não-lingüísticos são transitórios e desaparecem no espaço e tempo. 6.Não- registrabilidade As ações dos participantes não deixam marcas ou vestígios físicos. 7. Simultaneidade Os participantes podem produzir e receber ações lingüísticas imediatamente e simultaneamente 272 CONTROLE DAS AÇÕES 8. Improvisação Os participantes formulam e executam suas ações de maneira improvisada, em tempo real. 9. Autodeterminação Os participantes determinam por si mesmos quais ações são tomadas e quando são tomadas. 10. Auto-expressão Os participantes atuam por expressão própria. Em nossa opinião, ao enfatizar a não exigência de habilidade especial no uso face a face da linguagem, Clark deixa de reconhecer que as ‘habilidades básicas’, presentes neste cenário, exigem um nível complexode operações cognitivas e sociais. O modo de interagir no contexto social não é um dado de que os falantes dispõem; eles o constroem no dia-a-dia de suas experiências culturais e na relação como os outros interlocutores. A habilidade da conversa face a face não exige, por exemplo, a escolarização formal, mas os falantes que dela fazem uso tiveram que aprender a manipular recursos interacionais desde cedo. Operações cognitivas como a inferência, a referenciação e a interpretação também desempenham papel crucial na interação face a face. Considerá- las básicas seria negar a complexidade dos processos neurocognitivos e sócio- cognitivos que elas executam. A conversa é organizada de modo que haja interação entre os participantes, ou seja, para que estes negociem o sentido social das atividades em que estão envolvidos. A organização da conversação é dotada de uma complexidade que permite conceber uma gramática própria: a gramática oral ou interacional. Para fins didáticos, apresentamos alguns itens que estruturam a gramática interacional, os quais serão tratados no decorrer deste capítulo: Tópicos Os diversos assuntos abordados pelos falantes são denominados, segundo a análise etnometodológica da conversação, ‘tópicos’. Numa situação de interação os tópicos podem continuar, mudar ou simplesmente chegar ao fim, pela negociação dos falantes. Turnos Para falar sobre os ‘tópicos’, os participantes organizam a conversação em ‘turnos’, que constituem a oportunidade que cada um tem de dar sua contribuição para a conversação, é ‘a vez’ que cada falante tem de se expressar sobre dado ‘tópico’. Tomada de Turno ou Assalto ao Turno Os turnos geralmente não são distribuídos automaticamente aos falantes. Um interlocutor pode, em dado momento, querer tomar a palavra de quem está falando e, para isso, sobrepõe sua voz até que o outro ceda. Este procedimento é denominado ‘assalto ao turno’. Simetria interacional Em ‘interações simétricas’, todos os participantes têm direitos iguais ao uso dos turnos; isto se verifica em conversações informais entre amigos ou familiares. 273 Assimetria interacional Em interações consideradas ‘assimétricas’, como entrevistas de emprego, consultas médicas, e até em sala de aula, um dos integrantes da conversação possui o domínio sobre os turnos e os distribui a seu critério. As interações assimétricas são típicas dos ambientes institucionais e as relações entre profissionais e leigos se dão em termos de ‘pares adjacentes’, ou seja, os profissionais determinam os tópicos e controlam os turnos através de perguntas, as quais os leigos somente respondem, mas não opinam sobre tópico, nem fazem ‘assalto aos turnos’ Pares Adjacentes São dois turnos emparelhados (do tipo bom dia/bom dia) e constituem principal unidade de análise interacional. São encontrados tanto em interações assimétricas (entrevistas médico-paciente; inquiridor-testemunha) quanto em interações simétricas, freqüentemente através de expressões cristalizadas (alô/alô; tudo bom/tudo bom, etc.) Relevância Condicional Nos pares adjacentes a produção de um turno condiciona a realização do segundo. Nos pares: pergunta-resposta; saudação- saudação; convite-aceitação; pedido-concordância, a não- ocorrência do segundo par, embora possível, causaria estranheza ou sanção social. O contexto interacional• A noção de contexto tem sido abordada na Lingüística, especialmente nos campos da pragmática, a partir da referência ao uso da linguagem em situações interacionais. As escolhas lingüísticas de um falante são definidas contextualmente e são definidoras do contexto, ou seja, linguagem e contexto se alimentam mutuamente um do outro. As escolhas lingüísticas do falante são pistas de contextualização que acionam um conjunto de expectativas, atitudes e processos inferenciais associados com o tipo de atividade de que são índices. Deste modo, contexto e linguagem são concebidos como uma relação dinâmica e evolutiva, na qual as palavras são mediadoras de diferentes versões do mundo e normalmente permitem mais de uma versão co-existir em uma atividade de fala. Em seus estudos sobre o uso da linguagem e as arenas nas quais os falantes agem conjuntamente, Clark apresenta cenários de uso da língua, classificando-os de acordo com as cenas e os meios em que ocorrem, ou seja, os lugares (contextos) e os canais de produção lingüística (falada, escrita, gestual). Da combinação dos dois, o autor sugere a noção de contexto falado e contexto escrito. Clark (1996, p. 5) propõe sete tipos de cenários no âmbito do contexto falado: não-pessoais, pessoais, institucionais, prescritivos, ficcionais, mediados e privados: 274 Tipologia dos Cenários de Uso da Língua (CLARK, 1996, p. 8): CENÁRIOS FALADOS CENÁRIOS ESCRITOS Não-pessoais Professor A profere palestra a alunos B Jornalista A escreve artigo informativo para leitores B Pessoais A conversa face a face com B A escreve carta a B Institucionais Promotor A interroga testemunha B no tribunal Gerente A escreve carta comercial a cliente B Prescritivos Noivo A faz voto ritual de matrimônio a noiva B em frente de testemunhas C A assina formulários oficiais para B em frente a notário público C Ficcionais A atua em peça teatral para espectadores B Escritor A escreve romance para leitores B Mediados C simultaneamente traduz para B o que A diz a B C, enquanto ghost-writer, escreve um livro de A para leitores B Privados A fala consigo mesmo sobre seus planos A escreve lembrete a si mesmo sobre seus planos Nos cenários não-pessoais os monólogos são bastante representativos. Referem- se à prática na qual uma pessoa fala com pouca ou nenhuma possibilidade de interrupção ou tomada de turno por parte dos membros da audiência. As diversas variedades do monólogo não excluem a presença de uma audiência, mas a natureza deste cenário não é conversacional: “as pessoas falam para si mesmas, enunciando palavras formuladas por elas para a audiência a sua frente, e da audiência não se espera interrupção”. Os cenários pessoais, por sua vez, são típicos da conversação face a face, e mesmo da conversação telefônica. Trata-se de trocas de turno relativamente livres entre os participantes, que são no mínimo dois, e constituem a unidade básica de uso da linguagem. O cenário pessoal, de fato, inclui os demais cenários, já que se trata de uma modalidade em que as características sócio-interacionais da linguagem parecem se atualizar com muita freqüência. Os demais cenários são sempre definidos com relação ao modo como compartilham características dos cenários pessoais e ao modo como diferem destes. Nos cenários institucionais, por exemplo, os participantes se engajam em trocas discursivas que lembram a conversação cotidiana, face a face, mas estas trocas são limitadas por regras da instituição controladora (conjunto de coerções construídas anteriormente às atividades de fala) – o uso da língua na sala de aula enquadra-se também neste tipo de cenário. Os turnos de fala, geralmente, são controlados por um líder, e apresentam outros tipos de restrição, especialmente no que se refere à estrutura de participação dos falantes. 275 Estrutura de Participação Modelo de participação de falantes e ouvintes em uma atividade de fala. Veja a próxima seção para exemplos. Os cenários prescritivos são característicos dos eventos religiosos, rituais sagrados e jurídicos, a exemplo dos membros de uma igreja recitando palavras de um livro de oração, de noivos fazendo seus votos na cerimônia de casamento, entre outras. Há um alto grau de dependência em arranjos feitos anteriormente, normalmente fixados em cenários escritos, ou em ritos transmitidos verbalmente de geração a geração. Ilustrativo dos cenários ficcionais, quetambém têm alta dependência de cenários escritos, elaborados por outras pessoas de antemão, é o uso da linguagem por um ator num ato teatral, representando Hamlet. A ficção representa um nível de atividade que se sobrepõe ao uso pessoal da linguagem no dia-a-dia das conversações. No entanto, não é raro, ver que a ficção se beneficia da realidade quando, por exemplo, os atores improvisam em sua atuação ou interagem com o público, etc. O que dizer, por exemplo, do cenário de linguagem utilizado pelos participantes de um reality show? O cenário ficcional parece configurar-se mais um suporte para o uso da linguagem, que ocorre sempre de forma pessoal, seja institucional, seja prescritiva, seja mediado pela escrita, como é o caso de um executivo que dita uma carta a sua secretária endereçada a um parceiro de negócios e faz uso característico do cenário mediado. Cenários ficcionais são, portanto, um caso em que a audiência se configura como espectadora sem interferência na atividade desenvolvida e o uso de linguagem concerne tão somente aos participantes envolvidos no suporte ficcional. Já em cenários privados, segundo Clark, as pessoas falam consigo mesmas sem a intenção de que os outros reconheçam o enunciado como um turno de fala. Um dos exemplos apresentados é quando se xinga um outro motorista por ter ultrapassado pela direita, mesmo sabendo que ele não pode ouvir. Mesmo nos cenários privados, o falar consigo mesmo, não deixa de ser dialógico. Quando digo um impropério contra alguém que não pode me ouvir, ainda assim me dirijo a esta exata pessoa, ou ao conjunto de todas as pessoas, que naqueles termos, possam representar o meu interlocutor ‘surdo’. Todos os demais cenários são, em nossa opinião, subtipos dos cenários pessoais mais básicos, já que envolvem, em maior ou menor grau, uma atividade verbal de interação face a face. Os cenários não-pessoais, por exemplo, não podem prescindir uma audiência interlocutora, ainda que relativamente se realizem sem a interação verbal freqüente entre falantes e ouvintes. 3. Métodos de Investigação em Lingüística Interacional Princípios de Análise Etnometodológica da conversação • A Análise da Conversação preocupa-se particularmente com os recursos lingüísticos. Isto não significa fazer uma descrição geral de uma gramática, mas dos processos usados pelos falantes para construir o sentido, assegurar a compreensão mútua e tornar possíveis as atividades de linguagem ordinárias. A organização da conversação pode ser descrita como uma realização coletiva, interna e metódica dos participantes. A organização dos recursos lingüísticos é coordenada com a própria organização da conversação, que se estrutura a partir de 276 elementos como os turnos de fala, os tópicos discursivos, o sistema de participação dos falantes, e regras de simetria e assimetria, os papéis sociais de falantes e ouvintes, dentre outros. Segundo Marcuschi (1986, p.), a Análise da Conversação teve seu início na década de 60 a partir da Etnometodologia e Antropologia Cognitiva e seu estudo era eminentemente organizacional, pois se ocupava da descrição das estruturas da conversação e seus mecanismos organizadores. A partir de J.J. Gumperz (1982) e da Sociolingüística Interacional, tendeu à observação de aspectos como a “especificação dos conhecimentos lingüísticos, paralingüísticos e socioculturais que devem ser partilhados para que a interação seja bem sucedida. Esta perspectiva ultrapassa a análise de meras estruturas e atinge os processos cooperativos presentes na atividade conversacional: o problema passa da organização para a interpretação” (grifo do autor). A conversa, sob esta perspectiva, é organizada de modo que haja negociação entre os participantes, ou seja, para que realmente ocorra interação. Os diversos assuntos abordados pelos falantes são denominados, segundo a análise etnometodológica, ‘tópicos’. Numa situação de interação os tópicos podem continuar, mudar ou simplesmente chegar ao fim, pela negociação dos falantes. Para falar sobre os ‘tópicos’, os participantes organizam a conversação em ‘turnos’ que constituem a oportunidade que cada um tem de dar sua contribuição para a conversação, é ‘a vez’ que cada falante tem de se expressar sobre dado ‘tópico’. Os turnos geralmente não são distribuídos automaticamente aos falantes. Um interlocutor pode, em dado momento, querer tomar a palavra de quem está falando e, para isso, sobrepõe sua voz até que o outro ceda. Este procedimento é denominado ‘assalto ao turno’. Em ‘interações simétricas’, todos os participantes têm direitos iguais ao uso dos turnos; isto se verifica em conversações informais entre amigos ou familiares. Já em interações consideradas ‘assimétricas’, como entrevistas de emprego, consultas médicas, e até em sala de aula, um dos integrantes da conversação possui os domínio sobre os turnos e os distribui a seu critério. Para Drew e Heritage (1992) as interações assimétricas são típicas dos ambientes institucionais e as relações entre profissionais e leigos se dão em termos de ‘pares adjacentes’, ou seja, os profissionais determinam os tópicos e controlam os turnos através de perguntas, as quais os leigos somente respondem, mas não opinam sobre tópico, nem fazem ‘assalto aos turnos’. Desse modo, a conversa é iniciada, mantida e concluída pela vontade de apenas um dos interlocutores. organização seqüencial da falaa) Galembeck (2003) 1 aponta como principal característica da conversação “o fato de que os interlocutores alternam-se nos papéis de falante e ouvinte”. O turno conversacional seria então “a participação de cada um dos interlocutores”, ou seja, é o exercício da fala, que ocorre quando um interlocutor passa de ouvinte a falante. O turno de fala constitui a organização de base da conversação e da interação em geral. Ele permite saber como os participantes realizam de forma local e conjunta a coordenação de suas condutas conversacionais. Essa coordenação é a condição fundamental das atividades socialmente organizadas (Cf. CLARK, 1992, 1996). A fim de procederem à tomada, transição e manutenção da fala, os interlocutores investigam o desenvolvimento do turno para identificar ou produzir, de 1 GALEMBECK, P. T (2003). O Turno Conversacional. In: Preti, D. (Orgs). Análise de Textos Orais. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, pp 65 – 92. 277 modo reconhecível, os pontos em que um turno termina e o outro começa. A tarefa de reconhecimento da finalização de um turno revela uma multiplicidade de dimensões sintáticas, pragmáticas, prosódicas, mas também gestuais, visuais e motrizes. Os turnos têm função essencialmente interacional. Os interlocutores acompanham o desenvolvimento do tópico conversacional através da inserção de elementos fáticos (mostrando o funcionamento do canal comunicativo), como os marcadores conversacionais: uhn, uhn, né? certo?; ou das tentativas de transição e tomada da fala. Nesses momentos, os falantes identificam momentos no turno do outro em que a colaboração do interlocutor é solicitada e assumem a vez na conversação. Muito freqüentes também são os assaltos ao turno – um falante invade a fala do seu interlocutor e toma a posse do turno. As regras que regulam a organização dos turnos de fala são geralmente utilizadas, sem que os falantes necessariamente as mencionem: elas remetem a um saber tácito, que se espera que o falante adquira na prática de interação. O caráter ordenado da conversa se torna observável por sua manifesta obediência aos princípios organizacionais, mas também quando as expectativas normativas são violadas e pelas técnicas disponíveis para reparar as violações e restabelecer a ordem. Um falante pode entender como inacabados os enunciados do outro falante e ler as hesitações que marcam o final do segmento do interlocutor como manifestando uma busca de palavras ou
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