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EXISTE ALGO DE AUTÔNOMO NO SISTEMA NERVOSO? – Alberto A. Rasia-Filho (Advances in Physiology Education 30: 9–12, 2006) Os termos “autônomo” ou “autonômico” são comumente usados para identificar uma parte do sistema nervoso que lida com ajustes de variáveis fisiológicas difusas necessárias para manutenção da vida e ocorrência de comportamentos. O chamado “sistema nervoso autônomo” (SNA) foi dividido em duas partes amplas: simpático e parassimpático. Além disso, um terceiro componente foi incluído e é chamado sistema nervoso “entérico”, que difere em estrutura e função das duas divisões precedentes. A definição encontrada nos dicionários para autônomo refere-se a algo que tem autonomia, autogoverno. A autonomia, por sua vez, é algo que é independente. No entanto, não há nada em todo o nosso corpo indivisível que é, literalmente, independente, que funciona sem ser afetado por qualquer outro sistema ou que pode decidir, por “desejo” individual, quando executa (ou não) uma dada função. Se for assim, imagine que coincidência deveria ser comportarmo-nos, como normalmente fazemos, se todas as partes do nosso organismo incorporassem o próprio “livre-arbítrio”. Como declarado: “a autonomia desta parte do sistema nervoso é ilusória, uma vez que é intimamente sensível às alterações nas atividades somáticas.”. Todos os sistemas do corpo são dependentes e afetados pela ação dos outros, numa organização multicelular. E esta relação dinâmica esta no núcleo da homeostase, um dos conceitos fundamentais em fisiologia. Infelizmente, o termo autonômico em si não deve ser considerado didático, e, apesar de ser considerado uma incorreção “sútil” e uma contribuição histórica, na verdade é um erro conceitual sobre a organização nervosa. Quando se pensa em outra nomenclatura a ser utilizada, o segundo termo geralmente usado para descrever o simpático, parassimpático, e os componentes neurais do trato gastrointestinal é “vegetativo”. Por exemplo, “sistema nervoso vegetativo”, “neurovegetativo” ou “respostas vegetativas” são por vezes empregadas em vez de respostas do SNA ou autonômicas. Não obstante, quando se olha para o significado de vegetativo, este é dirigido a algo que é “involuntário ou passivo” (“como o crescimento das plantas”) ou “mostrando pouca atividade mental”. Involuntário é algo que “não é feito da própria forma, não intencional, acidental, não conscientemente controlado, automático”. Vamos considerar essa definição ainda mais. Os efeitos desses neurônios não são desintencionais ou passivos ou envolvem pouca atividade “mental”. E esses termos não são sinônimos e não significam o mesmo que “não conscientemente controlada” ou “inconsciente”. Em nítido contraste com esta definição, atividades neurais são intencionalmente ativadas para a adequação das variáveis fisiológicas de acordo com o curso das necessidades do comportamento animal. Eles não são meramente passivos ou “efeitos colaterais”; em vez disso, eles devem representar a melhor (ou, às vezes, a possível) combinação para as variáveis orgânicas, em cada momento. Estes ajustes homeostáticos (com as vias aferentes e eferentes que envolvem) são intencional e concomitantemente organizados com comportamentos para prover as condições básicas para suas execuções, incluindo aquelas com nenhuma aparente modificação da atividade motora somática. Além disso, consciência não seria um epifenômeno1 do processamento de informação neuroglial. Pelo contrário, parece ser uma atividade necessária para a interpretação de dados e para a escolha decisões, embora seja muito provável que a maioria das funções do sistema nervoso ocorre sem a percepção consciente. Se “não é conscientemente controlado” foi considerado uma necessidade considerar-se vegetativo, o controle neuroquímico do peso corpóreo, memórias implícitas dos gânglios basais, e a percepção retrogradamente mascarada de rostos temerosos pela amígdala, elementos que também devem ser incluídos nesta mesma categoria (e eles nunca eram de fato). Além disso, involuntário e claramente relacionado com atos motores são a organização da coluna vertebral do reflexo de estiramento, a aferência proprioceptiva para o cerebelo, ou a inibição ativa da maioria dos músculos esqueléticos quando sonhamos. Isto serviria para comentar que a atividade do simpático, parassimpático, e divisões gastrointestinais não poderia ser declarada como “sistema 1 Designa aquilo que é adicionado a um fenômeno sem exercer qualquer influência sobre ele. motor involuntário” como uma caraterística apropriada, única, ou final deles. Além disso, não há uma atividade “motora” na relevante inervação simpática do rim, medula adrenal, e assim por diante. Não há dúvida de que algumas variáveis fisiológicas não estão sob controle voluntário completo. Por exemplo, pode-se dizer que ninguém é capaz de diminuir consideravelmente a própria frequência cardíaca e pressão sanguínea. Isso não significa necessariamente que a volição não pode afetá-los, porque o treinamento “biofeedback” pode fornecer resultados adjuntos úteis para o tratamento da hipertensão moderada essencial. Também são conhecidas as mudanças em variáveis cardiovasculares relacionadas com atos motores voluntários ou associados a situações emocionalmente carregadas, quando estas alterações destinam-se a ajudar o animal a lidar melhor com as situações. Neste mesmo sentido, no tratamento da ejaculação precoce ou em alguns casos de impotência masculina, a atividade “mental” tem que ocorrer para o controle da emissão ou para percepção consciente da suspeita causa “psicológica” [que é “orgânica” por definição, porque está acontecendo em um órgão do corpo] da disfunção. Portanto, vamos ver se outro termo melhor pode emergir das evidências funcionais baseadas nas respostas clássicas indicadas pelo sistema nervoso simpático e parassimpático. Não é incomum ouvir ou ler ou às vezes fica implícito que as ações dessas divisões promovem efeitos opostos nos órgãos que inervam. No entanto, para o objeto preciso de uma resposta homeostática que exige eficácia, economia de energia e, por vezes, respostas rápidas, o simpático e parassimpático podem ser agregados e colaborar para um efeito final. A mobilização das variáveis fisiológicas não pode ocorrer de uma maneira tudo ou nada e não é exclusiva das condições extremas de “lutar ou fugir”; em vez disso, eles podem ocorrer em intensidades graduadas em situações normais diárias. Por exemplo, se é necessário aumentar a pressão arterial, um maior ganho na resposta pode ser obtido com aumento concomitante da atividade simpática e inibição da atividade parassimpática. Esta é obtida, não só nas áreas do sistema nervoso central que controlam a pressão arterial, mas também por inervações inibitórias recíprocas na parede do coração. “Ambas as divisões são tonicamente ativas e operam em conjunto e com o sistema motor somático para regular a maior parte do comportamento, seja ele normal ou de emergência.” Embora várias funções viscerais sejam controladas predominantemente por uma ou outra divisão... é o equilíbrio da atividade entre as duas que ajuda a manter um ambiente interno estável em face a mudança das condições externas”. Na verdade, essas ações contrárias têm de ser enfatizadas, pois seria confuso encontrar o propósito geral para a mudança de algumas variáveis fisiológicas quando elas são estudadas de forma isolada. Integrados, no contexto da necessidade de um comportamento adequado, elas são logicamente ligadas. Um animal que é confrontado com uma situação de risco tem de decidir, entre diferentes estratégias, o que é, aparentemente, a melhor escolha para a conservação de sua vida e, em sentido alargado, de sua espécie. Por exemplo, quando ocorre a ativaçãosimpática, o débito cardíaco e fluxo sanguíneo sistêmico aumentam ao passo que ocorre vasodilatação para aumentar o fornecimento de sangue para os músculos esqueléticos ativos em função da postura e dos movimentos pretendidos, vasoconstrição na pele pode reduzir a perda de sangue em uma região que é muito susceptível a danos. Um menor tempo para a coagulação sanguínea evita uma grande hemorragia, e uma maior sudorese torna a pele umedecida e o animal difícil de ser pego. Ao mesmo tempo, há aumento dos movimentos respiratórios e o volume de fluxo de ar para trocas gasosas e regulação do pH. Glicogenólise hepática é estimulada, juntamente com a mobilização de ácidos graxos a partir do tecido adiposo. A força muscular e a glicólise do músculo também são melhoradas e, para a produção de energia adicional, também ocorre uma maior dissociação oxigênio-hemoglobina e liberação de oxigênio para as células ativadas. As frequências de ondas no EEG aumentam, o que reflete a ativação neuronal difusa, e a midríase (dilatação da pupila) serve para ter mais informação visual e para decidir a melhor estratégia comportamental a executar, como pular de um lugar perigoso. Pela ação ativa de receptores alfa-adrenérgicos, a secreção de insulina é inibida (seria inútil restaurar as reservas energéticas neste momento) e a secreção de glucagon é estimulada por receptores beta-adrenérgicos. O cortisol, assim como outros hormônios relacionados ao estresse, pode ser mais liberado para a circulação, e hormônios suprarrenais podem indiretamente afetar a consolidação das memórias. As células do sistema imunológico, os tecidos linfóides e citocinas também estão envolvidos nesta resposta integrada. Com base nestes dados, e porque estas respostas, incluindo as metabólicas, já não podem ser reivindicadas literalmente como autonômicas ou vegetativas, pode ser proposto o nome de sistema nervoso para a “regulação homeostática”. Este termo incorpora as divisões simpática, parassimpática e gastrointestinal e corretamente coloca junto os sistemas cardiovascular, respiratório (e seu componente motor para respirar), renal, endócrino (com o seu controle neuroendócrino) e hematológico, dentro de uma finalidade fisiológica comum. “Nossos estudos sobre homeostase corporal podem ocorrer em um contexto mais amplo.” Assim, em um estudo do equilíbrio de fluidos e eletrólitos, observações de estratégias comportamentais usadas para encontrar água e sal em ambientes deficientes vão tomar o seu lugar junto com os hormônios relevantes e o controle neural de mecanismos de absorção e excreção. Além disso, as flutuações dinâmicas na amplitude normal de funcionamento deste “sistema nervoso homeostático” são totalmente possíveis, ativamente elaboradas, e espera-se que na verdade ocorram. Amplas variações fisiológicas podem ser encontradas em alguns parâmetros ao longo do tempo (por exemplo, aqueles descritos como ritmo circadiano2) ou em certas fases do sono, ou mesmo nos primeiros dias de infância. Obviamente, alguns eventos podem estar fora de controle e levar a sérios perigos de saúde. Cannon, em seu livro A Sabedoria do Corpo, abordou este tema: “Em 1907, Metzer, em um importante e sugestivo artigo, chamou a atenção para um grupo de factos que se reuniram para lançar luz sobre a questão de saber se os nossos corpos são organizados em um plano generoso ou em um plano estritamente limitado. Ele ressaltou que, quando um engenheiro estima os pesos que uma ponte ou estrada deve apoiar, ou as pressões a que uma caldeira vai ser submetida, ele não estima apenas para aquelas tensões na construção da estrutura. O engenheiro multiplica suas estimativas por três, seis ou até mesmo por vinte, a fim de tornar a estrutura completamente fiável. A maior resistência do material, superior ao calculado como necessário, mede o que é conhecido como um “fator de segurança.” No entanto, pode-se argumentar que nem todas as condições homeostáticas estão sob o controle estrito do sistema nervoso simpático, parassimpático, ou gastrointestinal. Por exemplo, o controle homeostático também inclui a regulação de eletrólitos plasmáticos, pH e da composição gasosa. Embora existam aferências simpáticas relevantes para os rins, a manutenção final de níveis homeostáticos de Na+ e K+ em circulação não é diretamente ou exclusivamente um efeito mediado pelas catecolaminas (adrenalina e noradrenalina) suprarrenais. Um animal com destruição do sistema nervoso simpático não é capaz de responder normalmente a variações de balanço hídrico e eletrolítico. No entanto, esta divisão não é essencial para a vida quando o animal está vivendo em um ambiente controlado, porque, fundamentalmente, cada tecido diferente possui a capacidade de autorregular o fluxo sanguíneo local para assegurar a curto longo prazo o funcionamento normal baseado nas necessidades metabólicas e funcionais. Da mesma forma, alguns comportamentos podem ser programados e executados para corrigir ou manter variáveis dentro da normalidade. Mas, para a boa execução de alguns comportamentos ou devido a eles, algumas respostas reflexas podem ser “contornadas”, e ajustes homeostáticos encontrados em repouso podem ficar intencionalmente inibidos ou temporariamente ajustados por razões de importância hierárquica. Ou seja, exercício ou reações de defesa são acompanhados por uma redução programada da resposta cardiovascular relacionada ao reflexo barorreceptor, o aumento da amplitude respiratória pode ocorrer em animais acordados e em atividade devido à inibição do reflexo de inflação de Hering-Breuer, respostas termorregulatórias a cargas 2 Também conhecido como ciclo circadiano, o ritmo circadiano representa o período de um dia (24 horas) no qual se completam as atividades do ciclo biológico dos seres vivos. Uma das funções deste sistema é o ajuste do relógio biológico, controlando o sono e o apetite. Através de um marca-passo interno que se encontra no cérebro, o ritmo circadiano regula tanto os ritmos materiais quanto os psicológicos, o que pode influenciar em atividades como: digestão em vigília, renovação de células e controle de temperatura corporal (Infoescola.com). térmicas ambientais são suprimidas durante o sono paradoxal e a sede cessa imediatamente após o animal beber água, alguns minutos antes da osmolaridade3 sanguínea retornar a um valor mais baixo. Os animais também tem que alcançar a estabilidade de suas variáveis através de mudanças de estado relacionados com circunstâncias desafiadoras. Neste sentido, o conceito de “alostase” (allo, significando diferente, e estase, que significa constância, ou seja, “alcançar a estabilidade através da mudança”) foi introduzido para ter em conta sistemas de regulação que, desenvolvem pontos variáveis de controle, mostram diferenças individuais na expressão de acordo com a capacidade do animal para lidar com as novas situações, estão associados com as respostas comportamentais e fisiológicas de antecipação e são vulneráveis a sobrecarga fisiológica e a quebra das capacidades reguladoras. É a viabilidade do meio interno que é objetivada quando as necessidades excedem a capacidade limite do sistema. Elas podem levar a adaptações agudas ou a situações crônicas e pode ter efeitos colaterais prejudiciais, impondo o estabelecimento de diferentes faixas para algumas variáveis, como nos sistemas endócrino e imunológico ou na hipertensão relacionada com a obesidade. Por outro lado, estas adaptações que representariam “sistemas de controle devem ser capazes de reorganizar-se radicalmente em resposta a mudanças de longo prazo nas circunstâncias... chamadas ultra-estabilidade, a capacidade de manter a homeostase não por subidas locais, pequenas mudanças incrementais em parâmetrosdo modelo, mas por uma espécie de salto para um pico vizinho”. Por último, tendo em conta os objetivos finais que estão sob controle, outro termo para as divisões simpática, parassimpática e gastrointestinal pode ser sugerido: “sistema nervoso para o controle visceral”. Assim, a inervação dos sistemas simpático e parassimpático forma o “componente visceral (esplâncnico) do sistema nervoso”. Já foi afirmado que “o sistema nervoso autônomo é um sistema motor e sensorial visceral”... e... “reflexos viscerais não estão sob o controle voluntário, nem colidem com consciência, com poucas exceções”. A partir das afirmações acima mencionadas, vamos lembrar que inconsciente não é necessariamente o mesmo que autonômico. E, enquanto vísceras significam “os grandes órgãos internos do corpo”, elas não representam os únicos alvos finais para esta inervação. É certo que esses neurônios são encontrados alcançando as vísceras ou perto delas, mas é igualmente verdade que podem ser encontradas nas glândulas salivares, vasos sanguíneos, músculos lisos, adipócitos, mastócitos, melanóforos4, células intersticiais e placas motoras terminais. Infelizmente, não foi possível encontrar um termo que bem satisfez as características morfológicas e fisiológicas do grupo de neurônios em discussão. Argumenta-se aqui que os termos atuais para os componentes simpático, parassimpático, e gastrointestinal do sistema nervoso não são completamente adequados. De fato, “o que está em um nome?”, e qual é a implicação? Ele ainda merece maior debate acadêmico para cunhar outro termo com a obrigação formal de incluir as características dos componentes que se nomeia e, além disso, a considerar a suas ações, inseparáveis e paralelas, na conjuntura funcional de um único corpo animal. Mas, poderia a solução para esse problema ser ainda mais fácil? Talvez se possa dizer que sim. Em vez de perseguir um nome que pode ser propenso a acusações, poderia ser simplesmente deixado como sistemas nervosos, simpático, parassimpático, e gastrointestinal, para chamá-los por nada menos do que o que eles realmente são, ou seja, por seus próprios nomes. Mais do que um desafio intelectual para encontrar palavras que devem congregar estruturas heterogêneas ou que pode involuntariamente esconder alguns aspectos relevantes da sua organização anatômica e funcional, esta última possibilidade seria aceita sem grande esforço. E, mais importante, este não deve servir para perpetuar os nomes que são mais “convenientes” que apropriados, ainda mais quando ensinar os nossos alunos. Esses alunos devem também aprender os efeitos das ações integradas de células, tecidos e órgãos. 3 Osmolaridade é a quantidade de partículas dissolvidas em um determinado solvente. Quanto maior a osmolaridade, maior a pressão osmótica do soluto sobre o solvente. 4 Células tegumentares especializadas de cor preta ou marrom que possuem melanina em grânulos.
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