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Deisy Ventura - Do Direito ao Método

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DO DIREITO AO MÉTODO E 
DO MÉTODO AO DIREITO 
Deisy Ventura∗
 
 
A diversidade de nossas opiniões não decorre de que 
alguns sejam mais razoáveis do que os outros, mas 
somente de que conduzimos nossos pensamentos 
por caminhos diversos, e não tomamos em 
consideração as mesmas coisas. 
René Descartes, Discurso do método (1637) 
 
 
En tren con destino errado 
Se va más lento que andando a pie 
Jorge Drexler, Alto el fuego (1999) 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Todo ser humano conduz sua ação rotineira consoante um método ou 
diferentes métodos – desde a ducha, a refeição ou o estacionamento, até a 
pesquisa de ponta e o pensamento de vanguarda. 
Amiúde, o faz inconscientemente, porque muita lucidez esfuma-se no 
abismo que separa os significados comumente atribuídos à palavra método. 
De simples “caminho para se atingir uma meta” ao solene “modo de agir 
com disciplina, técnica e organização”, é como se a razão (que se refere 
ao caminho) se tivesse burocratizado e a paixão (que atine à meta), 
desaparecido. 
 
∗ Doutora em Direito da Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Consultora Jurídica 
da Secretaria do MERCOSUL (Montevidéu), Professora da Universidade Federal de Santa 
Maria (RS), da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e do Mestrado em Direito 
da Universidad de la República e do CLAEH (Montevidéu). 
 2
Logo, o primeiro passo para compreender a vital importância do 
método é recuperar a sua banalidade, destituindo o adjetivo “metódico” de 
qualquer conotação pejorativa. Valer-se de um método não é, como parece, 
um aborrecimento ou uma restrição da liberdade1. Bem ao contrário, quem 
não tem alternativas, não é livre. Mais triste, porém, é o destino de quem as 
tem e as ignora ou despreza: é livre e não sabe. 
Com efeito, nada mais corriqueiro do que a definição, por um sujeito, 
de objetivos, imediatos ou distantes, e a pretensão de que se realizem 
graças à determinada ação. A razão (como consciência)2 e a paixão (como 
libido) 3 estão presentes tanto na definição das metas, como na escolha e na 
travessia dos caminhos. Aqui se confrontam, com igual força, os limites 
impostos pelos contextos vividos e o poder da vontade irresignada. 
 
1 Este artigo, como qualquer outro, atribui arbitrariamente determinado sentido a palavras 
que mereceram, historicamente, gigantesca produção científica, filosófica e literária. Assim, 
a palavra liberdade aqui será usada simplesmente como possibilidade de escolha diante de 
uma pluralidade de orientações possíveis. Não se trata da ausência de elementos 
coercitivos, mas de uma margem de indeterminação, de um poder de escolha, apego ou 
recusa. Ver, em particular, Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la 
conscience, Paris: P.U.F., 1970, em particular o Capítulo III – edição eletrônica (texto 
integral) em difusão gratuita disponível em <www.uqac.uquebec.ca>. 
2 Aqui compreendida, em sentido largo, como a atividade mental que consiste em produzir 
novas informações a partir de conhecimentos adquiridos e de informações fornecidas por 
uma dada situação. Em sentido estrito, o raciocínio é a operação mental que permite, a 
partir de proposições aceitas (premissas), afirmar a pertinência de outras proposições 
(conclusões), Dictionnaire encyclopédique de l’éducation et de la formación, 2. ed., Paris: 
Nathan, 1998, p. 497. Um debate racional, por exemplo, é uma discussão na qual os 
interlocutores se puseram de acordo em precisar os critérios de validade do que se diz. 
3 René Descartes escreve, em 1649, o texto fundador da idéia moderna de paixão: “o 
principal efeito de todas as paixões nos homens é que elas incitam e dispõem sua alma a 
querer coisas para as quais elas preparam seu corpo; de modo que o sentimento do medo 
incita a querer fugir, o da bravura a querer combater, e assim sucessivamente” (art. 40), Les 
passions de l’âme, Paris: Mozambook, 2001, p. 26 – edição eletrônica (texto integral) em 
difusão gratuita disponível em <www.mozambook.net>. Sobre a evolução histórica do 
conceito, ver a excelente coletânea organizada e apresentada por Mériam Korichi, Les 
Passions, Série Corpus, Paris: Flammarion, 2000. No modesto âmbito deste artigo, paixão 
significa o impulso que se manifesta independentemente da consciência e da vontade do 
sujeito, que sofre dele um efeito cuja causa não domina totalmente. Será usada como 
sinônimo de libido e de desejo, diferindo porém do sentimento (estado afetivo da 
consciência que provém de uma certa reflexão ou julgamento) e da emoção (movimento 
efêmero da consciência que se faz acompanhar de manifestações corporais). Salvo quando 
a analogia é citada expressamente, o termo paixão aqui exclui totalmente sua dimensão 
romântica e amorosa (o amor é “um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. 
Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que está lá fora. Amar é contribuir para o 
mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. (...) O amor é uma rede 
lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer 
redes”, Zygmunt Bauman, Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, Rio de 
Janeiro: Zahar, 2004, p. 24-25). 
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 3
Logo, compreender o que se faz, e a serviço de quais finalidades, é 
um exercício de translucidez que permite, ademais de azeitar o 
discernimento4, repensar continuamente as metas estabelecidas, ao tê-las 
sempre presentes. 
Pensar com consciência metodológica pode ser um passeio pela 
estufa onde a razão fermenta, livre e eficiente, a serviço do querer. Seja ele 
menos ou mais conformado com a realidade, o indivíduo percebe que os 
logros não despencam das árvores: o “vitorioso”, no senso comum social, é 
precisamente o sujeito que encontrou maneiras de colher os frutos, 
reduzindo assim o peso relativo do “acaso”, do “divino”, da “sorte” ou da 
“inspiração” na explicação de seu êxito ou fracasso. 
Ao transpor este raciocínio elementar para o campo científico, 
emergem, em cada nicho do saber, os nexos de causalidade entre a 
seqüência de atos praticados e os resultados obtidos pelo sujeito que os 
promoveu. O domínio dos métodos adquire, então, distinta dimensão 
valorativa, e aparta o leigo do cientista. 
A palavra metodologia, num mundo de quereres padronizados, 
“vendidos” conjuntamente com os meios correspondentes, significa não mais 
do que “corpo de regras e diligências estabelecidas para realizar uma 
pesquisa” ou “parte de uma ciência que estuda os métodos aos quais ela 
própria recorre”. A noção de metodologia é rígida e modesta por ao menos 
dois motivos: de um lado, o indivíduo dificilmente se reconhece na ciência; 
de outro, ele se reconhece na vulgarização infame dos métodos como 
receitas para alcançar metas. 
 
4 “O inimigo da consciência não é somente o jugo do espírito pela cultura, ele também está 
no interior do espírito (recuo, memória seletiva, mentira a si mesmo). Os avanços da 
consciência não são mecanicamente ligados aos progressos do conhecimento, como 
provam os extraordinários avanços do conhecimento científico, que determinaram, é certo, 
progressos localizados de consciência, mas também falsas consciências (certeza de que o 
mundo obedece a leis simples) e consciências mutiladas (encerradas em uma disciplina 
particular). ... O pensamento aciona a inteligência e se esclarece pela reflexão 
(consciência). A consciência controla o pensamento e a inteligência, mas necessita ser 
controlada por elas. A consciência necessita ser controlada ou inspirada pela inteligência, 
que por sua vez necessita de tomadas de consciência. Por isto, as múltiplasdificuldades 
para que possa emergir uma consciência lúcida”, Edgar Morin, La méthode 5 – L’humanité 
de l’humanité, L’identité humaine, Paris: Seuil, 2001, p. 103. 
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 4
Quanto ao primeiro aspecto, o desenvolvimento da técnica, a serviço 
dos imperativos da economia, exigiu uma impressionante evolução da 
ciência, que gerou a cristalização dos saberes disciplinares. Ainda que os 
mais importantes filósofos da ciência, no século XX, tenham aportado 
densas e diversas leituras da relação entre a ciência e o método, o 
conhecimento científico segue sendo somente aquele que resulta do uso e 
pode ser testado por um método científico5. Ora, ainda que escolarizado, o 
homem comum não se sente capaz de produzir ciência, e não raro sequer 
compreende a ciência, apartado que está do jargão que expressa o método 
científico em cada disciplina6. 
No entanto, qualquer ser humano pode reconhecer-se no extremo 
oposto. Fora da ciência, e às vezes dela disfarçados, há métodos para todos 
os objetivos que se possa ter: curar-se de doenças, ser amado, enriquecer, 
emagrecer, aprender, negociar, triunfar... A julgar pelo mercado editorial de 
massas, por exemplo, a dúvida e o incerto não existem. A vida humana é 
reduzida a receitas prontas, tanto do querer como do agir, num verdadeiro 
fast food do pensamento7. 
Distraídos de sua missão educativa, e inconscientes de sua 
responsabilidade científica, os Cursos de Direito constituem um espaço 
bastante peculiar do ensino superior. No passado, foram um viveiro de 
atores sociais de relevo, provavelmente porque os conteúdos de suas 
disciplinas vasculham o indivíduo, o Estado e a sociedade. A vida humana, 
 
5 Embora cada disciplina disponha de seus métodos, o “método científico”, em geral, pode 
ser definido como “o método pelo qual cientistas pretendem construir uma representação 
precisa – ou seja, confiável, consistente e não arbitrária – do mundo à sua volta”, Ronaldo 
Mota et al., Método Científico & Fronteiras do Conhecimento, Santa Maria: CESMA, 2003, p. 
44. 
6 Os juristas não escapam ao determinismo excludente. Entre muitos exemplos clássicos, 
Fernando Carnellutti considera que “a metodologia não é outra coisa que a ciência que se 
estuda a si mesma e assim encontra o seu método. Mas se também a metodologia é 
ciência, ou melhor, se também a metodologia é ação, o problema do método apresenta-se 
também à metodologia. Assim, aquilo que se pode chamar introspecção da ciência chega 
até o infinito. [...] uma verdadeira circulação do pensamento que recorda a circulação do 
sangue. Como a metodologia ajuda à ciência, a ciência serve à metodologia ou, em outras 
palavras, esta última, ao descobrir a regra da ciência, descobre a sua própria regra”, 
Metodologia do Direito, Campinas: Bookseller, 2002, p. 17. 
7 No âmbito do ensino profissional, em particular, fazem grande sucesso os professores 
ditos “pragmáticos”, que desovam uma sucessão de “dicas” do que “realmente funciona” na 
“vida real”, quase sempre acompanhados do clássico “embora eu não concorde e saiba que 
não deveria ser assim”. 
 5
em sua dimensão individual e coletiva, deveria passar inteira por estes 
bancos, desde a elaboração dos parâmetros de conduta (sobretudo, a lei; 
logo, a política), até o sistema de controle social (em particular, a 
Administração Pública e o Poder Judiciário). 
No entanto, os Cursos de Direito foram jogados a um pragmatismo 
indigno até mesmo da formação meramente técnica. A efervescência política 
e cultural ficou no passado, e deu lugar à regurgitação, não de uma 
dogmática de cunho cientificista, mas sim do conhecimento previamente 
mastigado dos manuais didáticos, associado à cuspida narrativa de práticas 
profissionais nem sempre auspiciosas, por vezes travestidas de doutrina8. 
Nos Cursos de Direito brasileiros, o auto-conhecimento e as 
experiências são quase inexistentes: as pesquisas de campo não são 
encorajadas, embora praticamente inexistam dados confiáveis sobre o 
sistema judicial, sobre a produção legislativa, sobre as disfunções do 
Estado, etc. Quanto ao aprofundamento teórico por meio da pesquisa 
jurídica ou transdisciplinar, grassa, ainda, o paquidérmico antagonismo entre 
teóricos e práticos, como se a teoria não iluminasse a ação, e a prática não 
atualizasse a teoria. 
Portanto, se malquista ou vilipendiada, é porque a Metodologia, 
entre as disciplinas ministradas nos Cursos de Direito, desponta como 
uma daquelas cuja utilidade é menos compreendida. Tratando-se de 
deveres escolares ou pesquisa científica, pensa o aluno, qual seria o 
interesse de um jurista, que sequer enquanto freqüenta o ensino superior se 
reconhece como universitário? 
O fato de que numerosos programas concebam a disciplina de 
Metodologia como o “ensino” das normas vigentes sobre a elaboração de 
 
8 Sabendo que o operador do direito exerce um contínuo exercício de interpretação, é 
chocante, inclusive sob o prisma pragmático, que se possa imaginar o ensino reduzido à 
descrição do mero ato operativo do direito. Já seria ruim que o conhecimento que informa a 
interpretação fosse enciclopédico ou dicionarizado, e não aberto e crítico. Porém, 
“provavelmente não existem mais juristas que tenham um conhecimento enciclopédico de 
seu direito nacional, nem de suas práticas ou instituições. Mais sério ainda, a 
instrumentalização recente da formação jurídica produziu uma geração de advogados que 
sabem menos sobre a história, os fundamentos sociais, políticos ou econômicos de sua 
tradição jurídica que os comparatistas que o estudam no exterior, que se desculpam por sua 
subjetividade”, Daniel Jutras, “Énoncer l’indisible: le droit entre langues et traditions”, Revue 
internationale de droit comparé, Ano 52, Nº 4, outubro-dezembro de 2000, p. 788. 
 6
trabalhos escritos, reduzindo o conteúdo da disciplina às regras que 
emanam da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou 
congêneres institucionais, corrobora a ojeriza que soem merecer as aulas de 
Metodologia. É desolador testemunhar a ação de um profissional que 
“ensina” qual a palavra a colocar em negrito ou itálico numa referência 
bibliográfica, ou anima vigorosos debates sobre quantos centímetros deve 
ter o tamanho da margem, quando uma citação longa é inserida no corpo de 
um texto. Que desgosto o de ver burocratas do ensino, quase militarizados, 
tomarem de assalto as disciplinas de Metodologia! 
Clara está a importância de que a expressão formal da produção 
acadêmica seja padronizada, sobretudo para facilitar sua compreensão e 
difusão. Também é evidente que muitos alunos chegam semi-alfabetizados 
aos bancos das Faculdades, e que seus trabalhos escritos podem estar tão 
distantes do rigor quanto do asseio. Mas a função da disciplina de 
Metodologia é atacar problemas anteriores, dos quais a confusão e o 
desgrenho formais são apenas conseqüências. 
Despertar a consciência, ordenar o pensamento sem aprisiona-
lo, exercitar o raciocínio, encontrar e triar a informação, desenvolver o 
senso crítico, identificar metas, assimilar diferentes métodos, 
potencializar a ação, sustentar a diversidade de enfoques e de 
opiniões, produzir conhecimento, estes são os desafios 
metodológicos. 
Trata-se não tanto do ensino de determinados métodos mas, 
sobretudo, do desenvolvimento da aptidão para aplicar, e mais adiante 
adaptar ou até criar métodos que servem ao pensamento e à ação. 
Por tudo isto, este artigo pretende apresentar a disciplina de 
Metodologia no currículo dos Cursos de Direito como utensílio fundamental a 
todas as demais disciplinas, e igualmente à futura atividade profissional, 
quando da inserção do aluno no mercado de trabalho.Rompe-se o automatismo da atividade de ensino e, em particular, de 
avaliação, concebendo a Metodologia como um leque de modos de realizar 
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 7
uma pretensão prévia e precisamente definida, e se humaniza uma prática 
discente que se vem reduzindo a mecânico consumo9. 
Assim, ao não ensinar o aluno a mobilizar sua razão conforme seus 
objetivos, um Curso de Direito deixa de cumprir uma incontestável 
obrigação: ainda que se pretenda, equivocadamente, uma mera 
transmissora do conhecimento técnico, uma escola jurídica necessita 
despertar no aluno a consciência das próprias metas e o domínio da vontade 
(I) para, a seguir, torná-lo capaz de escolher ou forjar seus próprios 
caminhos (II). 
 
 
I – DO DIREITO AO QUERER SER 
Passando a tropa em revista, Carlos Magno depara-se com uma 
reluzente armadura branca. Uma voz a ele se apresenta como Agilulfo, o 
cavaleiro inexistente. O imperador ordena ao cavaleiro que erga a viseira, 
constata que o elmo está vazio e, estupefato, pergunta: 
“ – E como é que está servindo, se não existe? 
 – Com força de vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa! 
 – Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. 
Bom, para alguém que não existe, está em excelente forma ! ” 
De todo modo, Agilulfo era o último da fila e o imperador, “já velho, 
tendia a eliminar da mente as questões complicadas”10. 
A adorável metáfora de Calvino, extraída de um romance que narra as 
agruras de batalhar sem existir, pode servir como introdução ao âmbito do 
 
9 O automatismo é justamente o elemento que permite diferenciar o homem: “radical [...] é a 
diferença entre a consciência do animal, mesmo o mais inteligente, e a consciência 
humana. Pois a consciência corresponde exatamente ao poder de escolha do qual dispõe o 
ser vivo; ela é co-extensiva à margem de ação possível que cerca a ação real: consciência 
é sinônimo de invenção e de liberdade. Ora, no animal, a invenção nunca passa de uma 
variação sobre o tema da rotina. Limitado pelos hábitos da espécie, ele chegará sem dúvida 
a alargá-los por sua iniciativa individual; mas ele não escapa ao automatismo que por um 
instante, somente o tempo de criar um novo automatismo: as portas da sua prisão se 
fecham tão logo abertas; tentando romper suas correntes, ele consegue apenas estendê-
las. No homem, a consciência rebenta as correntes. No homem, e apenas no homem, ela 
se liberta”, Henri Bergson, L’évolution créatrice, Paris: P.U.F., 1959, p. 178 – edição 
eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.uqac.uquebec.ca>. 
10 Ítalo Calvino, O cavaleiro inexistente, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 10. 
 8
querer na aprendizagem, processo que a ciência já provou ser 
eminentemente volitivo, portanto, vinculado ao anseio, à disposição e ao 
apetite. 
Ora, disciplinas sem vontade são armaduras vazias, assim como a 
vontade desarmada está fadada à inoperância. Mas a sociedade 
escolarizada, a exemplo do velho imperador, segue eliminando da mente as 
questões complicadas e sofrendo as conseqüências de seu autismo. 
Que o aluno queira e saiba o que quer, resulta de uma nova vontade, 
senão negação, ao menos evolução da anterior (1). Este processo culmina 
necessariamente com a revalorização do saber como utensílio social, 
produzida graças à vitalidade do processo educativo (2). 
 
1. Construir a vontade 
Não há clichê mais vergonhoso, no ambiente escolar, do que falar de 
paixão na aprendizagem. A tal ponto se difundiu o discurso fácil do prazer de 
aprender, que numerosas instituições se tornaram escravas do pretenso 
desejo do aluno, reféns do experimentalismo e de atividades lúdicas. 
Neste caso, baseada em meritórias teorias pedagógicas, é a escola 
que se enquadra ao aluno, e não o aluno que se enquadra à escola. A fôrma 
se molda, então, à massa. Os abetumados que saem deste forno põem em 
questão, de modo recorrente, a efetiva funcionalidade do sistema escolar. 
Entre formação e regurgitação, a pedagogia se rebaixa ao senso 
comum para atrair e cativar o aluno, e adere, então, a uma cultura cujo 
patrão é o gozo11. Ora, se não há mais dúvidas de que aprender depende de 
uma decisão, que depende, por sua vez, da vontade, a paixão não é nada 
mais do que o móvel que pode levar a esta decisão e à sua constância, 
assim como ao extremo oposto. 
 
11 Embora o gozo seja normalmente associado ao prazer sexual, aquele se encontra além 
deste. A palavra pode ser usada para designar a repetição de um comportamento 
desprovida da consciência de porquê fazê-lo, Charles Melman, O Homem sem Gravidade – 
Gozar a qualquer preço, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003, p. 204. Há, ainda, a 
absoluta necessidade de exposição, para além do gozo: “não é mais possível hoje abrir uma 
revista, admirar personagens ou heróis de nossa sociedade sem que eles estejam 
marcados pelo estado específico de uma exibição do gozo”, ibid., p. 16. 
 9
Aqui há ao menos três problemas práticos e um grave equívoco de 
fundo. No cotidiano, um efeito de saturação opera sobre o estudante, 
causado pela descartabilidade sistêmica das rotinas que consome12. A 
superficialidade de educadores apaixonados e apaixonantes (libertários pela 
metade) desgasta o princípio do uso pedagógico do desejo, ao associá-lo ao 
romantismo e à ineficácia. Há até mesmo uma ideologia do espetáculo para 
enfrentar o dilúvio de informações, o frenesi de comunicação e a aceleração 
do ritmo de vida contemporâneo, em detrimento da função precípua da 
educação: a construção do pensamento e do sentimento13. 
Particularmente em relação ao professor, há inquietantes percentuais 
de profissionais acometidos pelo burnout (consumir-se em chamas)14. Trata-
se de um risco ocupacional a que estão expostas especialmente as pessoas 
que trabalham em profissões que exigem contatos interpessoais muito 
intensos. O burnout erige-se sobre expectativas elevadas e não realizadas, 
sobretudo quando o professor teve um engajamento muito forte no início. A 
falta de reconhecimento provoca a erosão gradual da energia e da 
disposição, como conseqüência de um stress crônico e prolongado. 
Do ponto de vista dos alunos, opera o equívoco de valorar um desejo 
apenas porque é desejo, reproduzindo uma visão mítica do sentimento (ou 
mesmo do prazer), já destroçada, senão pela psicanálise, pela 
 
12 Tal efeito pode ser associado à toxicomania: “o sujeito se encontra num estado de 
dependência da ativação, buscada por si só. A cessação desta ativação inapropriada 
provoca uma falta. Os jovens se comportam como toxicômanos da agitação, da violência e 
da perda do vínculo social. Ao mesmo tempo, produz-se, como nos mecanismos de 
dependência toxicômana, uma hipersensibilidade dos receptores de dopamina. Quando um 
neurotransmissor é secretado, ele precisa encontrar receptores para agir sobre as células-
alvo. Quando uma fonte de neurotransmissor se exaure, os receptores ampliam sua 
resposta, multiplicam-se e se sensibilizam para tentar compensar o déficit. O mínimo 
estímulo exógeno provoca, então, seja qual for seu interesse, uma reação inapropriada, 
uma agitação, uma turbulência ligada à hiper-sensibilização do sistema”, Jean-Didier 
Vincent, “Les neurones de l’ennui”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 16-17. 
13 “Os pedagogos devem desconfiar da agitação ou da sedução, que não despertam o 
aluno. O estudo é o teste da paciência, que corresponde à transferência da brutalidade 
instintiva em direção do espírito, afastando a alienação do ódio”, Jacques Birouste, “L’ennui 
plutôt que la haine”, in L’ennuià l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 53. A seguir, o autor 
pondera que o sucesso, junto a alunos a quem faltam modelos de identificação com os 
professores e vias confiáveis para ter acesso a um futuro promissor, só pode ser obtido 
quando se favorece “a volta da confiança nas aptidões intelectuais e sentimentais”, ibid., p. 
56. 
14 Marilda Lipp et al., O stress do professor, Campinas: Papirus, 2002, p. 65. 
 10
neurobiologia15. As ações cotidianas se inspiram muito menos de 
sentimentos próprios, que são infinitamente móveis, do que das imagens 
invariáveis às quais estes sentimentos aderem16. Não somente a 
assimilação de padrões sentimentais pela cultura, como o poder do indivíduo 
sobre si mesmo são aqui negligenciados17. 
Logo, a exaltação ao desejo minimiza não somente o fato de que ele 
pode ser escuso, brutal ou frívolo, mas também negligencia a escravidão 
moderna: quando não é o sujeito que guia seus desejos, e sim os desejos 
que guiam o sujeito, exclui-se a possibilidade de projeto, em particular de um 
urgente projeto de mudança social com o qual toda atividade educativa, se 
civilizatória, deve estaria engajada. Com efeito, o desejar adulto deve ser um 
trabalho18. 
É bem verdade que, ao educar, o espontaneísmo pode ser menos 
danoso que a arbitrariedade19, mas que futuro se pode esperar de 
 
15 “Nossa percepção atual de núcleos e de circuitos nos quais as informações neuronais são 
tratadas, abre numerosas hipóteses de trabalho que permitem considerar a existência de 
mecanismos conscientes e voluntários que utilizariam a supressão, a racionalização ou a 
reavaliação de dados para modificar as informações correspondentes”, Lucy Vincent, Petits 
arrangements avec l’amour, Paris: Odile Jacob, 2005, p. 31. Nesta obra de alta 
vulgarização, a autora descreve detalhadamente o processo cerebral de transformação do 
enamoramento em vínculo afetivo estável. A narração de experiências acompanhadas pelo 
estudo de imagens cerebrais indica claramente que “a emoção pode ser modulada por uma 
decisão consciente”, em especial por meio de um esforço de concentração que cria ou 
suprime circuitos entre os neurônios, e aumenta ou reduz a presença de substâncias 
vinculadas ao prazer, como, por exemplo, a ocitocina, ibid., p. 34-36. 
16 Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, 
p. 77. 
17 Ora, até o orgasmo é o efeito de uma decisão, seja ela consciente ou não, Catherine 
Millet, La vie sexuelle de Catherine M., série Points, Paris: Seuil, 2002, p. 206. Com efeito, 
Millet evoca a dimensão consciente do prazer e seus limites: “durante grande parte de 
minha vida, tive relações sexuais com total indeterminação do prazer. Em primeiro lugar, 
devo admitir que, para mim, que tive muitos parceiros, nenhuma solução é mais adequada 
que a que procuro solitariamente. Neste exercício, controlo a ascensão do meu prazer 
quase em milésimos de segundos, o que não é possível quando é preciso levar em conta o 
ritmo do outro e que dependo também dos seus gestos, não apenas dos meus. Esboço 
minha história”, idem, p. 206. A imaginação permite modificar os cenários e os atores, 
corrigindo os rumos da excitação, pelo que “o prazer solitário é possível de narrar, o prazer 
obtido na união é mais difícil. (...) O contrário de uma anestesia local que suprime a 
sensibilidade mas permite manter o espírito acordado; meu corpo não é nada mais do que a 
borda de um dilaceramento vivo, enquanto a consciência fica num estado de 
entorpecimento”, p. 210-1. 
18 Recorrendo à analogia com o amor, Alice Ferney pensa que “amar é um trabalho! Quero 
dizer: uma ação, uma vontade, uma prestação.[...] Amar também é uma decisão”, in 
Dominique Simonnet et al., Historia del Amor, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 
2004, p. 158. 
19 Sem esquecer que “a espontaneidade não está relacionada ao objeto, mas à imagem do 
objeto, na qual a consciência pode muito bem ter uma participação criadora. Receptividade 
 11
profissionais formados a partir de seus desejos adolescentes, por sua vez 
forjados, em geral, numa cultura da barbárie?20
Chega-se ao problema de fundo, que é, desafortunadamente, 
peremptório: estruturar a aprendizagem sobre as regras do jogo de um 
desejo pré-existente significa que a escola reproduzirá a cultura que inspira 
este jogo, quando, na verdade, a escola deveria questiona-la e oferecer 
algo, senão em troca, a mais. O que está em questão é “a relação entre a 
nossa cultura e o trabalho de pensamento. É um problema de civilização e, a 
seguir, um problema político no melhor sentido do termo”21. 
Não é menor, por sua vez, o problema da auto-referência: o sujeito 
tende a aderir apenas ao que ele já conhece, ou o que já faz parte do seu 
ambiente22. Ao buscar o prazer do aluno, numa associação aventureira entre 
educação e entretenimento, o professor pode ser forçado a legitimar, no 
espaço educativo, idéias e práticas importadas de uma realidade cuja 
reprodução não corresponde aos valores humanistas aos quais deve servir 
um educador. 
 
com respeito ao objeto e espontaneidade com respeito à imagem do objeto no sujeito 
podem perfeitamente coexistir”, Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, São Paulo: 
Martins Fontes, 2000, p. 21. 
20 De regra, neste ponto, objeta-se a imutabilidade do caráter do indivíduo. Para Bergson, 
porém, nosso caráter não é algo dado, senão a nossa própria evolução, em cada uma de 
suas etapas, sobretudo em seus momentos mais intensos, que são os momentos de crise. 
O autor considera vã a oposição entre o eu que sente e pensa, e o eu que age, e pueril a 
conclusão de que um pode “pesar” mais do que o outro. O caráter é, portanto, livre, e por 
isto há, entre nós mesmos e nossos atos realmente livres, “esta indefinível semelhança que 
encontramos às vezes entre a obra e o artista”, Henri Bergson, Essai sur les données 
immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, p. 129-130. 
21 Alain Vaillant, “L’écrivain ou le sublime potache”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 
2003, p. 45. No mesmo sentido, o neurologista Antonio Damasio pondera: “aquilo que 
chamamos de relações sociais ou cultura vem apenas de nossos cérebros. São os cérebros 
que produzem e veiculam comportamentos, romances, poemas e leis. De uma certa 
maneira, pode-se ver as regras sociais e éticas, as instituições como prolongamentos da 
busca de equilíbrio que a evolução conduziu”, in “Oui, il y a une biologie des sentiments”, 
L’Express, Paris, 7 de junho de 2004, p. 4. 
22 Experiências com o uso de multimídia nas atividades de ensino, por exemplo, revelam 
que o caráter mais ou menos explícito de títulos ou conceitos influi na escolha de uma 
ferramenta pelos alunos: “nossos resultados reforçam a hipótese da dimensão autônoma e 
cultural da atividade de utilizador de um sistema multimídia, no sentido de que o ator 
estabelece uma relação assimétrica com o ambiente, agindo apenas com as características 
pertinentes para sua organização interna, fazendo referência a sua situação cultural 
individual e coletiva”, Serge Leblanc et al., “Autoréférence et exploitation opportuniste d’un 
environnement hypermedia ‘ouvert’: étude de l’activité d’utilisateurs”, Savoirs – Revue 
internationale de recherches en éducation et formation des adultes, 2004-6, Paris: 
L’Harmattan, p. 96. 
 12
Por isto, ter em conta as expectativas dos alunos não significa pautar-
se por elas, tampouco tê-las como adversárias. É preciso ensiná-los a 
desejar o que antes não desejavam: não somente o prazer imediato, mas 
também o esforço; além do far niente, o trabalho; o espetáculo, mas 
igualmente o exercício; nemsempre uma felicidade feita, às vezes a por 
fazer – não para criar um desejo, mas para guiar uma vontade; não para 
seduzir, mas para instruir23. 
Ensinar, portanto, não impõe necessariamente negar, mas despertar 
e ordenar (no sentido de pôr em ordem) desejos contingentes24 em benefício 
de um querer ser, não raro pendente entre os alunos, ainda que 
pretensamente adultos. 
Melhor, então, trabalhar paixões desmistificadas, tomadas em sua 
condição de vínculo social, tendo em conta a existência de diferentes 
desejos: libido dominandi (desejo de dominação), libido sciendi (desejo de 
saber) ou libido sentiendi (desejo sexual). Ainda que a fronteira entre os três 
tipos de desejo seja tênue, o que interessa agora é manusear o desejo de 
saber, com o qual nasce todo o ser humano, e é embotado ao longo das 
diferentes etapas de sua formação. 
Para tanto, é preciso superar a insistência, tanto a leiga como a 
acadêmica, em perceber a paixão como algo alheio, senão oposto à razão25. 
A paixão depende necessariamente de alguma forma de razão para 
elaborar-se como tal. Isto não significa que o sujeito tenha consciência do 
seu próprio desejo: dominar a paixão (não no sentido de reprimi-la, e sim de 
 
23 André Comte-Sponville, “Philosophie de l’ennui”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 
2003, p. 108-109. 
24 Aqui se pode recorrer novamente à analogia entre o amor e o desejo: “o amor não é 
democrático, não responde à justiça nem ao mérito. Segue sendo da ordem da preferência, 
vale dizer, da escolha indevida de um ser em detrimento de outro”, Pascal Bruckner, in 
Dominique Simonnet et al., Historia del Amor , Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 
2004, p. 148. 
25 Já em Rousseau, “o entendimento deve muito às paixões, que lhe devem muito também: 
é por sua atividade que nossa razão se aperfeiçoa; nós buscamos conhecer apenas porque 
nós desejamos gozar, e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejo 
nem medo se daria ao trabalho de pensar”, Discours sur l’origine et les fondements de 
l’inégalité parmi les hommes, Paris: Gallimard, 1995, p. 87. Para uma visão contemporânea 
do problema, ver o instigante trabalho de Antonio Damasio sobre a integração dos dois 
“mundos” que são a paixão e a razão, L’erreur de Descartes, Poche nº 40, Paris: Odile 
Jacob, 2001. 
 13
ter o domínio de, ser apto a conduzi-la) depende da racionalização, ou seja, 
da maneira como a razão é mobilizada26. 
Neste momento, cabe tratar do pensamento como tomada de 
consciência e possibilidade de julgamento da própria vontade que tende à 
ação. Ao explicar as razões que a levaram a redigir sua última e inacabada 
obra, na qual se debruça sobre as atividades do espírito, Hannah Arendt 
conta que a idéia surgiu ao assistir o processo contra Eichmann, em 
Jerusalém. Acusado de haver praticado atos monstruosos, ele não 
demonstrava fortes convicções ideológicas, nem motivações malignas, mas 
sim uma evidente falta de pensamento (o que não significa estupidez): 
“A única diferença entre Eichmann e o resto da humanidade era 
que ele a ignorava totalmente. Esta ausência de pensamento – tão 
corrente na vida de todo dia, na qual dificilmente se tem tempo e 
ainda menos vontade, de parar para pensar – que despertou meu 
interesse. O mal (tanto por omissão como por ação) é possível 
quando faltam não somente os ‘motivos repreensíveis’ (conforme 
a terminologia legal) mas também os motivos, simplesmente, o 
mínimo movimento de interesse ou de vontade? ... 
... a atividade de pensar, por si só, o hábito de examinar tudo o 
que vem a produzir-se ou chama a atenção, sem prejulgar seu 
conteúdo específico ou suas conseqüências, esta atividade faz, 
então, parte das condições que levam o homem a evitar o mal e 
mesmo o condicionam negativamente em relação a ele?”27. 
 
Assim, desenvolver no aluno o hábito de pensar criticamente sobre o 
que faz ou deixa de fazer é, numa perspectiva coletiva, também um 
imperativo ético. Entre as fontes mais daninhas da incompreensão, estão o 
erro de comunicação (imprecisão da linguagem ou interpretação equívoca), 
a indiferença (cálculo mental que impede o reconhecimento do dano 
causado ou da desgraça alheia), a crença (do simples falseamento do 
intelecto por teorias religiosas ao fundamentalismo), o egocentrismo (em 
 
26 Philippe Choulet, La passion, Paris: Ellipses, 2004, p. 19. O autor preconiza: “nada de 
desprezo pelo sentido forte de paixão, apesar das reservas. Mais vale ver esta potência 
com a lucidez do geômetra, para nela reconhecer a periculosidade (ameaça da servidão) ou 
as promessas (a criação de um mundo). E para fazer uma apologia racional das paixões, 
uma ‘defesa e ilustração’ submetida a certas condições, para tratar das ‘grandezas e 
misérias recorrentes’, é preciso, antes de mais nada, dizer que elas nada têm de diabólico”, 
ibid., p. 11. 
27 Hannah Arendt, La vie de l’esprit, Paris: P.U.F., 2005, p. 21-22. 
 14
particular, o auto-engano), a cegueira (o não querer ver cotidiano) e o medo 
de compreender28. 
Deixar-se conduzir pela paixão, em lugar de conduzi-la, constitui 
historicamente uma das maiores fontes de incompreensão e, não raro, da 
barbárie29. Conduzir requer antes compreender. Para Edgar Morin, o 
trabalho de compreensão coloca o sujeito que tenta compreender em total 
assimetria com aquele que não pode ou não quer compreender, 
notadamente com o fanático que não compreende nada – e que 
evidentemente não consegue compreender a razão pela qual os demais não 
o compreendem. 
É como se a compreensão comportasse um vício terrível, que 
conduzisse à fraqueza e à abdicação. Mas “compreender não é justificar. A 
compreensão não desculpa nem acusa. A compreensão favorece o 
julgamento intelectual, mas não impede a condenação moral”; assim, 
compreender “conduz, não à impossibilidade de julgar, mas à necessidade 
de tornar complexo nosso julgamento”30. 
Importa que, uma vez acionada a consciência, diante do desejo 
genuíno ou pretensamente espontâneo, de uma parte, e da razão fundada 
nas idéias (ou no senso comum), de outra parte, a vontade (o querer ser 
algo) possa se rebelar e guiar a ação31. Agir sobre a paixão não significa, 
 
28 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 130-134. 
29 “Salvar a paixão das paixões, é apostar em sua capacidade de chegar à grandeza e ao 
sublime. Nietzsche já dizia que somente a grande virtude poderia salvar a virtude das 
pequenas virtudes, e a grande política salvar a política das políticas nacionalistas e 
passionais. Escutemos, justamente, na voz dos filósofos e escritores, este chamado à 
disciplina dos espíritos, que nos dá as chaves do aumento do campo de consciência, e da 
verdadeira compreensão da liberdade como potência e realidade”, Philippe Choulet, La 
passion, Paris: Ellipses, 2004, p. 11. 
30 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 135-136. 
31 A identificação da vontade como um terceiro em relação à razão e à paixão é de Hannah 
Arendt, La vie de l’esprit, Paris: P.U.F., 2005, p. 273. O texto original de Bergson, no qual 
ela se baseia mas não cita diretamente, é instigante: “nos auto-interrogando 
escrupulosamente, nós veremos que nos ocorre de pesar motivos, deliberar, quando, na 
verdade, nossa decisão já foi tomada. Uma voz interior, quase imperceptível, murmura: ‘por 
que esta deliberação?’ tu sabes qual será o resultado, e tu sabes bem o que tu vais fazer’. 
Não importa! Parece que nos tentamos preservar o princípio do mecanicismo e a obedecer 
as leis da associação de idéias. A intervenção brusca da vontade é como um golpe de 
Estado do qual nossa inteligência teriao pressentimento, e que ela legitima 
antecipadamente por uma deliberação regular. É verdade, porém, que se pode perguntar se 
a vontade, ainda que ela queira por querer, não obedece a alguma razão decisiva, e se 
 15
porém, sufocá-la, mas sim dominá-la antes de ser sua vítima, o que supõe 
uma educação da vontade. 
Por conseguinte, o primeiro ensinamento a transmitir ao aluno é que o 
desejo ou a falta de desejo de aprender está diretamente ligado aos 
desafios de ser mais ou de ser menos, porque a atividade que leva ao 
conhecimento não é desejável em si: ela se faz desejar somente por aqueles 
que nela vêem uma maneira de existir, presente ou futura32. Neste sentido, é 
preciso transformar em quadrado o tradicional triângulo aluno, professor e 
instituição, adicionando a realidade como elemento incontornável da 
aprendizagem. 
 
2. Dominar o tédio 
Quando se fala em incorporar a realidade às técnicas de ensino, não 
se trata, de modo algum, de manusear elementos reais como 
entretenimento. É preciso considerar que a chamada realidade não é jamais 
uma realidade “em si”, mas o resultado de uma visão organizada que impõe 
necessariamente uma interpretação33. 
No âmbito deste artigo, a palavra realidade não tem um valor positivo 
em si. Bem ao contrário, empregada em seu sentido vulgar de movimento do 
mundo, constitui um universo a ser enfrentado e mudado. O importante, 
aqui, é a correspondência entre o discurso e a realidade, evitando o desuso 
do conhecimento, também responsável pelo desgaste do saber como valor, 
em benefício do contínuo crescimento do pragmatismo vazio que congela as 
estruturas do pensamento e da ação. 
Portanto, toda instituição produz uma secreção de tédio ao mecanizar 
seus procedimentos e ao se tornar indiferente à diversidade do real; o 
professor, por sua vez, antes de se confrontar com seus alunos, deve se 
 
querer por querer seria querer livremente”, Henri Bergson, Essai sur les données 
immédiates de la conscience, Paris: P.U.F., 1970, p. 71-72. 
32 François Flahault, “Sentiment d’exister et rapport au savoir”, in L’ennui à l’école, Paris: 
Albin Michel, 2003, p. 59-60. 
33 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique d’épistemologie pour 
l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 45. 
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confrontar consigo mesmo, e pensar que convicção, que paixão ele vai 
compartilhar34. 
É por isto que toda a aula, inclusive a de metodologia, deve 
necessariamente incluir alguns minutos de esclarecimento sobre os objetivos 
de formação que por meio dela devem ser alcançados, e sua aplicabilidade 
futura. Trata-se de vincular o estudante a um projeto de existência e levá-
lo, pouco a pouco, a fixar objetivos claros a longo prazo, o que naturalmente 
fará com que sua vida universitária se transforme em caminho, desejado e 
escolhido. 
Neste particular, o tempo desempenha um papel importante. Estudar 
e aprender implica aceitar que surgirão dificuldades e fazer esforços para 
superá-las. Raramente, o prazer é imediato: quase sempre ele é adiado, e a 
aula não é mais do que seu instrumento35. Aqui aparece, como desafio, a 
imensa heterogeneidade da composição das salas de aula, que impõe ao 
professor uma geometria variável de ritmo. 
A cadência é um desafio maior, porque o ambiente de aprendizagem 
está em total defasagem com a cultura de excitação que caracteriza os 
jovens, que constituem a ampla maioria dos alunos dos Cursos de Direito. 
Ao menos de início, os professores estão longe de ser seus modelos. O 
tédio pode ser um sinal de luta entre a obrigação de estar presente e a 
vontade de fazer outras coisas, mas é igualmente o sinal de um conflito de 
valores36. Amorfos ou ausentes, hiperativos ou quase intratáveis, os 
adolescentes raramente buscam um modelo profissional. Normalmente, 
freqüentam a Faculdade para cumprir seu papel familiar, para incrementar 
ou buscar um sustento futuro. 
A mecânica do tédio se instala exatamente graças ao tempo quase 
espacial, imenso e que parece não passar nunca, que separa o presente do 
futuro. Neste ponto, podem ser úteis os estudos do psicanalista François 
 
34 Alain Vaillant, “L’écrivain ou le sublime potache”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 
2003, p. 44-45. 
35 Marie-Noëlle Audigier, “Le défi des manuels: rendre le programme attrayant”, in L’ennui à 
l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 48. 
36 Véronique Nahoum-Grappe, “L’ennui à l’adolescence”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin 
Michel, 2003, p. 30. 
 17
Roustang, tratados a seguir37. Quando o indivíduo se entedia, o tempo 
parece longo. Sem conseguir prever claramente o fim da espera (porque o 
tempo do relógio não é o seu próprio tempo), nem de fazer outra coisa 
senão esperar este fim, o sujeito se deixa ganhar pela impaciência, que logo 
se transforma em aversão (origem latina da palavra). E anseia pelo 
momento de retomar uma atividade que o absorva, para que o tempo que o 
persegue volte para dentro do relógio. Inversamente ao tempo, porém, o 
espaço se retrai: o indivíduo não pode mover-se de onde está, restando 
apenas “voar” para outros lugares e fazer de conta que está presente. 
A reação ordinária do ser humano, agora inimigo do tempo e do 
espaço, é fugir do tédio, em lugar de enfrentá-lo e empurrar suas paredes. 
Para não deixar que o vazio se instale, os indivíduos se esvaem em 
atividades. A cultura não oferece outros caminhos senão o trabalho e o 
lazer. O que importa é não deixar que o tempo se alongue, e deixe à mostra 
a condição humana, que é pura incerteza. 
Por conseguinte, nada é mais humano do que o tédio38, e não se trata 
de eliminá-lo, mas sim de dominá-lo. É preciso, então, que o tempo e o 
espaço deixem de ser inimigos do indivíduo. Roustang propõe quatro 
exercícios para tanto: a presença, a espera, a paciência e a potência. 
A presença parece natural, mas na verdade se aprende e se 
desenvolve, mescla concentração em si e esquecimento do alheio. É uma 
resistência à distração, à fuga e à angústia; uma luta para concentrar a 
atenção no próprio corpo e no ambiente onde se está. A espera requer a 
renúncia às questões quando e como o exercício vai terminar. A paciência é 
a sensibilidade à alteração das nuanças do espaço e do tempo, uma tensão 
 
37 “Reconduire l’ennui à sa source”, in L’ennui à l’école, Paris: Albin Michel, 2003, p. 21-28. 
Ver igualmente La fin de la plainte, Paris: Odile Jacob, 2000. 
38 Divergindo da famosa citação de Balzac, de que o tédio nasceu na universidade, que já 
soube e ainda saberá fazê-la florescer e frutificar, Honoré de Balzac, La Comédie humanie, I 
– I – 4, Un début dans la vie, Paris: Furne, 1845, p. 477 – edição eletrônica (texto integral) 
disponível em <www.paris.fr/musees/balzac/furne/presentation.htm>. Entre abundantes 
exemplos de mestres da literatura implacáveis com os estudos, há Flaubert: “eis-me de 
saco cheio na aula, às 6 horas da manhã, sem ter o que fazer e tendo diante de mim a 
agradável perspectiva de mais quatro horas assim. (...) eu tenho o coração mais vazio do 
que uma bota. Eu não posso nem ler, nem escrever, nem pensar”, Carta à Ernest Chevalier, 
Rouen, 23 de julho de 1839, Gustave Flaubert, Correspondance, Paris: Gallimard, 2004, p. 
40. 
 18
em direção às bordas da impaciência. A consciência do tédio pode levar, 
assim, ao coração e ao lugar da possibilidade, e transformar-se em potência: 
o desperdício de energia próprio ao tédio é apto a converter-se em intensa 
concentração. Emtodos estes exercícios, a consciência do método – da 
aula, do estudo, de pesquisa – é um aliado de peso. 
Por outro lado, é bastante evidente que aluno adia a dor da evolução 
como se o período da Faculdade fosse infinito39. É preciso resgatar, diante 
do aluno, o vínculo entre a formação, como realidade presente, e o exercício 
profissional, como realidade futura. 
Neste sentido, causa estupor o autismo que leva milhares de 
estudantes a pensar que a Faculdade é um fim em si mesmo. É como se a 
presença física nas aulas, o recorta e cola de trabalhos graças à Internet, as 
provas preparadas na véspera ou simplesmente coladas, não 
sentenciassem de imediato seu pertencimento ao batalhão de não-
profissionais, ou seja, daqueles para quem o diploma em Direito nada 
acrescentou, e seguem sobrevivendo graças à atividade que 
desempenhavam anteriormente. 
Há, porém, um contingente ainda mais curioso: o daqueles que, 
depois de titulares de um diploma, resolvem formar-se. Aqui se encontram 
os autodidatas e um vasto público de cursos preparatórios para concurso, ou 
de cursos de atualização ou especialização. Via de regra, a consciência da 
própria inaptidão profissional é despertada por uma experiência 
desafortunada no mercado, ou pela simples constatação da impossibilidade 
de inserir-se no mercado. 
Este querer tardio é um sintoma importante da disfunção do sistema 
educativo, de sua incapacidade de alinhar o querer imediato do aluno ao 
 
39 Não se trata apenas de ingenuidade ou inexperiência, mas também de insegurança ou 
conservadorismo, porque a ilusão da falta de urgência justifica a acomodação. É como se 
nunca fosse tarde demais para agir. Ora, “todo totalitarismo se baseia numa noção de 
tempo infinito, de um tempo que se impõe como uma extrema duração. O tempo finito é a 
consciência de um início e de um fim, mas com a convicção de que é possível um constante 
renascimento, uma cadeia de inícios e começos. Esta experiência do tempo finito é uma 
experiência humana do tempo baseada na liberdade. Entendo aqui a liberdade como o 
poder de criação, como possibilidade de criar outras realidades além das existentes, como 
esperança de ruptura com as realidades anteriores”, Fernando Bárcena, “El aprendizaje de 
lo nuevo”, Revista Española de Pedagogía, Año LIX, No. 223, septiembre-diciembre 2002. 
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futuro querido ou que se está por querer. É também conseqüência da 
desvalorização do professor, do estudo e do pensamento como elementos 
necessários ao projeto individual do aluno. Nada mais nocivo do que a visão 
de que o estudo não importa, mas a realidade, sim, é que ensina. 
Em primeiro lugar, diante da crescente complexidade técnica do 
Direito e da própria vida, a realidade não é assimilável sem prévia formação. 
A sabedoria popular pode ser relevante no plano dos valores, mas o 
exercício profissional baseado no empirismo e na experiência, na melhor das 
hipóteses, é incapaz de superar a realidade, quando, na verdade, grande 
parte do trabalho do lidador do Direito consiste justamente em encontrar 
maneiras de reinventar situações reais. 
Em segundo lugar, mesmo que excepcionalmente o aluno inapto se 
tenha ardilosamente adaptado à realidade, o caso é ainda mais grave: há 
não somente o risco coletivo, de que, por inépcia, cause dano à sociedade, 
mas o risco individual, de que conclua, ao final da vida, que serviu a um 
querer que não era o dele. 
 A metodologia é, assim, um utensílio valioso para exercitar 
constantemente a definição consciente de objetivos, capazes de guiar o 
desejo do aluno e de reiterar o escopo de cada atividade acadêmica, tendo 
como pano de fundo a redefinição de seus modelos e valores, essencial à 
formação. Uma vez estabelecidos os objetivos, é preciso enfrentar o 
problema da diversidade de meios para alcançá-los. 
 
 
II – DIFERENTES MÉTODOS PARA DIFERENTES DIREITOS 
José Mujica, hoje Ministro de Estado, um dos nove reféns da ditadura 
militar uruguaia, passou treze anos preso num poço, de onde era retirado 
periodicamente para ser torturado. Quando foi libertado, em março de 1985, 
assim expressou a divergências existentes no seio da força política à qual 
pertencia. 
“Há certas questões de método que salpicam a pureza da nossa 
causa. Devemos ter claro que as diferenças entre a família 
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tupamara podem ser muito grandes, mas não o suficiente para 
que não o tenhamos claro e definido. [...] as discrepâncias são 
boas, ajudam a definir caminhos”40. 
Homem do povo, que nunca freqüentou bancos universitários, Mujica 
oferece um exemplo emblemático de associação entre método, diferença e 
caminho. De suas palavras desprovidas de rigor formal, se pode reter 
algumas idéias de rigor moral: o conteúdo valorativo que existe em cada 
método (que pode eventualmente comprometer a pureza de uma causa); a 
importância, não da medida da discordância, mas da consciência de que ela 
existe; e a valoração positiva da divergência, numa perspectiva evolutiva. 
Ditas idéias deveriam ser moeda corrente na universidade, mas quase 
nunca o são. A divergência rapidamente se transforma em confronto, senão 
em guerra de facções. As teorias se esgotam justamente porque se fecham, 
refutam tudo que as contraria e com isto não se atualizam. No cotidiano do 
ensino jurídico, porém, as divergências são pasteurizadas (entre correntes 
doutrinárias ou jurisprudenciais, por exemplo) e os caminhos se oferecem 
prontos. 
A disciplina de metodologia deve ser percebida, antes de tudo, como 
o modo de aprender direito – no sentido de apreender, refletir, tornar-se apto 
a aplicar o apreendido num contexto real e, para alguns, transcender o 
apreendido e inovar. Uma das razões que levam o aluno à compilação e à 
memorização é justamente o medo de encontrar algo diferente ao escolher 
um novo caminho (1). Quando ele está decidido, porém, a aprender, há um 
conjunto de medidas que permitem pensar a ação e escolher o(s) método(s) 
capazes de tornar mais útil a atividade empreendida (2). 
 
1. Vencer o medo 
A liberdade é muito mais difícil de gerir do que a submissão. Quando 
surge um desafio, vem com ele a tentação de buscar refúgio em algum 
objeto que supra, o mais rápido possível, um desejo que este mesmo objeto, 
e não o sujeito, suscitou. No mundo escolar, aqui encontramos os temas 
 
40 Apud María Ester Giglio, De tupamaro a ministro (El loco encanto de la sensatez), Buenos 
Aires: Capital Intelectual, 2005, p. 9-10. 
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batidos, a cultura dos manuais didáticos (num universo que se resume ao 
patético “para Fulano, para Beltrano”), os enfoques clássicos e as resenhas 
intermináveis. 
Há também os arremedos de ciência: os lamentáveis projetos 
artificiais, que aplicam modelos de manuais de metodologia, quase sempre 
elaborados por especialistas em ciências exatas ou ciências sociais outras, e 
depois de mastigados, resultam em grotescos esboços de hipótese, 
problema, marco teórico e, horror supremo, metodologia. 
Uma das grandezas da escola é justamente a de se opor 
vigorosamente à tendência de mimetismo descomprometido, mostrando que 
o fazer é acessível, que as dificuldades podem ser superadas e que os 
problemas se resolvem. É preciso ter claro que “o saber é modesto, mas 
real, ele não determina a ação, mas ele pode guiá-la e a autonomia não se 
confunde com o autismo”41. 
Em outras palavras, se uma atividade é proposta ao aluno (seja de 
ensino, pesquisa ou extensão), que a ela dedicará seu tempo, por que não 
enfrentá-larealmente, e dela não tirar um efetivo proveito? 
A primeira coragem necessária é a de abordar cada tema ou situação 
para entendê-lo, renunciando a simplesmente repetir enunciados pré-
existentes. Neste sentido, há três aptidões básicas a desenvolver: o espírito 
de análise, o espírito de síntese e o espírito crítico42. 
O espírito de análise requer a habilidade de “decompor” 
mentalmente o objeto, estudando-o “de longe” e “de perto”. Em se tratando 
de um texto, primeiramente se promove um olhar global, depois frase a 
frase, palavra a palavra. Numa situação, há que perceber o conjunto e, logo, 
cada um de seus elementos. Para um enfoque jurídico, é preciso apreciar o 
objeto em seu contexto geral (histórico, econômico, social, etc.) e a seguir 
buscar todos os problemas jurídicos que ele pode suscitar. 
 
41 Françoise Hatchuel, Savoir, apprendre, transmettre – Une approche psychanalytique du 
rapport au savoir, Paris: La Découverte, 2005, p. 142. 
42 O fio do raciocínio desenvolvido sobre os três espíritos se deve a Marie-Anne Cohendet, 
Méthodes de travail, Paris: Montchrestien, 1998, p. 37-42. 
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Paralelamente, é imperioso adquirir o espírito de síntese. Ele pode 
ser definido como a aptidão a reagrupar os elementos esparsos que se 
encontram em torno de uma idéia ou situação. Requer o procedimento 
inverso ao seguido na análise. Não se trata de dissecar uma idéia em 
diversos elementos, mas de reunir numerosos elementos em torno de uma 
idéia. 
A síntese é determinada pelo tempo ou pelo espaço de que dispõe o 
ator que a promove. O imenso exercício aqui é o de encontrar o que há de 
relevante no objeto apreciado. Descartar o inútil ou o secundário requer a 
capacidade de encontrar o principal, que por sua vez só existe caso a caso. 
A tentação aqui é a de repetir enunciados inteiros ou concentrar-se nos 
aspectos que se conhece melhor, ou ainda de aprofundar-se demasiado em 
algum ponto interessante, fazendo com que a árvore esconda a floresta (no 
caso, um panorama breve e correto da floresta). 
No entanto, o objeto da reflexão jurídica é precisamente demonstrar 
uma idéia essencial que permita compreender um fenômeno complexo. 
Raramente é possível ou desejável dizer tudo. É preciso aprender a triar o 
que é importante e o que é acessório. Trata-se de encontrar o elemento 
fundamental, decisivo, a chave. Do poder de síntese depende em grande 
parte a qualidade do trabalho do operador do direito. 
Quanto ao espírito crítico, ao contrário do uso vulgar da palavra, não 
se trata de formular julgamentos de valor, tampouco comentários negativos 
ou infundados. Consiste na disposição de tomar um recuo em relação ao 
objeto, a pôr em questão as aparências, as “evidências” e as idéias feitas. O 
interrogar-se em permanência é típico do jurista, porque a melhor solução 
não pode ser encontrada se a questão proposta não foi bem compreendida. 
Por conseguinte, o senso crítico deve preceder a própria análise do 
objeto: opera já em sua escolha, quando esta é possível, e orienta a própria 
análise. Ele exclui a ação meramente descritiva, a pura repetição do que se 
está vendo ou do que se leu. 
Exercer o senso crítico permite, assim, avaliar a coerência dos 
argumentos, a compatibilidade entre marcos regulatórios, e entre estes e 
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dadas condutas. Permite igualmente levar em conta as repercussões da 
problemática e das eventuais soluções a ela atribuídas (ou a ausência de 
soluções) sobre a vida social. É o caso dos efeitos perversos de 
determinadas normas, ou a inaptidão à efetividade de certas medidas 
judiciais. 
Entretanto, o que é enunciado deve ser fundado sobre um raciocínio 
preciso, rigoroso e franco. A franqueza não exclui nem a polidez nem a 
prudência. Se o trabalho do jurista não é uma simples lista de 
conhecimentos sobre um objeto, tampouco é um panfleto para defender ou 
atacar dada posição. Há uma imensa diferença entre afirmar, por exemplo, 
que uma norma é “ruim” (juízo valorativo), ou que ela é inconstitucional ou 
colide com norma de mesma hierarquia (controle de legalidade), ou que ela 
será de difícil aplicação (apreciação sobre a efetividade), que ela não é 
desejada pela sociedade (consideração sobre a legitimidade), etc. 
O jurista deve estar comprometido com seus princípios, não aferrado 
a suas idéias. A própria sobrevivência e atualização de seus valores 
depende da atualização e do questionamento permanentes. 
O espírito crítico requer, ainda, a curiosidade e a coragem. A 
curiosidade depende da abertura de espírito e do tino para encontrar novos 
temas e novos enfoques43. Mas a coragem é essencial: é muito mais 
perigoso pôr em causa as idéias batidas do que seguir os caminhos já 
calcados pelas pegadas dos outros. O maior perigo não é o externo mas, 
como sói ocorrer, o interno, porque o espírito crítico requer o esforço 
constante de esquecer suas opiniões pré-existentes e de ser o mais 
objetivo44 possível, para re-fundar sua convicção depois de cada análise. 
 
43 A curiosidade é precisamente uma das características naturais mais embotadas pelo 
ensino, quando na verdade é das mais humanas: “nossa alma é feita para pensar, quer 
dizer para perceber: ora, um tal ser deve ter curiosidade; pois como todas as coisas estão 
numa cadeia onde cada idéia precede uma e segue outra, não se pode jamais ter uma coisa 
sem desejar outra; e se não temos desejo por esta, não teremos nenhum prazer com 
aquela”, Montesquieu, Essai sur le goût ou réflexions sur les causes du plaisir, 1757, item III, 
edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível em <www.bmlisieux.com>. 
44 Sob o prisma positivista, a subjetividade opõe-se à objetividade. Um discurso seria 
subjetivo quando um indivíduo ou uma coletividade o influenciou. Seria objetivo quando 
reflete o mundo “tal como ele é”. Diferentemente, para o construtivismo, todo o discurso é 
marcado pelas intenções do sujeito que o estrutura: objetividade (respeito a critérios 
estabelecidos previamente) e subjetividade (percepção individual ou coletiva) são 
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Quando se fala da metodologia a adotar no âmbito de uma atividade, 
em particular de pesquisa, geralmente as duas estrelas dos projetos 
elaborados pelos alunos são o método dedutivo e o método indutivo. A 
maioria dos alunos não tem idéia, visivelmente, do que se trata, e aqui uma 
vez mais pode ser útil buscar no reconhecimento da banalidade dos 
raciocínios a compreensão do método. 
A indução é uma operação mental no curso da qual o sujeito passa de 
observações múltiplas ao enunciado de uma norma ou de um modelo (como 
esquema, imagem ou discurso organizado que representa a complexidade 
de uma situação abordada), que dá conta das referidas observações45. 
Trata-se, então, de uma generalização, que passa do particular ao geral. A 
questão aqui é de saber se é possível, partindo de observações específicas, 
chegar a uma regra ou modelo que seria “provado” pelo que se observou. 
Nos textos acadêmicos, a indução se expressa por frases do tipo “as 
experiências provam que ...” ou “as estatísticas relevam que ...”. Um 
elemento “real” ou “concreto” vem em socorro, então, da idéia enunciada. O 
risco de generalizar o que é peculiar, e com isto falsear a percepção sobre a 
realidade, é, porém, de monta. Os elementos da realidade jamais são 
totalizantes. Mas o uso contemporâneo da indução se admite, desde que se 
entenda que numerosos modelos podem dar conta de uma determinada 
série de observações.Ou seja, de que o resultado do raciocínio indutivo não 
é mais do que uma possibilidade, ao lado de muitas outras. 
Quanto à dedução, presume a existência de um modelo ou 
representação prévio de uma situação46. Raciocina-se mais sobre o modelo 
do que sobre a situação real, e se examina quais as conseqüências que 
podem dele decorrer. Assim, as normas ou propriedades de um objeto são 
reconhecidas a partir de uma teoria que é aceita pelo sujeito que pensa. 
Para comprovar a pertinência deste modelo, há que verificar se as 
 
complementares, Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique 
épistemologique pour l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 79-80. 
45 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour 
l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 59-60. 
46 Gerard Fourez et al., Nos savoirs sur nos savoirs – Um lexique épistemologique pour 
l’enseignement, Bruxelas: De Boeck, 1997, p. 60-61. 
 25
conseqüências dele deduzidas podem ser comprovadas pela 
experimentação ou pela aferição da realidade. 
Estes dois raciocínios são elementares e servem diariamente aos 
indivíduos, escolarizados ou não. Eles estão diretamente relacionados à 
manipulação da realidade ou, dito de outro modo, ao uso dos exemplos. 
Durante uma intervenção oral, o uso de exemplos torna mais acessível e 
mais vibrante o discurso que pretende veicular uma idéia ou propor uma 
solução. É comum que o interlocutor passe da teoria à prática, numa atitude 
dedutiva, e logo da prática à teoria, num gesto indutivo, como é o caso do 
tripé clássico de observação, teorização e aplicação. 
No âmbito de um projeto de pesquisa, contudo, a questão se 
dimensiona do modo distinto. Declarar no projeto que o método a ser usado 
será indutivo ou dedutivo implica dizer se o eixo do trabalho se estrutura em 
torno da indução ou da dedução, sendo de todo irrelevante saber se, ao 
longo da exposição dos argumentos, serão usados raciocínios indutivos ou 
dedutivos (normalmente se usa os dois). Mas como identificar o eixo de uma 
pesquisa ou da resposta a um caso prático? 
Com efeito, a questão anterior à definição do método é a identificação 
do problema, abandonado aqui o sentido pejorativo vulgarmente atribuído à 
palavra. Árdua, porém, é a tarefa de conceituar um problema porque ele, por 
natureza, aparece caso a caso47. Trata-se da identificação de uma aparente 
 
47 Durante anos, usei a metáfora de Montezuma para explicar a problematização. Todavia, 
descrever como ele cravava a mão no peito de uma virgem para arrancar o seu coração, 
ainda batendo, em sacrifício ao Sol que pensava estar esfriando, não me parecia a maneira 
mais delicada de ensinar, embora a imagem contivesse elementos úteis como a coragem e 
a pulsação. Mais tarde, observando o processo de fabricação do conhaque, encontrei uma 
imagem mais sofisticada deste processo mental tão difícil de representar. A destilação é um 
método químico que separa os ingredientes puros de uma substância composta, graças ao 
manejo das distintas temperaturas de ebulição de seus componentes. O álcool é uma das 
muitas substâncias que resultam da fermentação do açúcar natural das frutas. O conhaque 
resulta da dupla destilação do vinho branco, feito com uvas colhidas na região francesa de 
Cognac (delimitada por um decreto que regula o direito ao uso do nome de conhaque, a 
appelation d’origine). O alambique de cobre mantém a mesma forma há três séculos. O 
vinho não filtrado entra na caldeira e é levado à ebulição. Na parte superior da caldeira há 
uma cúpula (chapiteau) na qual esbarram e se acumulam os vapores alcoólicos. Dali eles 
deslizam por um tubo fino (col de cygne), até chegar a uma serpentina cuja refrigeração os 
transforma novamente em líquido (brouillis), sendo descartados o caldo que resta na 
caldeira, assim como os primeiros vapores (têtes, de elevado teor alcoólico) e os últimos 
(queues, de baixo teor). O brouillis é novamente lançado à caldeira para a segunda 
destilação (bonne chauffe), que comporta uma ainda mais criteriosa operação de “corte” por 
meio da temperatura, retendo apenas o “coração” dos vapores (também chamado de 
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contradição que precisa ser superada, apta a gerar um esforço de 
elucidação de um paradoxo, que se oponha a uma opinião superficial, ao 
senso comum ou a um discurso dogmático sobre o objeto. 
Assim, o problema diferencia-se do tema porque é este em 
movimento. Se o objeto abordado é x, o problema será x em relação a y. Os 
textos ou as falas que são ditas “não são problematizadas” constituem 
justamente a mera descrição do objeto abordado, que conduz a repetições, 
colagens ou opiniões infundadas. 
Desnecessário dizer o quanto este exercício acadêmico é essencial 
para a formação do profissional do Direito, cuja atividade consiste 
essencialmente em identificar um problema, pesquisar nas fontes 
pertinentes, pensar alternativas e soluções, e externa-las por escrito ou 
oralmente. 
Neste diapasão, a habilidade de formular problemas pertinentes, 
capaz de consagrar uma carreira acadêmica, depende não somente do 
exercício constante do raciocínio por meio do método, mas de uma cultura 
geral disciplinadamente construída e atualizada, do domínio cirúrgico da 
linguagem, da abertura de espírito fundada na humildade e de uma 
vivacidade diante das urgências da realidade que somente o engajamento 
oportuniza. 
Entretanto, a dificuldade de encontrar um problema não raro se deve 
mais a fugas que a obstáculos. No mundo do fácil, porque buscar o difícil? 
Depurar uma situação até chegar a seu núcleo e problematiza-lo, 
quase sempre leva o aluno a constatações nem sempre agradáveis sobre a 
realidade, que desmistificam os saberes disciplinares que lhes são 
transmitidos, pondo por terra tanto a visão totalizante do direito (eis que o 
mundo real não cabe no mundo jurídico) como a crença no sistema político, 
administrativo e judicial48. 
 
“espírito” ou “alma”). Assim, formular um problema é forjar um caldo de teoria e prática do 
qual se retira apenas o coração, para depurá-lo e melhorá-lo graças a uma espécie de 
destilação mental. O método seria a técnica da destilação. 
48 Para não referir os conflitos com o meio social e familiar que o questionamento de certos 
valores pode ocasionar e para os quais o professor deve estar preparado. A coragem de 
superar a matriz cultural originária e renovar o próprio espírito é, porém, uma das 
 27
Pensar a vida abertamente, em particular nos temas complexos e 
candentes que carecem da atenção do jurista, invoca desde logo a dúvida, 
confronta com a impotência individual do sujeito e revela a necessidade de 
operar no plano coletivo para obter soluções duradouras. Em outras 
palavras, rompe com a ilusão de um possível “mundo próprio” e com a idéia 
de que um projeto de felicidade pode se abster da dimensão coletiva49. 
Aqui, as alternativas de abordagem teórica e de proposição de 
soluções práticas flertam com a ideologia – neste caso, tomada como 
discurso que se apresenta como uma representação adequada do mundo, 
mais legitimador do que descritivo, que motiva pessoas e legitima práticas. 
Ora, é evidente que o discurso científico possui uma dimensão ideológica, 
mas ao precisar os critérios que o orientam, pode evitar o efeito de engano 
ou dissimulação. Este é um imperativo ético não somente da ciência, mas do 
pensamento. 
Dupla, então, a coragemnecessária: de enfrentar um tema pertinente 
de forma inovadora, e de esclarecer antecipadamente os parâmetros 
utilizados para tanto. Cabe ao professor reiterar este compromisso diante do 
aluno, e pensar com ele, a cada atividade, a validade de seu método e os 
limites de sua ação, porque a ética nunca está garantida: “ela não é um bem 
do qual se é proprietário, ele deve regenerar-se incessantemente, porque o 
que não se regenera, degenera”50. 
 
características marcantes dos que buscam o saber: “todas as opiniões que eu havia reunido 
até agora como crédito, o melhor que eu tinha a fazer de uma vez por todas era suprimi-las, 
a fim de substitui-las por outras melhores, ou pelas mesmas quando eu as tivesse ajustado 
ao nível da razão. E eu acreditei firmemente que por este meio eu conseguiria conduzir 
minha vida muito melhor se eu não a construísse sobre velhos fundamentos, e se eu não 
me apoiasse apenas sobre estes princípios dos quais me deixei persuadir em minha 
juventude sem jamais ter examinado se eles eram verdadeiros”, Discours de la méthode, 
Paris: Mozambook, 2001, p. 20 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita 
disponível em <www.mozambook.net>. 
49 Do mesmo modo que muitos suportam sua própria vida graças ao auto-engano, a 
sociedade de consumo gera um fenômeno coletivo de inverdade. Carmen González Marín 
escreveu um fascinante ensaio sobre as relações entre as dimensões individual e coletiva 
da mentira: “parece que o engano compartilhado é mais suportável, ou que o engano 
coletivo deixa de sê-lo para cada um em particular. (...) Somos, por acaso, vítimas – 
interessadas? – do maior dos enganos, o de assumir que há dois mundos – o mundo dos 
que falam e atuam e são os responsáveis, e o mundo dos que somente olham e portanto 
não o são?”, De la mentira, Madri: Antonio Machado Libros, 2001, respectivamente p. 128 e 
p. 137. 
50 Edgar Morin, La méthode 6 – Éthique, Paris: Seuil, 2004, p. 224-225. 
 28
Por tudo isto, é pouco provável que os métodos dedutivo ou indutivo, 
empregados no âmbito de disciplinas estanques, sejam capazes de oferecer 
as melhores abordagens jurídicas. A seguir, serão desenvolvidas algumas 
técnicas que podem auxiliar o aluno a melhor instrumentalizar sua ação por 
meio do pensamento, graças a um arsenal metodológico interdisciplinar. 
 
2. Pensar a ação 
Em seu sentido comum, o adjetivo cartesiano é pejorativo: designa o 
espírito sistemático em excesso, em oposição ao intuitivo. No âmbito 
acadêmico, porém, ainda que duramente criticado, o Discurso do Método, de 
René Descartes (1637)51, segue uma referência incontornável do 
pensamento filosófico52. 
Para Descartes, todo método consiste na ordem e na disposição das 
coisas em relação às quais é preciso voltar o olhar do espírito, para 
descobrir alguma “verdade”. Para compreender as proposições mais 
complicadas e obscuras, seria preciso levá-las gradualmente às mais 
simples e, a seguir, partindo da intuição das mais simples, elevar-se pelos 
mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras (Regra V). 
Para distinguir as coisas mais simples daquelas que são complicadas 
e para buscar com ordem, seria preciso, em cada série de coisas das quais 
nós deduzimos diretamente algumas verdades de outras verdades, ver qual 
é a coisa mais simples, e como todas as outras coisas dela são mais, menos 
ou igualmente distantes (Regra VI). 
A seguir, seria necessário servir-se de todos os socorros que podem 
prestar o entendimento, a imaginação, o sentido e a memória, seja para ter a 
intuição distinta das proposições simples, seja para bem comparar as coisas 
que se busca com aquelas que se conhece, a fim de descobri-las, seja para 
 
51 Paris: Mozambook, 2001 – edição eletrônica (texto integral) em difusão gratuita disponível 
em <www.mozambook.net. 
52 Entre tantos, Descartes foi criticado por Pascal, Spinoza e Leibniz, e influenciou 
pensadores como Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. Para compreender o alcance 
de sua obra, ver, em particular, Pierre Guenancia, Lire Descartes, Paris: Gallimard, 2000. 
 29
encontrar as coisas que devem ser comparadas entre elas, de sorte que não 
se possa esquecer nenhum dos meios disponíveis ao homem (Regra XII). 
Enfim, quando se compreende uma questão, cumpre abstrair de todo 
conceito supérfluo, simplificá-la o máximo possível, e dividi-la por meio da 
enumeração em partes (Regra XIII). 
Embora os juristas contemporâneos reconheçam a inexistência da 
verdade em direito, a herança cartesiana marca profundamente a prática 
profissional e a produção científica francesa. Um jurista francês se 
reconhece por seu extraordinário poder de síntese, expresso em textos e 
falas estruturados invariavelmente em duas ou três partes, sub-divididos em 
igual número de sub-partes (o plano, que equivale ao “esqueleto” do texto, 
seu índice ou sumário). 
Não se trata de um molde artificial que esclerosa o pensamento mas, 
bem ao contrário, de um instrumento que visa a uma demonstração clara e 
coerente, que permite ressaltar o que se vai dizer ou escrever, como o ritmo 
está para a música, os versos para o poeta, os atos para o autor de teatro53. 
O plano expressa diretamente o problema escolhido e permite tratar 
todo o tema, mas nada além do tema. O problema é anunciado ao final da 
introdução (deflorando-o o mínimo possível), para demonstrar sua 
pertinência ao longo do exercício. Ao final de uma intervenção oral e escrita, 
o interlocutor deve reter a idéia central, e não apenas memorizar um detalhe. 
Através do plano, ele é capaz de ver a floresta, e não apenas a árvore. 
Assim, o jurista francês anuncia de antemão o que fará, permitindo assim 
que o interlocutor julgue tanto se efetivamente fez o prometido, como a 
pertinência do que foi prometido. 
Se este relato parece ser o de um forte condicionamento, senão uma 
coerção, é preciso reconhecer que, na atualidade, sequer as visões mais 
vanguardistas da ciência renunciam ao método e que a influência francesa 
corre mundo, graças a autores que deram uma nova dimensão à 
compreensão da vida, em particular, ao papel da educação. 
 
53 Marie-Anne Cohendet, Méthodes de travail, Paris: Montchrestien, 1998, p. 112-3. 
 30
É o caso de Edgar Morin, que fez do método o grande canteiro de 
obras de seu pensamento54. Para o autor, a palavra método deve ser 
fielmente concebida em seu sentido originário, e não no derivado, degradado 
pela ciência clássica, para quem o método é um corpus de receitas, de 
aplicações quase mecânicas, que exclui o sujeito do seu exercício. O 
método necessita estratégia, iniciativa, invenção, arte; é uma práxis 
fenomênica, subjetiva, concreta, que necessita de um paradigma teórico, 
mas que pode regenerar este paradigma. O método é o pleno emprego 
das qualidades do sujeito e se torna central e vital 
“ - quando há necessariamente, ativamente, o reconhecimento e a 
presença de um sujeito capaz de pesquisar, conhecer, pensar; 
- quando a experiência não é uma fonte clara, não equívoca de 
conhecimento; 
- quando se sabe que o conhecimento não é a acumulação de 
dados ou informações, mas sua organização; 
- quando a lógica perde o seu valor perfeito e absoluto; 
- quando a sociedade e a cultura nos permitem de duvidar da 
ciência em lugar de fundamentar o tabu da crença; 
- quando se sabe que a teoria é sempre aberta e inacabada; 
- quando se sabe que a teoria necessita da crítica da teoria e da 
teoria da crítica; 
- quando há incerteza e tensão no conhecimento;

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