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O Que Quer Um Curriculo Pesquisas Pos-Criticas Em Educação

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"W "T" 
7 QUE 
URRÍCULO? 
Pesquisas pós-críticas em 
EDUCAÇÃO 
214 3RA CORAZZA 
EDITORA 
• VOZES 
Este livro apresenta 6 textos, 
derivados de atividades de 
pesquisa no campo do currículo. 
Pesquisa que integra as atividades 
desenvolvidas pela área temática 
Pós-currículo, diferença e 
subjetivàção de infantis, do 
Programa de Pós-Graduação em 
Educação da Faculdade de 
Educação da Universidade Federal 
do Rio Grande do Sul. 
Trabalhando com as chamadas 
"filosofias da diferença", tal 
pesquisa articula isomorfismos 
entre a pedagogia, a medicina 
clínica e a jurisprudência penal, 
para significar as tecnologias 
avaliativas em curso nas escolas 
brasileiras. Debruça-se sobre a 
ética do currículo, para 
"liccionalizar" os seus mais novos 
personagens infantis: El Nino e La 
Nina. Analisa o dispositivo de 
"eidadanidadc", operado pelos 
Parâmelros Curriculares Nacionais 
paia o Ensino Fundamental, que 
onlologiza um "infantil-cidadão" 
neoliberal. Indaga sobre a 
inquietante similaridade discursiva 
encontrada entre o Projeto 
( 'onsliluinle Escolar, do Governo 
1 )emocrático e Popular do Rio 
Glande do Sul, e os PCNs do 
Ministério da Educação do 
(ioverno federal. Caracteriza a 
pesquisa pós-crítica de um 
currículo como uma pesquisa de 
"invenção", cujo mote é: "Aquilo 
de que não se pode saber, é preciso 
pesquisá-lo". Além de lançar um 
"manifesto por um pós-currículo", 
cujo alvo é a mudança de todas as 
tradicionais unidades, sob as quais 
vimos estudando, ensinando, 
escrevendo e pesquisando a 
Educação. 
Sandra Corazza 
I que quer um currículo? 
Pesquisas pós-críticas em Educação 
^ EDITORA 
VOZES 
Petrópolis 
2001 ^ 
BIBLIOTECA SETQRIM. Pi EDUCAÇÃO 
03 / ((,0b © 2001, Editora Vozes Ltda. 
Rua Frei Luís, 100 
25689-900 Petrópolis, RJ 
Internet: http://www.vozes.com.br 
Brasil 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta 
obra poderá ser reproduzida ou transmitida por 
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou 
mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada 
em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão 
escrita da Editora. 
Editoração e org. literária: Otaviano M. Cunha 
ISBN 85.326.2587-8 
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. 
Ao Hugo, amado, 
que me proporciona vontade de viver, 
lutar, escrever. 
Agradeço 
• a Tomaz Tadeu da Silva, pelas várias parcerias de 
trabalho, dentre as quais, esta: os estudos de currículo. 
• à PROPESQ/UFRGS, FAPERGS e CNPq, pelo apoio 
e incentivo à pesquisa. 
• às/aos colegas do GT Currículo, da Associação Na-
cional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, pela 
acolhida e pluralidade de interlocução. 
• a Lídio Peretti, Editor cultural da Vozes, pela gene-
rosidade do "desafio", que resultou na composição deste 
livro. 
Sumário 
1. O que quer um currículo?, 9 
2. Olhos de poder sobre o currículo, 22 
3. Currículo como modo de subjetivação do infantil, 56 
4. Governamentalidade moral do currículo nacional, 77 
5. Currículos alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do 
hibridismo, 97 
6. Manifesto por um pós-currículo, 128 
Referências bibliográficas, 143 
1 
O que quer um currículo? 
É 
Que título de livro é este: O que quer um currículo? Um 
currículo "quer" alguma coisa? Antes de responder a esta 
questão, é preciso perguntar: - O que, afinal de contas, 
"é" um currículo, para querer alguma coisa? Será algum 
eu, indivíduo, pessoa, sujeito do conhecimento, da cons-
ciência, do direito, da ciência, do inconsciente? Estará 
este título dotando um currículo de predicados antropo-
mórficos, ao modo moderno, humanizador de todos os 
seres do universo? Terá este livro escolhido operar "em 
espelho" com um currículo, animando-o com uma espé-
cie de individualidade humana, que, além disto, é habita-
da por apetites, anseios, vontades, quereres? 
No domínio de uma "metafórica" do currículo, cons-
tituída pelas teorias da linguagem estruturalista e pós-es-
liuturalista, podemos pensar que o que um currículo "é" 
0 uma linguagem. Ao conceber um currículo como uma 
linguagem, nele identificamos significantes, significados, 
sons, imagens, conceitos, falas, língua, posições discursi-
vas, representações, metáforas, metonímias, ironias, in-
venções, fluxos, cortes... Assim como o dotamos de um 
Ciirííter eminentemente construcionista. 
Ao atribuir essa condição "linguajeira" a um currícu-
lo, dizemos que a natureza de sua discursividade é arbi-
9 
traria e ficcional, por ser histórica e socialmente construí-
da. Que seu discurso fornece apenas uma das tantas ma-
neiras de formular o mundo, de interpretar o mundo, e 
de atribuir-lhe sentidos. Que sua sintaxe e semântica têm 
uma função constitutiva daquilo que enuncia como sendo 
"escola", "aluno/a", "professor/a", "pedagogia", e inclusi-
ve "currículo". Que as palavras que um currículo utiliza 
para nomear as "coisas", "fatos", "realidade", "sujeitos" 
são produtos de seu sistema de significação, ou de significa-
ções, que disputa com outros sistemas^ Que um currículo, como 
linguagem, é uma prática social, discursiva e não-discursi-
va, que se corporifica em instituições, saberes, normas, 
prescrições morais, regulamentos, programas, relações, 
valores, modos de ser sujeito. & 
Falante 
Sendo um dispositivo saber-poder-verdade de lingua-
gem, não é nenhum absurdo imaginar que um currículo 
possa ser visto e pensado como uma espécie de "ser falan-
te" - e isto só é ficção em parte. Também torna-se plausível 
afirmar, em termos freudo-lacanianos, que um currículo, 
sendo um ser que fala, logo quer. E por isto que podemos 
dirigir-lhe a pergunta psicanalítica do desejo: - Che vuoi? 
Em sua resposta, um currículo vai nos dizer o que quer. 
Mas, nós retrucaremos: - O que está dizendo? O que quer 
dizer, com isto que está dizendo? O que você quer? 
Na fala-ação, que derrama pelo mundo da Cultura, 
da Pedagogia e da Escola, um currículo, como qualquer 
ser falante, pode ser concebido como regido pelo funcio-
namento da linguagem, tal como é formulado pela Psica-
nálise. Então, aquilo que enuncia espera sempre sua sig-
nificação de algum outro lugar, de um enunciado a mais, 
e até mesmo da linguagem "toda", ou seja: de um sistema 
total de linguagem, que um currículo imagina ser, no fi-
nal, o fruto de seus esforços linguajeiros. O problema é 
10 
que não existe esta linguagem toda, nem este terceiro lo-
cus, que não é nem a fala de um currículo, nem os seus/suas 
interlocutores/as. 
Por isso, a significação daquilo que um currículo ex-
pressa em palavras está sempre suspensa a um alhures, 
que é, invariavelmente, uma cadeia incompleta de signifi-
cantes. Cadeia que suspende, adia, remete sua própria 
significação a um outro enunciado, e assim interminavel-
mente. Se um currículo, como ser falante, deseja na lin-
guagem - sendo seu desejo um efeito da linguagem -, 
não é porque lhe falte alguma coisa. Se alguma coisa falta, 
na linguagem de um currículo, é uma última palavra que 
traga em si mesma uma significação plena, para a qual 
nenhum dizer a mais seria necessário. 
Podemos, agora, propor um silogismo para o funcio-
namento de um currículo, significado como ser falante: 
lá, onde um currículo fala, um currículo não sabe o que 
diz. Se um currículo fala, um currículo quer. Lá, onde um 
currículo quer, ele não sabe o que quer. A linguagem de 
um currículo é tudo de que ele dispõe para imputar algu-
ma vontade aos outros. Mas, quando diz o que quer, um 
currículo confunde-o com as expectativas desses outros. 
Deste modo, sempre outro, o que quer um currículo é 
apenas efeito de suas falações, e eles, os seus outros, tam-
bém não sabem o que dizem. Porque é somente o "Gran-
de Outro", lugar do tesouro da linguagem, quem pode 
ensinar a um currículo o que diz. 
Sendo assim, um currículo não é nunca amo e senhor 
do que diz, nem do que faz. Cativo da própria linguagem, 
um currículo é incapaz de vê-la como o seu maior "pro-
blema". Quando fala, pensa que está utilizando a lingua-
gem, mas é a linguagem que o utiliza^Elesempre diz 
mais do que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra 
coisacAo falar, um currículo é levado além de si próprio, 
pois o sentido do que diz encontra-se na linguagem de 
sua época e lugar, na qual está enredado. 
11 
Também ao agir, um currículo sempre significa algo 
diferente do que faz e faz algo diferente do que significa. 
Este "algo diferente" é dado na relação existente entre as 
coisas significadas nos fazeres de um currículo e os signos 
usados para significá-las. Tal relação só pode ser especifi-
cada pela identificação do modo linguístico em que foi 
formulado o sistema de signos, com os quais nomeia os 
objetos que povoam a superfície de inscrição de sua lin-
guagem. Deriva daí, que um currículo não pode, nem 
deve, ser tomado "ao pé da letra", porque este "ao pé..." 
não existe. O que existe é a equivocidade do querer-dizer 
de um currículo, fornecida por suas significações cons-
tantemente diferidas. 
As formas linguísticas que um currículo usa, para falar 
e agir, não têm referentes específicos na realidade. Por 
isto, o que ele não sabe é que somente o "seu" modo de 
discurso é que possibilita e sanciona o "seu" campo epis-
temológico e "suas" atividades e estratégias de enuncia-
ção. Parece que ele nem quer saber que sua linguagem 
não apenas "representa" o mundo das coisas, mas tam-
bém fabrica este mundo, as próprias coisas, e a modalida-
de das relações entre as coisas. O que um currículo não 
consegue descobrir é o aspecto gerativo de sua própria 
linguagem. Assim, obscurece, para si mesmo, a compre-
ensão de sua natureza criada. 
Nós 
Porque um currículo é uma linguagem, pode-se, nas 
atividades de pesquisa académica e escolar, formular a 
pergunta: - O que quer...? E, ao fazê-la, criar condições para 
que cada pesquisador/a trabalhe não sobre "o Currículo", 
como um conjunto de currículos, que demandaria uma 
resposta unívoca. Mas, enfatizar o termo "um currículo", 
para justificar a diversidade das respostas que são encon-
tradas nas investigações. Se, neste tipo de pesquisa, cada 
12 
pesquisador/a dá fala a vários "um currículo", a interroga-
ção do desejo torna-se um operador metafórico - uso da 
metáfora como "método" -, com efeitos de ricochete. 
Nessa metaforicidade, a pergunta - O que quer...?, fei-
to um bumerangue, bate de volta naquela/e que pesquisa. 
Então, tendo partido dos ditos conhecidos de um currícu-
lo, esta pergunta remaneja a metáfora, trabalhando para 
tornar "estranho" o que o/a pesquisador/a considerava 
"familiar" na linguagem de um currículo. Como efeito 
deste investimento metafórico, criado pela condição de 
pesquisa, cada um/a (ou o grupo de pesquisa) é compeli-
do/a a indagar: - O que eu quero (queremos nós) com um 
currículo, como ser falante? O que posso (podemos) fazer 
com isto? Assim, persegue-se "a boa metáfora", que de-
manda analisar nossos quereres, fazeres e dizeres consti-
tuidores do funcionamento de um currículo. 
Funcionamento, que não implica em pensar um/a pes-
quisador/a como dotado/a de uma suprema intencionali-
dade emancipatória, de ser fonte e finalidade de qual-
quer significado transcendental, ou agente consciente e 
livre de alguma prática social revolucionária. Mas, mais 
humildemente, em poder analisar um currículo e o que 
vimos querendo com ele, enquanto educadoras/es, etica-
mente responsáveis pela criação, funcionamento e conse-
quências de sua linguagem. 
Responsabilidade que, claro, não evita que as conse-
quências de um currículo restem sempre abertas, e que 
um currículo diga sempre mais do que pretendíamos que 
dissesse, faça mais do que deveria fazer, crie o que não tí-
nhamos previsto. Que compreenda também tudo aquilo 
que, para nós, ainda é não-sujeito, sem-sentido, in-signi-
ficante, ini-maginável, in-descritível, im-previsto, in-de-
terminado, im-penetrável, in-narrável, in-dizível. 
Além desse seu caráter inefável, por ser uma lingua-
gem, um currículo também produz ideias, práticas coleti-
13 
vas e individuais, sujeitos que existem, vivem, sofrem e 
alegram-se, num mundo que se produz atravessado por 
complexas redes de relações, que vão desde as econômi-
co-sociais até as tramas amorosas e transferenciais. Ao fim 
e ao cabo, um currículo, como ser de linguagem, somos 
nós. E o que linguajamos como geração, raça, género, lo-
cal institucional, religião, ecologia,' outridade, orientação 
sexual, território geopolítico, fluxos de desejo. O que pos-
suímos de consciência, e também de inconsciência, em 
relação às posições de sujeito que nos foram legadas, e 
que ocupamos. 
Um currículo é o que dizemos e fazemos... com ele, 
por ele, nele. E nosso passado que veio, o presente que é 
nosso problema e limite, e o futuro que queremos muda-
do. E a compressão de nossa temporalidade e espaço. Um 
"espectro", que remete a todos os nossos outros, e expri-
me nossa sujeição ao "Outro" da linguagem. Um currícu-
lo é a precariedade dos seres multifacéticos e polimorfos 
que somos. Nossa própria linguagem contemporânea, 
que constitui uma pletora de "eus" e de "não-eus", que fa-
lam e são silenciados em um currículo. 
Isto é um currículo: um ser falante, como nós, efeito e 
derivado da linguagem. Hoje, sem intimidade, não mais 
básico, nem fundamental, verdadeiro, autêntico. Um ser 
sem coerência e sem profundidade. Que experimenta re-
lações fracionadas, construídas ao redor de pedaços de 
falas de cada um. Que pode (pode?) ser qualquer coisa, 
em qualquer momento. Que não sabe mais para onde vai, 
mas que, mesmo assim, continua em frente, querendo sa-
ber das condições históricas e políticas, que produzem as 
verdades linguajeiras de um currículo. 
Vontade 
Como um ser de linguagem, quando lhe interrogam -
Che vuoi? -, um currículo dá a sua resposta particular, lo-
14 
calizada na rede discursiva das relações de poder-sa-
ber-subjetividade, que é o que lhe constitui como falante. 
Mas, em todo o trabalho de pesquisa com muitos "um 
currículo", é possível encontrar uma iterabilidade das 
respostas que cada currículo fornece. Ousa-se, assim, 
uma resposta geral, que é dada para ser desconstruída. 
Invariavelmente, quando perguntado, um currículo cos-
tuma responder que quer "um sujeito", que lhe permita 
reconhecer-se nele. Por isto, qualquer currículo, seja ele 
qual for, tem "vontade de sujeito" - pode ser dito, para 
lembrar Nietzsche. 
Só que, ao contrário do desejo da Psicanálise, que é 
sempre da ordem do inconsciente, essa "vontade de sujei-
to" de um currículo não é em nada "inconsciente". Tal 
vontade define-se e positiva-se no próprio funcionamen-
to de sua linguagem, que realiza o sujeito que quer. "Quer" 
como? Como um ser factível: sujeito daquele currículo e 
sujeito àquele currículo. 
O problema é que não há sujeitos perenes, que corres-
pondam às palavras de um currículo, porque sua lingua-
gem é opaca. Uma linguagem que isola o sujeito mesmo 
que quer e cria, dentro do universo de seu discurso, pensa-
mento e ação. O problema é que um currículo não sabe 
nunca que a constituição de seu campo discursivo é um ato 
"poético", enquanto criação de um domínio específico de 
objetivação. Domínio finito de uma determinada ocorrên-
cia ficcional, no qual são protocolados e sancionados mo-
dos específicos de representação, de conteúdos e de rela-
ções, enquanto outros são excluídos e nem formulados. 
Por isso, quem pesquisa O que quer um currículo? ne-
cessita indagar à opacidade e à "coisidade" construída da 
linguagem de um currículo: - Se quer um sujeito, se é um 
sujeito que é querido, que sujeito é este? O cartesiano, 
kantiano, husserliano? O sujeito do modernismo, do ro-
mantismo, da psicanálise, do pós-modernismo? Uma má-
15 
quina, autopoiese de produção, que se inventa no pró-
prio acontecendo? 
Um currículo "quer" um sujeito que pensa, logo é? 
Que duvida de tudo, até de sua capacidade de conhecer? 
Que, justo por esta sua dúvida estratégica, pode ter a cer-
teza de que é autocognoscível e autotransparente? Um 
sujeito com capacidade de observação sistemáticae de ra-
ciocínio rigoroso, liberado do erro, do místico, do tirâni-
co? Que atua, movido pela universalidade da sua cons-
ciência, anotando, quantificando, comparando? Que faz 
sua razão triunfar contra a emoção, o método contra os 
instintos, a ciência contra a arte? Um currículo deseja um 
sujeito progressista, que encarne o progresso? Que seja 
rentável, produtivo, próspero? 
Um currículo "quer" um ser autónomo, que promova 
uma sociedade de iguais, livres e fraternos? Anseia por 
um agente moral responsável? Dotado de uma alma inte-
rior, profunda e misteriosa, habitada por paixões incon-
troláveis? Um sujeito movido pelo amor ao próximo, tão 
imenso quanto o amor que tem por si próprio? Que prio-
riza o sentimento moral, ao invés da racionalidade? Um 
sujeito que possui um eu essencial, constituído por emo-
ções intensas? 
Um currículo "quer" um ser dividido, clivado, em afâ-
nise perpétua? Um eu, que responda pela ilusão de cora-
pletude pessoal, mantida no jogo da dinâmica pulsional? 
Um sujeito desconhecido para si, que necessita subme-
ter-se a técnicas de auto-exame e de autoconhecimento? 
Um ser imbricado na sexualidade e verdade interior, só 
reveladas por uma hermenêutica do eu? Que busca a ver-
dade de si, que sempre lhe escapa, por estar além de sua 
consciência? Um sujeito forçado a estar sempre em movi-
mento, impulsionado por forças que desconhece? 
Um currículo "quer" um sujeito que interpele os indi-
víduos concretos, para sujeitá-los a um Sujeito Absoluto, 
16 
como Deus, A Humanidade, A Nação, A Classe, O Géne-
ro, A Linguagem? Um sujeito do liberalismo capitalístico 
da burguesia? Um dos efeitos mais positivos do biopoder 
e da biopolítica? Uma invenção do humanismo de todas 
as ciências sociais e humanas? Uma individualidade, uma 
totalidade, criadas pelo dispositivo disciplinar da norma-
lização moderna? Um indivíduo derivado das tecnologias 
de governo dos Estados neoliberais? Um sujeito derrisó-
rio, abjecto, maltratado? Um louco, que não consegue es-
capar do Espírito Maligno, e nem de sua incessante dis-
rupção como sujeito? Um devir, um tornar-se, um arran-
jamento coletivo de enunciação e maquínico do desejo? 
Um "nada de sujeito", que o modo do discurso de um cur-
rículo condena ao limbo dos seres que não podem ser vis-
tos nem ditos? 
Verdade 
Quem, como nós, trabalha com as teorias pós-críticas, 
no território da Educação, não faz mais a pesquisa "do 
Currículo", no sentido global. Pesquisa que requeria, 
como resultados, explicações totalizantes e unificadoras 
sobre a verdade e o verdadeiro do Currículo. Explicações 
sobre "a Teoria" ou "a Prática" do Currículo, que costu-
mavam reinar sem qualquer partilha. Menos pretensiosa-
mente, o/a pesquisador/a pós-crítico/a analisa as vicissitu-
des do desejo por um sujeito e os acidentes da linguagem 
de cada currículo: daquele "um currículo" específico, que 
escolheu para investigar - sendo, ao mesmo tempo, tam-
bém "escolhido/a" por ela. Escolhas que se consubstan-
ciam em outra ética de trabalho, em outra linguagem de 
crítica, e em outras relações com "a verdade" de sua pró-
pria pesquisa. 
A pesquisa pós-crítica de um currículo rejeita tanto a 
lógica quanto a empiricidade totalizadoras da verdade 
"do Currículo". O que ela diz é "a falta de verdade" deste 
17 
tipo de investigação, por indagar: - Como, em que condi-
ções, esta verdade chegou a ser verdadeira? Quais as rela-
ções de poder que possibilitaram a construção de tal ver-
dade? Quais os efeitos de verdade sobre o sujeito que ela 
assujeita? Só que, quando responde a estas questões, o/a 
pesquisador/a formula uma "verdade", derivada da sua 
pesquisa, cuja tendência é instalar-se e funcionar em po-
sição de verdade. 
Ocorre que a verdade, extraída da pesquisa pós-críti-
ca, não tem condições de funcionar nessa posição, porque 
a linguagem da teorização - usada para pesquisar a ver-
dade linguajeira de um currículo - não pretende, nem diz 
tudo. Por causa desta característica da linguagem pós-crí-
tica, a verdade que resulta da pesquisa é sempre um semi-
dizer, uma verdade que não pode ser dita toda. Há um 
impossível de dizer, na linguagem com que se pesquisa, 
que a pesquisa encarna. 
Assim, o/a pesquisador/a pós-crítico/a renuncia tanto 
ao saber consolidado quanto ao próprio acervo de conhe-
cimentos obtidos por suas investigações. E, incessante-
mente, começa tudo de novo. Diferente de Wittgenstein, 
para quem "aquilo de que não se pode falar, é preciso 
calá-lo", a operação de pesquisa pós-crítica define-se pela 
máxima impossível: - Aquilo de que não se pode saber, é 
preciso pesquisá-lo. 
Não que a pesquisa pós-crítica seja "imperfeita". Não 
que pertença a uma ordem de imperfeição, que uma pes-
quisa mais aplicada, mais sistemática, de mais tempo, per-
mitiria preencher. Mas, porque funciona como a própria 
forma de saber pós-crítico: um saber que não permite sa-
ber tudo. A pesquisa pós-crítica elabora saberes que, por mais 
operativos que sejam, não deixam de ser criações, experimen-
tações. Saberes que significam muito mais um não-saber, 
uma ignorância necessária ao/à pesquisador/a, que sabe 
que nenhuma pesquisa poderá remediar. 
18 
0 que é um currículo ? O que um currículo quer? Que sujeito 
ele quer? A pesquisa pós-crítica protesta a responder, de 
modo "verdadeiro", a essas questões, em nome da própria 
linguagem com que as analisa. Essas são questões, por ex-
celência, para as quais "evidência" alguma oferece seu apoio. 
Diferentemente, de quando se tratava de saber o que era e 
o que queria a Teoria ou a Prática do Currículo, jamais se 
está segura/o dessas respostas. Para a pesquisa pós-crítica, 
um currículo não é em nada um "mistério", ao qual se atri-
buía um tanto de mistificação ou mentira. Tal pesquisa 
não identifica um currículo como uma espécie de "escon-
derijo", que dissimularia algo, nefasto ou não. Do que quer 
um currículo, a pesquisa pós-crítica não formula uma ver-
dade absoluta, mas "verdades" sempre parciais. 
Por isso, os seus "resultados" encontram-se abertos 
pelas possibilidades de outras linguagens, que responde-
rão à pergunta O que quer um currículo? de modo diferen-
te, múltiplo, disseminado. Continuam sendo questões e 
problemáticas de pesquisa, não resultados. Estão, perma-
nentemente, atentos aos detalhes dissonantes da lingua-
gem de um currículo, à temporalidade de seu a posteriori, 
em que as significações ganham sentidos só depois. Mes-
mo depois de obtidos, tais "resultados" ainda buscam as 
articulações complexas entre o seu objeto de estudo - um 
currículo - e a linguagem pós-crítica usada para falar des-
te objeto. Objeto e linguagem, coisa e palavra, entendi-
dos como processos que se refletem e retratam, sempre. 
Ao realizar a pesquisa pós-crítica de um currículo, en-
tendido como linguagem, o/a pesquisador/a busca o encon-
tro sempre faltoso com um semidizer, que ele/a não conse-
gue designar no discurso, senão como lacuna. Busca a signi-
ficação que poderia ter sido esquecida, e aquela sempre 
nova, jamais esgotada, nem definitivamente fixada. Aquela 
que escapara, sim, porque nunca antes pudera ter sido atri-
buída, nem possibilitada ou permitida, pelas formas anteri-
ores de fazer a pesquisa "do Currículo". Toma os enuncia-
19 
dos dos discursos curriculares que analisa pelo avesso, e des-
taca, deles, outras redes de significação. 
A pesquisa pós-crítica é uma pesquisa de "invenção", 
não de "comprovação" do que já foi sistematizado. Sua 
principal contribuição é apenas a de ser aproveitável por 
outros/as pesquisadores/as, como uma "sementeira" de 
sentidos imprevistos. Ela implode o sistema consensual 
das formas em que habitualmente compreendemos, fala-
mos e escutamos uma linguagem curricular. Implosão de 
sentidos que, no mínimo, faz "saltar" o que estava ainda 
não-significado, o que era a-significante. Como sua prin-
cipal tarefa política, a pesquisa pós-crítica quer transfor-
mar o funcionamento da linguagem de um currículo, na 
direção de modificar as suas condiçõesde enunciação, 
fornecendo-lhe planos infinitos de possíveis. 
Para realizar tal tipo de pesquisa, é preciso estudar as 
teorias pós-críticas, para, depois, pô-las provisoriamente 
de lado. Ir ao encontro do objeto sem as teorias. Deixar à 
margem o aprendido, para fazer com que, da originalida-
de do objeto saltem, como "rãzinhas", os sentidos novos. 
Assim, cada pesquisador/a pode nominar com novas sig-
nificações o seu objeto que, em função disto, poderá ad-
quirir outros sentidos. E também para que daí possa sur-
gir uma nova teoria, que emerja da junção entre a teori-
zação e o objeto. 
As teorias pós-críticas orientam a atenção do/a pesqui-
sador/a para certas unidades analíticas, mas não lhe forne-
cem nenhuma "solução" para os problemas que está consi-
derando. O que elas fazem surgir são outros sentidos para 
um currículo, que, depois, vão ser cotejados com as outras 
teorias de sentido. Tal prática de pesquisa exige um grau 
razoável de tolerância à "frustração" académica, represen-
tada pelas incertezas da verdade; pela falha de solução 
para o problema pesquisado; pelo esgarçamento de qual-
quer unidade dos resultados; e pela capacidade de supor-
tar tudo o que, apesar dos esforços, não-faz-sentido. 
20 
Exige também que, para ser pesquisador/a, cada um/a 
opere na penumbra do que não sabe direito o que é: na 
penumbra da eficácia simbólica da linguagem. Que per-
corra os rizomas das significações culturais, que o/a ferti-
lizam, para praticar a pesquisa educacional de forma poé-
tica. Pesquisar-poetar: viver, em uma palavra. Arriscar, 
assumir o risco da morte, que é estar viva/o. E, assim, rea-
lizar sua sina e situação de estar no mundo, viva/o, sem 
considerar-se um produto acabado. 
21 
2 
Olhos de poder sobre o currículo* 
Os "olhos" que olhara as crianças na escola e na sala 
de aula não são nunca isentos, sequer desinteressados, 
muito menos descritivos. Seus "olhares" - sejam curricu-
lares, didáticos, pedagógicos, psicológicos, sociológicos, 
filosóficos, antropológicos - estão historicamente com-
prometidos em determinadas relações de poder-saber e 
implicados na constituição de certas políticas de identida-
de e de representação culturais, e não de outras. 
Este trabalho buscará dar outra visibilidade a um des-
ses olhares - o do dispositivo (cf. Foucault, 1979) avaliati-
vo dos Pareceres Descritivos. Dispositivo que, como se 
sabe, é amplamente utilizado em instituições escolares 
contemporâneas e valorizado como uma forma progres-
sista, democrática, e até emancipatória de realizar o pro-
cesso de avaliação das/os estudantes. Pela atribuição de 
tais significados, uma forma de avaliar que inclua, entre 
seus instrumentos, os Pareceres Descritivos, costuma ser 
contraposta àquelas formas que deles prescinde, as quais 
por isto são consideradas conservadoras, repressoras, au-
toritárias. Este é o jeito como estamos habituadas/os a qua-
lificar, pensar e falar dos Pareceres. 
* Este texto foi publicado, primeiramente, pela revista Educação & Realidade. Porto 
Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS, v. 21, n.l, jan.-jun./1996: 46-70. 
22 
Desde a conceitualização pós-estruturalista, em suas 
contribuições para o campo da teoria do currículo, consti-
tuirei o instrumental "ótico" para realizar algumas opera-
ções analíticas sobre o conjunto interdiscursivo formado 
por três positividades, quais sejam: o discurso didático, o 
da medicina clínica e o discurso da jurisprudência penal. 
Criada esta região de interpositividade, as operações des-
creverão os isomorfismos que a atravessam e produzem 
as tecnologias avaliativas dos pareceres escritos e de suas 
correlatas, a observação e a auto-avaliação. 
Obrigarei tais olhares a entrarem numa espécie de 
jogo, ao modo foucaultiano, que nos leve a: 1) estranhá-los 
e, por isto, desnaturalizá-los enquanto instrumentos de 
uma humanizante descrição das crianças e de seus de-
sempenhos escolares; 2) olhá-los com outros olhos, por 
focá-los com a lente de uma estratégica tecnologia educa-
cional de poder, controle, regulação, normalização e dis-
ciplinamento moral da infância-escolar; 3) enunciá-los em 
uma linguagem, não essencializada, mas de inspiração ge-
nealógica; 4) pensar em suas implicações para as atuais re-
lações entre currículo, subjetividade e poder; 5) ler sua 
textualidade, como uma das mais discriminatórias produ-
ções culturais da biopolítica escolar; 6) reinterrogar as evi-
dências de seus efeitos de poder, saber e verdade para a 
prática curricular, as crianças e seus grupos sociais. 
Mas isso é alguma coisa que este texto conseguirá, ou 
não, produzir em seu curso e ao seu final. Por ora, na pri-
meira parte - Usos e costumes -, iniciarei a operação por um 
elemento simples da prática avaliativa dos Pareceres Des-
critivos; isto é, por uma breve descrição de seus "usos e cos-
tumes", investigados em escolas integrantes das redes mu-
nicipal e estadual de ensino da cidade de Porto Alegre. 
Na segunda parte - Continuidades didáticas -, indicarei 
um duplo seguimento: o primeiro, encontrado em uma re-
23 
visão da literatura didática, feita em textos integrantes de 
duas posições bem conhecidas das/os educadoras/es bra-
sileiras/os - quais sejam, a Didática Tradicional e a Didá-
tica Fundamental (cf. Candau, 1985) -; e o segundo, refe-
rente à existência de uma linha contínua, que estende as 
significações vistas na prática escolar pesquisada até as 
orientações fornecidas pelos textos didáticos. 
Na terceira parte - Ver, saber -, acompanharei as des-
crições de Foucault (1987a) acerca das experiências e pe-
dagogias produtoras do poder-saber clínico, a fim de ana-
lisar o conjunto intertextual constituído pelas formações 
discursivas da medicina e da pedagogia, as quais colocam 
em jogo práticas análogas de "ver, saber". Re-descreverei 
alguns modos pelos quais a pedagogia moderna se apro-
priou e reterritorializou as positividades médicas de 
olhar e de produzir saber, para criar e pôr a funcionar os 
dispositivos avaliativos da observação, auto-avaliação e 
pareceres escritos. 
Na parte intitulada Dispositivo de penalização normativa, 
estabelecerei correlações entre a forma de penalização 
normativa moderna (Foucault, 1987b) e a avaliação esco-
lar, articulando esta região de interpositividade com a 
terceira, das formações clínicas. Farei isto para mostrar as 
regularidades discursivas e não-discursivas que constituí-
ram algumas das atuais tecnologias escolares de normali-
zação, ou seja, as mesmas que estabelecem as relações de 
força de um infantil-escolar consigo mesmo. 
Finalmente, em Olhos inocentes? Só se forem os nossos, a 
partir das pequenas rupturas óticas das partes anteriores 
indagarei sobre o porquê de tudo isso, para prosseguir 
suspendendo as costumeiras significações e práticas pe-
dagógicas dos Pareceres Descritivos. E, ao ir fazendo as-
sim, continuar olhando e dizendo algo um pouco dife-
rente acerca do poder produtivo desses "olhos", que in-
sistem em se manter bem abertos, e até "espichados" so-
bre o currículo da Educação Infantil. 
24 
Usos e costumes 
Para uma breve descrição dos Pareceres Descritivos, é 
suficiente dizer que tais documentos escolares consistem 
em uma ficha individual, preenchida pelas/os professo-
ras/es, com dados acerca do desempenho escolar de cada 
aluno e aluna, em um determinado período letivo. 
No discurso pedagógico escolar, os Pareceres não são 
considerados em si mesmos enquanto "instrumentos de 
avaliação" - tais como as provas, testes, exames -, já que 
eles não "servem" para avaliar as crianças. Em vez disto, 
são classificados na mesma categoria do Boletim Escolar 
enquanto "instrumentos de expressão dos resultados da 
avaliação", podendo fazer parte do próprio texto do bo-
letim, ou vir anexados a ele, em uma folha à parte. 
Assim, são significados e praticados pelas escolas e 
professoras como um instrumento a ser utilizado, somen-
te, "após" a realização de todo o processo de avaliação, 
feito por meio de outros instrumentosque não eles pró-
prios. Seu propósito declarado é o de comunicar - aos 
pais/mães ou responsáveis pela criança e, em algumas es-
colas, à própria criança e também à equipe diretiva - os 
progressos e as dificuldades individuais, fornecer suges-
tões de como melhorar, bem como apontar os resultados 
parciais/finais do processo de aprendizagem. 
Porém, encontrei a implementação de alguns meca-
nismos utilizados durante o processo avaliativo, que ape-
nas "funcionam" porque a adoção dos pareceres assim o 
exige, tais como: a) auto-avaliações e registros descritivos 
leitos pelas/os alunas/os sobre seus desempenhos; b) ano-
tações sistemáticas - diárias, semanais e mensais - feitas 
pelas professoras em seus Diários de Classe, onde regis-
tram observações sobre si próprias e sobre as crianças; c) 
escrita de pareceres, parciais ou finais, realizados por 
pais, mães, familiares e responsáveis pelos/as alunos/as; 
d) fichas escritas para reuniões pedagógicas - ou escritas 
UFRGS 
BIBLIOTECA SETORIAL OE EDUCAÇÃO 25 
durante sua realização - contendo apontamentos sobre o 
trabalho de sala de aula, a turma e cada aluno/a. 
Desse modo, a utilização dos Pareceres Descritivos -
alegadamente um mero instrumento de expressão/comu-
nicação dos resultados da avaliação - provoca modifica-
ções concretas no tipo e na forma de avaliação escolar, e 
não somente "expressa" ou "comunica" os resultados ob-
tidos por outros mecanismos. Em sua materialidade fun-
cional, os pareceres não somente expressam e comuni-
cam, mas ativamente produzem meios e instrumentos ava-
liativos, exercícios de regulação, procedimentos de objeti-
ficação e subjetivação dos/as infantis. 
Costumam ser escritos individualmente pela profes-
sora responsável por cada turma. Ou então, são produzi-
dos nos Conselhos de Classe, naquelas escolas que man-
têm esta instância avaliativa para turmas unidocentes -
reunindo professoras/es dos setores administrativo, peda-
gógico e as professoras de uma mesma série; bem como na 
situação de atendimento pluridocente a uma mesma tur-
ma do Currículo por Atividades, como foi encontrado nas 
4as séries do Ensino Fundamental, em algumas escolas da 
rede municipal de ensino. 
Em algumas escolas, o conteúdo do que aparece escri-
to nos Pareceres Descritivos fica exclusivamente a critério 
da professora de classe. Em outras, a coordenação peda-
gógica fornece orientações gerais sobre sua elaboração, 
apontando a necessidade de que os pareceres estejam em 
consonância com os objetivos e conteúdos mínimos esta-
belecidos nos planos de ensino, ou com aqueles efetiva-
mente trabalhados em aula. As professoras acreditam ser 
imprescindível realizar registros continuados das ocor-
rências em sala de aula e dos comportamentos indivi-
duais das crianças. Para que, de tal acúmulo - gradual, 
constante, cumulativo e, de preferência, cooperativo -, 
possam retirar evidências, que as dotem de "condições 
26 
ótimas" para descrever o "verdadeiro" desempenho esco-
lar de cada aluna/o. 
Foram encontrados dois tipos de "agendas ocultas", a 
serem seguidas no momento de escrever os pareceres: 1) 
as do primeiro tipo são aquelas de produção recente feita 
pelas próprias professoras, ou de modo solitário, por 
cada uma; ou em reuniões de classes paralelas, nas esco-
las que mantêm atendimento pluridocente e nas que im-
plementam um trabalho pedagógico organizado e siste-
mático; 2) as do segundo tipo consistem em "fichas pa-
dronizadas" (já amarelecidas), integradas por itens de 
condutas e comportamentos observáveis, cuja génese re-
conhecida data do período tecnicista dos anos setenta, 
mas que ainda mantêm plena vigência e legitimidade como 
guias de avaliação, embora não tenham sido objeto de 
análise recente pelas professoras. 
Tanto num quanto noutro tipo, os itens referem-se a: 
responsabilidade; cuidado com a aparência e com o ma-
terial escolar; relações com colegas e professora; pontua-
lidade e assiduidade; aproveitamento nas disciplinas/áre-
as de conhecimento; participação nas aulas; desenvolvi-
mento cognitivo, afetivo, psicomotor; hábitos de higiene. 
Orientando-se por suas agendas ocultas, as professoras 
encontram ali sugestões de áreas ou de comportamentos 
a serem observados, e mesmo modelos de frases padroni-
zadas, que as auxiliam na descrição da criança e de seu 
rendimento escolar. 
A elaboração dos pareceres pelas professoras e sua 
posterior entrega aos familiares e responsáveis seguem a 
periodicidade escolar bimestral, divisão do tempo escolar 
dominante no sistema público brasileiro, há mais ou me-
nos trinta anos. Estes escritos acompanham as notas ou 
conceitos e mesmo os substituem, como foi o caso das 
duas primeiras séries do Ensino Fundamental, no Rio 
Grande do Sul, em que as escolas, se assim decidissem, 
27 
solicitavam autorização à Secretaria Estadual de Educa-
ção - para as primeiras séries, desde 1989, e para as se-
gundas, desde 1990 -, ficando liberadas para emitir ape-
nas Pareceres Descritivos durante o ano letivo e, ao final 
deste, indicar se a/o aluna/o foi "Aprovado" ou "Reprova-
do" , sem necessidade de expressar os resultados da avali-
ação através de Notas ou Conceitos, obrigatórios para as 
outras séries do sistema de ensino. 
As professoras das Séries Iniciais consideram os Parece-
res como bastante avançados em relação aos "impiedosos" 
números das notas, e mesmo em relação às precariedades 
discriminativas dos conceitos. E as escolas, que trabalham 
com os Pareceres (ao invés de com notas ou conceitos, ou 
que os fazem acompanhar de Pareceres), são também consi-
deradas bastante avançadas - e até mesmo dignas de serem 
incluídas na categoria de "escolas cidadãs" -, no que se refe-
re ao caráter democrático de sua avaliação. 
Também foi referido pelas professoras que, nos cur-
sos de formação por elas realizados, seja nas faculdades 
de Educação ou nas escolas de Magistério, os pareceres 
escritos eram utilizados para descrever o desempenho de 
suas/seus professoras/es, a avaliação da disciplina, ou o 
seu próprio aproveitamento. Com este exercício, acredi-
tavam - elas próprias e as/os professoras/es - que as/os fu-
turas/os educadoras/es incorporariam tal instrumento em 
sua prática pedagógica, aperfeiçoando-o e democratizan-
do-o sempre mais. 
Essas são evidências facilmente encontráveis em esco-
las alinhadas no campo das pedagogias ditas progressis-
tas, conscientizadoras, emancipatórias. "Evidências" das 
quais temos nos ocupado muito pouco, deixando de rea-
lizar uma análise pós-crítica diferenciada que possa, no 
mínimo, dissipar a insistente familiaridade com que este 
tipo de prática vem sendo realizado no espaço institucio-
nal da escola. 
28 
Mas, e no discurso didático, legitimado pela comuni-
dade científica educacional, o que é dito em relação aos 
Pareceres Descritivos? Haverá aí alguma dissonância, rup-
turas, descontinuidades? Ou os "usos e costumes", falados 
nas escolas pesquisadas, podem ser homologados com tal 
discurso? Ainda mais: dentro deste mesmo discurso, é 
possível constatar diferenças entre os textos de uma didá-
tica tradicional e aqueles de uma outra, que pôs a primei-
ra em questão? A busca de alguma resposta a estas per-
guntas constitui o próximo lance. 
Continuidades didáticas 
Se percorrermos o tema da Avaliação - tal como apa-
rece na literatura didática brasileira dos últimos trinta ou 
quarenta anos -, encontraremos, além das provas e dos 
testes (em suas diversas formas), outros instrumentos e 
técnicas de avaliação, tais como: observação, auto-avalia-
çao, entrevista, estudo de caso, questionário, sociometria, 
anedotário, sistema de categorias, fichas padronizadas. 
Desses instrumentos, para analisar, em seu entrecru-
zamento com os Pareceres Descritivos, destaquei a "ob-
servação continuada do desempenho da criança pela pro-
fessora" e a "auto-avaliação", em função da frequência com 
que, de forma alinhada, costumam estar presentes, tanto 
nos textos didáticos quanto na prática pedagógica esco-
lar; bem comopelas indicações encontradas, em ambos 
Os domínios, de que estes constituem os dois instrumen-
tos imprescindíveis para uma adequada e corre ta produ-
ção dos Pareceres Descritivos. 
Conforme Pura Martins (1989), foi a teoria da Escola 
Nova aquela que modificou os procedimentos avaliativos 
da Escola Tradicional, deslocando-os da "evocação dos 
conhecimentos memorizados", realizada através de "in-
(errogatórios orais, provas e trabalhos escritos" para a 
29 
"auto-aval iação e a observação do comportamento do 
aluno" (ib.: 56). 
Nesta d i reção , Tur ra et alii (1980) dedicam nina cx-
tensa parte de seu prestigiado livro aos instrumentos <• .1 
técnica da observação, afirmando <|ue esla se constitui 
como "uma importante técnica de c o m p r e e n s ã o , possibi-
l i tando o conhecimento do aluno e do grupo de alunos" 
(ao fornecer dados para a "avaliação diagnostica, lorniat i -
va e somativa"); a l ém de ser uma técnica de "investiga-
ção" e t a m b é m de "ensino", cujas vantagens seriam as de 
"estudar os f e n ó m e n o s em sua variedade", permit i r "<> re-
gistro de dados enquanto ocorrem", e não requerer "co-
o p e r a ç ã o por parte de quem é observado" (ih.: 199). Para 
estas autoras, a "his tór ia do uso da observação remonta 
ao início dos tempos", sendo o "mais universal dos atos 
mentais do homem" (ib.: 202), empregado no campo 
educacional "para relatar várias atividades e característi-
cas de cr ianças , adolescentes e adultos" (ib.: 20IJ). 
Néric i (1985), outro "clássico" da literatura cliclálica 
tradicional, enfatiza a auto-aval iação para verificação da 
aprendizagem, como um "meio altamente educativo, ca-
paz de levar o educando a relletir sobre si mesmo e a to-
mar consciência da sua realidade como estudante" (ib.: 
453). Calcada na o p e r a ç ã o de "tomada de consciência", o 
autor indica que a auto-aval iação deve ter como objelivos 
educativos levar o educando a conscientizar-se de: um 
conjunto de valores; sua realidade humana; sua partici-
p a ç ã o na real ização da sua p r ó p r i a vida; seus deveres de 
estudante; suas deficiências escolares, por falta de- apti-
dões , de preparo anterior ou de insuficiente a tenção dis-
pensada aos estudos (ib.: 453-454); e assim por diante. 
Dentre as fichas de auto-aval iação, a serem preenchi-
das pelas/os alunas/os sobre seus p r ó p r i o s comportamen-
tos e atitudes, Nér ic i indica as fichas de: "Comportamen-
to Pessoal e Social", "Disciplina,ou Área de Estudo", "Dis-
30 
ciplina após uma Prova" e "Trabalho em Grupo" (ib.: 
455-458). Quanto à observação dos alunos feita pelo pro-
fessor, sugere a "Ficha do Professor", enfatizando a con-
veniência de que a ficha contenha dados referentes aos se-
guintes aspectos: 1) comportamento inicial do educando 
em u m curso ou ano letivo, do qual cita como exemplos de 
questões a serem feitas: "É introvertido ou extrovertido?" 
"Que aspectos negativos apresenta?"; 2) suas aspirações e 
aptidões, com interrogações como: "Qual seu nível mental?" 
"E ambicioso?" ; 3) comportamento e rendimento escolar 
atuais, perguntando: "Interessa-se pela disciplina?" "Os 
resultados obtidos estão de acordo com as expectativas?" 
"Nota-se algo perturbando-o?" (ib.: 458-460). 
Para não ficar apenas no "setor de conhecimentos", 
Nérici recomenda que seria "interessante [...] que de mês 
em mês ou dois em dois meses t a m b é m fosse apreciado o 
comportamento do educando. E nada impediria que se es-
tabelecesse u m cri tério de notas mensais ou bimensais que 
incluísse, t a m b é m , o comportamento" (ib.: 492). Sugere 
que a nota final seja dada "com base em 60% sobre a verifi-
cação de conhecimentos e 40% sobre a avaliação do com-
portamento". Os aspectos do comportamento a serem ava-
liados consistiriam em: "respeito e consideração pelos co-
legas; cooperação; a l t ruísmo; atitudes morais (veracidade, 
solidariedade, honorabilidade, etc); ordem nos trabalhos; 
pontualidade; senso de responsabilidade; perseverança; 
controle emocional; hábitos higiénicos" (ib.: 493-497). 
Acerca da expres são do aproveitamento do/a aluno/a, 
encontramos em Schmitz (1984) a re legação a segundo 
plano "da forma como este aproveitamento é registrado 
(seja nota, seja menção)" , e o pr imado de que "tanto o 
professor como cada aluno e a família tomem conheci-
mento da si tuação real". Como afirma: "Melhor do que 
uma comunicação vaga e indeterminada é relatar-lhes o 
que de fato representa o aproveitamento do educando. A 
incerteza, a dúv ida são piores do que a comunicação clara 
31 
e definida do nível em que o aluno se encontra na realida-
de" (ib.: 159). 
No sentido de evitar tais incertezas e dúvidas , Selimil/. 
orienta o/a professor/a para que comunique "com sinceri-
dade e clareza, aos alunos e seus pais, os pontos cm que 
eles estão bem e aqueles nos quais necessitam de mais es-
forço e trabalho". Para at ingir tais p ropós i tos , esta comu-
nicação deve ser "simplificada, fazendo-se tanto quanto 
possível da mesma forma, fácil de interpretar e suficien-
temente descritiva, para que os responsáveis entendam o 
que significa". E enfatiza: "Deveria ser acompanhada de 
parecer descritivo" (ib.: 160). 
J á no campo da inicialmente chamada Didática Fun-
damental, Kenski (1989) d á prosseguimento ãs posições 
da Didática Tradicional , ao atribuir grande impor tânc ia 
à auto-avaliação, aqui ligada à "opção por um ensino trans-
formador", o que implica, conforme a autora, que essa ca-
pacidade - a de auto-avaliar-se - "se volte para dentro de 
si mesmo nas suas relações com o conhecimento e com os 
outros, através da auto-crítica, da auto-avaliação" (//;.: MO). 
T a m b é m Mizukami (1980), ao caracterizar a "aborda-
gem sociocultural" do processo de ensino, reitera estas 
posições ao afirmar: "A verdadeira avaliação do processo 
consiste na auto-aval iação e/ou avaliação m ú t u a e perma-
nente da prá t ica educativa por professor e alunos. | . . . | No 
processo de avaliação proposto, tanto os alunos quanto os 
professores saberão quais suas dificuldades, quais seus 
progressos" (ib.: 102). 
Dentro do paradigma construtivista, I l o í l m a n n (1991) 
ressalta o papel e o valor da obsci-vação o da expressão de 
seus resultados aos pais e responsáveis , ao elaborar uma 
"Proposta de Avaliação" para a Pré-Escola. Tal proposta 
deve estar baseada "na análise dos princípios inerentes a 
uma proposta construtivista de educação (a partir da leo-
32 
ria psicogenét ica de Jean Piaget), coerente com uma peda-
gogia libertadora, conscientizadora das diferenças sociais 
e culturais", e na "teoria das medidas referenciadas a crité-
r io" de Heraldo Marell in Vianna (ib.: 23-24). 
Hoffmann p r o p õ e uma avaliação a ser realizada como 
"acompanhamento no processo de desenvolvimento", por 
meio de: "observação da criança, fundamentada no co-
nhecimento de suas etapas de desenvolvimento"; "opor-
tunização de novos desafios com base na observação e re-
flexão teórica"; "registro das manifestações das cr ianças e 
de aspectos significativos de seu desenvolvimento"; "diá-
logo frequente e s is temático entre os adultos que l idam 
com a cr iança e os pais ou responsáveis" (ib.: 104). Para 
operacionalizar tais processos avaliativos, sugere os "rela-
tórios de avaliação", cujas anotações devem ser "frequen-
tes, sobre o cotidiano de cada criança, de modo a subsidi-
ar permanentemente o trabalho j u n t o a ela, desvelando 
caminhos ao educador para ajudá-la a ampliar suas con-
quistas" (ib.: 107). 
Kramer et alii (1989) fornecem três tipos de estratégias 
para realizar a avaliação em uma Pré-Escola, cuja educa-
ção esteja "voltada para a cidadania" (ib.: 104), quais se-
j a m : 1) "análises e discussões per iód icas sobre o trabalho 
pedagóg ico" ; 2) "observações e registros sis temáticos"; 3) 
"arquivos contendo planos e materiais referentes aos te-
mas, re la tór ios das cr ianças" (ib.: 96). 
Indicam como instrumentos para a real ização das ob-
servações: 1) "caderno de observações", para registrol i -
vre, pela professora, de "acontecimentos novos", "con-
quistas e/ou mudanças, de determinadas cr ianças", e ano-
tações de "algumas in te rp re tações sobre suas p r ó p r i a s 
atitudes e sentimentos"; 2) "relatór ios de avaliação" ind i -
viduais, nos quais a professora registra anotações feitas 
diariamente de "três a cinco crianças", que posteriormen-
te se rão discutidos "com a supervisora" e entregues aos 
33 
pais; 3) "ca lendár ios mensais", para as atividades realiza-
das na turma e, em outra versão, os "ca lendár ios mensais 
individuais", "onde cada cr iança escreve ou desenha dia-
riamente o que faz ou a atividade preferida do dia, ele." 
(ib.: 97). 
Assim como nas p roduções didáticas consideradas tra-
dicionais, t a m b é m no tipo de texto da Didática Renovada, 
o trabalho com as famílias é destacado como uma estraté-
gia importante para conhecer melhor as/os alunas/os: " lius-
camos [...] o in tercâmbio escola-famílias, visando o melhor 
conhecimento das crianças e, portanto, uma maior quali-
dade para o trabalho pedagóg ico" (ib.: 102). 
Percorrendo por alguns textos da Didática Tradicio-
nal e da Didát ica Renovada, foi possível configurar suas 
respectivas posições acerca dos Pareceres Descritivos (e 
dos correlatos instrumentos de observação e auto-avalia-
ção). Posições que tornaram visível n ã o uma ruptura sig-
nificativa, mas uma coesa unidade de discurso, expressa 
na forte valor ização dos mesmos inslruinenlos/ técnicas e 
na i m p o r t â n c i a de divulgar às famílias e responsáveis pe-
las cr ianças os registros produzidos por sua aplicação. 
As duas tendências didáticas que, a pr incípio, signiíica-
ram-se como antagónicas, confronlando-sc nos anos 80, 
denotaram (ao menos na revisão feita) estarem afinal ala-
vancadas por um mesmo enunciado: aquele do discurso 
educacional e pedagógico da Modernidade, que sustenta a 
prát ica de que quanto mais se conhece, melhor se educa. 
Foi verificada, t a m b é m , a p resença desla linha contí-
nua estendida entre os pos tu lados /or ien tações dos textos 
d idát icos e as prát icas escolares com os Pareceres Descri-
tivos. Nestes três domínios discursivos, as justificaiivas apre-
sentadas, para a uti l ização dos instrumentos da observa-
ção, auto-aval iação e pareceres, possu íam um mesmo 
34 
sentido: seu ca rá te r progressista, participativo, humani-
zador e pleno de cidadania. 
Continuidade dupla, sem dúvida sustentada pela v i -
gência de u m imperativo pedagóg i co mais duradouro do 
que aquele que pensamos (ou queremos) que seja novo ou 
renovado, no campo da prá t ica teórica didát ica, bem 
como da prá t ica escolar, qual seja: C o n h e ç a mais e me-
lhor a cr iança-escolar , para mais e melhor governá- la . 
É possível ainda fazer aparecer, na regularidade da 
formação discursiva (cf. Foucault, 1972) pedagóg ica con-
t e m p o r â n e a - j á aqui, de maneira n ã o tão explíci ta - , ou-
tras continuidades. Pois, se, entre u m registro de discurso 
didát ico e o outro (assim como entre tais registros e a p rá -
tica escolar), existem m u d a n ç a s sim, em re lação aos for-
matos das fichas e registros, n ã o encontrei quaisquer 
t ransformações no que se refere ao seguinte: 
1) O p e r a ç ã o realizada, qual seja, a prá t ica discursiva 
de que as professoras observem as cr ianças para melhor 
descrevê-las, preferencialmente registrando "tudo" o que 
"vêem", sem deixar nada de fora. O u en tão , no mesmo 
d iapasão , levar as cr ianças a se auto-observarem, através 
da prá t ica da auto-aval iação, para que melhor possam 
descrever-se. Dizendo e escrevendo como são, do que 
gostam e do que n ã o gostam, o que sentem, como agem 
em diferentes si tuações, o que amam e o que odeiam, o 
que esperam, em que acreditam, o que temem, como gos-
tariam que o mundo, as coisas, as pessoas fossem, como 
são suas re lações com os outros. Exemplar desta posição é 
a seguinte "Ficha de Auto-Avaliação Bimestral" aplicada 
em 1994 a uma turma de 4 a série, de uma escola estadual 
de Porto Alegre: 
35 
F i c h a de Auto-Avaliação Bimestral 
Como sou Sempre Nunca As vezes 
1) Presto auxílio aos outros quando me pedem. 
2) Sinto prazer em participar do meu grupo. 
3) Quando tenho algo a dizer, levanto a mão e espero 
minha vez de falar. 
4) Em aula, falo baixo para não atrapalhar os outros. 
5) Considero-me um bom companheiro de grupo. 
Como cuido do meu estudo 
\ Compareço às aulas com todo material necessário. 
11 Apresento os temas nas datas marcadas. 
15 i Sou assíduo e pontual às aulas. 
- 1 PTCS;O atenção quando a professora explica. 
1 5) Participo das aulas dando opiniões. 
6) Gosto de vir para a aula. 
Como cuido do meu ambiente Sempre Nunca As vezes 
1) Sinto que esta escola também é minha, por isto cuido 
dela. 
2) Uso o banheiro e bebedouro antes de entrar e no 
recreio, cuidando da higiene. 
3) Coloco o lixo nos locais adequados. 
4) Na hora da merenda, no refeitório, mostro educação. 
Como meus colegas são comigo Péssimo Regular Bom 
Como minha família é comigo 
Como minha professora é comigo 
Como me saí neste bimestre - Por quê? 
2) O p ç õ e s teóricas, j á que, na tr ípl ice tcxlualidade 
pesquisada, a escolha recai sobre aquilo mesmo que é 
fundamento da pedagogia moderna, ou seja, a necessida-
de de "conhecer": esquadrinhando, categorizando, clas-
sificando, expondo, identificando, descrevendo, caracte-
rizando, narrando, contando minuciosamente. Km suma, 
ativamente produzindo, ao representar e l ixar a identi-
dade do infantil-escolar (e, por decor rênc ia , de suas cul-
turas e grupos sociais), para poder e saber educá- lo . 
Como se "existisse" verdadeiramente um "ser-inlanlil" 
em si-mesmo, apartado do que dele "os outros" dizem, do 
que dele "os outros" representam, do que a ele "os ou-
tros" atribuem como sendo sua subjetividade particular e 
identidade social. Ou seja, como se pudesse "existir" um 
"ser" que fosse independente, livre, a u t ó n o m o de ser um 
ser da linguagem, narrado e representado conforme de-
terminadas polít icas culturais e de r ep re sen t ação (cl. Co-
razza, 1995a; 1995b; 1995c; 1990). 
3) Posição e papel da professora, enquanto aquela 
profissional que, de posse de uma grade (visível ou invisí-
vel) de comportamentos e atitudes, anota, segundo um 
cód igo ali constante, para decifrá-lo antes, durante e de-
pois. Ou, dito de outro modo: o que é observado já estava 
estabelecido, pelo fato mesmo da seleção do que seria ob-
servado haver sido antecipadamente feita, em função das 
prá t icas e ideais culturais vigentes. 
4) " E n d e r e ç o " para onde vão aqueles relatór ios , regis-
tros, notas, produzidos no espaço da insti tuição escolar, 
cujos des t ina tár ios são, a p r inc íp io , outros adultos e, em 
seguida, a p r ó p r i a cr iança. Cr iança que, de modo irreme-
diável, através de mecanismos parentais de p rémio ou de 
castigo, aí deve se reconhecer, ver sua verdade representa-
da, identificar-se consigo mesma, reencontrar seu si-mes-
ma. Porque criança n ã o fala, é falada; não se representa, é 
representada; n ã o tem desejos, quereres, "estares a f im", 
mas é desejada, querida, "ficada a f im" (ou não) . Assim 
38 
como outros grupos sociais ou subjetividades em desvan-
tagem ou forclusão cultural. 
5) C o n t e ú d o dos aspectos observados (e/ou auto-ava-
liados), os quais dizem respeito a atitudes, sentimentos, 
comportamentos, etapas de desenvolvimento, caracterís-
ticas, níveis de consciência, aspirações , ap t idões , prefe-
rências , emoções , capacidades de adap tação , desejos. Em 
suma, que inscrevem aspectos morais, constituidores de 
uma verdadeira ontologia-escolar (cf. Larrosa, 1994) es-
pecífica. Ontologia que n ã o descreve u m infantil essencial 
(mesmo porque este n ã o existe), mas produz uma essên-
cia de infantil-escolar, um universal e genér i co sujeito, 
dotando-o de qualidades em nada alheias àquelas habili-
dades, atitudes, condutas, que, supostamente, estavam 
apenas sendo observadas,para depois serem simples-
mente descritas. 
Tanto no discurso da Didática Tradicional e da Didáti-
ca Renovada quanto na prát ica escolar com ele transversa-
lizada, não encontrei diferenças nem rupturas nos enunci-
ados que sustentam as práticas avaliativas da observação, 
da auto-avaliação e dos Pareceres, no que concerne a: 
1) Objeto: é u m único e mesmo objeto discursivo so-
bre o qual se elaboram essas séries de enunciados didát i -
cos, qual seja, a cr iança-de-escola. 
2) Forma e tipo de encadeamento: repete-se uma cons-
tância da enunciação descritiva e um conjunto de regras, 
que tornam possíveis as descrições (e autodescrições) esco-
lares, mediatizadas por prescrições, instrumentos, proto-
colos padronizados, regu lamentações institucionais. 
3) Sistema dos conceitos: produzidos por uma mesma 
arquitetura conceituai, ou seja, aquela const ru ída por con-
ceitos morais e escolares. 
4) Identidade e persis tência dos temas: existência de 
uma mesma unidade temática, expressa por aquilo que é 
39 
e que deve ser a cr iança, cuja identidade foi , é, e continua 
sendo estabelecida pela escola. 
Dou por suspenso este exercício de identificação das 
continuidades didáticas, o qual descreveu tanto a obseiva-
ção (e uma sua versão, a auto-avaliação) quanto os Parece-
res Descritivos, que realizam investimentos no corpo polí-
tico das crianças, ao operarem como tecnologias de domi-
nação, vigilância e normal ização. Com isto, ficamos libera-
das/os para prosseguir nossas operações analíticas, sob o 
registro do "Ver" e do "Saber", a f im de tornar possível 
uma redescr ição de como a pedagogia moderna se apro-
pr iou e reterritorializou as modalidades médicas de olhar 
e de produzir saber, objetivando constituir alguns de seus 
dispositivos pedagógicos de avaliação, por colocar em jogo 
a positividade do olhar e do registro descritivo. 
Ver, saber 
Encontrando-se incorporada a quase todos os campos 
do conhecimento científico, a técnica da observação é 
considerada u m dos mais importantes instrumentos para 
identificação e descr ição da dita realidade física e natural, 
e t a m b é m da assim chamada realidade social e cultural. 
Erigida como central pelo paradigma positivista da ciên-
cia moderna, sua legi t imação embasou-se na concepção 
de que existem tais realidades, const i tu ídas por seus múl-
tiplos elementos, os quais j á têm ali uma existência con-
creta, esperando para serem descobertos e reconhecidos. 
Elementos que d ã o a ver sua verdade, justamente por 
meio dos atos de observação, desde que realizados de 
modo científico pelo sujeito consciente e un i tá r io da Ra-
zão. Integra este postulado a ideia de que a linguagem 
humana nada mais é do que um instrumento que expres-
sa e representa as coisas existentes, e delas afirma, elabo-
ra categorias, classifica-as e as discrimina em suas verda-
deiras substâncias. 
40 
T a m b é m para a prá t ica moderna da avaliação esco-
lar, a observação adquir iu u m alto valor e elevado estatu-
to de verdade. Por isto, importa analisar as a p r o x i m a ç õ e s 
deste dispositivo escolar a dispositivos de outro campo 
discursivo, o da medicina - que ocupa u m lugar determi-
nante na "arquitetura de conjunto das ciências huma-
nas", porque mais do que qualquer outro, está p r ó x i m o 
"da disposição an t ropo lóg ica que as fundamenta" (Fou-
cault, 1987a: 228). Indicarei algumas modalidades que 
tal deslocamento assume na prá t ica curricular, levan-
do-nos a pensar como os dois diferentes tipos de discur-
so, no que se refere à observação, podem ter sido forma-
dos a partir de regras aná logas . 
Consultando textos médicos dos séculos X V I I I e X I X , 
Foucault t ra ta rá do lugar privilegiado concedido pela clí-
nica moderna à observação e aos saberes da í derivados. 
Indicará que o pr imeiro olhar clínico que observa é aque-
le que se abs tém de qualquer in tervenção, pois que é 
mudo e sem gesto, j á que nada busca de oculto, de outras 
coisas que n ã o aquelas ali presentes: "H ipóc ra t e s só se 
ateve à observação, desprezando todos os sistemas. So-
mente seguindo seus passos a medicina p ô d e ser aperfei-
çoada" (Foucault, 1987a: 121). 
Na temát ica do clínico, a pureza do olhar estava liga-
da a um certo silêncio que permit ia escutar, porque este 
pressupunha a i n t e r r u p ç ã o dos discursos loquazes dos 
sistemas, a suspensão de toda teoria, à beira do leito do 
doente. Era tal modo de olhar que permit ia reduzir os 
propós i tos da imag inação , j á que estes sempre antecipa-
vam aquilo que se percebia, descobriam relações ilusórias, 
e faziam falar o que era inacessível aos sentidos. 
Essa forma dé observação - e s p o n t â n e a e ocasional -
n ã o podia coexistir com a e x p e r i m e n t a ç ã o , desde que 
aquele que observava, lia a natureza; enquanto aquele 
que fazia a exper iênc ia , a interrogava. Embora n ã o se pu-
41 
desse confundir a observação com a e x p e r i m e n t a ç ã o -
pois esta era o resultado ou o efeito, enquanto aquela era 
o meio ou a causa - , elas n ã o se excluíam, j á que a obser-
vação conduzia, naturalmente, à exper iênc ia . 
Mas, se isto devia suceder, a experiência licava obriga-
da a interrogar apenas no vocabulário c no interior da l in-
guagem que lhe haviam sido propostos pelas coisas obser-
vadas. De maneira tal, que as questões a serem leilas só po-
deriam ser fundadas caso fossem respostas a uma questão 
sem pergunta, a uma resposta absoluta que não implicava 
nenhuma linguagem anterior porque era, em sentido es-
trito, a primeira palavra. Assim conformou-se o inaugural 
olhar analítico que, embora estivesse isento de toda inter-
venção, reconsti tuía a génese da composição. Porque esta 
génese nada mais era do que a sintaxe da linguagem, que 
as p rópr ias coisas falavam em seu silêncio or iginár io . 
Somente com a o rgan ização a inst i tucionalização de 
dois domínios conjugados - o hospitalar e o pedagógico - , 
é que ocorreram t rans formações no olhar clínico que 
apenas olhava, sem intervir. No d o m í n i o hospitalar, o es-
pe tácu lo que se dava a ver - reunindo em um mesmo lu-
gar, muitos doentes - criou condições de possibilidade 
para que fossem colocadas à parte as modificações pelas 
quais passavam as doenças : em termos de regiões , esta-
ções, naturezas diferenciadas de tratamentos, ele. K, a par 
disso, para que fossem buscadas suas constAnciãs, as quais 
garantiriam os graus certos de previsão e de certezas. 
Antes de ser institucionalizada, a doença era, em cada 
família e comunidade, tratada com determinados cuida-
dos, dentro de u m regime especial, e tomada na singula-
ridade das condições físicas particulares onde aparecia, o 
que fazia de cada uma algo incomparáve l à outra. Desde 
que o conhecimento m é d i c o deí iniu-se em termos de 
constância e frequência , as particularidades acabaram 
sendo significadas como inconvenientes e negativas. Para 
42 
que fosse possível a c o m p a r a ç ã o , o novo saber passou a 
exigir u m d o m í n i o neutro e h o m o g é n e o em todas as suas 
partes. Assim como exigiu u m d o m í n i o aberto, sem p r i n -
cípio de seleção ou de exclusão a qualquer forma de ocor-
rência patológica . 
As enfermarias ofereceram este domín io , em que tam-
b é m foi formado o d o m í n i o pedagóg ico , ocupado pelo 
professor e seus alunos, onde o ato de reconhecer e o es-
forço de conhecer real izar-se-ão em um ún ico movimen-
to. N ã o existia mais aquele que sabia e aquele que ignora-
va, mas aquele que descobria e aqueles diante dos quais se 
descobria. A clínica hospitalar possibilitou a manifes tação 
da verdade médica , j á que, mesmo n ã o sendo transparen-
te à verdade, a refração que lhe era p r ó p r i a permitia, por 
sua constância , a análise desta verdade. 
Como o que nos interessa analisar aqui é o olhar pe-
dagógico , que se vale da observação e da auto-observação 
para executar o trabalho descritivo do infantil-escolar, 
cabe apontar algumas analogias entre tais montagensclí-
nicas e as nossas, escolares. Se tomarmos a p r o d u ç ã o mo-
derna do sentimento de infância, investigado por Aries 
(1981), é possível pensar que o olhar medieval, di r igido 
ao pequeno adulto - que simplesmente ainda n ã o havia 
crescido e que transitava, indistintamente, pelo espaço 
públ ico - , constituiu este pr imeiro modo de observar. O u 
seja, que era u m olhar puro, mudo, sem gestos, anterior a 
toda in te rvenção , e fiel ao imediatamente sensível. 
Com o aparecimento do d o m í n i o escolar - concomi-
tante ao da família conjugal burguesa - e dos saberes a ele 
correlacionados, uma outra conf iguração passou a ser 
produzida. Se temos muitas e diversas crianças juntas -
uma "coleção d é crianças", portanto - , as variações ficam 
como que anuladas e os efeitos das repet ições é que vão 
delinear os fundamentos da verdade sobre cada cr iança 
da educação moderna, que ali começava a ser conjugada, 
43 
em sua condição de enunciabilidade, e a ser olhada, em 
sua nova si tuação de visibilidade. 
Para isto, fora preciso situar esta cr iança em um espa-
ço coletivo e h o m o g é n e o , u m espaço neutro e aberto, que 
reorganizasse o campo de sua educação e onde o saber 
p e d a g ó g i c o se instaurasse, ao mesmo tempo em que ins-
taurava e redefinia o estatuto social do novo sujeilo-infan-
t i l . Fora necessár io criar outro espaço social, em muito si-
milar ao da enfermaria, para que o olhar pedagóg i co não 
cessasse mais de objetivar tal sujeito, penetrando em seus 
espaços mais ín t imos e inesperados, transformando-o em 
foco de sua observação, e investindo seu corpo de poder, 
ao tomá- lo como objeto de saber. 
Esse novo olhar educacional é um olhar que ilumina 
u m sujeito nascente, saído de trevas indefinidas. I Im olhar 
que conhece u m sujeito desconhecido, a té en t ão mera có-
pia em carbono do adulto. E, claro, um olhar que liberta 
este sujeito indistinto da carência de infância, ao modo da 
expe r i ênc ia visual do I luminismo, pois que é o olhar lan-
çado pelo sujeito adulto racional, integrante <le um corpo 
social t a m b é m racional. 
Vejamos, u m pouco mais detidamente, as análises da 
clínica e do saber médicos realizadas por Foucault, quan-
to ao entrecruzamento do olhar e das ques tões a ele com-
binadas, em cor re l ação com os dispositivos de avaliação 
p e d a g ó g i c a : a observação , a au to-ava l iação e os parece-
res escritos. 
Em tal d i reção , para que a escola moderna estabele-
cesse e legitimasse esses novos dispositivos, podemos 
pensar que foram requeridos os mesmos meios necessári-
os para a const i tu ição do poder méd ico , dentro do domí-
nio que Foucault chama de "medicina dos sintomas". 
Quais sejam: 
1) Al te rnânc ia dos momentos falados e dos momentos 
percebidos em uma observação. 
44 
Deparamo-nos aqui com o inquér i to ideal, delineado 
por Pinel, para o qual se tratava, no início, de apenas ob-
servar, olhando o estado atual da d o e n ç a em suas mani-
festações. [Outro n ã o é o índice geral da a p r o x i m a ç ã o da 
professora à cr iança. Em seu pr imei ro contato com a cr i-
ança, o momento é preferencialmente visual.] Após este 
momento ótico, o clínico que seguisse a Pinel tomava no-
tas no interior do mesmo exame. [Na prá t ica pedagóg ica , 
a professora que segue as or ien tações fornecidas, tanto 
pela escola quanto pela literatura didát ica , anota tudo 
aquilo que at ingiu seus sentidos de observadora. Para, 
logo depois - como o clínico - , interrogar a cr iança sobre 
si mesma, usualmente sob a forma da auto-aval iação.] Em 
tais inquér i tos ideais, tem-se, portanto, uma forma mista 
do percebido e do falado, da ques tão e da observação, da 
pergunta e do visto. 
O segundo momento da observação ficava colocado 
sob o signo da linguagem e t a m b é m da r e m e m o r a ç ã o dos 
desenvolvimentos e das incidências sucessivas, onde se 
tratava [tanto para o doente e seus familiares, na clínica, 
quanto para a criança e seus familiares, na escola] de relatar 
o que foi, em dado momento, percep t íve l sobre si-mes-
ma, sobre seus hábi tos , sua vida passada. [É impossível 
n ã o lembrar da prá t ica rotineira, principalmente na Edu-
cação Infanti l , de realizar entrevistas preliminares com os 
pais /mães/ responsáveis pela cr iança. Bem como da p rá t i -
ca, cada vez mais frequente, de professoras das Séries I n i -
ciais proporem, ao início do ano letivo, como uma das ati-
vidades, a p r o d u ç ã o das chamadas "His tór ias de Vida". 
Histórias em que a criança, auxiliada por sua família, res-
gata aspectos integrantes de seu nascimento e pr imeira 
infância, a través de fotografias, á lbuns de m e m ó r i a , teste-
munhos dos adultos, de i rmãos e i rmãs mais velhos/as, re-
gistros de l embranças , e tc ] 
No movimento pendular dessa al ternância , o terceiro 
momento é novamente um momento percebido, pois é 
45 
necessário dar conta, dia após dia, do progresso da doença 
na clínica [bem como do estado do infantil-aprendiz na 
sala de aula]. Progresso que se refere à sua evolução, ao 
aparecimento eventual de novos fenómenos , ao estágio de 
suas atitudes, aos efeitos da doença [na clínica] e aos eleitos 
do ensino [no desenvolvimento da/o aprendi/.]. 
Por f im, no ú l t imo tempo, chegava-se à palavra, a (mal, 
para o clínico, deveria ser uma palavra capaz de expres-
sar suas prescr ições para o regime de convalescença do 
doente. [Enquanto que, para a professora, na escola, con-
siste naquela palavra que enuncia prescr ições (cf. Coraz-
za, 1995a: 51-52) e n d e r e ç a d a s à cr iança e seus familiares, 
e que é materializada nos Pareceres Descritivos.] 
Fazendo equivaler "doença" à "cr iança", teremos en-
contrado uma das muitas similaridades do dispositivo da 
observação, no saber clínico e no saber pedagóg ico , to-
mando a liberdade de usar a seguinte af i rmação de Fou-
cault (1987a: 127): "Nesta pulsação regular da palavra e 
do olhar, a d o e n ç a [a cr iança] pouco a pouco pronuncia 
sua verdade; verdade que ela dá a ver e a ouvir, e cujo tex-
to, que no entanto só tem um sentido, não pode ser resti-
tu ído , em sua totalidade indubitável , a não sei- por dois 
sentidos: o que olha e o que escuta". 
2) O esforço para definir uma forma es ta tu tár ia de 
corre lação entre o olhar e a linguagem. 
O problema teór ico e prá t ico colocado para os clíni-
cos [e, como podemos pensar, t a m b é m para as professo-
ras] foi o de saber se seria possível lazer entrai em uma 
rep resen tação , espacialmente legível e conceilualmente 
coerente, aquilo que era visto pelo olhar - a sintomatolo-
gia visível - e o que era dito na análise verbal. 
Trabalhando com abscissas e ordenadas, na clínica, 
foram feitas diversas tentativas para correlacionar o visí-
vel e o enunciável , pois este problema se manifestava em 
uma dificuldade técnica, bastante reveladora das rx igên -
46 
cias do pensamento clínico, isto é, o "quadro". [Da mes-
ma forma como, no campo educacional, os quadros teóri-
cos h e g e m ó n i c o s da pedagogia devem fornecer, à profes-
sora-que-observa, os indicadores técnicos da si tuação da 
cr iança. Aqui pode servir de exemplo p a r a d i g m á t i c o "o 
quadro" do desenvolvimento cognitivo infantil , produzi-
do pela epistemologia genét ica piagetiana, o qual possi-
bil i ta que, a cada segmento visível observado, seja a t r ibuí -
do u m valor significativo, quando en tão o mesmo quadro 
passa a ter t ambém uma função de análise, operando como 
cr i tér io de avaliação do desenvolvimento da cr iança e de 
seu desempenho curricular.] 
Po rém, a estrutura analí t ica [tanto da clínica quanto 
da escola] n ã o é dada pelo quadro, mas é anterior a ele, 
porque a corre lação entre o visível e o enunciável j á esta-
va fixada em u m a priori essencial, fornecido pela configu-
ração conceituai que engendrou o p r ó p r i o quadro. Deste 
modo, tal quadro só tem como função repartir o que é v i -
sível, no interior de uma conf iguração previamente dada. 
[Naescola, o que a professora observa de visível na crian-
ça está enquadrado nas categorias, etapas, níveis, ordens, 
fixados pelo a priori essencial aos enunciados. É por isto 
que tal quadro n ã o faz conhecer, mas permite, quando 
muito, reconhecer.] 
3) O ideal de uma descrição exaustiva. 
Por ser dotado de u m aspecto arbitrário e tautológico, o 
quadro vai conduzir o saber clínico [e t ambém o saber peda-
gógico] a um outro problema: o de correlacionar o visível e 
o enunciável, por meio de uma descrição que seja dupla-
mente fiel. De um lado, fiel em relação a seu objeto e, de ou-
tro, em relação à linguagem utilizada para descrevê-lo. 
Quanto ao objeto, n ã o pode haver lacunas, e quanto à 
linguagem, n ã o deve existir nenhum desvio na transcri-
ção do objeto. A esta ú l t ima cabe uma dupla função: ser 
exata, ao estabelecer uma corre lação rigorosa entre cada 
47 
setor do visível e u m elemento enunciável que lhe corres-
ponda o mais possível. E, ao mesmo tempo, por operar 
assim, com u m vocabulár io constante e fixo, precisa exer-
cer uma função denominadora que autorize a compara-
ção, a genera l ização e a colocação no interior de um con-
jun to . E a descr ição - ou melhor, o labor implíci to da l in -
guagem na descr ição - que, mais seguramente do que o 
quadro, garante, na clínica, a t r ans fo rmação do sintoma 
em signo, a passagem do doente à doença , o acesso do in-
dividual ao conceituai. 
Torna-se possível pensar que, no caso pedagóg ico , é o 
trabalho implíci to da l inguagem na descr ição dos Parece-
res Descritivos que garante a transformação dos sintomas -
representados pelos ditos "problemas de aprendizagem" 
- em signos. Signos que realizam a passagem do infantil à 
cr iança-de-escola , e o acesso do singular ao conceituai, 
isto é, à categoria de infância-escolar normal, por autori-
zar a c o m p a r a ç ã o , a genera l ização e a colocação do indi -
vidual no interior de u m conjunto. 
Como deixar de ver aqui a montagem feita pelas pe-
dagogias modernas em d i reção ao "ver" a criança, e ao 
mesmo tempo, dela "saber"? Como não reconhecer as 
formas de exper iência visual pedagógica , as quais, previa-
mente apontadas, d ã o a impressão que se está a conhecer, 
quando na verdade, no m á x i m o se "reconhece" aquilo 
que no quadro j á estava estabelecido e legitimado como 
conhecido? Como n ã o encontrar - na observação, na au-
to-avaliação e nos pareceres - este "olho que fala", objeti-
vante e examinador? Olho que, ao olhar e falar, enuncia a 
verdade da cr iança-de-escola, genér ica e universal, con-
ceitualmente normalizada e des-singularizada. K, como 
duas faces da mesma moeda, um olho que, ao mesmo 
tempo olha e fala de u m corpo particular, sobre o qual se 
exerce a força normalizadora desse genér ico . 
U m modo de olhar - curricular, d idát ico, pedagóg i -
co, investigador, etc. - eme é ensinado por uma (ida. Em 
48 
parte, a nossa, que educa educadoras/es. Que transmite 
tecnologias de governo e formas de subjetivação do in -
fantil , a fim de que sirvam como "mestres da verdade" so-
bre a infância-escolar, ao exigir sua descritibilidade total 
e exaustiva. Uma fala que ensina - às/aos professoras/es, 
aos pa is /mães , aos grupos e às p r ó p r i a s cr ianças - quem 
são as "cr ianças", de quais qualidades e característ icas são 
dotadas, por quais etapas deve rão passar, para, finalmen-
te, transformarem-se naquele sujeito "normal ' requerido 
pela escola, pela cultura, pela sociedade. 
É desse modo que a linguagem dos Pareceres Descri-
tivos ensina: olhando analí t ica e racionalmente o que era 
invisível da cr iança - em palavras clínicas, a seus sinto-
mas. Levando-a a interrogar a si-mesma e interrogando 
os/as adultos/as que com ela vivem. Enunciando, na mes-
ma linguagem, seus atributos finalmente visíveis. E, ao 
agir assim, transmitindo a nova arquitetura de u m ser 
que, na escola da Modernidade, acabara de nascer. 
Dispositivo de penalização normativa 
Quase terminando este ensaio, é poss ível continuar 
pensando os Pareceres Descritivos como u m dos disposi-
tivos constituidores da pena l i zação normativa da escola. 
Dispositivo que deve, tal como aconteceu na j u r i sp ru -
d ênc i a penal moderna, atuar sobre o co ração , o intelec-
to, a vontade, as disposições , e n ã o mais t r ipudiar sobre 
o corpo, como era p r ó p r i o do antigo supl íc io fazer (cf. 
Foucault, 1987b). 
Este transvasamento só é descrit ível por saber-se que 
a passagem dos suplícios do corpo criminoso - p róp r io s 
da época clássica -.para o controle, r egu lação e modifica-
ção da alma criminosa moderna realizou u m trajeto que 
deixou de enfocar o p r ó p r i o ato transgressor do código, e 
passou a focar as sombras, escondidas por trás dos ele-
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mentos da causa. T a l como a medicina dos sintomas obri-
gou-se a trocar de olhar, para enfim saber, cientificamen-
te, das sombras da doença . 
Tratemos de alguns movimentos desta prá t ica jurídi-
ca, em relação com a atual pena l ização normativa peda-
gógica, primeiramente, por nos situar na escola dos casti-
gos corporais. Nesta - em suas versões da palmatór ia , ajoe-
lhar em grãos de mi lho , ter as orelhas puxadas, ver-se en-
cerrado no quarto escuro, ser beliscado/a, surrado/a o 
que ainda operava era uma forma de j u r i s p r u d ê n c i a pe-
nal-escolar, baseada na proibição, isto é, um modo de pe-
nal ização exercido por meio da lei. 
Pouco a pouco, tal j u r i s p r u d ê n c i a vai dar lugar ao 
" c h a p é u de burro", ao "ficar sem recreio", à assinatura no 
"l ivro de ocorrênc ias" , à i ronia e à h u m i l h a ç ã o públicas. 
As cor reções passam a ser enfaticamente morais, porque 
moral é a tónica da nova escola, e morais se rão e n t ã o suas 
penalidades. 
Essa "suavização" punitiva somente pode ser entendi-
da a partir de outra conf iguração, estabelecida por novas 
visibilidades e por novos enunciados. | T a n i b é m aqui, 
como na clínica, é de t ransformações no visível e no enun-
ciável de que se trata.] A reorgan ização espacial da escola 
de massas e sua verbal ização pediam uma outra objetiva-
ção: aquela que devia i r de um/a a um/a, para formar um 
conjunto, distribuindo-os/as em espaços quadriculariza-
dos, e aí buscar suas regularidades, estabelecer classifica-
ções, fundar p a d r õ e s [assim como no hospi(al|. Uma ob-
je t ivação que n ã o definisse apenas a fornia or ig inár ia de 
toda verdade, mas que principalmente prescrevesse as re-
gras de exercício pertinentes a tal verdade. 
De que/quem era a necessidade de ser objetivado pelo 
olhar, ser falado e prescrito de outro modo? Justo de um 
corpo que passava a ser enunciado como eminentemente 
cognitivo, regido por uma alma moral. Enquanto que na 
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escola dos castigos físicos o objeto declarado era o conhe-
cimento acumulado pela humanidade e sua meta a aqui-
sição deste saber, na escola nova, ativa e epistemofíl ica, o 
objeto passa a ser o corpo cognitivo/alma moral, e a nor-
malidade destes é que se torna o desiderato da nova arte 
de educar. 
Outra al iança entre o ver e o dizer fazia-se presente. 
N ã o era mais u m olhar esgazeado, baço, lento e vago que 
observava; mas, sim, u m olhar loquaz que esquadrinhava 
o corpo visível e a alma invisível - tanto do criminoso 
quanto do doente, e t a m b é m da cr iança - , trazendo-os à 
luz, fazendo-os existir no preciso, e precioso, momento 
de fu lguração do seu embate com o poder de conhecer. 
U m olhar que, mais do que examinar, fundava u m sujeito 
e, em torno dele, organizava uma linguagem racional. 
Olhar que se tornava o depos i t á r io e a fonte da clareza. E 
t inha o poder de trazer à luz uma verdade que ele só rece-
bia à medida que lhe dava à luz. O qual, ao abrir-se, abria 
a verdade de uma pr imeira abertura. 
Inaugurara-se, assim, a vigilância aberta à evidência 
dos con t eúdos visíveis, dados a ver pelo corpo, e a sanção 
normalizadora, dada a saber pela alma. Em função de ne-
cessidades prá t icas sociais, e dos investimentos

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