Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
D E M O C R A C I A V I V A 39 JUNHO 2008 I B A S E 58 DEMOCRACIA VIVA Nº 39 O P I N I Ã O Francisco Menezes* No segundo semestre de 2006, o Programa Bolsa Família (PBF) atingiu a meta de transferência de renda para 11 milhões de famílias, contemplando algo estimado em 45 milhões de pessoas. Presente em todos os municípios brasileiros, o programa tem como marcas a regularidade e a pontualidade do depósito na conta de cada um(a) de seus(suas) titulares. Com dotação orçamentária, em 2008, de R$ 10,5 bilhões, teve ampliada a faixa etária de 15 para 17 anos relacionada ao benefício adicional repas- sado às famílias com filhos(as) que freqüentam a escola, o que estende o pagamento a outros 1,75 milhão de jovens. Em que pese ter sofrido uma acirrada crítica desde que surgiu, o fato é que a unificação de quatro programas de transferência de renda, em outubro de 2003 – que resultou no Bolsa Família –, e a sucessão de medidas de ajuste e aperfeiçoamento Faces e demandas da pobreza no Brasil JUNHO 2008 59 dessa política consolidaram aquele que hoje é considerado um dos mais importantes progra- mas do gênero em todo o mundo. Além disso, a redução mais recente da desigualdade, em patamares que ainda não tinham sido experimentados no Brasil, tem como um dos fatores explicativos a renda transferida para as pessoas mais pobres. Segundo Ricardo Barros, Miguel Foguel e Gabriel Ulyssea, “os fa- tores responsáveis por tal redução acentuada na desigualdade são múltiplos, o que deve fa- vorecer sua continuidade”. Os mesmos auto- res concluem que a queda recente na desigual- dade deve ser atribuída fundamentalmente a: (a) redução da heterogeneidade edu- cacional da força de trabalho e dos cor- respondentes diferencias de remunera- ção; (b) reduções nas imperfeições no funcionamento do mercado de traba- lho; e (c) expansão e melhor focalização das transferências públicas de renda (Barros; Foguel; Ulyssea, 2006). Outro estudo, de Fábio Veras, Serguei Soares, Marcelo Medeiros e Rafael Osório (2006), revela que a transferência de renda com o PBF, a partir de sua criação, foi responsável por 21% da queda da desigualdade em 2004, atrás apenas da renda proveniente do salário e das aposentadorias e pensões de até um sa- lário mínimo. Críticas e denúncias Em contraposição, se forem observadas as críti- cas mais enfáticas dirigidas ao programa – que encontram em alguns órgãos da grande impren- sa seus principais porta-vozes –, constata-se que seguiram uma ordem temporal, cada uma substituindo a anterior ao fim de um período, mas sempre negando o programa como parte de uma política social adequada para o Brasil. Primeiro, foi a denúncia de que entre os(as) beneficiados(as) não estavam as pessoas mais pobres. Com o aperfeiçoamento do Ca- dastro Único, o encaminhamento do processo de recadastramento e a formação de uma rede pública de fiscalização do programa, ao lado da incorporação acelerada de novas famílias, o problema perdeu força jornalística. Algum tempo depois, apareceu a se- gunda crítica, na qual as condicionalidades da saúde e da educação não eram acompanha- das suficientemente. Com essa crítica, a afir- mação de que o programa gera acomodação, com titulares não querendo mais trabalhar. Essa fase das críticas também foi se atenuando. Mas, agora, em seu terceiro momento, des- ponta a condenação ao tipo de uso do recurso repassado feito pelas famílias, com base na constatação de que cresce a aquisição de eletro- domésticos por algumas pessoas portadoras do cartão do PBF. Ao lado de todas as críticas, uma adje- tivação permanente: o programa é assisten- cialista. E se condena o uso de recursos volu- mosos com transferência de renda, em vez de despendê-los na educação das camadas mais pobres da população – viabilizando, assim, a capacidade de disputa por postos de traba- lho em um mercado cada vez mais exigente. Sobre isso, vale uma pronta-resposta, pois a visão revela profundo desconhecimento da realidade brasileira. Para quem trabalha com os temas da pobreza e da desigualdade, não há nenhuma dúvida sobre a importância da educação para transformações mais profundas e duradouras. A questão é que a carência da educação não é a única barreira para o acesso aos direitos que toda a população deve ter. Aliás, no quadro de grande vulnerabilidade que ainda predo- mina no Brasil, para poderem estudar, os(as) alunos(as) precisam se alimentar, se vestir, morar em condições dignas, ter assistência de saúde e transporte para chegar à escola. E parte considerável desse contingente apresenta gran- des dificuldades perante essas condições A educação é um entre muitos direitos negados à população mais pobre. É indispen- sável que se garantam todos os direitos. Porém, para os críticos, garantir um só direito para a população mais pobre já é muito. Garantir todos os direitos, nem pensar. O exame sobre essas críticas pode ser feito com base na discussão de parte dos resul- tados do programa. Importa, também, desven- dar algumas questões ainda não presentes no debate. Utiliza-se, para isso, o referencial da pesquisa realizada pelo Ibase, Repercussões do Programa Bolsa Família sobre a Segurança Alimentar das Famílias Beneficiadas. Vulnerabilidades sociais O PBF faz parte de uma política social volta- da para o enfrentamento da pobreza no país. O artigo nacional desta edição trata da ques- tão (p. 8), demonstrando os limites da identi- ficação das pessoas mais vulneráveis apenas pela renda. 60 DEMOCRACIA VIVA Nº 39 O fato é que a pobreza no Brasil é com- plexa, com muitas caras e diferentes demandas. Existem as diferenças ditadas pelas especifici- dades regionais e, mesmo em alguns casos, locais. Além disso, a pobreza urbana é dife- rente da vivida na área rural. Outro aspecto é que, na percepção que as próprias pessoas pobres têm de si, a pobreza se identifica e se mede pelas vulnerabilidades, que podem ser muitas. Família monoparental, doença crônica e outras limitações físicas per- manentes, analfabetismo, residên- cia distante de serviços, estado precário da habitação e muitos outros determinantes que, com- binados com a baixa renda, ca- racterizam o risco permanente de estar em uma situação de carên- cias de necessidades essenciais. Adotam, assim, concepção am- pliada de pobreza, ao mesmo tempo que assumem um signifi- cado relativo dessa mesma pobre- za, comparando as capacidades de satisfação das necessidades determinadas socialmente no es- paço de convívio. Na interpretação do Ibase, esse é um desafio para o progra- ma, visto que os(as) próprios(as) beneficiados(as) encontram difi- culdades em compreender os cri- térios de inclusão e de definição do valor a ser repassado, restrito à renda per capita familiar e à presença de filhos na escola. Uma situação que se agrava com o fato de essas famílias, em sua maioria, não possuírem uma renda estável, com parte significativa tendo seus ganhos obtidos em biscates. O que fazer diante disso? Criar um in- dicador de vulnerabilidade que permita às fa- mílias, com diferentes fragilidades, estarem incluídas? Haveria muita dificuldade quanto à disponibilidade dos dados para a medição do grau de vulnerabilidade dessas famílias. Porém, mais difícil e dispendioso seria verificar a veraci- dade das informações, fazendo retornar os ques- tionamentos quanto à justiça de algumas pes- soas estarem incluídas e outras não. Entretanto, em nosso ponto de vista, não deve ser repas- sada ao PBF a responsabilidade de correção das inúmeras vulnerabilidades que, historicamente, atingem os grupos socialmente mais frágeis. O Bolsa Família é um programa de transferência de renda para as famílias cujas rendas estão abaixo de determinado patamar. Dentro da política social atualmente empre- gada, possui grande importância, mas não pode assumirresponsabilidades de enfren- tamento de problemas que outros programas e outras ações, alguns de alcance universal, devem responder. É necessário, sim, aprimo- rar a capacidade de aferir a renda declarada pelos(as) beneficiados(as) com o maior grau de acerto possível e, também, informar, de ma- neira clara, os critérios adotados para a in- clusão e a fixação do valor a ser recebido. Direito? São muitas as dificuldades para acompanhar o cumprimento das condicionalidades, e é necessário manter, e mesmo intensificar, o esforço para que se disponha das informações acerca da freqüência escolar e do compare- cimento periódico nas unidades de saúde pe- las famílias que fazem parte do programa. Mas não para punir aquelas que não cumprem os compromissos. Aliás, apesar das normas do PBF se anunciarem duras perante inadimplências, na prática, a exigência do governo tem sido bem mais branda. Os acompanhamentos sobre dados que sejam fidedignos desses compro- missos podem permitir verificar dificuldades das famílias no cumprimento, com possibili- dade de ser dado o devido apoio por órgãos governamentais habilitados para a superação dos problemas. Ou, não menos importante, quando identificada a falta da oferta do serviço de saúde ou educação, o poder público ofere- cer a possibilidade de correção da carência. Consideramos, ainda, que a classifi- cação dos compromissos como “condicionali- dades” é inadequada. Como uma das conse- qüências, estimula a burla das informações acerca de seu cumprimento pela justa preo- cupação das pessoas responsáveis pela infor- mação em não prejudicar as famílias que não conseguem cumprir as obrigações. Melhor será criar incentivos para que os serviços sejam uti- lizados e garantir as possibilidades de apoio quando surgem dificuldades. Trabalho e emancipação O que foi observado na pesquisa do Ibase desmentiu, cabalmente, a hipótese de que parte dos(as) titulares se acomodam com o recurso recebido, deixando de trabalhar ou buscar emprego. Ao contrário, na etapa qua- litativa da pesquisa, a quase totalidade das Na percepção que as próprias pessoas pobres têm de si, a pobreza se identifica e se mede pelas vulnerabilidades, que podem ser muitas O P I N I Ã O JUNHO 2008 61 pessoas participantes declarava o desejo de um emprego, preferencialmente com carteira assinada, quando era perguntada sobre as principais aspirações. Na etapa quantitativa, o pequeno núme- ro que declarou ter deixado o emprego após o ingresso no programa afirmou tê-lo feito pelas condições degradantes em que trabalhava ou pelo baixíssimo salário que recebia. O fato, também, é que o valor repassado pelo progra- ma é insuficiente para o suprimento das neces- sidades básicas, obrigando a que se busque outros meios para garanti-lo. Segundo apurado na pesquisa, o valor médio mensal repassado aos(às) beneficiados(as) é de R$ 73. Na etapa qualitativa, as titulares que par- ticiparam de grupos focais classificavam freqüen- temente o repasse como ajuda, uma comple- mentação da renda que as famílias precisavam dispor. Na pesquisa, constatou-se que 46% dos domicílios com famílias contempladas pelo pro- grama tiveram renda mensal inferior a R$ 380 (salário mínimo durante a coleta de dados), e 32,5% tiveram renda entre R$ 381 e R$ 570. Ainda assim, a incorporação no pro- grama tem adquirido grande significado para essas famílias, particularmente no acesso à ali- mentação, cuja repercussão é notória. Obser- vou-se o aumento na quantidade e na varie- dade dos alimentos consumidos, especialmente cereais, feijões, carnes, leite, ovos e, em menor proporção, frutas verduras e legumes – embora também tenha crescido o consumo de biscoi- tos, açúcares, doces e refrigerantes. Igualmente, aumentou a compra de alimentos para crianças e o número de refei- ções por dia. Outros gastos, como os reali- zados com material escolar, vestuário e remé- dios, destacam-se na utilização dos recursos do PBF. Embora não apareça com peso signi- ficativo, ocorre também o uso do dinheiro mensal repassado para a aquisição de ele- trodomésticos, geralmente em prestações mensais. Parece absurdo o questionamento feito a essa escolha, sendo revelador da não- aceitação, por parte dos próceres da crítica, do acesso pelas pessoas mais pobres ao mer- cado desses bens. M A RI A N A S A N TA RE LL I FACES E DEMANDAS DA POBREZA NO BRASIL 62 DEMOCRACIA VIVA Nº 39 *Francisco Menezes Diretor do Ibase, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e coordenador da pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas Não menos importante tem sido o sig- nificado da garantia regular de uma renda adi- cional ao orçamento doméstico. Dada a pon- tualidade com que essa renda é repassada, viabiliza-se o planejamento dos gastos fami- liares, o que significa um avanço importante para o melhor uso dos escassos recursos. Na pesquisa do Ibase, ainda foi consta- tado, na aquisição de alimentos, o uso do fiado como meio de realizar as compras com a garantia do cartão. Mas o predomínio das compras em supermercados e sacolões con- firmou a tendência à busca por preços mais baixos, dentro de um planejamento que visa ao menor dispêndio. Por outro lado, a certeza do dinheiro depositado em data certa a cada mês vem trans- formando o cartão de saque do PBF no equi- valente a um cartão de crédito, que abre a pos- sibilidade para crediários e aquisição de bens duráveis – incluindo eletrodomésticos, mate- riais para reforma nas habitações e, mesmo, compras de instrumentos de trabalhos, tanto na área urbana como rural. Vale ressaltar, tam- bém, o significado da mulher ser a titular pre- ferencial do cartão. Isso traz expressivo reflexo sobre a importância da figura feminina no domicílio e no meio em que vive. REFERÊNCIAS BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (Orgs.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília, DF: Ipea, 2006. v.1. VERAS, F.; SOARES, S.; MEDEIROS, M.; OSÓRIO, R. Programas de transferência de renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade e a pobreza. Brasília, DF: Centro Internacional de Pobreza, Pnud/Ipea, 2006. Desafios a enfrentar Na análise sobre os efeitos do PBF, é neces- sário considerar seus limites e, como já foi as- sinalado, não fazer dele uma pantomima capaz de responder por todos os papéis que devem ser desempenhados por outros programas e outras ações da política social. A perspectiva que não pode ser abandonada é a constru- ção de um conjunto de iniciativas articuladas com o programa, fazendo uso dos dados do Cadúnico (cadastro que origina a seleção das famílias a serem incorporadas), que apontem para a promoção de direitos desse grupo social e que construam as condições para sua emancipação. Nesse sentido, a criação da Secretaria de Oportunidades, no Ministério do Desenvolvi- mento Social e Combate à Fome (MDS), sugere a disposição do governo em tomar esse rumo. Claro está que essa disposição não pode ficar restrita a um ministério, e que os resultados dependerão muito da geração de condições econômicas e sociais, como aquelas que se dão no âmbito do trabalho, com crescimento do emprego formal; do desenvolvimento agrário, com soluções para o problema fundiário e o for- talecimento da agricultura familiar; da saúde, com acesso crescente das pessoas mais pobres aos serviços nessa área, na redução dos grandes déficits ainda existentes nas condições sanitá- rias e de moradia; da educação, com a conso- lidação das medidas que seguem a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). A diversidade de situações que está por trás das vulnerabilidades sociais no Brasil não recomenda soluções únicas. O quepode fazer a diferença, no salto a ser dado para quebrar o ciclo vicioso de geração de pobreza e desigual- dade, é a capacidade de execução de múlti- plas iniciativas, ajustadas à realidade das várias “caras” da pobreza e com um sentido sistê- mico, ou seja, com uma gerência capaz de articulá-las de forma a extrair dali resultados com o maior potencial possível. Há que se fazer um esforço para o funcio- namento efetivo de órgãos interministeriais já existentes, como as câmaras social e de segu- rança alimentar, que poderão garantir a arti- culação entre os diferentes programas e as diversas ações. Desafio maior ainda será fazer valer a capacidade de trabalho articulado das diferentes esferas federativas (federal, esta- duais e municipais), desarmando as disputas político-eleitorais que, geralmente, criam difi- culdades intransponíveis para o funcionamento desse trabalho. Por fim, não é menos decisiva a partici- pação social na construção do processo de emancipação. Seja a partir de conselhos ou de outras instâncias com participação de re- presentações da sociedade, há que se realizar uma transição do papel a elas hoje delegado, que deve passar a ser muito mais de formula- ção de demandas e propostas para essa polí- tica do que o exercício de fiscalização, sem dispor das condições para exercê-la. O P I N I Ã O
Compartilhar