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AULA 3 FAMÍLIA, SAÚDE E SOCIEDADE Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226 determina que a família está sob “especial proteção do estado”. Esta afirmação é significativa porque responsabiliza o estado no sentido de prover politicas públicas que possam apoiar as famílias, sobretudo as famílias pobres. As famílias classificadas como de alta vulnerabilidade estão sujeitas a um conjunto de condições estressantes no seu cotidiano, tais como a insegurança alimentar, falta de moradia digna, dificuldade de acesso ao serviços de saúde e educação, além da maior exposição aos crimes comuns e diversos tipos de violência. Essa é uma realidade antiga em nosso país, porém ações efetivas no sentido de diminuir a pobreza e melhorar a distribuição de renda são muito recentes. Por este motivo é importante analisarmos a evolução das politicas públicas voltadas para as famílias, e sua efetividade para melhorar a sua qualidade de vida, além dos contextos e ambiências dessas famílias. TEMA 1 – A FAMÍLIA COMO FOCO DA ATENÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS O Brasil sofre com uma crônica e cruel desigualdade social e econômica. As famílias pobres caminharam sozinhas por muito tempo, sem suporte social e sem programas organizados de assistência. As ações sociais eram praticadas com as características do assistencialismo, caridade e até clientelismo, ou seja, manipulação das necessidades das pessoas para obter vantagem politica. O grande desafio seria estruturar a assistência social de modo que superasse essa tradição de ineficiência e pudesse chegar às ações governamentais da assistência, superando o paradigma assistencialista para entrar no paradigma da verdadeira Assistência Social (Rose, 2006). Quando pensamos na família com todas as suas funções e responsabilidades, e ao mesmo tempo pensamos no contexto social e financeiro, e demais problemas vivenciados pelas famílias de alta vulnerabilidade, podemos entender a complexidade enfrentada pelas pessoas para criar seus filhos, e sobreviver de modo honesto. Para dar conta dessa complexidade há necessidade de integração dos programas de assistência de modo intersetorial, englobando os programas da saúde e educação aos de assistência social. Estes três setores se direcionam de acordo com a equidade, 3 ou discriminação positiva, priorizando as famílias mais pobres, têm interfaces comuns e estratégias práticas que podem ser compartilhadas entre si. 1.1 Pobreza e extrema pobreza É importante esclarecermos os conceitos de pobreza e de extrema pobreza devido sua importância no direcionamento das politicas públicas. É sabido que não é fácil estabelecer-se um critério que possa de forma justa delimitar o que é ser pobre ou pior ainda, o que é estar abaixo da linha de pobreza, devido ao conjunto de necessidades presentes nas vidas das famílias, porém estes conceitos vem sendo discutidos no mundo todo, na tentativa de achar-se um modo de combater a miséria. Estes dois conceitos tem um referencial teórico técnico que se reporta a uma classificação mundial. Relacionam-se a dado especifico da renda disponível para que uma pessoa possa sobreviver. No Brasil, o IBGE analisa outros indicadores além da renda, tais como acesso à alimentação, à educação e informação, saneamento básico, condições mínimas de moradia, acesso à água potável, energia elétrica e outros serviços que possam proporcionar condições de dignidade às pessoas. O Banco Mundial delimita o conceito de pobreza a quem vive com até metade de salário mínimo por mês. A extrema pobreza, ou como já ouvimos dizer, “abaixo da linha da pobreza” refere-se às pessoas com renda inferior a um quarto de salário mínimo por mês (Barbosa; Souza; Soares, 2020). No parâmetro internacional, isso significa viver com um valor em torno de 1,90 dólares americanos por dia. Atualmente isso significa aproximadamente 10 Reais. Levando-se em conta uma família com 4 pessoas, sendo 2 adultos e 2 crianças, onde apenas um adulto está empregado e ganha um salário mínimo por mês (o salário mínimo 2020 é de R$1.045,00), estas pessoas teriam a disponibilidade de apenas R$ 8,70 por dia por membro da família para sua manutenção. Este valor é irrisório considerando as necessidades básicas de uma família. Na verdade, não seria suficiente para que todos pudessem comer duas vezes ao dia, ficando todas as outras necessidades descobertas. Se nesta mesma família, ambos os pais trabalhassem e conseguissem ganhar um salario mínimo cada um, a classificação desta família subiria para a classificação de pobreza. 4 Neste aspecto, programas de distribuição de renda têm sido fundamentais para que milhares de famílias pudessem sair da extrema pobreza em que se encontravam e migrar para outra classificação, como veremos mais adiante, quando estudarmos as principais ações e programas sociais implementados no Brasil. Pessoas em extrema pobreza são muito vulneráveis em diversos aspectos e precisam de ajuda, porém, a ação não pode ser eventual. Por este motivo o planejamento deve ser composto por todos os setores que influenciam diretamente a geração de renda, destacando-se os programas econômicos, de geração de emprego e renda e aqueles que trabalham diretamente na abordagem familiar : a educação, a saúde e a assistência social. 1.1.1 Famílias pobres ou em extrema pobreza chefiadas por mulheres A situação financeira é mais grave quando a família é chefiada por uma mulher. Todos sabem que os trabalhos ofertados às mulheres, são pagos de modo inferior aos que são ofertados aos homens. Em alguns momentos, até exercendo a mesma função, há homens melhor remunerados do que mulheres. A outra dificuldade para a mulher, é a velada (porque é ilegal) discriminação quando se sabe que a mulher tem filhos pequenos, ou que deseja engravidar. Quando a mulher informa a sua gravidez, ela é comumente vítima de assédio, sendo de certa forma coagida a pedir demissão, sofrendo pressão constante dentro do trabalho. São poucas as empresas cidadãs, que dão suporte para a mulher grávida e a mulher nutriz, para que esta não apenas mantenha seu emprego, sendo produtiva, mas que também sinta-se tranquila com relação à sua saúde e aos cuidados do seu filho. Para dar segurança às famílias, sobretudo à mãe que trabalha fora de casa, o setor público precisa se organizar e adequar seus horários de funcionamento de modo a atender as necessidades das famílias. Cito por exemplo os horários de funcionamento de creches, escolas, unidades de saúde. Na maioria das vezes estes estabelecimentos funcionam entre 8h e 17h. Em 2017, a reedição da PNAB (Politica Nacional de Atenção Básica) propôs incentivo financeiro para as Unidades de Saúde que atuassem com horário estendido, entre 7h e 19h. Imaginem como facilitaria para a mãe que retorna à sua casa até às 18h, ter a oportunidade de levar sua criança na 5 Unidade de Saúde para atualizar a carteira de vacina, ou mesmo para uma consulta de acompanhamento. Melhor ainda seria termos creches que funcionasse no período da noite, pelo menos até às 22h, para a mãe que trabalha no período noturno. Há muitas mulheres que trabalham em restaurantes, lanchonetes, fábricas, hospitais e que não tem onde deixar seus filhos em segurança. Diante de situações onde a opção é não ter quem cuide dos filhos, obviamente que a mulher deixará de exercer atividade remunerada, que seria fundamental para a sua plena emancipação, para exercer o cuidado com a criança. TEMA 2 – O CONTEXTO URBANO DAS FAMÍLIAS POBRES Além dos programas diretamente relacionados à assistência, percebemos que as ações de infra estrutura das cidades precisam ser priorizadas de modo social. É claro que os antigos erros nas fundações das cidades não são fáceis de serem corrigidos, como é o caso de cidades antigascomo Salvador, Rio de janeiro e São Paulo, porém a expansão das cidades pode contar hoje com o recurso do planejamento urbano. 2.1 Urbanismo voltado para o social No Brasil, nota-se que as grandes cidades convivem com uma linha divisória no que concerne aos serviços públicos. Os bairros de pessoas de melhor classificação econômica apresentam melhor infra estrutura, enquanto que nos bairros pobres há carências generalizadas de serviços. Vale lembrar que a melhora da infra estrutura repercute na qualidade de vida como um todo, inclusive na segurança pública. Morar na periferia não seria problema, se as pessoas tivessem esgoto, asfalto, iluminação pública, creche, escola, Unidade de Saúde, arborização de vias, flores nos canteiros, espaços de lazer como parques, academias públicas e gestão municipal regionalizada. Cito como exemplo um serviço muito importante, mas ainda não estendido a todos os bairros em muitas cidades: a iluminação de vias. A iluminação pública tem uma forte relação com a segurança pública. Ruas iluminadas incentivam a população a ocupação dos espaços públicos, em atividades de lazer, convívio coletivo, inibindo o espaço das atividades ilegais. Atualmente as crianças não brincam mais nas ruas devido a sua insegurança. 6 O que antes era um espaço de convivência familiar, integração social de vizinhos e facilitador da solidariedade, tornou-se um espaço inseguro ao extremo, um incentivo ao individualismo, às portas fechadas, ao isolamento. Podemos sem dúvida mudar isso com um conjunto de estratégias estruturadas pelo setor público, com amplo apoio da sociedade. 2.1.1 Transporte Urbano – Cicloativismo Outro ponto muito importante é o transporte metropolitano. Há muitas discussões que envolvem o transporte público, que passam por temas relacionados, como o meio ambiente, o tempo perdido durante a locomoção das pessoas para o trabalho nas grandes cidades, as questões de saúde envolvendo o estresse no trânsito e as vidas perdidas nos acidentes. Uma alternativa frequentemente apontada é o aumento do uso da bicicleta. Acho interessante que este tema tenha sido considerado relevante apenas recentemente no nosso país, embora a bicicleta seja o meio de transporte individual mais usado pelas pessoas há muito tempo, sobretudo nas camadas sociais menos favorecidas. Felizmente a classe média trouxe o tema para a condição de ativismo, requisitando a construção de ciclovias com o objetivo de transporte e não apenas de lazer. Mas para que este uso da bicicleta seja mais ampliado, há necessidade de construção de estacionamentos seguros para bicicletas com ligação direta das vias com os terminais metropolitanos. O ciclo ativismo, apesar de estar mais concentrado na classe média, repercute diretamente nas camadas sociais mais pobres, que sempre usaram a bicicleta como transporte, como suporte ao trabalho, tais como os trabalhadores da construção civil e diversos outros trabalhadores autônomos, mais recentemente os entregadores por aplicativo. 2.1.2 Espaços urbanos seguros O tema da segurança é sem dúvida o mais relevante para as famílias pobres, logo em seguida das necessidades básicas como alimentação e moradia. A vulnerabilidade social torna muitas famílias reféns de bandidos, traficantes, milicianos, além da captura de jovens e crianças pelo tráfico e soldados do crime. Pessoas que moram em áreas de extrema insegurança, consideradas pela policia como áreas conflagradas, ou seja, praticamente em 7 situação de guerra, sofrem de estresse crônico, são tolhidas dos seus direitos em diversos sentidos. Os jornais divulgam frequentemente notícias de famílias que foram expulsas de suas casas por traficantes, sem que ninguém viesse socorrê-las. São pessoas ameaçadas, intimidadas, sem alternativas. O poder público se mantem inerte diante dessas situações. A insegurança e o contexto de criminalidade dificultam ainda mais o provimento de ações públicas nessas localidades. É bem mais difícil prover professores para as escolas, como também médicos e demais profissionais de saúde para as Unidades de Saúde. Até serviços básicos como correios e ambulâncias precisam de “autorização” para adentrar em áreas dominadas. Infelizmente sem a atuação completa e comprometida do setor público, essas situações na vislumbram melhora. TEMA 3 – A POLITICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL VOLTADA PARA A FAMÍLIA A Constituição Federal de 1988 é com muita justiça chamada de Constituição Cidadã. Embora criticada por muitos de ideologia neoliberal, ou aqueles que tão somente pensam de forma linear, a verdade é que a constituição estendeu a condição de cidadania a todos os brasileiros, ao expressar o direito dos cidadãos e o dever do Estado. 3.1 Tripé da Seguridade Social A Seguridade Social é formada pelas 3 principais políticas públicas que trazem sustentação social que são as políticas de saúde, com a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), da Assistência social, com a criação do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e a Previdência Social com a criação do INSS (Brasil, 1988). Dentre as 3 políticas públicas, a Previdência Social é a única que prevê contribuição, mesmo assim existem os benefícios sociais para situações especiais, como é o caso dos idosos e pessoas com deficiência. A Assistência social e a saúde retiraram o rótulo da indigência, que desqualificava a pessoa pobre, ampliando suas ações de modo universal, porém o mais importante não foi a universalização das ações, mas o sentido de direito 8 do cidadão, rompendo com o sentido assistencialista e entrando no contexto de política pública. Todas as pessoas que necessitem de assistência podem acessar o sistema de seguridade social, conforme previsto em lei. 3.2 A família na centralidade De modo muito especial, entendendo-se o papel da família dentro da sociedade, a Política Nacional de Assistência Social coloca a família na sua centralidade, tornando-a alvo de suporte por parte do estado, ressaltando suas funções e atribuições conforme reza a NOB/SUAS 2005 A proteção social de assistência social consiste no conjunto de ações, cuidados, atenções, benefícios e auxílios ofertados pelo SUAS para redução e prevenção do impacto das vicissitudes sociais e naturais ao ciclo da vida, à dignidade humana e à família como núcleo básico de sustentação afetiva, biológica e relacional. (Brasil, 2005, p. 16 – grifo nosso) Por este motivo criou-se uma rede de suporte estruturada na organização familiar, com programas direcionados pelas politicas públicas e também pelo terceiro setor constituído pelas ONGs e demais organizações filantrópicas. O destaque desse novo formato da assistência é a visão sistêmica das relações humanas. Antes os programas eram direcionados aos indivíduos, assim como a visão da doença era restrita ao biológico e igualmente um fenômeno individual. Ao tornar a família o alvo da abordagem, tanto a Saúde como a Assistência encaram a realidade da coletividade, interação relacional e também pluralidade do ser humano. A NOB/SUAS detalha ainda qual é a função do estado na assistência a estas famílias: Para a proteção social de assistência social o princípio de matricialidade sociofamiliar significa que a família é o núcleo social básico de acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e protagonismo social; a defesa do direito à convivência familiar na proteção de assistência social supera o conceito de família como unidade econômica, mera referência de cálculo de rendimento per capita e a entende como núcleo afetivo, vinculada por laços consanguíneos, de aliança ou afinidade, onde os vínculos circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero; a família deve ser apoiada e ter acesso a condições para responder ao seu papel no sustento, na guarda e na educaçãode suas crianças e adolescentes, bem como na proteção de seus idosos e portadores de deficiência; o fortalecimento de possibilidades de convívio, educação e proteção social na própria família, não restringe as responsabilidades públicas de proteção social para com os indivíduos e a sociedade. (Brasil, 2005, p. 17, grifo nosso) 9 A visão sistêmica da família permite a compreensão da unidade familiar como um grupo relacional, afetado por todos os fatores ambientais e estruturais que a circulam, formatando inclusive uma autoestima coletiva. Profissionais inseridos em trabalhos nas comunidades detectam pensamentos comuns em pessoas que moram no mesmo bairro e suas perspectivas de vida, como sonhos e modelos que compartilham. Imagine uma família com filhos jovens, que mora na periferia de uma grande metrópole como o Rio de Janeiro, numa comunidade conhecida, como favela. A dificuldade para encontrar o primeiro emprego é certamente maior do que seria habitualmente para um jovem na mesma condição social, que morasse em outro local. A visão ruim sobre si mesmo e sua inserção na sociedade assume uma abrangência coletiva, gerando um sentimento grupal de baixa autoestima, que acarreta sensação de impotência, limitação de possibilidades, como se o destino da pessoa estivesse traçado naquela linha anteriormente escrita pelo contexto em vive. As consequências disso repercutem em toda a sociedade com piora da criminalidade, perda de vidas, de mentes criativas e diminuição do capital social do país. TEMA 4 – ESTRATÉGIAS PARA REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA E DIMINUIÇÃO DAS DESIGUALDADES Uma análise compartilhada por sociólogos, economistas e todos os cientistas que avaliam a situação econômica e social do país, conclui que o Brasil não é um país pobre, mas é um país desigual. A desigualdade aqui reportada não se refere apenas à renda, mas é aferida por meio dela, de acordo com índices internacionais, comparando os países com a mesma classificação de renda e a maneira como ela é distribuída (Barbosa; Souza; Soares, 2020). O índice mais usado nos relatórios do IBGE é o índice de Gini. Trata-se de um instrumento internacional usado pelos economistas, cuja variação vai de zero a 1, para demonstrar a concentração da renda. Quanto mais próximo do zero, significa que há mais equidade na distribuição da renda. Quanto mais próximo do 1, mais elevada é a concentração da renda em alguns estratos sociais. Esta aferição é feita pelo IBGE em séries históricas desde a década de 70, sempre mostrando que o país sofre de crônica e cruel desigualdade, que se reflete fortemente no caos social que presenciamos no cotidiano das grandes cidades (Barros; Henriques; Mendonça, 2000). 10 Até o final da década de 90, a parcela da população considerada pobre e abaixo da linha de pobreza era em torno de 40 a 45%, chegando na metade da década de 1980 a 50% da população, com valor do Gini em 0,6. O índice mostrava que apenas 4 países conseguiam ser piores que o Brasil em termos de distribuição de renda (Barros; Henriques; Mendonça, 2000). O início do século XXI , mais precisamente os primeiros 10 anos, foram animadores devido seus resultados na questão social. Um dos principais motivos na base desses resultados está a melhoria da economia, com estabilização da inflação e início do crescimento econômico. 4.1 Programa Bolsa Escola No início dos anos 2000, pela primeira vez houve um programa de distribuição de renda de abrangência nacional direcionado à família: O Bolsa Escola. Este programa foi criado em 2001 pelo governo Fernando Henrique Cardoso e beneficiava famílias com filhos matriculados nas escolas públicas. Além de ser um incentivo para a manutenção das crianças na escola, motivou a criação do Cadastro Único (cadÚnico) no intuito de mapear estas famílias. Outros programas foram associados a este como o vale gás e cartão alimentação. O diferencial desse programa era o fato de ser um programa de transferência direta de renda para as famílias cadastradas no cadÚnico, por meio da utilização de um cartão magnético. O dinheiro transferido diretamente às famílias, sem a intermediação politica, foi um fator redutor de desvio de finanças, prática tão comum em outros programas. 4.2 Programa Bolsa Família Em 2004 logo no início do governo Lula, houve a incorporação dos programas de cartão alimentação, gás e o Bolsa Escola em um único programa chamado de Bolsa Família (Brasil, 2004). O Bolsa Família tornou-se desde a sua implementação o programa de transferência de renda de maior abrangência no Brasil. Atualmente atende 13.9 milhões de famílias classificadas na faixa de pobreza ou extrema pobreza e foi um dos fatores de maior contribuição para melhora dos indicadores sociais (Stopa, 2019). 11 Apesar de ter se mostrado efetivo no combate à miséria, o Bolsa Família é bastante criticado por se levantar a hipótese da dependência de pessoas ao programa, diminuição de procura por trabalho, sobre a sua capacidade de redução efetiva da pobreza, e mesmo sobre a manipulação política do programa para obtenção de votos e manutenção dos partidos de esquerda no poder. Em resposta aos questionamentos, estudos mostram que o valor pago não é suficiente para a manutenção de uma família, porém é muito importante na complementação da renda (Medeiros; Britto; Soares, 2007). Grande número de pessoas na faixa econômica alcançada pelo programa, trabalha como autônomo, em atividades de comportamento instável, na maioria sem carteira assinada. É o caso das diaristas, pedreiros, catadores de materiais recicláveis entre outros. Ter um benefício de renda fixa, traz um mínimo de estabilidade e segurança, pelo menos a garantia de poder comprar alimentos para a sua família. Outra crítica muito frequente é quanto a seleção de pessoas ao programa. Analistas mostram que os casos de verdadeira inadequação aos critérios são muito raros, mas há de fato um número de famílias está acima da faixa mínima de renda, e isto porque melhoraram seu posicionamento no mercado de trabalho, os jovens fizeram cursos e conseguiram um emprego com melhor faixa de renda. Há o entendimento que estas famílias não deveriam ser imediatamente desligadas do programa, mas que poderia ser dado um tempo maior para que pudessem consolidar suas conquistas e então proceder o desligamento, oportunizando a entrada de outras (Medeiros; Britto; Soares, 2007). 4.3 Benefício de Prestação Continuada (BPC) Outro sistema de transferência de renda é o BPC (Benefício de Prestação Continuada) que é direcionado a pessoas carentes com deficiência irreversível e idosos acima de 65 anos, cuja renda per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo. Este benefício, criado em 1993, atende em torno de 4.5 milhões de pessoas e significa um grande avanço social quando se considera que são pessoas que não contribuíram para a previdência social e que não teriam direito à aposentadoria (Stopa, 2019). A implantação de um beneficio que apoiasse pessoas idosas e com deficiência aconteceu em 1974, no regime militar, com o nome de Renda Mensal 12 Vitalícia (RMV). Aplicava-se a pessoas a partir de 70 anos e equivalia a 60% do salário mínimo. O BPC diferencia-se por ser mais abrangente quanto a idade e ser no valor de 1 salário mínimo (Stopa, 2019). O objetivo dos programas de transferência de renda é a complementação da renda das famílias em risco social, que sofrem com a instabilidade de empregos e renda, sendo vítimas de situações de fome e desassistência. Após a implementação desses programas, o IBGE mostrou a redução das taxas de pobreza em 12% e de extrema pobreza em 4% no ano de 2014. O referido índice de Gini caiu mais de 10% ficando em 0,52 em 2015, sendo este o menor patamar deste índice desde o início de seu monitoramento demonstrando a melhora na distribuição derenda (Barbosa; Souza; Soares, 2020). Infelizmente esses avanços não se consolidaram após 2015 devido ao quadro econômico recessivo que impactou de forma mais intensa as populações pobres. Após a melhora da crise, as pessoas com menos recursos levaram mais tempo para se recuperarem do que aquelas com maior recurso, além de sofrerem mais acentuadamente com as elevações dos preços dos alimentos e dificuldades para conseguir emprego. TEMA 5 – A CONTRIBUIÇÃO DA SAÚDE PARA DIMINUIÇÃO DAS DESIGUALDADES E FORTALECIMENTO DAS FAMÍLIAS A redemocratização do país concretizada na constituição de 1988 abriu o espaço para as reformas sociais necessárias para a estruturação da seguridade social não contributiva. O acesso à saúde e à assistência social é totalmente livre de contribuição, sendo motivados apenas pela necessidade do cidadão, como direito previsto em lei e dever do estado. A partir de então, deu-se andamento ao aparelhamento legal do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei 8080, assinada em 19 de setembro de 1990, seguido do Sistema Único de Assistência Social, em 1993. A saúde precisava implementar a Atenção Primária à Saúde (APS), até então inexistente no país e romper com a lógica de atendimentos em prontos socorros, de forma exclusivamente reativa, para seguir a lógica da prevenção e manejo de condições crônicas. Em 1994 iniciaram-se o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o Programa Saúde da Família (PSF). Posteriormente em 2005, o PSF foi alçado a estratégia de governo, condição 13 que trouxe mais estabilidade ao programa, impedindo que outros governos o extinguissem de acordo com interesses ideológicos ou financeiros. O impacto nas condições gerais de saúde da população com a Estratégia Saúde da Família (ESF) foi animador, refletindo-se nos indicadores de saúde, sobretudo na mortalidade infantil. A referência a este indicador é motivada pela sua sensibilidade, que reflete um conjunto de medidas que envolvem as ações de saúde juntamente com as ações econômicas e sociais. Em 2014, o Brasil atingiu a meta internacional dos objetivos do milênio da OMS, conseguindo reduzir a mortalidade infantil para abaixo de 15 mortes por cada 1000 nascidos vivos. Apesar de ainda distante dos países desenvolvidos, é importante lembrar que este índice saiu de 47,1 em 1990, para 13,4 em 2017 . Em 2019 chegamos a 12.4, porém poderíamos ter tido um melhor resultado, considerando que em 2016 houve novamente uma elevação desse índice como resultado de crises econômicas e sobretudo pelo relaxamento da vacinação. As consequências foram mortes de crianças menores de 1 ano de idade devido infecções já superadas, como o sarampo (Brasil, 2020). Outro fator relevante é a diminuição da natalidade por escolha. Esse fator é importante porque impacta no calculo da mortalidade infantil, além de demonstrar maior planejamento das famílias quanto ao número de filhos. 5.1 Estratégia Saúde da Família A Estratégia Saúde da Família (ESF) veio definitivamente reorientar a assistência aplicando a nova proposta de cuidado e proteção à saúde embasada no contexto familiar e comunitário. As equipes são inseridas dentro do contexto comunitário, proporcionando a formação de vínculos que é tão essencial ao cuidado. Dentro da APS acontece o inverso do que acontece nos hospitais. Quando um paciente é internado, ele entra em um espaço que não é seu. Na verdade ele perde seu poder e sua autonomia em nome de submeter-se ao tratamento proposto. Na APS quem entra em outro espaço cultural são os profissionais de saúde. Eles é que devem adaptar-se à realidade daquela comunidade e entender seu funcionamento e sua linguagem. A formação da equipe básica, composta por um médico, um enfermeiro, um técnico em enfermagem e um agente comunitário de saúde (ACS) seria mais tarde um desafio a ser vencido pelos municípios. 14 Outro fator importante ligado à saúde e depois também aplicado na assistência social foi a metodologia da territorialização. Para que se conheça a população alvo das ações de saúde, o primeiro passo é a delimitação do território. A territorialização permite identificar as áreas de risco, quer sejam do tipo físico (como rios, rodovias, lixões etc.), ou social (como pontos de venda de drogas, prostituição, moradias irregulares). Essas informações devem ser sinalizadas em mapa estratégico, para que a equipe possa visualizá-lo sempre que necessitar, nas reuniões de planejamento. O segundo passo essencial para a implantação da ESF é a realização do cadastro de todas as famílias moradoras na área de abrangência. A realização desse cadastro gera um banco de dados que se cruza com os dados dos programas de transferência de renda. É muito importante porque motiva a adesão dos usuários dos programas sociais aos programas de saúde fundamentais como vacinação e pré-natal. O cadastro do usuário gera um número de abrangência nacional que dá acesso aos serviços do SUS que é o Cartão SUS. Desde 2015 é possível acessar este serviço de forma virtual utilizando um aplicativo. Parte-se então para o diagnóstico de saúde da comunidade, quando se estabelece as características daquele daquela população, os tipos de moradia, acesso à infraestrutura básica como esgoto, energia elétrica, coleta de lixo, fornecimento de água e demais serviços públicos disponíveis, como escolas, creches, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), além de outros equipamentos sociais de apoio, tais como ONGs, igrejas e centros comunitários. Todas as outras ações dependem da delimitação do território e do conhecimento da população adscrita. 5.1.1 Os vazios assistenciais A implantação da APS significou uma importante quebra de paradigma, influindo também na formação dos profissionais de saúde, sobretudo na formação médica. As diretrizes todos os cursos de saúde foram atualizadas a partir de 2005 de modo a incluir a formação em Atenção Primária nos seus currículos, assim como houve incentivo especial para as residências médicas em Medicina de Família e Comunidade em parcerias com as prefeituras, permitindo inclusive que as Secretarias Municipais de Saúde pudessem ser certificadoras 15 de programas de residências em Atenção Primária, tanto médica, quanto multiprofissional. A tradição da formação médica, extremamente focada no hospital e nas especialidades internistas, resiste muito a incentivar seus alunos a uma perspectiva de trabalho médico em Unidades Básicas de Saúde. Esta mensagem dificulta a escolha por medicina de família e a inserção do médico na APS. Por outro lado, a falta de investimentos governamentais suficientes na APS, desde a planta física de Unidades de Saúde, capacitação e atualização dos profissionais, sistemas de suporte como laudos de exames online, discussão com especialistas para dúvidas, suporte logístico para transferência do paciente em risco, desmotiva o profissional que se sente sozinho num local de difícil acesso. Apesar da resistência de algumas corporações médicas, o incentivo à residência em medicina de família para os médicos e à residência multiprofissional em saúde da família para os demais profissionais de saúde foi muito importante para a qualificação da assistência, porém ainda existem vazios assistenciais no país que precisam ser preenchidos por profissionais. Neste sentido, apesar de polêmico pela maneira como foi implementado, o programa Mais Médicos trouxe um impacto positivo por levantar a questão da necessidade do médico em áreas de vazios assistenciais, e o dever do estado em prover as condições mínimas de incentivo financeiro e estrutura de serviços para que os profissionais de saúde sejam atraídos para essas áreas com elevada vulnerabilidade, como as periferias das grandes cidades, populações indígenas, pequenas cidades do interior, sobretudo em áreas de difícilacesso como na Amazônia. O município não pode receber incentivos financeiros se a equipe não estiver completa, por isso o Programa Mais Médicos ajudou muito os municípios na recomposição das equipes e na montagem de novas equipes, aumentando a captação dos incentivos financeiros pelas secretarias municipais de saúde. Mesmo após a sua finalização, a substituição pelo programa Médicos pelo Brasil demonstra que os vazios assistenciais são um problema a ser enfrentado pela gestão pública, não havendo mais espaço para adiamentos. 16 5.2 Assistência Farmacêutica Junto com a implementação da APS (de acordo com o previsto na Lei 8080) foi também implementada a assistência farmacêutica, por meio da Política Nacional de Distribuição de Medicamentos. Dentro dessa mesma política foi instituída a RENAME (Relação Nacional de Medicamentos) com a proposta de fornecer medicamentos considerados essenciais a partir de prioridades estabelecidas. Foram formatadas três categorias para fornecimento de medicamentos: Doenças prevalentes na Saúde Pública; Doenças individuais de caráter crônico e custo elevado; Doenças cujo tratamento envolve o uso de medicamentos não disponíveis no mercado (Brasil, 2001). Na categoria um e dois estão as classificadas como doenças crônicas todas aquelas que requeiram tratamento prolongado e mesmo para a vida inteira, como é o caso do diabetes, transtornos mentais e HIV. Duas medidas foram essenciais para a viabilização da distribuição de medicamentos, que foram a lei que instituiu o medicamento genérico (Brasil, 1999) e a quebra de patentes dos medicamentos para tratamento do HIV em 2006, proporcionando a produção e distribuição das principais drogas componentes do coquetel, no bem-sucedido programa de controle da epidemia de AIDS no Brasil. Há que se considerar que a despesa com medicamentos de uso contínuo é um peso importante no orçamento familiar, por este motivo a distribuição gratuita de medicamentos é um importante fator redutor de desigualdades e promotor de segurança e qualidade de vida. 17 REFERÊNCIAS BARBOSA, R; SOUZA, P.; SOARES, S. Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019. Blog DADOS, 2020. Publicado em 16 July 2020. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-brasil/ Acesso em: 3 fev. 2021. BARROS, R; HENRIQUES, R; MENDONCA, R. Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 42, p. 123-142, fev. 2000. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092000000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 3 fev. 2021. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma operacional básica NOB/SUAS, 2005. Brasília. _____. Ministério da Saúde. Lei 9.787 de 10 de fevereiro de 1999. _____. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política nacional de medicamentos. Brasília. 2001. isponível:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_medicamentos.pdf. Acesso em: 3 fev. 2021. _____. Ministério das Comunicações. UNICEF: Mortalidade infantil tem redução histórica no Brasil in Empresa Brasil de Comunicação. 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