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fingir ser e não pensar

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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação 
Múltiplos Olhares 
05, 06 e 07 de junho de 2013 
ISSN: 1981-8211 
 
 
 
FERNANDO PESSOA: FINGIR SER E NÃO PENSAR EM ALBERTO CAEIRO 
 
Valéria dos SANTOS (UEM)
1
 
Introdução 
 
O fenômeno poético tem sido objeto de reflexão e estudo entre teóricos de 
diferentes áreas do conhecimento, como linguistas, filólogos, filósofos, críticos literários, 
entre outros, sem, no entanto, chegarem a um conceito único de poesia. Na literatura, 
entretanto, é certo que a poesia é considerada uma forma suprema da atividade criadora da 
palavra. Isto porque, a expressão poética amplia o universo expressivo e nos dá a dimensão 
da capacidade criadora da atividade literária. Considerando que os gêneros tidos como 
nobres, dentro desta arte, foram cultivados em versos até a modernidade, podemos dizer 
que toda ela teve a sua origem na poesia. 
Mergulhado nesse universo, encontramos Fernando Pessoa, poeta capaz de 
assimilar, enriquecer e superar a herança lírica portuguesa, e também de refletir as 
inquietações humanas da sua época. Pessoa, ao produzir sua obra, valeu-se do grande 
potencial da linguagem poética e arriscou-se intensamente no campo criativo da poesia para 
constituir-se “um poeta em vários poetas”. A partir desse pressuposto, possivelmente, 
advém seus heterônimos, subterfúgio sob o qual o artista consegue expressar de forma 
coerente a complexidade humana e a realidade em que este se insere. 
Alberto Caeiro, o primeiro dos seus heterônimos e mestre dos demais, no poema 
XLIV, é objeto de estudo desta proposta de leitura. No poema em questão, procuramos 
verificar como o fingimento poético de Pessoa dissimula um caráter pensante na poesia de 
Caeiro. A escolha do referido poema justifica-se à medida que o mesmo apresenta aspectos 
que comprovam as nossas suposições. Este heterônimo de Fernando Pessoa, sendo apenas 
mais uma de suas máscaras, denuncia a presença pensante do ortônimo do poeta, ou seja, 
do próprio Pessoa. 
 
1
 Aluna não regular do Curso de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá 
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Deste modo, este estudo ancora-se em teorias e considerações de Antonio Candido, 
Alfredo Bosi, Octavio Paz, Nuno Júdice, Carlos Reis, Massaud Moisés, Eduardo Lourenço 
entre outros. Este arcabouço teórico, como base de nosso estudo de compreensão e 
interpretação do referido poema, serve de argumentação aos nossos pressupostos de leitura, 
assim como fazemos uso de trechos do poema, para exemplificar nossas considerações. 
 
1. Poesia e imagem 
 
 Eduardo Lourenço, em sua obra Tempo e Poesia, destaca que a poesia perdeu seu 
público e o poeta, ao produzir sua obra, rompe com o seu silêncio e deixa para a literatura o 
tema do incompreendido. É provável que isto se dê pelo fato de o texto poético se mostrar 
misterioso, enigmático e não dar repostas imediatas aqueles que a ele se reportam. No 
entanto, é o poema que nos questiona, faz-nos buscar respostas que estão, não raras vezes, 
em nós mesmos; demonstrando a nossa dificuldade em nos reconhecermos e assumirmos 
nosso próprio caráter ambíguo. Isto porque não há solução para esse aspecto humano. 
Apesar destas dificuldades, não devemos renunciar à poesia, pois por meio dela “[...] 
continuamos sendo aqueles que procuram danadamente uma autêntica face de homem, uma 
existência de si mesma buscando-se entre possibilidades múltiplas de existir [...]” 
(LOURENÇO, 1987, p. 33) 
 Todorov (1982), por sua vez, enfatiza a natureza versificada do discurso poético e 
coloca em cena o poema, objeto da expressão poética e que, como tal, configura-se a partir 
de uma realidade não-linguística. Mas é a partir dele, realidade linguística, que temos meio 
de penetrar nas esferas do poético. Deste modo, o poema busca representar o que está além 
da esfera real e só pode ser trazido à consciência através da palavra poética, a qual, por 
conter uma densidade lírica, permanece na memória, segundo observação de Júdice (1998). 
Tendo em vista que se tem acesso aos conteúdos humanos da poesia por meio do poema, é 
correto perguntar de que modo, com quais propriedades o texto poético provoca no ser a 
comoção, pois esta é uma experiência humana causada pela emoção estética. A poesia, 
então, compreende dois aspectos complementares, um humano e outro linguístico. 
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Neste sentido, a elaboração do texto poético exige um trabalho com a linguagem, 
elemento primordial da criação poética da imagem, base da poesia. Segundo Júdice, a 
poesia nasce de um raciocínio não explícito, pois o seu pensamento é oculto e exige certo 
esforço para ser encontrado. A lógica poética não precisa de explicação, estabelece-se 
implicitamente por meio de figuras, como a comparação e a analogia, sendo as imagens os 
elementos fundamentais na construção da analogia e comparação. Elas são escolhidas a 
partir do tema ou assunto do poema, pois é por meio delas que este se desenvolve 
conceitualmente. “[...] As imagens, visam, desde o início, envolver conceptualmente um 
objecto que é o centro do poema [...]” (JÚDICE, 1998, p. 16-17). 
Alfredo Bosi acrescenta que a imagem vem antes da palavra e uma vez apreendida 
pela visão, supre o contato direto com o objeto e o mantém na sua realidade entre nós. 
Deduzimos então que a imagem recupera sempre algo visto ou vivido: “[...] A imagem 
nunca é um “elemento”: tem um passado que a constitui; e um presente que a mantém viva 
e permite a sua recorrência [...]” (BOSI, 1993, p.15). Depreendemos, desta maneira, que 
para o crítico, a imagem está intimamente ligada ao inconsciente, pois aquilo que vemos e 
vivemos, transformam-se em imagens, resgatadas por nossa memória, sendo que retida, 
pode ser suscitada pela reminiscência ou pelo sonho. Também o fato de se instalarem em 
nós, as imagens criam mobilidade e chegamos ao devaneio, o que facilita o espaço para a 
criação poética. 
 
2. Fernando Pessoa e a heteronímia 
 
 A partir de informações oriundas do texto de Carlos Reis (1990), Fernando Pessoa 
e o Modernismo Português, temos conhecimento e afirmamos que os poemas de Chuva 
Oblíqua, publicados na segunda edição da revista “Orpheu”, representam um momento 
decisivo da participação de Fernando Pessoa na geração modernista e da etapa fundamental 
da sua poética, assim como da sua produção literária. Nessa obra se concretiza o 
interseccionismo, processo que permite um sujeito “liberto em duplo”. Em Chuva Oblíqua 
temos também a gênese dos heterônimos e a afirmação de Fernando Pessoa ortônimo. 
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 Os heterônimos e o princípio de diversificação em relação aos valores, às atitudes, 
aos estilos literários, colocam Fernando Pessoa como elemento decisivo no Modernismo 
português. Assim, ele institui o fingimento como estratégia de representação poética 
radicalmente moderna. Tem-se, portanto, em Pessoa, a propensão para a heteronímia, 
observada nos textos em que ele reflete sobre o estatuto e a funcionalidade estética dela. No 
volume Ficções do Interlúdio, ele afirma a autonomia dos heterônimos e as consequências 
no plano estilístico e que “Em prosa é mais difícil de se outrar”. Isso se verifica na 
variedade de recursos oferecidos na forma de versos, o que acentua e aprofunda a 
diversidadeentre os heterônimos. O poeta reflete e analisa os distintos graus da poesia 
lírica e se constitui como “um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo 
em poesia lírica.” 
 Ainda de acordo com Carlos Reis (1990), a heteronímia difere-se da pseudonímia, 
enquanto nome falso; o heterônimo tem nome próprio, atribuído a um sujeito poético, uma 
identidade própria, com características psicológicas e ideológico-culturais próprias; um 
estilo próprio, autônomo em relação ao ortônimo, sem confundi-lo com os heterônimos. No 
Modernismo português, a heteronímia, cultivada por Pessoa, é o ponto de chegada de uma 
tendência que amadureceu durante o século XIX, trazida à tona em um período condizente 
com o contexto histórico-cultural, quando as teorias positivistas possibilitam explicar o 
global e coerentemente a sociedade, bem como o lugar que nela ocupa o indivíduo. Assim 
surgem os “ismos”, que buscam mostrar o mundo e o homem sob novas dimensões, nova 
ideologia, o que fazem por meio da linguagem. Tem-se por meio dos heterônimos o direito 
à incoerência e adoção da dispersão, o que para a geração de Fernando Pessoa implicava 
em questões éticas e sociais e na agressividade como meio de afirmação. 
 
2.1 Alberto Caeiro, um dos vários poetas que foi Fernando Pessoa 
 
Alberto Caeiro, em O Guardador de Rebanhos, por meio de um poema marcado por 
paradoxos, negações e afirmações, denuncia a complexidade do seu pensamento poético. 
Nesta mesma obra estabelece o sensacionismo como base da sua criação. 
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O sensacionismo consiste em considerar como única realidade as sensações e a 
consciência que delas temos. A arte, sob esta perspectiva, será a expressão da consciência 
de nossas sensações, de tal forma harmônica a ser sensação para o outro. Segundo Reis 
(1990), o processo sensacionista, na obra de Caeiro, baseia-se em procedimentos figurados, 
pois pensar com os olhos, com os ouvidos, com as mãos e os pés, com o nariz e a boca é 
considerar os sentidos como o principal canal de relação entre o poeta e o mundo e todo 
conhecimento obtido. No entanto, ao enumerar os sentidos, o poeta não o faz 
aleatoriamente, ao contrário, estabelece uma hierarquia sensorial e privilegia a visão, em 
seguida a audição, o tacto e o olfato e por último o gosto. Os sentidos, para Caeiro, são a 
base do saber, saber adquirido via sensorial. Desta maneira, o poeta nega a especulação 
metafísica e todo o conhecimento e verdade não obtidos pela via sensorial. 
O culto às sensações possibilita a felicidade, pois nele está o modo de ver as coisas 
no seu estado natural, verdadeiro, sem pensar nas causas e finalidades: 
 
[...] No fundo, do que se trata é de não ocupar a mente com a especulação 
sobre causas ou finalidades [...] Em suma; mais do que a cultura como 
lastro sedimentado no discurso de filósofos e poetas, é [...] o “discurso” da 
Natureza, concentrado na luz e no calor do Sol, que ensina tudo que a vida 
requer. (REIS, 1990, p. 192) 
 
 Aparentemente, o discurso poético de Caeiro sintoniza-se com uma estilística da 
espontaneidade, da simplicidade natural; contudo, ao usar a linguagem ele se distancia do 
real, pois a linguagem é a forma suprema de nos separarmos da realidade, e invalida o seu 
desejo de se apropriar do real de modo direto sem interposições. A opção pelo verso 
evidencia a impossibilidade de se criar um discurso poético sem artifícios estéticos, o que 
exige do poeta uma atitude formal e construtiva. Esta decisão se revela na escolha em 
fragmentar o seu discurso em versos livres obedecendo ao apelo rítmico destes. 
 
2.2 Uma leitura do poema XLIV 
 
A/cor/do/ de/ noi/te/ su/bi/ta/men/te, 10 
E o/ meu/ re/ló/gio o/cu/pa a/ noi/te/ to/da. 10 
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Não/ sin/to a/ na/tu/re/za/ lá/ fo/ra. 9 
O/ meu/ quar/to é u/ma/ cou/sa es/cu/ra/ com/ pa/re/des/ va/ga/men/te/ bran/cas. 18 
 
Lá/ fo/ra há um/ so/sse/go/ co/mo/ se/ na/da e/xis/ti/sse. 13 
Só o/ re/ló/gio/ pro/sse/gue o/ seu/ ru/í/do. 10 
E es/ta/ pe/que/na/cou/sa/de en/gre/na/gens/ que es/tá em/ ci/ma/ da/ mi/nha/ me/sa 19 
 
A/ba/fa/ to/da a e/xis/tên/cia/ da/ te/rra ... 10 
Qua/se/ que/ me/ per/co a/ pen/sar/ o/ que is/to/ sig/ni/fi/ca, 14 
Mas/ es/ta/co, e/ sin/to-me/ so/rrir/ na/ noi/te/ com os/ can/tos/ da/ bo/ca, 16 
Por/que a ú/ni/ca/ cou/sa/ que o/ meu/ re/ló/gio/ sim/bo/li/za ou/ sig/ni/fi/ca 18 
En/chen/do/ com a/ sua/ pe/que/nez/ a/ noi/te e/nor/me 12 
É a/ cu/rio/sa/ sen/sa/ção/ de en/cher/ a/ noi/te e/nor/me 13 
Com a/ su/a/ pe/que/nez/... 6 
 
(Fernando Pessoa. O Guardador de Rebanhos. Poema XLIV, 1914) 
 
O poema XLIV constitui-se de 14 versos assimétricos, apresentando rimas somente 
entre o segundo e quarto versos da última estrofe, e antepenúltimo e penúltimo versos da 
última estrofe. Esta construção constitui uma das características da poesia de Caeiro, sendo 
que o poeta quer dar-nos a impressão de um discurso em que as idéias vão se esparramando 
de verso em verso como em um texto em prosa. Esta aparente liberdade, entretanto, 
observada ao longo do poema é quebrada na última estrofe pelas rimas e redução de sílabas 
métricas de seus últimos versos, o que garante o efeito melódico e cadenciado do texto 
poético. 
Como um todo, o poema se desenvolve a partir da imagem da noite, do relógio do 
eu lírico e do quarto. De acordo com Otávio Paz (2009, p. 45) “[...] a imagem é uma frase 
em que a pluralidade de significados não desaparece. A imagem recolhe e exalta todos os 
valores das palavras, sem excluir os significados primários e secundários”. Desta forma, o 
poeta passa a jogar com a realidade e com a pluralidade do real, a qual é representada na 
sua diversidade pela imagem produzida pela poesia. Imagem esta que, na primeira estrofe, 
se configura a partir do momento em que o eu lírico ao acordar à noite, de modo súbito, 
percebe apenas o seu relógio ocupando a noite como a atrapalhá-lo a sentir a natureza 
exterior: “Acordo de noite subitamente,/ 
E o meu relógio ocupa a noite toda./ Não sinto a natureza lá fora.” 
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Segundo Bosi (1993), a imagem no poema torna-se uma palavra articulada, 
escolhida pelo poeta, a partir do real. A linguagem pode evocar algo que está ausente, 
aquilo que não se pode visualizar. Mas, somente podemos compreender a imagem se 
passarmos a decifrar a linguagem poética, o que pressupõe a diferença. A partir desta ideia, 
observamos que nos dois primeiros versos da primeira estrofe há uma totalidade espacial e 
imagética dada pela expressão “a noite toda”; no terceiro e quarto versos estabelece-se uma 
divisão dentro desta totalidade e a distinção entre os espaços da “natureza lá fora” e do 
“meu quarto”. Nesta construção poética temos apresentada a composição da imagem de 
um ambiente vago, pois a noite pressupõe escuridão e vaguidez; dentro do quarto esta idéia 
se repete, pois ele é “uma cousa escura com paredes vagamente brancas”. 
A imagem da totalidade da noite se sobressai primeiro, mas ao dizer “acordo” o 
poeta faz-nos antever a imagem do quarto que será apresentada no último verso desta 
primeira estrofe. Isto porque não existe, como se poderia esperar, uma oposição entre “lá 
fora” e “o meu quarto”, estes espaços se completam e dialogam por meio do eu-lírico que 
vagueia entre eles como a buscar algo. De acordo com Massaud Moisés (1977,p. 76), no 
poema, o espaço serve “[...] de ambiente à projeção do „eu‟, que constitui a base do 
fenômeno poético [...] Desse ângulo, se o fenômeno poético percorre algum espaço, é o do 
„eu‟.” Nesta perspectiva podemos afirmar que o espaço externo e interno são projeções 
deste eu, na noite, impossibilitado de voltar seus sentidos para elementos da natureza mais 
perceptíveis pelo olhar. O olho, órgão dos sentidos mais objetivo, oscila entre esses espaços 
na busca de uma objetividade que o afaste da reflexão subjetiva. 
Estabelece-se nessa primeira estrofe um aspecto marcante da poesia de Alberto 
Caeiro, o sensacionismo: “Não sinto a natureza lá fora./O meu quarto é uma cousa escura 
com paredes vagamente brancas”, processo que tem como base o pensar pelos sentidos, 
sendo estes o principal meio de conhecimento entre o poeta e o mundo. A composição da 
imagem da noite e do quarto, tomada pela forte presença do relógio remete imediatamente a 
dois sentidos: visão e audição. Lembremo-nos, para Caeiro, pensar não é levantar 
questionamentos e reflexões sobre o mundo ou as coisas; ao contrário, é deixar-se levar 
pelas sensações provocadas pela Natureza, e desta forma chegar a um saber verdadeiro. 
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 A noite, no entanto, é o momento em que se tem a sensação de que a natureza pára, 
pois se estabelece o silêncio e a escuridão, ficando a visão e a audição impossibilitadas de 
sentir. O aparente recolhimento desta abre espaço para o eu voltar-se para si mesmo de 
forma reflexiva, uma vez que não é possível voltar os sentidos para os elementos naturais. 
A escuridão e a vaguidez presentes na noite trazem para o primeiro plano, na hierarquia de 
Pessoa, o segundo sentido, mais subjetivo que o primeiro, a audição, que percebe o relógio. 
O seu sentido capta a presença do relógio por meio de uma onomatopéia 
subentendida, pois embora não esteja expressa verbalmente, imediatamente ao ler-se: “E o 
meu relógio ocupa a noite toda”, supomos que o eu-lírico refere-se ao tic-tac do relógio 
preenchendo o vazio da noite, ou o vazio do próprio eu. O poeta que se recusa a pensar e 
aproxima-se da natureza para, por meio dos seus sentidos, adquirir o conhecimento 
verdadeiro, vê-se traído pelos sentidos e pela Natureza. A noite, também elemento da 
natureza, diferentemente do dia não dá ao poeta a oportunidade de observar, usar a visão 
que registra a realidade objetiva. Desta maneira o seu sentido auditivo é capturado pelo 
ruído do relógio, possibilitando a conotação de que nem todos os aspectos da Natureza e tão 
pouco os sentidos levam a irreflexão. 
No jogo com a realidade por meio da imagem poética, Caeiro transfigura o sentido 
das palavras e transforma em metáforas as imagens do espaço externo, noite; espaço 
interno, quarto e do relógio. Considerando que a metáfora possibilita estabelecer 
semelhança mental, relação subjetiva e assegura a correlação operando uma transfusão de 
sentido entre objetos (CANDIDO, 1987, p. 88), na segunda estrofe, “a noite lá fora” e a 
“natureza” compõem a metáfora do eu externo do poeta, mostrando-se só mansidão. O 
relógio, no espaço interno, a fazer ruído é metáfora do interior do eu e revela que 
intimamente o poeta é um ser em busca de sentidos e explicações. Há uma aparente 
surpresa do eu lírico ao constatar que “lá fora há um sossego como se nada existisse”, ou 
seja, a Natureza está serena, parada, mas o relógio, no espaço interno, “prossegue”. Esta é a 
surpresa de perceber-se contraditório, de dar-se conta de que a sua serenidade é apenas 
superficial, não um sentir verdadeiro. 
A idéia da segunda estrofe se completa na terceira por meio de um “enjambement” 
em que a imagem do relógio sobrepõe-se a imagem da noite: “E esta pequena cousa de 
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engrenagens que está em cima da minha mesa/Abafa toda a existência da terra...”. Júdice 
(1998, p.19), explica que o processo de construção de uma figura ocorre por analogias em 
que, “[...] à partida, têm tanta importância uma como a outra. Só o decurso do poema irá 
privilegiar uma delas, pondo o acento tónico num tema que é o resultando, e não o 
princípio, do texto. [...]”. 
Na continuidade de idéias que existe entre a segunda e terceira estrofes, o relógio, 
ao abafar toda a existência da terra, controla o campo imagético que leva ao sentido da 
visão. O relógio, neste momento, não é mais associado ao seu ruído, sentido da audição, 
tornou-se “pequena cousa de engrenagens”, máquina, imagem, visão. Desnuda-se o caráter 
pensante do eu-lírico ao confessar: “quase me perco a pensar” o que poderia significar o 
trabalho da máquina a controlar toda a existência da terra. O advérbio que inicia o período 
indica intensidade, por muito pouco, quase nada, o eu lírico se deixa levar por seus 
pensamentos; em seguida, contrariando esta ideia inicial temos: “mas estaco”. A ligação 
desses dois versos pela conjunção adversativa, “mas”, denuncia a consciência pensante do 
poeta, capaz de optar por pensar ou não, pois ele “estaca”. É a recusa de Caeiro em não 
pensar e, para atingir este objetivo, ele fixa a imagem do relógio. A partir deste ponto, o 
poema confirma a temática do esforço em não pensar, pois a reflexão é inerente ao eu 
lírico. 
A imagem do relógio permeia todo o poema revelando o próprio eu do poeta, 
marcado nos pronomes possessivos: na primeira estrofe “meu relógio”, na segunda o objeto 
“está em cima da minha mesa” e na última temos mais uma vez “o meu relógio”. Nestes 
excertos observamos aquilo que reflete Candido (1987), em relação à imagem que é 
metáfora, ou seja, aquela que é um tipo especial de imagem, pressuposto confirmado por 
Júdice (1998, p. 63-64), quando acrescenta que a metáfora não é uma simples figura 
retórica, pois está no centro das substituições semânticas e do raciocínio cognitivo e deste 
modo “[...] um significante será utilizado para designar um objeto (uma imagem) que se 
afasta radicalmente do significado que lhe é habitualmente associado [...]”. 
A partir do parecer destes dois estudiosos, podemos afirmar que o relógio, 
instrumento utilizado para organizar o tempo e a vida humana, dando ao homem a sensação 
de segurança ao mesmo tempo em que suspende a angústia do vivido, é metáfora do eu do 
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poeta diante da imensidão da vida. O relógio marca o tempo em uma cronologia e 
cronometria perfeitas e preenche o vazio do homem, pois passa a ele a sensação de 
precisão, de organização desta realidade tão fugaz e imprecisa que é o tempo. O eu lírico, 
diante do universo, sente-se pequeno e busca respostas para sua existência. Ele prefere 
acreditar-se feliz, aliviado e satisfeito com a idéia de que o relógio/eu “simboliza ou 
significa/enchendo com sua pequenez a noite enorme/é a curiosa sensação de encher a noite 
com sua pequenez.” 
Como o relógio, o homem deve apenas ser, sem pensar, sem questionar, viver a vida 
sem se dar conta da sua complexidade, ou melhor, dissimulando esta complexidade. É desta 
forma que o relógio o faz: marca o tempo ignorando o tempo que passa e insensível às 
dores e angústias. Por outro lado permanece a dúvida quanto à capacidade do relógio/eu 
lírico ser capaz de suprimir a reflexão, como observamos nos versos: “E esta pequena cousa 
de engrenagens que está em cima da minha mesa/ Abafa toda a existência da terra...”. Ao 
afirmar que o relógio “abafa”, compreendemosque se trata das questões humanas, 
demonstrado o caráter artificial do não pensar de Caeiro e a dúvida do eu lírico de que isto 
ocorra de fato. Devemos ainda nos atentar ao efeito das reticências usadas para fechar estes 
versos. Segundo Hildebrando (1997, p.67) “as reticências indicam a interrupção da frase. 
Essa interrupção é, muitas vezes, de caráter subjetivo: o autor pretende mostrar 
determinados estados emotivos: hesitação [...], dúvida”. 
 Nos versos finais do poema temos: “É a curiosa sensação de encher a noite enorme 
/Com a sua pequenez...”. O poeta conclui que o relógio ao preencher a noite pode apenas 
simbolizar, significar “a curiosa sensação”. Consideremos primeiro: o relógio não é 
sensação e tampouco causa sensação, mas “simboliza”, “significa”, o adjetivo anteposto ao 
substantivo chama a atenção para si e ressalta o seu significado. A partir destes elementos 
inferimos que mesmo sentindo-se satisfeito ao concluir que o relógio preenche a noite; esta 
satisfação é apenas aparente e faz parte do jogo da dissimulação do pensar de Caeiro. Este 
heterônimo, dado por Fernando Pessoa como o homem que recusa a reflexão metafísica em 
nome de uma visão simplista do mundo e é feliz por não ter a capacidade de pensar, é ser 
pensante e consciente de toda a sua complexidade humana. Alberto Caeiro, entretanto, não 
querendo aprofundar-se e perder-se em reflexões, suprime a sua capacidade de questionar e 
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buscar respostas conformando-se com a superficialidade de uma aparente sensação, pois 
como já dito anteriormente, ele não tem a sensação, ela não é, simplesmente “simboliza ou 
significa”, mais uma vez demonstrando que o eu lírico optou por dar um significado, 
deixando ao leitor a possibilidade de levantar outros significados. 
Temos também a pontuação do último verso em reticências e a presença de rimas 
nesta última estrofe, aspectos muito significantes, pois contrariando o desejo de Caeiro de 
ser o poeta da simplicidade demonstram complexidade e elaboração poética. A rima entre o 
segundo e quarto versos desta estrofe traz a repetição da palavra “significa” e faz com que o 
som da rima ecoe a palavra como se o eu lírico estivesse a perguntar, a buscar significados. 
O mesmo processo ocorre entre o quinto e sexto versos, nos quais a palavra “enorme” ecoa 
também. Observamos que a repetição não se dá apenas em relação à última palavra, mas de 
todo o trecho final destes dois versos, que são iguais, como a completar a questão iniciada 
na rima anterior: “a noite enorme”, ou seja, o que significaria a noite enorme. Isto nos 
possibilita ler noite enorme como metáfora de todos os conflitos e questões humanas 
abafadas pelo eu-lírico e dadas por ele, de forma superficial, como relógio. O eu do poeta é 
invadido pela enormidade da sua complexidade e busca respostas, mas não consegue 
encontrá-las e para evitar o sofrimento conforma-se “Com a sua pequenez” de 
simplesmente preencher a noite. Como em Caeiro nada é tão simples como ele tenta fazer 
parecer ser, o final não é conclusivo, há reticências no lugar de um ponto final deixando 
margem para a continuidade da reflexão. 
 
Considerações finais 
 
 Ao final deste estudo, concluímos que na poética de Alberto Caeiro há um 
trabalho estético de dissimulação da sua capacidade pensante, por trás de suas afirmações 
simplistas é necessário buscar a sua complexidade e duplicidade de pensamento. Isto 
porque a simplicidade deste heterônimo é uma opção do poeta Fernando Pessoa, seu 
criador. 
 Pessoa, ao criar um poeta o oposto de si, que prima pela objetividade da vida 
apreendida pelas sensações, elabora um discurso poético de linguagem altamente elaborada, 
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como pudemos observar no texto estudado, o que denuncia todo o caráter pensante do 
ortônimo criador do heterônimo Alberto Caeiro. 
 
Referências 
 
ANDRÉ, Hildebrando A. de. Gramática ilustrada. São Paulo: Editora Moderna, 1997. 
 
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983. 
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Terceira Leitura, 1987. 
COUTINHO, Afrânio. (org.). Fernando Pessoa o eu profundo e os outros eus. Rio de 
Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 
JÚDICE, Nuno. As máscaras do poema. Lisboa: Aríon, 1998. 
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Lisboa: Relógio D‟Água, 1987. 
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