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Direito fundamental à saúde no ordenamento jurídico brasileiro

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Direito fundamental à saúde no ordenamento jurídico brasileiro 
A Constituição Federal de 1988 elenca em seu artigo 6° o rol de direitos sociais, dentro do Título II, destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais. Já no Título VIII, Da Ordem Social, o artigo 196 assevera que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que o deve garantir por meio “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).
É necessário melhor definir o que é saúde, para que esse direito seja assegurado de forma eficaz. Para Uadi Lamego Bulos, “a saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e espiritual do homem, e não apenas a ausência de afecções e doenças” (BULOS, pag. 1562).
Esse parece ser o entendimento mais acertado e seguido, uma vez que a saúde deve ser entendida como o pleno bem-estar da pessoa, não só físico, mas também psíquico. Essa postura se dá especialmente nos dias atuais em que a saúde mental tem sido tão discutida, diante de crescentes casos de depressão e transtornos psicológicos que interferem na vida do homem em sociedade. O sentido que o ordenamento releva para a lei deve estar sempre em congruência à realidade vivida na sociedade, sob pena de se fazer da lei letra morta.
Quanto à sua titularidade, assevera Sarlet que a saúde é direito de todos, existindo, então, titularidade universal, inclusive devido à sua vinculação com outros direitos fundamentais positivados na Carta Magna. Desse modo, conclui Sarlet, “ ainda que não tivesse sido consagrada explicitamente no texto constitucional, a proteção da saúde poderia ser admitida na condição de direito fundamental implícito” (SARLET),
Ainda de acordo com Bulos, foi no texto de 1988 em que, pela primeira vez, a saúde teve status de direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro (pag. 1562).
Ao analisar detalhadamente o artigo 196 da Constituição Federal, Gilmar Mendes (pág. 660) apresenta os elementos que integram o direito à saúde assegurado pela Carta Magna. Seguindo a lição do mencionado jurista, ao se referir à saúde como um direito de todos, o legislador se refere a um direito individual e também coletivo. Além disso, claramente o legislador impõe o dever de prestação de saúde ao Estado – o que se entende por dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse sentido, Uadi Lamego Bulos (pag. 1563) também ressalta que o legislador não quis desobrigas os demais entes federativos do dever de executar políticas públicas a fim de manter a saúde individual e coletiva. Ainda de acordo com a letra da lei, o Estado deve garantir o direito à saúde mediante políticas sociais e econômicas e, segundo Gilmar Mendes, a evolução da medicina faz com que se imponha um viés programático ao direito à saúde, à medida em que surgem novos métodos e procedimentos descobertos no tratamento de doenças em geral (pag. 661). As políticas que visem redução do risco de doenças e outros agravos evidenciam as ações preventivas e Mendes destaca a amplitude dessas políticas, que vão desde os cuidados com saneamento básico e acesso à água potável, ações imprescindíveis e fundamentais no combate a tantas doenças que assolam, principalmente, as camadas mais pobres da população. Ao asseverar que as políticas devem visar o acesso universal e igualitário, o artigo 196 da CF/88 assegura a igualdade de assistência à saúde, sem nenhum tipo de diferenciação entre os destinatários dos serviços. Ainda falando das ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, Mendes conclui que:
Os problemas de eficácia social desse direito fundamental devem-se muito mais a questões ligadas à implementação e manutenção das políticas públicas de saúde já existentes – o que implica também a composição dos orçamentos dos entes da Federação – do que à falta de legislação específica. Em outros termos, o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados. (MENDES, 2015, p.662)
A eficácia social, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, ”pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz) quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação” (SARLET,2015, p.248) . 											Dessa forma, a eficácia social da norma diz respeito a sua efetividade no caso concreto, importa saber se a norma efetivamente alcançou seu objetivo no meio social. Seguindo, portanto, o pensamento de Gilmar Mendes, as políticas públicas de saúde existem, o problema está na manutenção e implementação dessas políticas. Portanto, por mais que exista a política apta a produzir resultados significativos à sociedade, essa política não produz eficácia social, pois não é implementada como deveria e, em decorrência, não produz resultados efetivos aos que dela dependem.
Direito aos medicamentos e a responsabilidade do Estado
Como já dito anteriormente, o grande número de ações judiciais que são demandadas demonstram o problema da eficácia social das políticas públicas de saúde. Ocorre a chamada judicialização do direito à saúde, em que grande parte da população tem recorrido ao Poder Judiciário na tentativa de que sejam concretizadas as políticas públicas previstas na área da saúde. Um exemplo dessas demandas é a de fornecimento de medicamentos negados pela Administração (Mendes, p. 667). Sobre isso, Renata Maria e José Fernando discorrem: 
Esse fenômeno tem exigido cada vez mais iniciativas e programas dos gestores públicos e comprometido boa parte dos orçamentos das pessoas políticas federadas para imperativo cumprimento das decisões judiciais. Esse quadro nacional, ao mesmo tempo que minimiza as tragédias que decorrem de nossas carências na área da saúde pública, o que é muito bom, acaba por sobrecarregar nosso Poder Judiciário, para exigir algum tipo de equacionamento – que ainda parece muito distante – e que seja eficaz e adequado em termos de soluções. (ESMERALDI & LOPES, 2015, p.196)
Os casos mais comuns de judicialização referente ao direito à saúde diz respeito a não disponibilização de um medicamento específico pelo SUS, que venha a disponibilizar um similar. Gilmar Mendes diz que nesses casos é necessário averiguar o motivo pelo qual o paciente não pode usar o medicamento disponibilizado pelo SUS. A partir disso, após análise de razoabilidade, se restar provado que o medicamento disponibilizado pelo SUS não faz efeito para o paciente, pode ser requerido judicialmente o medicamento prescrito pelo médico, desde que, ressalva Mendes, o custo desse medicamento não dificulte o sistema de saúde para a população que dele também precisa.
Além dessa situação, há também a possibilidade de o medicamento ser experimental – ocasião em que a Administração não deve ser compelida a disponibilizar o medicamento, prezando pela segurança do paciente, uma vez que ainda em fase experimental não há estudos suficientes que comprovem a eficácia do medicamento. Não se pode pôr em risco a saúde do paciente.
Mendes chama a atenção também para o caso de medicamentos fornecidos pelo SUS, porém para doença diversa da que o indivíduo possui. A Administração não pode negar o fornecimento quando o uso do medicamento atestado por médico credenciado ao SUS.
Ademais, uma questão mais difícil chama a atenção no que concerne a judicialização da saúde. São os casos de medicamentos registrados pela ANVISA, mas não constantes nas listas do SUS. 
A questão tem sido discutida nos tribunais seguindo o entendimento da regra geral, que entende não ser o Estado obrigado a disponibilizar medicamentos que não constem na lista do SUS.
Em recente julgamento no STF, em setembro de 2016, sobre acesso a medicamento de alto custo pela via judicial, o Ministro Luiz Roberto Barroso entendeu que as demandas que versam sobre medicamentos que não constam na lista do SUS, inclusive os de alto custo, não devem ser fornecidos pelo Estado, como regra geral.Afirmou o Ministro Barroso : “Não há sistema de saúde que possa resistir a um modelo em que todos os remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiro, devam ser oferecidos pelo Estado a todas as pessoas”. [1: Pedido de vista adia julgamento sobre acesso a medicamentos de alto custo por via judicial. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275>.]
Na ocasião, Barroso criou critérios a serem observados para que sejam deferidas demandas de prestação de saúde. São eles: “ “incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; propositura da demanda necessária em face da União, já que a responsabilidade pela decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos é exclusiva desse ente federativo”.
Além dessa questão, o Judiciário tem lidado também com demandas acerca de requerimento de medicamentos que não constam na lista do SUS e não possuem registros na Anvisa.
	Gilmar Mendes (p.668) critica a forma como as demandas concernentes a remédios que não estejam listados no SUS são ajuizadas, argumentando que tais demandas são individualizadas, acarretando um problema à política de saúde pública. Assim, as pessoas que são beneficiadas com tais demandas são as de maior poder aquisitivo, que contratam bons advogados particulares, segundo estudo realizado em São Paulo e citado por Mendes. Alerta ainda que essa situação é contraditória aos ditames constitucionais de acesso igualitário e universal ao sistema de saúde.
Dessa forma, é preferencial que as demandas de judicialização à saúde ocorram no âmbito coletivo, a fim de atender a toda população e estimular o diálogo a respeito dessas demandas. Além disso, o grande número de informações que podem haver nas ações coletivas, com contribuição de especialistas da comunidade, pode enriquecer o debate sobre o fornecimento dos medicamentos não listados pelo SUS.
No entanto, sobre esse aspecto, Ingo Wolfgang Sarlet comenta:
Com todas as vênias à fundamentação que embasa tal posicionamento, não se pode deixar de salientar que o direito à saúde é, antes de tudo (e também), um direito de cada pessoa, visto que umbilicalmente ligado à proteção da vida, da integridade física e corporal e da própria dignidade inerente a cada ser humano considerado como tal. Isso significa que, a despeito da dimensão coletiva e difusa de que s e possa revestir, o direito à saúde, inclusive quando exigido como direito a prestações materiais, jamais poderá abandonar a tutela pessoal e individual que lhe é inerente e impostergável. (SARLET 2013, p.4529). 
O fornecimento de medicamentos é, dessa forma, dever do Estado, conforme ficou entendido em audiência pública sobre saúde, realizada pelo Supremo Tribunal Federal de abril a maio de 2009 – e reafirmado no STA 175, Agravo regimental interposto pela União contra decisão do STF que indeferia pedido de suspensão de tutela antecipada em julgamento sobre direito à saúde em 2010. O Ministro Gilmar Mendes foi o relator na ocasião e, de acordo com Uadi Lammego Bulos, foi a primeira vez que o Supremo utilizou subsídios de audiência para fixar orientações sobre questão controvertida. Sobre os critérios a serem adotados pelo Tribunal, Gilmar Mendes esquematizou as seguinte forma :
O primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Isso porque, ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo SUS, o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de saúde pare ser evidente (MENDES, P.675). 
	Segue ainda Mendes afirmando que, caso a prestação de saúde pleiteada pela parte não estiver entre as políticas pré-estabelecidas pelo SUS, deve ser verificada a razão da falta de prestação da requerida política. Para tanto, basta analisar se tal fato decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, decisão administrativa de não a fornecer ou de uma vedação legal expressa à sua dispensação. Nesse momento, inclusive, desse se verificar se a prestação demandada é registrada na Anvisa. Como já afirmado anteriormente, o entendimento geral do Tribunal é o de que a Administração não pode fornecer medicamento não registrado na ANVISA.
Ainda segundo Mendes, o próximo critério a ser ponderado pelo Tribunal é o seguinte:
O segundo dado a ser considerado é a motivação para o não fornecimento de determinada ação de saúde pelo SUS. Há casos em que se ajuíza ação com o objetivo de garantir prestação de saúde que o SUS decidiu não custear por entender que inexistem evidências científicas suficientes para autorizar a sua inclusão. (MENDES, 2015, p.675).
	Nessa hipótese, segundo Gilmar Mendes, duas situações podem ocorrer: O SUS pode fornecer um tratamento alternativo, mas não adequado ao paciente ou o SUS pode não ter nenhum tratamento específico para a patologia do indivíduo. 
No primeiro caso, Gilmar Mendes afirma que o SUS deve priorizar o tratamento já fornecido, “sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente; essa sistemática pressupõe, porém, a necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos” (Mendes, 2015, p.676).
Contudo, excepcionalmente, o Judiciário ou a Administração poderá decidir fornecer o medicamento não previsto pelo SUS, como já mencionado anteriormente ao comentar a afirmação do Ministro Barroso, quando verificado que o medicamento disponibilizado não é eficaz para tratamento do indivíduo.
No segundo caso, é preciso diferenciar os tratamentos experimentais dos novos tratamentos ainda não testados pelo SUS. No caso dos tratamentos experimentais, o Estado não deve ser responsabilizado a fornecê-los, pois são tratamentos realizados por laboratórios, sem comprovação científica de eficácia. No caso de novos tratamentos, ainda não testados pelo SUS devido a burocracia na aprovação de novos tratamentos terapêuticos, pode ocorrer uma diferenciação entre os pacientes do SUS e os pacientes da iniciativa privada. Nesse caso, a demora administrativa em aprovar novos tratamentos eficazes pode ser objeto de demanda judicial, a fim de fazer jus ao que reza a Constituição, quando determina ao acesso universal e igualitário a toda a população do país. (Mendes, 2015, p.676). 
Ademais, segue afirmando:
Em todo caso, é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-se como um obstáculo à concessão de medidas cautelares. Assim, independentemente da hipótese levada à consideração do Poder Judiciário, há a necessidade de adequada instrução das demandas de saúde, para que não ocorra a produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto, impedindo que o julgador concilie a dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva do direito à saúde. Esse é mais um dado incontestável, colhido na audiência pública – Saúde. (MENDES, 2015, p. 677).

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