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187Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 LACTATO SANGÜÍNEO: CONTROLE DA PRODUÇÃO, ACÚMULO, REMOÇÃO E RELAÇÃO COM O TREINAMENTO FÍSICO VERIDIANA MOREIRA, MESTRE, PROFESSORA DO CURSO DE EDUCAÇÃO FÍSICA DA ULBRA. RESUMO O presente estudo teve como objetivo revisar e esclarecer conceitos, à respeito da produção, acúmulo e remoção de lactato sangüíneo, assim como suas relações como o treinamento físico. Durante muitos anos, a prescrição, o controle de treina- mento e a predição da performance, eram feitos utilizando o empirismo. De alguns anos para cá, surgiu a necessidade de compreender fatores fisiológicos que podem contribuir para um treinamento mais eficiente e uma conseqüente melhora de ren- dimento. Desde a realização de estudos pioneiros os quais demonstraram a forma- ção de lactato durante a contração muscular, estudos tem surgido para identificar os prováveis mecanismos que controlam a produção e a remoção de lactato duran- te o exercício, os quais serão abordados no decorrer deste trabalho. Palavras-chave: Lactato Sangüíneo, Exercício Físico, Treinamento. ABSTRACT This present study had the objective to review concepts and provide informations about the production, accumulation and elimination of blood lactate and its relation to physical training. During many years, the precept, control of training and prediction of performance were done utilizing empirical methods. From past years, until now there arose a need to understand physiological factors that can add to a more efficient training and consecutive better physical improvement. Since the realization of pioneer studies, of wish demonstrated the formation of blood lactate during muscular contraction, other studies have Corpo em Movimento Canoas v.1, n.1 outubro 2003 p. 187-197 188 Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 emerged to identify the probable mechanisms that control the production and elimination of blood lactate during exercise. Key words: Blood Lactate, Physical Exercise, Training. LIBERAÇÃO DE ENERGIA A PARTIR DOS CARBOIDRATOS E FORMAÇÃO DE ÁCIDO LÁTICO A função primária dos carboidratos consiste em fornecer energia para o trabalho celular. Eles são o único nutriente cuja energia armazenada pode ser usada para gerar ATP anaerobicamente. Isso é importante no exercício vigoroso, que requer a liberação rápida de energia acima dos níveis que podem ser atendidos pelas reações metabólicas aeróbicas. Nesse caso, o glicogênio acumulado e a glicose sangüínea terão que fornecer a maior parte da energia para a ressíntese de ATP. No exercício leve e moderado, os carboidratos atendem a cerca de metade das necessidades energéticas do organismo. É necessário um fracionamento contínuo de alguns carboidratos para que os nutrientes provenientes das gorduras possam ser processados através dos processos metabólicos e utilizados na produção de energia. No exercício prolongado tipo maratona, não é raro que um participante experimente certa fadiga – um estado associado a depleção de glicogênio nos músculos e no fígado (McArdle et al., 1998). Segundo Gollnick et al. (1986), a concentração de glicogênio é facilmente alterada por dieta ou exercício ou pela combinação de ambas. As mudanças na concentração arterial e muscular de lactato induzidas pelo exercício e pela capacidade de trabalho, são grandemente influenciadas por concentração de glicogênio muscular pré-exercício. Quando a concentração de glicogênio muscular é baixa, seja por dieta ou por exercício, há uma redução na produção de força máxima e no consumo máximo de oxigênio. Estes dados demonstram a importância dos estoques musculares de glicogênio para exercícios intensos de curta duração como também para exercícios prolongados. Montgomery (1990), descreve em sua revisão de literatura que o substrato primário para a produção de lactato muscular é derivado de unidades de glicose provenientes do glicogênio local. Tais evidências são baseadas em estudos de pessoas com desordem metabólica, portadores da Síndrome de Mc’Ardle. Indivíduos com esta síndrome são caracterizados pela falta da enzima fosforilase em seus músculos esqueléticos. A concen- tração de lactato sangüíneo nestes pacientes, permanece igual aos valo- res de repouso, mesmo quando exercitados em alta intensidade. Nessa situação, a degradação do piruvato é equivalente ao transportado para dentro da mitocôndria para oxidação. A infusão de glicose nestes pacien- tes aumenta a oxidação de glicose; entretanto, a produção de lactato permanece constante. A possibilidade de aumentar os níveis de glicose não favorece o aumento às tolerâncias do exercício. 189Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 Até mesmo em repouso ou em exercício leve, algum ácido lático é for- mado continuamente pelo metabolismo energético das hemáceas, que não contém mitocôndrias, e pelas limitações impostas pelas atividades enzimática e constantes de equilíbrio para as reações químicas. Durante os níveis mo- derados de metabolismo energético, as células dispõem de bastante oxigê- nio. Conseqüentemente, a maior parte dos hidrogênios (elétrons) extraí- dos do substrato e carregados pelo NADH é oxidada dentro das mitocôndrias e transferida para o oxigênio para formar água. Num sentido biológico, existe um “estado constante” ou de equilíbrio (steady state), pois o hidrogê- nio é oxidado quase no mesmo ritmo que se torna disponível. Entretanto, os bioquímicos costumam denominar essa condição de glicólise aeróbica, com o ácido pirúvico sendo o produto final predominante. Nessas reações não se acumula ácido lático, pois o seu ritmo de remoção é igual ao seu ritmo de produção (McArdle et al., 1998). O lactato é formado com altas taxas de glicogenólise e glicólise nas células musculares (Brooks, 1991). No exercício extenuante, quando as demandas energéticas ultrapassam quer o fornecimento, quer o ritmo de utilização do oxigênio, nem todo o hidrogênio acrescentado ao NADH pode ser processado através da cadeia respiratória. A liberação contínua de energia anaeróbica na glicólise depende da disponibilidade de NAD para a oxidação de 3-fosfogliceraldeído; do contrário, o ritmo rápido da glicólise se esgotará. Em condições de glicólise anaeróbica, NAD é libera- do à medida que pares de hidrogênio em excesso se combinam com o ácido pirúvico numa etapa adicional, catalisada pela enzima desidrogenase lática (LDH), para formar ácido lático (McArdle et al., 1998). O armazenamento temporário de hidrogênio com ácido pirúvico cons- titui um aspecto ímpar do metabolismo energético, pois proporciona um reservatório pronto para o desaparecimento dos produtos finais da glicólise anaeróbica. Além disso, depois que o ácido lático é formado no músculo, acaba por se difundir rapidamente para o sangue, onde é tamponado e conduzido para longe do local do metabolismo energético. Dessa forma, a glicólise pode prosseguir e fornecer energia anaeróbica adicional para a ressíntese de ATP. Entretanto, essa via para a energia extra é apenas temporária, pois, à medida que aumenta o nível de lactato no sangue e nos músculos, a regeneração de ATP não consegue acompanhar o ritmo de sua utilização, a fadiga se instala e o exercício terá que ser interrom- pido. A fadiga é mediada provavelmente pelo aumento da acidez, que inativa várias enzimas implicadas na transferência de energia, assim como nas propriedades contráteis dos músculos (McArdle et al., 1998). Muitos estudos têm examinado a capacidade dos fluídos intracelulares em tamponar o produto final da acidose, originado da gligólise anaeróbica. A capacidade de tamponamento do músculo esquelético é um importan- te fator na regulação do pH. Parkhouse et al. apud Montgomery (1990), relatam que atletas treinados anaerobicamente, têm maiores reservas corporais de bicarbonato do que maratonistas e sujeitos não treinados. O 190 Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 sistema detamponamento pelo bicarbonato é um importante meio de defesa sobre os aumentos intracelulares de íons hidrogênio, ou seja, quan- do o bicarbonato extracelular é mantido em níveis altos, a saída de ínos hodrogênio ocorre mais rapidamente. Segundo Brooks (1991), o lactato era considerado como produto do metabolismo limitado de oxigênio (glicólise anaeróbica) durante o exer- cício, acumulando, aumentando a fadiga e o débito de oxigênio. Entre- tanto, dados recentes obtidos, têm mostrado uma concepção de que a formação, a troca e a utilização do lactato representam um importante meio de distribuição da energia dos estoques de carboidratos após uma refeição carboidratada e durante a sustentação de exercícios físicos. O ácido lático não deve ser encarado com um produto de desgaste metabó- lico. Pelo contrário, é uma fonte valiosa de energia química que se acu- mula e será liberada no corpo durante o exercício físico intenso. Quando se dispõe novamente de oxigênio suficiente, como ocorre na recuperação ou quando o ritmo do exercício é reduzido, o hidrogênio preso ao ácido lático é captado por NAD e acaba sendo oxidado. Conseqüente- mente, o ácido lático é reconvertido prontamente em ácido pirúvico e utili- zado como uma fonte de energia. Além disso, a energia potencial nas molé- culas de lactato e piruvato formadas no músculo durante o exercício pode ser conservada e os esqueletos de carbono dessas moléculas serão utilizadas para a ressíntese de glicose no processo glicogênico do ciclo de Cori. Esse ciclo não proporciona apenas o meio para a remoção do ácido lático, mas também para aumentara glicose sangüínea e o glicogênio muscular (Montgomery, 1990; Brooks, 1991; McArdle et al., 1998). Assim sendo, o lactato é um vantajoso metabólico intermediário entre as formas de armazenar carboidratos (glicose e glicogênio) e produtos finais metabólicos (CO2 e H2O). Tal vanta- gem é dada através das rápidas trocas entre os tecidos. O lactato têm baixo peso molecular e não requer insulina para ser transportado, sendo movido das barreiras das membranas celulares por transporte facilitado. O músculo esquelético considerado como maior sítio de formação de lactato, pode, em algumas circunstâncias, ser responsável pela remoção significante do lactato líquido sangüíneo. O fígado, considerado o maior sítio de remoção completa de lactato (ciclo de Cori), contribui para o maior aumento da concentração do lactato arterial no início do exercício. Du- rante o exercício, quando a concentração arterial de lactato aumenta, pode tornar-se o combustível predominante para o coração. (Brooks, 1991). ACÚMULO E REMOÇÃO DE LACTATO Segundo McArdle et al. (1998), o ácido lático não se acumula neces- sariamente em todos os níveis de exercício. Durante o exercício leve e moderado as demandas energéticas de ambos os grupos são satisfeitas 191Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 adequadamente por reações que utilizam oxigênio. Em termos bioquímicos, o ATP para a contração muscular torna-se disponível predominantemen- te através da energia gerada pela oxidação do hidrogênio. Qualquer áci- do lático formado no exercício leve é oxidado rapidamente. Assim sen- do, o nível sangüíneo de ácido lático se mantém bastante estável, até mesmo quando o consumo de oxigênio aumenta. Estudos têm demonstrado que a oxidação do ácido lático durante o exercício está relacionada ao consumo de oxigênio (Stainsby & Brooks, 1989). O ácido lático começa a elevar-se de maneira exponencial para aproximadamente 55% da capacidade máxima para o metabolismo aeróbico dos indivíduos sadios, porém destreinados (McArdle et al., 1998). Gollnick et al. (1986), relatam que a intensidade do exercício que elicita um aumento na concentração de lactato no músculo e no sangue é influ- enciada por números fatores. Exercício realizado entre 50% a 60% do VO2 máx. normalmente determina um aumento no lactato muscular e sangüíneo em indivíduos relativamente incapacitados. Quando a inten- sidade do exercício aumenta, há um aumento exponencial na concentra- ção do lactato muscular e sangüíneo (Weltman, 1995). A duração do exercício também pode afetar o pico de concentração de lactato muscular e sangüíneo. Entretanto, a concentração do lactato no músculo e sangue é notavelmente similar quando a intensidade do exercício induz à exaustão em aproximadamente 8 minutos ou menos. Na realização de exercícios prolongados, a concentração de lactato muscu- lar e sangüíneo inicialmente aumenta e então declina com o tempo, apro- ximando-se gradualmente dos valores de repouso quando o exercício é continuado por 1 ou 2 horas. Para McArdle et al. (1998), o acúmulo mais rápido e os níveis mais altos são alcançados durante um exercício que pode ser sustentado por 60 a 180 segundos. A explicação habitual para o aumento no ácido lático baseia-se na suposição de uma hipóxia tecidual relativa no exercício intenso. Argumenta-se que, nessas condições de deficiência de oxigênio, a demanda de energia é atendida parcialmente por uma certa predominância da glicólise anaeróbica à medida que a liberação de hidrogênio começa a ultrapassar sua oxidação através da cadeia respiratória. Conseqüentemente, hidrogênios em excesso são trans- feridos para o ácido pirúvico e o ácido lático acumula-se. Este aumento torna-se maior à medida que o exercício torna-se mais intenso e as célu- las musculares não conseguem satisfazer aerobicamente as demandas adicionais de energia. Esse padrão é essencialmente semelhante para o indivíduo treinado, exceto que o limiar para o acúmulo de ácido lático, denominado limiar anaeróbico, ocorre num percentual mais alto da ca- pacidade aeróbica do atleta. Essa resposta favorável poderia ser devida aos dotes genéticos do atleta de endurance (tipo de fibra muscular) ou a adaptações locais específicas induzidas pelo treinamento e que poderiam favorecer a produção de menos ácido lático, assim como a um ritmo mais rápido de remoção para qualquer nível em particular de exercício. Estu- 192 Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 dos relatam que a densidade capilar, o tamanho e o número das mitocôndrias aumentam com o treinamento de endurance, o mesmo ocor- rendo com a concentração de várias enzimas e agentes de tranferência implicados ao metabolismo aeróbico, sendo que esta resposta ao treina- mento pode não ser afetada pelo processo de envelhecimento. Essas alte- rações aprimoram certamente a capacidade da célula em gerar ATP aerobicamente, em especial através da desintegração dos ácidos graxos, podendo ampliar o percentual do máximo de uma pessoa que pode ser sustentado antes do início do acúmulo de lactato no sangue. Os atletas treinados em endurancem por exemplo, trabalham com intensidades dos exercícios que representam cerca de 80 a 90% de sua capacidade máxi- ma para metabolismo aeróbico. O acúmulo de lactato no sangue é secundário ao aumento da produ- ção muscular de lactato (Montgomery, 1990). As concentrações de lactato sangüíneo durante a realização de um exercício não necessariamente refletem a produção de lactato muscular. Segundo Weltman (1995), isto poderia evidenciar mais apropriadamente, as diferenças observadas entre a remoção sangüínea do lactato produzido no músculo e o consumo de lactato sangüíneo pelo músculo e por outros tecidos. Assim sendo, o acúmulo de lactato por si, não representa uma função implícita na altera- ção dos processos metabólicos durante o exercício. Para Jacobs (1986), comparações laboratoriais das intensidades de exercícios para concen- trações específicas de lactato, devem ser interpretadas com cuidado. O tempo requerido para o lactato ser liberado do músculo para a circulação e, aos aumentos contínuos na intensidade do ergômetro, afetariam o cál- culo de uma intensidade de exercício correspondente a um acúmulo de lactato específico. Em repouso, existe uma pequena concentração de lactato muscular (1 mmol/Kg)e sangüíneo (1 mmol/l). Valores de lactato sangüíneo para atletas em performance contínua, intensa e de curta duração, têm sido mostrados em níveis como 32 mmol/l. Valores típicos de nado livre (200 jardas) e corrida de velocidade (400m), apresentam valores médios de 18-19 mmol/l (Montgomery, 1990). Gollnick et al. (1986), relatam alguns estudos como os de Mainwood & Renaud (1985), os quais sugerem que a fadiga completa pode ocorrer quando as concentrações de lactato entre 20 e 25 umol.-1 de tecido úmido são alcançadas no músculo. Nestas con- siderações, existem um número de informações de concentrações de lactato acima de 25 mmol.Kg-1 por peso úmido de músculo e 20 mmol.l-1 no sangue, após sessões únicas ou múltiplas de exercício máximo. Ainda que altos, estes valores não parecem ser máximos pois Hermansen (1972), observou concentrações de lactato sangüíneo acima de 30 mmol.l-1 após sessões múltiplas de exercícios dinâmicos em humanos. Snow et al. (1985), encontrou uma média de lactato sangüíneo acima de 35 mmol.l-1 em 3 cavalos puro-sangue treinados, em 4 sessões de exercícios máximo acima de 620m. O pico da concentração do lactato muscular, variou entre 25 e 193Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 55 mmol.Kg-1 de músculo úmido destes animais. Concentrações de lactato de 45 e 55 mmol/g de músculo para porções de fibras brancas e vermelhas (gastrocnêmio) em ratos, têm sido encontradas por estimulação elétrica durante oclusão circulatória do músculo (Montgomery, 1990). Rowell et al, (1986) citados por Stainsby & Brooks (1989), encontraram resultados relevantes para a discussão a respeito da limitação do oxigênio como causa da produção de ácido lático no músculo, e as concentrações de lactato sangüíneo durante o exercício em hipóxia. Durante a realização de exercício submáximo (38W) em hipóxia (respirando 10-11% O2), o fluxo sangüíneo do músculo quadríceps aumentou e a diferença artério-venosa de oxigênio diminuiu, mas o consumo de oxigênio e a eficiência muscular foram mantidos. Em contraste ao consumo de oxigênio, o lactato aumen- tou dramaticamente durante hipoxemia. A diferença artério-venosa de lactato aumentou aproximadamente de 0,5 para 1,4 mmol/l. No músculo quadríceps a concentração de lactato triplicou de 2,5 para 7mmol/l. Nestes circunstâncias, os resultados sugerem que o aumento exagerado do lactato não foi devido a limitação de oxigênio; os autores observaram um aumento nos níveis de epinefrina (3 a 4 vezes) estimulando, desta forma, a glicogenólise muscular. Mais recentemente, Brooks et al. apud Brooks (1991), notaram forte correlação entre medidas de lactato sangüíneo e circulação dos níveis de epinefrina em homens durante o repouso e exercí- cio (a nível do mar e em altitudes elevadas). A formação e liberação de lactato por diversos tecidos como o músculo esquelético, fígado e pele sob condições de repouso (através de uma carga de carboidratos e estimulação de epinefrina), contraria o ponto de vista que o lactato é formado como resultado de metabolismo limitado de oxigênio. Não somente a ativação da massa muscular, mas também o fornecimento de substratos, são responsáveis pela formação de lactato (Brooks, 1991). Foi sugerido também que o lactato formado em uma determinada par- te de um músculo ativo pode ser oxidado por outras fibras no mesmo ou por tecido muscular vizinho menos ativo. Esses ajustes e adaptações ao treinamento ajudam certamente a manter baixos os níveis de lactato durante o exercício e poderiam proporcionar também um meio importan- te para a conservação da glicose no trabalho prolongado (Brooks, 1991; McArdle et al., 1998). Brooks (1996), realizou medidas da diferença artério-venosa de lactato e marcadores de lactato muscular. Aproxima- damente metade do lactato formado no trabalho muscular é liberado na circulação venosa, e, metade do lactato formado no músculo, junto com uma quantidade significante do lactato removido da circulação arterial, é oxidado dentro do músculo e aparece como CO2 no sangue venoso. Em estudo semelhante, Stanley et al. (1986), mediram as taxas de apareci- mento e desaparecimento do lactato vascular, assim como a diferença artério-venosa de lactato entre músculos ativos e inativos. Aproximada- mente metade do lactato formado no músculo durante exercício 194 Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 submáximo foi removido por oxidação no músculo esquelético em contra- ção. Brooks (1986), baseado em estudos de Baldwin et al. (1977 e 1978), os quais estudaram as características metabólicas de vários tipos de fibras em mamíferos, relata que o lactato produzido com o recrutamento de fibras do tipo IIb, é transportado para as fibras de tipo I ou IIa, onde é oxidado. Desta forma, a maior quantidade de fibras glicolíticas no interi- or de um músculo em trabalho lançam o substrato oxidado para as células vizinhas com altas taxas respiratórias. O relativo fluxo sangüíneo para as áreas gliconeogênicas é reduzido aproximadamente em 20%. Tal hipóte- se, conhecida como “lançadeira de lactato”, aparece não somente du- rante a sustentação de exercícios submáximos, mas também durante re- pouso pós-absortivo e condições pós-prandiais (Brooks, 1991). Segundo Brooks (1991), após uma refeição rica em carboidratos, a glicose que alcança o músculo esquelético ou é depositada como glicogênio ou sofre glicólise. A fração destinada à glicólise (aproximadamente 40-50%) é oxidada, enquanto o restante é removido por outros meios. Em estado pós- prandial, o lactato liberado do músculo alcança as áreas de gliconeogênese hepática via circulação sistêmica, onde é convertido em glicose-6-fosfato e, então, para glicogênio, pois o lactato que circula no fígado é um potente precursor da síntese de glicogênio hepático (Brooks, 1986). Em situação de exercício pós-absortivo, o mecanismo é diferente. En- quanto o rendimento hepático da glicose é significante, o glicogênio muscular provém em maior quantidade dos estoques de carboidratos da oxidação muscular. Em trabalho realizado no tecido muscular como um todo, há uma relativa super-produção de lactato, similar a situação após uma alimentação rica em carboidratos (Brooks, 1986). Brooks (1991), cita ainda alguns estudos baseados somente na concentra- ção arterial e venosa de lactato com diferentes medidas, os quais concluíram que a troca de lactato pode ocorrer entre músculos e sangue (Wench & Stainsby, 1967); entre sangue e músculo (Jorfeldt, 1970; Richter et al., 1988; Stanley et al., 1985); entre músculos ativos e inativos (Ahborg, 1985); entre músculos ativos (Richter et al., 1988); entre sangue e coração (Gertz et al., 1981); entre sangue arterial e fígado (Davis et al., 1984, 1985; Wasserman et al., 1987, 1989) entre fígado e outros tecidos, como os músculos em exercício (Wasserman et al., 1987); entre a pele e o sangue (Johson & Fusaro, 1972); entre o instestino e o sangue na veia porta (Davis et al., 1985) e entre o sangue na veia porta e fígado (Bartels & Jungerman, 1988; Davis et al., 1985). CAPACIDADE PRODUTORA DE LACTATO E TREINAMENTO Segundo McArdle et al. (1998), a capacidade de gerar um alto nível de ácido lático no exercíco máximo aumenta com um “treinamento anaeróbio” específico, sendo reduzido subseqüentemente com o 195Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 destreinamento. Atletas bem treinados demonstraram que, após realiza- rem um exercício máximo de curta duração, o nível sangüíneo lactato é de 20 a 30% mais alto que nos indivíduos destreinados sob circunstâncias semelhantes. O mecanismo para essa resposta é desconhecido, porém pode ser devido as grandes diferenças no nível de motivação que acompanham o estado de treinado, assim como um aumento de aproximadamente 20% nas enzimas envolvidas na glicólise, mais especificamente a fosfofrutoquinase (PFK), observando como resultado do treinamento tipo anaeróbico. Como o ácido lático é removido continuamentedurante e após um exercício com um ritmo variável entre os diferentes indivíduos, é improvável que o lactato sangüíneo medido num determinado momen- to no transcorrer da recuperação forneça um quadro completo da capaci- dade de metabolismo anaeróbico de um indivíduo. É igualmente prová- vel que as maiores reservas intramusculares de glicogênio que acompa- nham o estado treinado venham a permitir uma contribuição maior da energia através da glicólise anaeróbia. Aumentos nas enzimas da via anaeróbia foram relatados com o treinamento tipo velocidade, porém es- sas alterações não parecem ser tão impressionantes quanto as mudanças observadas nas enzimas aeróbias com um treinamento de endurance. Gollnick et al. (1986), relatam que o aumento na concentração de lactato no músculo e no sangue é menor para a mesma produção submáxima de força em indivíduos treinados em endurance quando comparados com indivíduos não treinados. A menor taxa de utilização do glicogênio e o maior consumo de gordura como reserva de energia, também estão asso- ciadas a resposta metabólica do treinamento. O treinamento de resistên- cia produz alguns efeitos na resposta hormonal ao exercício, podendo ser importante para alterar a resposta ao exercício submáximo, como por exem- plo, um reduzido aumento nas concentrações de epinefrina e noraepinefrina (ativadores da glicogenólise) para uma mesma carga de trabalho absoluta e relativa após o treinamento, quando comparadas an- tes do treinamento. Com o treinamento de resistência há um aumento na concentração de mitoncôndrias no músculo. Com maior número de mitocôndrias existe uma maior chance de transportar ADP dentro da mitocôndria para estimular o metabolismo oxidativo. O resultado líquido é a manutenção da alta taxa ATP/ADP impedindo a glicogenólise. Para MacRae et al.(1992), o treinamento de resistência atenua o acúmulo de lactato durante o exercício, embora os mecanismos responsáveis não es- tejam bem definidos. Uma das explicações a respeito de que o treina- mento diminui a produção de lactato assim como a utilização de carboidratos, são os aumentos evidenciados na densidade mitocondrial do músculo esquelético e na oxidação dos ácidos graxos. Estas adapta- ções após um treinamento de resistência têm sido usadas para explicar o diminuído consumo de glicogênio muscular como combustível de reserva durante o exercício. O aumento na massa mitocondrial e na atividade de enzimas mitocondriais assim como na oxidação de gordura, permitem 196 Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 maior produção de ATP pelos processos oxidativos, diminuindo o fluxo glicolítico e a formação de lactato. Os mesmos autores realizaram estudos para determinar os fatores de redução na concentração de lactato sangüíneo durante exercício submáximo em humanos após treinamento de endurance (9 semanas). A partir das medidas realizadas com radioisótopos ® lactato [U-14C] concluíram que, os menores valores de lactato sangüíneo durante o exercício após o treinamento, foram causa- dos por uma diminuição na taxa de aparecimento de lactato e elevada taxa de remoção de lactato; provavelmente via “lançadeiras de lactato”. Donovan & Brooks (1983), também indicaram através de seus experi- mentos, que o efeito do treinamento de resistência não reside somente na produção de lactato, mas sim na remoção deste metabólito do sangue. Os resultados foram obtidos através de medidas realizadas em ratos treinados em resistência (2h por dia; 5 dias por semana; 29,4m/mim em esteira motoriza- da), sob 3 condições metabólicas: repouso; exercício leve (13,4m/min) e exer- cício pesado (26,8m/mim). O nível de lactato sangüíneo nos animais treina- dos aumentou de 1,0±0.09mM no repouso para 1,64±0,21mM no exercício leve e, 2,66±0,38mM no exercício pesado. Os animais controle também de- monstraram um aumento no lactato sangüíneo (1,93±0,21mM no exercício leve e 4,62±0,57mM no exercício pesado). As taxas de renovação de lactato medidas com lactato [U-14C], aumentaram de 214,0±17,0 umol.Kg-1.mim-1 no repouso, para 390,3±31,6 no exercício leve e 518±54,6 no exercício pesa- do, não havendo diferença entre animais controle e treinados, o mesmo acon- tecendo para as taxas de remoção de lactato medidas com 14C em situação de repouso, não havendo diferença entre os animais controle e treinados (180,6±27,7ml.Kg-1.min-1). As taxas de renovação de lactato quando foram medidas com lactato [2-3H], foram 90% mais altas do que aquelas observa- das com lactato [U-14C]. A remoção metabólica do lactato nos animais trei- nados foi 37% maior no exercício leve e 107% maior no exercício pesado, quando comparados aos animais controle (determinadas com 3H). Diferenças nos níveis sangüíneos de lactato entre animais treinados e não treinados durante a realização do exercício submáximo, pode ser devido a maior taxa de remoção metabólica do lactato nos animais treinados. Altos níveis de glicose sangüínea nos animais treinados, durante o exer- cício pesado, são atribuídos por uma menor oxidação do carbono e maior conversão de lactato para glicose. Os referidos autores também sugerem que a produção de lactato também pode ser reduzida pela diminuição da atividade da enzima desidrogenase lática (M-LDH) no músculo. Depocas et al. (1969) citados por Brooks (1991), usando infusão contínua de lactato [U14C] em cães, durante repouso e exercício contínuo em steady-state, realizaram diversos controles fundamentais a respeito do metabolismo do lactato. Os achados incluiram: 1) existe uma renovação ativa durante a condição de repouso pós-absortivo (resultado também encontrado por Brooks, 1986); 2) uma fração grande, aproximadamente 1/2 formado du- rante o repouso é completamente removida na oxidação (diminuindo a 197Corpo em Movimento, v.1, n.1, outubro 2003 taxa de aparecimento, como mencionado por MacRae et al., 1992); 3) a taxa de renovação de lactato aumenta durante o exercício quando com- parada com o repouso; 4) a fração de lactato completamente oxidada aumeta para aproximadamente 3/4 durante o exercício e 5) uma fração pequena (1/10 – 1/4) do lactato removido é convertido em glicose pelo ciclo de Cori durante o exercício. REFERÊNCIAS BROOKS, G. A. Lactate production under fully aerobic condictions: the lactate shuttle durig rest and exercise. Federation Proceedings, v.45, n.13, p.2924-2929, 1986. ________________ . The lactate shuttle during exercise and recovery. Med. Sci. 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