Buscar

Sobre_Alienista_subjetividade

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 16 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 16 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 16 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

O alienista e a loucura: a controvérsia da subjetividade 
 
Júlio Flávio de Figueiredo Fernandes 1 
Introdução 
 
Tenho uma admiração incorrigível pela narrativa feita por Joaquim 
Maria Machado de Assis, em O alienista. Ela traduz um conflito de base daqueles que 
estão às voltas com o problema do acesso da racionalidade ao universo subjetivo 
Entendo que a posição de Machado de Assis, como autor, é a de um psicólogo do séc. 
XIX a partir do que são possíveis brincadeira e ironia com as esquisitices de Simão 
Bacamarte e com sua certeza inarredável na ciência. As peripécias da narrativa tomam 
ar de seriedade quando em Bacamarte vemos o representante de uma medicina 
reducionista, de certo modo viva até hoje, e contra a qual se levantam, desde a época 
de Machado de Assis, toda uma gama de estudiosos. O autor, então, implica-se 
diretamente na discussão. 
Certamente a dimensão cômica do texto se mostra quando vemos a 
grande dificuldade de Bacamarte em situar-se na disputa do lugar da subjetividade na 
modernidade, presente no final do século XIX. Bacamarte é o representante dessa 
dimensão mais ampla, a modernidade, que ele traz da Europa para introduzir no Brasil, 
a partir de Itaguaí e por meio do primado da ciência. Todavia, diante do grande 
psicólogo que é Machado de Assis – construtor de personalidades, que expressa em 
seus personagens não somente neste texto –, torna-se gritante a ingenuidade do 
método e do rigor científicos quando considerados acima de todos os afetos, laços e 
relações pessoais, como os vivencia Bacamarte. Digo, então, de uma vez, que minha 
leitura desse texto, ao menos neste espaço, coloca-o como a montagem de uma 
dicotomia, de uma disputa teórica e metodológica entre Machado de Assis e Simão 
Bacamarte, com a vitória do primeiro no final. 
Outra investigação seria saber se essa posição – do psicólogo Machado 
de Assis – se torna ou não vitoriosa também na realidade social brasileira. Todavia, em 
que pese o fato de que há posições ingenuamente fisiologistas até hoje, ligadas à 
Psicologia, é mais comum, na seara psi, não se deixar entusiasmar demasiado pelo 
formalismo cientificista. É menos frequente alegar o rigor científico tão a sério, a ponto 
de perder o frescor exigido para a apreensão da subjetividade e de suas manifestações 
nos vários domínios da vida. Nesse caso, a literatura, mais ainda a de Machado de 
Assis, é fonte de reflexões arejadas, vejamos em que ela nos ajuda a nos situarmos 
 
1
 Texto ainda inédito, disponível aos alunos na disciplina Filosofia, setembro de 2013. 
2 
 
nessa disputa a que farei referência. Mas, antes da 
disputa propriamente dita, convém situar melhor a 
posição teórica de Machado de Assis como autor 
da narrativa. 
Machado de Assis ensaísta filosófico: da 
loucura à modernidade 
 
Segundo Valéria Lima (2012), a 
liberdade estilística de Machado de Assis dificulta 
qualquer tentativa de classificação da narrativa 
encontrada em O Alienista. Seria um conto, um 
romance, uma novela, teria elementos dos três 
gêneros? Para nossos propósitos uma localização 
excessivamente formalista pode ser irrelevante, todavia, a discussão da “classificação” 
da narrativa de Machado de Assis encerra outro problema, diretamente ligado a nossa 
intenção na leitura do texto: a narrativa parece lidar com conflitos que, mesmo 
situados no século XIX, vão além da função do conto ou da novela ou do romance na 
época. A análise machadiana se alinha a uma discussão filosófica sofisticada pela 
discrição com a qual o psicólogo Machado de Assis opera o seu próprio conhecimento 
psicológico que ocupa na narrativa um lugar oculto, mas não silencioso, já que dirige o 
raciocínio do autor. Dito de outra forma, o método da narrativa é a argumentação 
filosófica, o tema é a dicotomia entre a visão psicológica e a visão organicista da 
loucura e de suas implicações para compreendermos o universo subjetivo. É a partir 
desse lugar – de quem sabe algo sobre a subjetividade humana – que Machado de 
Assis pode adivinhar o destino desta na modernidade tardia, muito mais a nossa, mas 
também, em algum grau, a modernidade com a qual o autor lida no final do séc. XIX. 
Podemos encontrar apoio para a hipótese de uma discussão filosófica 
na narrativa de O Alienista em algumas afirmações dos críticos que são nossos 
contemporâneos. Como lembra a professora Valéria Lima, José Guilherme Merquior 
classifica a história de Simão Bacamarte como “ ‘conto filosófico’, como ‘uma fábula 
com ar de novela histórica’ ” (LIMA, 2012). Reflexão filosófica e história aparecem 
relacionadas de forma genérica pelo crítico, acrescentaríamos somente que essa 
reflexão filosófica e histórica trata da subjetividade. Nela usa-se, de forma magistral, a 
temática da loucura não como pano de fundo, mas como porta de entrada para a 
questão mais ampla da disputa pelo lugar da subjetividade na modernidade. 
Outra afirmação nessa direção é a de Kátia Muricy, citada por Telma 
Dias Fernandes: 
3 
 
[...] Seu ceticismo [de Machado] em relação ao pensamento liberal e à 
racionalidade burguesa é o filtro crítico com que acolhe a entrada dos valores 
da modernidade no Brasil. O caminho feliz dessa crítica passou muitas vezes 
pela ironia às inovações da medicina. Passagem inevitável já que a medicina 
foi, entre nós, o veículo da modernidade (MURICY, 1988. p. 14 apud 
FERNANDES, p. 4). 
Não é somente em O Alienista que Machado de Assis lida com a loucura, 
sua noção geral do tema se apresenta em muitos outros de seus textos. Entretanto, é 
nessa narrativa, contra Bacamarte, que o autor brasileiro do século XIX faz seu mais 
significativo massacre da posição reducionista e cientificista, valendo-se de seu 
conhecimento de Psicologia. Mas que elementos do texto de Machado de Assis podem 
nos dar essa impressão de uma discussão que ultrapassa a função do conto, da novela, 
do romance na direção de um ensaio filosófico-histórico sobre o conflito em torno a 
subjetividade a partir da loucura? Localizada a discussão de Machado de Assis, agora 
podemos nos ater a isso. 
 
Entre organicismo e realismo: a subjetividade em disputa 
 
O primeiro dos elementos introduzidos pelo texto de Machado de Assis 
como referência à disputa é o próprio tema: a loucura como questão de controvérsia 
teórica e disputa de domínios profissionais 2. Do ponto de vista histórico, o final do 
século XIX é exatamente o momento no qual surge a querela: de um lado, a 
interpretação cientificista da subjetividade como pseudo-realidade, sobre a qual 
pretensamente se poderia lançar luz, definindo-se os processos fisiológicos 
subjacentes a qualquer manifestação subjetiva; de outro lado, a resistência a essa ideia 
no seio da própria pesquisa dita científica, resistência por meio da afirmação ainda 
mais categórica da subjetividade como realidade de outra ordem que não aquela 
apreensível por meio da fisiologia do corpo humano e nem como realidade redutível a 
esta. Machado de Assis inventa Simão Bacamarte como o guardião dessa primeira 
posição e lhe concede a palavra de forma tão ampla, lhe dá tanta liberdade, até 
mesmo legitimidade politica e social, somente para indicar onde isso tudo levaria: ao 
ridículo. Temos nisso, então, a equação do texto: fazer Bacamarte falar e agir em pleno 
acordo entre fala e ação. Essa integridade de Simão Bacamarte é o expediente para 
colocar a céu aberto sua fragilidade, que é a fragilidade da ciência moderna quando se 
dirige ao sujeito, deixando de lado que se trata aí de um conceito psicológico; ou 
 
2
 Telma Fernandes dia que: “ noção que estabeleçoa partir de Machado e deste com a historicidade do 
final do século XIX remete a que loucura não é apenas uma prerrogativa de agentes insanos. A questão 
da loucura em Machado de Assis é uma crítica muito mais ampla e atravessa as relações produzidas pela 
modernidade brasileira. A recepção das teses científicas, das teses econômicas e políticas liberais, dos 
ideais de justiça e de individualidade da sociedade ocidental moderna se faz de modo a produzir uma 
sociabilidade insana” (FERNANDES, 2012). 
4 
 
mesmo, quando esquece essa dimensão e a reduz ao organismo; ou, mais 
recentemente, quando, impulsionada pela necessidade de vender, a reduz à teoria do 
consumidor. A loucura, no momento em que Machado de Assis, publica sua narrativa é 
uma boa oportunidade para examinarmos essa cisão teórica que, na verdade, 
atravessará o século XX e chegará até nossos dias de modo acirrado. 
Não é possível atribuir ao texto O Alienista o papel histórico de 
introduzir no Brasil, esta discussão, mas se pode afirmar que nele a querela está 
montada. O tom irônico com o qual Machado de Assis suspende todas as certezas do 
médico demonstra que o autor está situado em uma boa posição 3 a partir da qual 
discute o assunto da loucura de forma avessa a de Bacamarte. Hoje essa disputa pela 
loucura (e pela subjetividade) como entidade autônoma em relação aos sofrimentos 
do organismo tem um formato diferente daquele encontrado por Machado de Assis. 
Mas, dadas as condições das profissões e dos pesquisadores que a disputam, ela 
continua irresoluta e tensa tanto quanto no final do século XIX. Diria que um pouco da 
história futura da Psicologia depende das tendências que essa discussão possa tomar. 
Bacamarte, o organicista, versus Machado de Assis, o psicólogo realista, dotado de 
uma capacidade de crítica epistemológica, formam os eixos da discussão. Bacamarte 
opera pela via da redução ao empírico daquelas realidades que de tão complexas ao 
serem pensadas começam a parecer irreais – ou pseudorealidades. Machado de Assis 
opera pela via de um realismo filosófico para o qual seria necessário admitir, de modo 
mais radical que “o real se opõe ao inteligível e implica uma parte de ‘irracionalidade’ 
“(LALANDE, 1999, p. 927). Em síntese, o texto O Alienista é uma das belas equações 
filosóficas da anteposição do organicismo ao realismo. 
Todavia, a posição de ambos é, internamente, bem justificada. Se 
montamos a equação da disputa dando-lhe um caráter filosófico (epistemológico), 
agora podemos retomá-la, inclusive e maneira mais próxima à letra do texto, para 
compreender suas razões históricas. 
 
O equívoco dos anatomistas é inevitável: o desconhecimento da alma 
 
Voltemos ao tempo e ao texto de Machado de Assis para notarmos a 
montagem histórica da equação da disputa. É de grandes consequências que Simão 
 
3
 Num certo sentido, o que os gregos queriam dizer com o termo epistemologia (que se torna um dos 
domínios da filosofia) era “colocar-se em boa posição”, o que no caso de Machado de Assis neste texto, 
é muito bem explorado, dada a condição de autor crítico de seu personagem ilustre. Nesse sentido, O 
Alienista é uma reflexão epistemológica, uma discussão das possibilidades e das condições pelas quais 
as ciências poderiam se dirigir à subjetividade (e à loucura como uma de suas questões). A posição de 
Machado de Assis, crítico de Bacamarte, é a de ferrenha destituição do valor de todas suas investidas, 
tendo como base o seu erro conceitual de origem, a confusão entre os conceitos de psique e de cérebro. 
5 
 
Bacamarte, na narrativa de Machado de Assis, seja exatamente um médico. Mesmo 
sendo “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas” (ASSIS, 2008, p. 3) 4 
ele nada sabe sobre a loucura. Bacamarte antecipa exatamente os psiquiatras do final 
do século XIX e início do século XX, que experts nos domínios da medicina quando esta 
se dirige ao sofrimento físico das pessoas, nada sabem – exceto aquilo que suas 
hipóteses procuram testar – sobre a loucura e sobre o sofrimento subjetivo. 
Também é notável na narrativa de O Alienista, que Bacamarte seja 
obsessivo em sua escolha, que para ele o caminho do conhecimento científico pudesse 
se dirigir a qualquer domínio. A ciência serve aos atos do médico para fundamentação 
dos bem conhecidos cataplasmas, que curam as dores dos habitantes de Itaguaí. A 
ciência serve, do mesmo modo, para intervir nas dificuldades de sua mulher para 
engravidar, ainda que esta, contra o saber do médico, tenha mentido “às esperanças 
do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos” (p.3). Nisso poderíamos 
ter somente a narrativa das tentativas e redirecionamentos cotidianos da clínica, nesse 
sentido aplicada aos familiares. Mas as coisas se mostram diferentes, a tendência de 
Bacamarte é mais grave. 
Aparece de modo inquestionável a intenção de estender, sem 
pestanejar, o raciocínio contido nessas “aplicações da ciência” a aplicações muito mais 
temerárias. Isso já se mostrava, de certa forma, no uso que faz da ciência para 
justificar seu desinteresse pelos atributos de sua esposa, que afinal de contas, como 
diz o autor tinha “olhos que eram a sua feição mais insinuante, — negros, grandes, 
lavados de uma luz úmida, como os da aurora” (p. 7), mas que foram desconsiderados 
pelo marido, dedicado aos interesses da ciência e não “na contemplação exclusiva, 
miúda e vulgar da consorte” (p.2). Esse uso do saber científico para destituir a mulher 
de importância fica subjacente ao machismo comum e, portanto, ainda não incomoda 
os Itaguaienses. A extensão equivocada da ciência começa a se tornar problemática no 
enredo, ou seja, o problema da modernidade se evidencia no enredo quando o 
eficiente cientista dirige suas hipóteses às idiossincrasias e às contradições subjetivas 
dos habitantes de Itaguaí. Antecipando as posições dos médicos do final do século XIX 
que, entusiasmados com o sucesso inegável da medicina em explicar as dores e 
dissabores do organismo humano, Bacamarte estende seu raciocínio à subjetividade, 
focalizando nessa a loucura como seu objeto de pesquisa. Todavia, Machado de Assis, 
ciente dessa tendência na medicina desde sua época, faz com que Bacamarte se dirija 
às pessoas, desconsiderando o vasto e complexo terreno da subjetividade – pelo que a 
loucura lhe parece um grande enigma. 
 
4
 Todas as citações do texto de Machado de Assis serão feitas aqui, com base na edição eletrônica das 
obras completas, disponibilizada pelo Ministério da Educação na internet. A partir desse ponto, 
indicaremos apenas a página da parte citada na obra: ASSIS, M. O Alienista. In: ASSIS, M. Papéis 
avulsos (1882). Brasília: MEC, 2008 (Disponível em http://machado.mec.gov.br). 
6 
 
Nisso reside exatamente a dimensão cômica explorada por Machado de 
Assis. Na disputa teórica e técnica da loucura, denuncia ironicamente a total 
ingenuidade da extensão do organicismo ao universo subjetivo. Certamente não há em 
O alienista, um tratado da loucura como condição a ser pensada a partir da 
subjetividade, mas claramente, nas peripécias do Dr. Bacamarte, Machado de Assis 
carrega as cores da falta dessa visão pelo médico. A superficial “objetivação” daquilo 
tudo que lhe aparece de subjetivo (sem que ele perceba) se inicia quando transpõe os 
limites do seu saber na direção da “alma”, levando consigo a ideia organicista de 
“saúde”. Seu brado “a saúde da alma é a ocupação mais digna do médico” (p. 3) o 
alinha àqueles que, sem se darem conta, adotam como se fossem uma só, duas 
categorias teóricas completamente heterogêneas entre si: “saúde” e “alma”.A ideia 
de saúde foi constituída por uma pesquisa empírica para a qual as investigações 
anatômicas que duraram um século até chegar ao final do século XIX forneceram um 
grande impulso. A ideia de alma remonta à primeira das racionalidades, a 
racionalidade mito-poética e faz parte da tradição filosófica que se estende da 
antiguidade até os nossos dias. Unificar essas duas tradições é tarefa árdua, para não 
dizer impossível. Simplificar uma delas – a tradição que discute a alma – para que caiba 
no âmbito da outra é mutilar o esforço de muitos séculos de pesquisas e reflexões 
exatamente sobre a complexidade. 
Mesmo a noção cartesiana da distinção entre substância extensa e 
substância pensante (res extensa e res cogitans), que faz parte da tradição que discute 
a alma, não se ordena pelo reducionismo. Ainda que preste seus serviços à cisão corpo 
e mente, na distinção cartesiana o universo mental está longe de reduzir-se aos 
deslocamentos fisiológicos. Ele se refere exatamente àquilo que, sem extensão, sem 
corporeidade, será tematizado na tradição como o “espirito humano”. Por certo, a 
simples mescla acrítica dessas duas direções – a que inventa a noção de saúde e a que 
já discutia a noção de alma – oferece contradições teóricas e, principalmente, uma 
imensa dificuldade metodológica: como inserir no organismo, nas células essa 
instância do espírito humano, da alma, enfim, da subjetividade? Em geral o órgão 
candidato a receber esse implante inconsequente é o cérebro, objeto de estudo mais 
aprofundado neste último século, mas que já aparece no discurso de Bacamarte como 
sendo “seguramente” o local do suposto distúrbio a ser teorizado. Mas essa conclusão 
não se devia apenas a um equívoco pessoal, é necessário compreender a origem de 
tanta confiança na hipótese organicista, como discutiremos a seguir. 
 
As figuras anatômicas: sucesso contra as doenças e sucesso social 
 
A medicina do final do século XIX, e o médico como a figura social que 
se sustenta em nome da eficácia do saber biológico, conseguia, com grande 
7 
 
competência, explicar a maioria das formas de sofrimento das pessoas com as 
doenças. Mas isso não vem de uma pesquisa que incluísse a tradição de investigações 
sobre a “alma” humana. Ao contrário disso, o materialismo da medicina, reducionista 
ou não, tem como figuras de proa da conceituação médica o exame do organismo 
morto, nas dissecações, e do organismo vivo, no exame clínico. Como mostrou 
Foucault (1998), em O nascimento da clínica, no final do século XIX chega ao auge a 
força do saber a respeito das moléstias, advinda, do avanço da anatomopatologia (que 
consiste na pesquisa das sequelas das doenças nos cadáveres) e da anatomoclínica 
(que consiste no exame do corpo vivo para identificar o sinal das disfunções) 5. A 
anatomopatologia permitiu clarear as relações anatômicas entre os órgãos do corpo 
humano, reforçando a noção de organismo como ente unitário. Clareou, também, as 
relações entre os órgãos e suas funções, deixando descritas as formas normais de 
funcionamento dos órgãos, e as relações entre as variações anatômicas e as disfunções 
desses órgãos (ou seja, as doenças e o sofrimentos que elas causam). 
Essa tripla competência – relacionar anatomicamente órgão, função e 
disfunção – foi coroada pela crescente possibilidade, trazida pela anatomoclínica de 
visualizar condições orgânicas sem o exame interno do corpo. Ela completou o 
fundamento materialista possibilitando, pelos critérios anatômicos, fazer também o 
exame do corpo vivo. Conhecendo-se os sinais de algum tipo de disfunção no corpo 
vivo (a semiologia médica), sem a necessidade de exame interno – o que a 
anatomopatologia exigia –, foi paulatinamente sendo reforçada a noção de sintoma 
como sinal. Baseado nas teorias e nos experimentos da anatomopatologia (associada à 
anatomoclínica), os sintomas, como sinais, se tornam pistas seguras para compreender 
a condição do sofrimento das pessoas com seu próprio corpo. Além disso, os sinais 
(sintomas) todavia, exigiam uma constante classificação e reclassificação dos 
agrupamentos lógicos das doenças. Essa classificação era tomada como a base 
empírica do avanço teórico, que foi constituído ao longo do século XIX como o saber a 
ser ensinado nas escolas de medicina. 
Em outro texto 6 mostramos que a segurança da anatomopatologia e da 
anatomoclinica está na origem da tentativa de estender essas classificações também 
ao domínio da subjetividade. Isso se configura nos vários quadros classificatórios 
surgidos nas psicopatologias, primeiro, no início do século XX, associados a estudos de 
 
5
 Anatomo (de anatomia, estudo das partes do corpo) e patologia (de phatos, doença, afecção) se 
reúnem nos estudos dos médicos anatomistas desde o final do século XVIII. Este é o caso da pesquisas 
de equipe de Xavier Bichat que, na França em 1790, dissecando mais de 600 cadáveres, estabelecem 
com clareza as relações (materiais, anatômicas) entre as partes do corpo humano (os órgãos) e suas 
possibilidades funcionais a partir da anatomia (funções da cada órgão). Esses estudos são sucedidos de 
muitos outros que estabelecem também as relações entre a anatomia e as disfunções. O progresso 
dessa metodologia se dá ao longo do século XIX, até chegar no ponto máximo no final deste. 
6
 FERNANDES, J. F. F. O educador e as nomeações psicopatológicas do mal estar contemporâneo. In: 
BRITO, V. L. F. A. (Org.). Professores: identidade, profissionalização e formação. Belo Horizonte: 
Argumentum Editora, 2009, p. 119-137. 
8 
 
casos no âmbito da observação clínica – com Kraepelin, Jaspers e Bleuler. Para a 
construção dessas primeiras classificações, conhecidas como quadros nosológicos, são 
levadas em conta as observações empíricas do desenvolvimento das características de 
comportamentos, modos de pensamento, formações delirantes, expressões de humor 
para criar, na teoria, uma forma, uma composição sistematizada das loucuras. O foco 
dessas classificações, era o de descrever sintomas (sinais) que pretensamente 
estivessem relacionados às supostas disfunções (cerebrais). Esse pressuposto não 
impediu, por exemplo, que Jaspers fornecesse uma vasta descrição de quadros típicos 
ou de condições dos sujeitos quando aos modos de lidar com a realidade, com o outro, 
com as coisas. Após alguns anos de entusiasmo com o estabelecimento desses 
quadros, surgem outras tendências classificatórias mais próximas das necessidades de 
ajustar os nomes anteriores e, ainda, novos nomes de supostas “patologias” psíquicas 
ao uso de fármacos. Como mostramos, especialmente nesse segundo momento das 
calssificações, abandona-se por completo a preocupação do estabelecimento de 
relações mais profundas entre as nomeações e a observação clínica das condições mais 
amplas da vida das pessoas. O diagnóstico se reduz a uma suposição de relações da 
queixa das pessoas – quando não da queixa de parentes ou pessoas próximas – com os 
efeitos fisiológicos dos fármacos. Some do cenário teórico e metodológico a 
preocupação com o sentido das experiências e do vivido singular – campo da 
subjetividade. Nesse sentido é que afirmamos: 
a cultura contemporânea, especialmente a “cultura global”, dispõe de 
discursos que obscurecem tanto a origem do mal-estar implicado nos 
processos subjetivos quanto a diversidade de modos para lidar com ele (...) as 
categorias classificatórias incentivam a fuga do contato direto com as 
contradições dos sujeitos e evitam características eminentemente subjetivas 
tais como a ambiguidade e a polissemia dos gestos e das dificuldades 
individuais (FERNANDES, 2009, p. 120-121). 
Assim, na narrativa de Machado de Assis, Bacamarteé o especialista 
que com muita competência, diante, por exemplo, de uma dor nas pernas, na barriga, 
na cabeça, cuja origem as pessoas não saberiam dizer, poderia presumir a partir dos 
sintomas as disfunções. Disso vem sua inegável e legítima habilidade que consistia em 
avançar a ciência e a técnica “alternando as curas com as leituras, e demonstrando os 
teoremas com cataplasmas” (p. 3). A narrativa machadiana trata essa habilidade como 
não tendo nada demais, ao contrário, vê-se que o Dr. Bacamarte é mais um desses 
sucessos obtidos pelos brasileiros que são filhos “da nobreza da terra” (p. 3). 
Compreendeu perfeitamente os princípios da medicina e pode utilizá-la para tratar os 
males do organismo humano. Entretanto, mostra-se ingênuo quando busca ultrapassar 
essa delimitação para abarcar também esse outro universo, cuja grandiosidade ele 
expressa ao seu amigo Crispim Soares: “a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora 
uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente (p. 9). 
9 
 
A questão que interessa salientar está nesse ponto: a segurança do fazer 
curas bem sucedidas quanto aos males do corpo não o autorizariam realmente a 
considerar o “recanto psíquico” como sendo elucidável por meio do suposto “exame 
da patologia cerebral”. E Machado de Assis demonstra saber das consequências 
teóricas e metodológicas dessa fusão ingênua entre psique e cérebro e ao mesmo 
tempo, as consequências da arrogante certeza do médico na possibilidade da fusão. 
Salientam-se nos seus dizeres a absoluta naturalidade com que faz a extensão do seu 
saber, constituído no domínio das patologias conhecidas ao médico em sua formação, 
para o domínio das mazelas da alma (da mente, da subjetividade), desconsiderando o 
que é tematizado na vasta tradição que a isso se dirige. Essa suposição de que 
“naturalmente” uma coisa deve se acoplar à outra não é somente questão da medicina 
como tal. O conceito de “psíquico” não é absolutamente um “recanto” do saber 
médico, como bem demonstra o destino das tentativas de Bacamarte. Sua confusão 
vem de não distinguir entre psique (ou mente) e cérebro dois conceitos que, pela 
absoluta falta de articulação histórica e pela absoluta distância teórica oferecem um 
enorme problema se tomados como indicando a mesma coisa, ou o mesmo domínio 
de saberes. 
Assim, na narrativa de Machado de Assis, a tentativa de redução da 
loucura ao sofrimento orgânico ganha sua força (e na história consegue hegemonia em 
alguns domínios profissionais) por uma operação (um truque) muito conhecido: a 
extensão, a priori, do saber de um domínio a outro, completamente desconhecido 
àqueles que buscam dominá-lo mas não desconhecido aos saberes pré-existentes às 
ciências, como é o caso da Filosofia, da literatura , da poesia. É na posição de filósofo, 
ou como crítico epistemológico da Psicologia, aliás, que Machado de Assis parece 
operar. A partir dessa posição ele destrincha a pretensão de Bacamarte quanto ao 
domínio da loucura – como campo teórico – e quanto a oferecer a Itaguaí (ou qualquer 
sociedade) uma solução melhor que a do descaso aos loucos – questão técnica ou até 
mesmo tecnológica 7. O autor faz das tentativas de Bacamarte o espelho da 
organicismo ignorante. Ainda que coloque nos pensamentos do médico que se tratava 
de “matéria, mal explorada, ou quase inexplorada” (p. 3), um aparente arroubo de 
humildade, logo em seguida Bacamarte se faz dono de uma confiança inesgotável que 
o leva a conseguir o apoio do “governo de Itaguaí”, constituído pelo poder legislativo e 
dar início a seu projeto. Depois de vencidas as peripécias para criar as condições de 
instalação da casa de loucos, Bacamarte confessa a Crispim Soares que: 
 
a caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como 
tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo 
aos Coríntios: "Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não 
sou nada". O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar 
 
7
 Lembremos que “tecnologia” quer dizer “saber fazer com” e não necessariamente implica, como se 
pode ver nas discussões cotidianas, a presença de máquinas e equipamentos. 
10 
 
profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, 
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério 
do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade (p. 
9). 
 
No percurso teórico e empírico de Bacamarte, há outras passagens que 
dariam esperança da postura de pesquisador. Por exemplo, diante do desespero de 
sua esposa com o absoluto descaso marital, ele pensa "não há remédio certo para as 
dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio 
de Janeiro, e consola-se". Diante dessa reflexão, diz machado de Assis, “porque era 
homem estudioso tomou nota da observação” (p. 7). Entretanto, Bacamarte não tem 
como situar sua investigação no campo da pesquisa pura, isto é, para pesquisar a 
loucura ele precisa das pessoas em sua vida cotidiana. Nesse sentido, sua teoria se 
torna um estorvo quando imediatamente ele passa à técnica. 
 
Da teoria organicista à tecnologia arbitrária: o método de Bacamarte 
 
A análise arbitrada na hipótese dos cérebros disfuncionais se torna 
imperiosamente procedimento técnico. A passagem na qual a narrativa tem uma 
reviravolta ilustra isso. Chamado seu amigo Crispim porque queria anunciar-lhe sua 
nova teoria, começa por tranquilizar o amigo de que o chamado não se devia a 
questões contingentes como “notícias do nosso povo [as esposas mandadas para 
passear no Rio de Janeiro]”. Diz Bacamarte: 
trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo 
experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a 
ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, 
pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra 
(p. 9). 
 
Esse é o preâmbulo do anúncio de sua conclusão, já indicada acima, de 
que a loucura na verdade seria um continente e não uma ilha. Após o silêncio para 
ruminação da ideia anunciada, ele faz uma longa exposição do seu fundamento 
teórico, iniciando-se por enunciar a hipótese organicista: 
a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com 
grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na 
história e em Itaguaí; mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo 
de citar todos os casos de Itaguaí, e refugiou-se na história. Assim, apontou 
com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um 
demônio familiar, Pascal, que via um abismo à sua esquerda, Maomé, 
Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de 
11 
 
mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas (...) a ferocidade, Sr. 
Soares, é o grotesco a sério (p. 9). 
 
Acrescenta, ainda, mais um detalhe importante para vermos que sua 
reflexão sobre a loucura caminha para alguma solução trágica. Sua teoria fora 
inspirada pelo campo empírico de sua pesquisa. Na longa análise de personagens 
históricos e da própria observação que fizera nas casas, nos bares, nas ruas de Itaguaí, 
supõe: 
o espírito humano [é como] uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se 
posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos 
definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio 
de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia (p. 9) 
 
A narrativa de Machado de Assis, nas várias inflexões, marcadas pelas 
mudanças nateoria da loucura de Bacamarte, mostra a relação desta com a técnica. A 
cada nova mudança teórica, não tarda para que essas novidades da teoria sejam logo 
transformadas em tecnologia para lidar com a loucura. Ampliam-se seus métodos 
diagnósticos, baseando-se, cada vez mais na sutileza dos detalhes. Não bastavam mais 
os visíveis delírios como o do “rapaz de vinte cinco anos, [que] supunha-se estrela-
d'alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava 
assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se” (p. 5). 
Não era suficiente mais a procura por aqueles que, como um pobre diabo, contava 
repetidamente sua genealogia: “Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a 
espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o 
duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu” (p. 6). A 
cada passo torna-se mais esotérica – isto é, de difícil compreensão pelos leigos – a 
relação entre teoria e tecnologia para lidar com a loucura. Esse “traço” não é 
exatamente retirado pelo autor da sua análise das complicadas teorias científicas e sim 
da corruptela do que, na técnica de Bacamarte, diante dos impasses para 
compreender a loucura se torna uma mitificação. 
Machado de Assis coloca no gesto do amigo Crispim uma vivência dessa 
característica marcante de mito científico: o mistério do conceito para os não 
iniciados. É que o procuravam as pessoas de Itaguaí, diante da dificuldade em traduzir 
o critério diagnóstico usado por Bacamarte, amigo do boticário, para ter trancafiado na 
Casa Verde, pelo novo critério de distinção entre loucura e normalidade, pessoas como 
o pobre Costa, um tranquilo morador que de diferente tinha apenas o histórico de 
paulatinamente perder toda a fortuna; e a prima do Costa, uma boa senhora que, 
fornecendo ao Alienista o argumento de uma maldição de família pela qual o Costa 
havia perdido toda sua fortuna, foi logo levada para dentro da casa de orates e 
12 
 
tornada interna. A todas as perguntas respondia o boticário com poucas palavras, 
enquanto se deliciava da honra de ser o amigo do Dr. Bacamarte, e de poder pensar 
que seus monossílabos “encapados no fiel sorriso, constante e miúdo, cheio de 
mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a 
nenhuma pessoa humana” (p.12). 
Tornam-se cada vez menos compreensíveis as internações. No mesmo 
diapasão foram internados um a um os demais “loucos” de diferentes matizes, todos 
segundo o critério científico suportado pela observação do Dr. Bacamarte. Prende 
Matheus, um morador que ficava a admirar a própria casa, depois, em uma semana 
mais vinte pessoas. Continuam as operações técnicas baseadas no direito científico de 
fazer mistério aos leigos: o medo se apodera dos habitantes de Itaguaí. A sutileza da 
análise científica e a total subordinação do pensamento de Bacamarte à ciência 
aparecem em outro episódio marcante, o da internação do jovem Martim Brito. De 
grande capacidade oratória, fizera ele, na volta de D. Evarista do Rio de Janeiro um 
discurso empolgante. Demasiadamente empolgante, não por ameaçar a honra do Dr. 
Bacamarte que longe de ter ciúmes da consorte, internou o moço pela evidente “lesão 
cerebral; fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...” (p. 15). Mas os 
recolhimentos à força não pararam por aí, o terror espalhou-se. Aparece, então, a 
revolta, “a Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica”, opinião 
que se alastrou na cidade. Machado de Assis, então, faz crescerem as fileiras da 
contestação, contra as quais a ciência continua incólume. 
 
As contestações políticas à certeza da ciência: a resistência do método 
e da teoria 
 
 A primeira revolta, de trinta pessoas, chega em petição à Câmara de 
vereadores contra Simão Bacamarte. A casa legislativa do município respondeu a seus 
cidadãos que: “a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser 
emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua”. Tal era a 
credibilidade oficial da ciência e de seu mais ilustre representante na cidade, o Dr. 
Bacamarte, contra o qual não se conseguia nem mesmo argumentos extra-científicos: 
 
que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências 
de um déspota [referência de Machado de Assis à anatomopatologia?]; que 
muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas de 
apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do 
alienista complicava-se do espírito da ganância, visto que os loucos, ou 
supostos tais, não eram tratados de graça: as famílias, e em falta delas a 
câmara, pagavam ao alienista ( p. 16). 
 
13 
 
Nada disso serviu para convencer as autoridades da inadequação da 
Casa Verde. A isto retrucou o presidente da Câmara: 
 
 é falso, Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico, em 
que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, 
desiste do estipêndio votado pela câmara, bem como nada receberá das 
famílias dos enfermos. A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um 
pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas 
nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro era 
preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores (p. 16). 
 
 
O autor acirra cada vez mais os ânimos. Faz os revoltosos se declararem 
contrários a essa “Bastilha da Razão Humana” que se tornou a Casa Verde. Surge uma 
hipótese que será objeto de apreciação por muitos: “se tantos homens em quem 
supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o 
alienista?”. A revolta dos Canjica, alcunha do barbeiro que liderava as já mais de 
trezentas pessoas, chega pelas ruas até a frente da casa do alienista. Este, saindo à 
janela lhes oferece mais uma prova de que somente a ciência e seu estatuto superior 
lhe organizava o raciocínio e que dela retirava inclusive as justificativas para o segredo 
de suas análises. Diz Bacamarte: 
 
Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. 
Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a 
Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a 
ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. 
Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os 
loucos reclusos; mas não faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o 
que não farei a leigos, nem a rebeldes (p. 18). 
 
 
Machado de Assis não para de fazer a revolta crescer, mas mesmo assim 
a ciência continua intocada. Depois de todo o movimento que destituiu o governo de 
Itaguaí (a Câmara de vereadores) colocando o barbeiro na posição de chefe do novo 
governo, este declara, surpreendentemente ao Dr. Bacamarte: 
 
 
A generosa revolução que ontem derrubou uma câmara vilipendiada e 
corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode 
entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a 
pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também 
não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não 
pode, não deve, não quer dispensar o concurso de V. S.ª. O que lhe pede é que 
de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo 
saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se V. S.ª não indicar outro, seria 
fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e 
bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, 
mostraremos alguma tolerância e benignidade (p. 22). 
 
14 
 
 
Teremos, ainda, noenredo, a revolta sobre a revolta, mas, mesmo 
assim, tudo se estrutura novamente em torno da ordem – científica e política – em 
Itaguaí. Apenas uma novidade paira ininterrupta: uma nova teoria andava com muito 
boa aceitação pelo Dr. Bacamarte. Ao invés de alienar os alienados, a teoria se inverte. 
Aos loucos de todo tipo era necessário reconhecer que, na Casa Verde, somente 
estavam demonstrando que haviam voltado ao “perfeito desequilíbrio das 
faculdades”. Novamente com o apoio da Câmara o Dr. Bacamarte examina um a um, 
caso a caso diagnosticando e prescrevendo que sejam internados os que gozam de 
perfeita saúde. A nova regra técnica, que faz surpreender a todos encerra ainda uma 
última reviravolta da teoria da loucura em Bacamarte. 
Tendo libertado todos os antigos internos, deixa a Casa verde vazia, sem 
nenhum louco. Aí, então, depois de confirmar com os amigos uma suspeita que lhe 
ocorrera como hipótese, descobre que ele, segundo os depoimentos, é perfeitamente 
normal, isto é, não goza de desiquilíbrio. Interna-se, então somente ele. Mas esse 
gesto, longe de se desviar do caminho reto da ciência, ao contrário, segundo o autor, é 
a mais sublime afirmação da crença científica. A singularidade e a subjetividade 
experimentadas por Bacamarte sucumbem ao ditame imperativo de sua teoria: 
internar-se nada mais é do que reafirmar a universalidade da ciência até mesmo no 
seu caso. 
 
Considerações finais 
 
Assim, o vivo debate estabelecido no texto engendra a tentativa mal 
sucedida de Bacamarte com a extensão, inicialmente mais silenciosa e depois bastante 
explicita e alardeada aos quatro cantos, das conquistas teóricas da medicina, já 
consolidada na conceituação dos processos biológicos, na direção do que seria, para a 
medicina, um novo domínio, o dos “processos psíquicos” ou “processos mentais”. Mas, 
como salienta em todo seu percurso a narrativa de Machado de Assis, trata-se de uma 
extensão de conceitos de modo ingênuo, ou ao menos, desavisada dos problemas 
teóricos que acarreta. 
Mas, não há nisso apenas uma tendência local, como se pode 
interpretar na afirmação de Valéria Lima (2012): 
 
“Há certa intemporalidade no tema em discussão: a tênue divisão entre 
razão e loucura, porém pode remontar à primeira metade do século XVII. É 
importante ressaltar o caráter alegórico, que a narrativa assume. Quanto ao 
espaço, a ação se passa em Itaguaí, uma cidadezinha do Estado do Rio de 
Janeiro, comarca de Iguaçu. Entretanto, pode-se deduzir que Itaguaí 
representa um ‘microcosmo’ de qualquer região ou mesmo país ” (LIMA, 
2012). 
15 
 
A Psicologia subsequente a esta época somente pode ganhar sentido se 
informada sobe a crítica machadiana. A Psicologia é parte do percurso de constituição 
da sistematicidade dos saberes científicos. Entretanto, nesse sentido – de ser uma das 
ciências da modernidade – a Psicologia se mantém mais próxima da margem do 
terreno, deixando a centralidade para outras ciências, dentre as quais estão até 
mesmo a Sociologia, a Antropologia e a Linguística. Isto porque a Psicologia, ao menos 
quando aparece na condição de instrumento que informa o fazer dos psicólogos, exige 
um diálogo extra-científco com as artes, com a literatura, com a própria filosofia. 
Mas isso, ao contrário de fazer das preocupações teóricas agrupadas 
com o nome de Psicologia um saber de menor importância, autoriza esse campo a ser 
uma das disciplinas da modernidade que contribui para a reflexão sobre a própria 
noção de conhecimento científico. Aqueles que inventam e reinventam 
constantemente o campo da Psicologia, buscam fazer caber nas preocupações 
científicas a singularidade e a exceção como objeto de apreciação teórica. Isso exige 
uma concepção do conhecimento (uma epistemologia) que inclua os desafios teóricos 
do enfrentamento da subjetividade não como problema para a cientificidade e sim 
como problema teórico a ser investigado por uma ciência, a Psicologia 8. Trabalhamos 
com a exigência do rigor e da sistematicidade da razão humana mas ao mesmo tempo 
consideramos a exceção e a singularidade, como presenças reais na constituição dos 
seres humanos. 
Gostaria, então, de encerrar essas observações com uma outra 
observação, de Telma Dias Fernandes: “não há uma loucura que o desenvolvimento do 
pensamento científico descobriu e tratou. Há sim, uma loucura produzida pela 
modernidade” (FERNANDES, 2012). 
 
Referências 
 ASSIS, M. O Alienista. In: ASSIS, M. Papéis avulsos (1882). Brasília: MEC, 2008 
(Disponível em http://machado.mec.gov.br). 
FERNANDES, J. F. F. O educador e as nomeações psicopatológicas do mal estar 
contemporâneo. In: BRITO, V. L. F. A. (Org.). Professores: identidade, profissionalização e 
formação. Belo Horizonte: Argumentum Editora, 2009, p. 119-137. 
FERNANDES, Telma Dias. Figurações da loucura em Machado de Assis: história e 
loucura no Brasil do século XIX. Filologia, s./d. (Disponível em: 
www.filologia.com.br/machado_de_assis) 
 
8
 Uma outra questão é pensar os compromissos dessa cientificidade com a sustentação de técnicas para 
o trabalho contemporâneo dos Psicólogos. 
16 
 
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 
1998 
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 
1999. 
LIMA, Valéria de Cássia Pisauro. O alienista, papéis avulsos, Machado de Assis In: 
Travessia Poética, 22/abril/2012 (Disponível em: 
http://valiteratura.blogspot.com.br/2012/04/o-alienista-papeis-avulsos-machado-de.html)

Continue navegando