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Aborto – art. 123-128 1 Figuras típicas de aborto O CP de 1940 tipifica três figuras: aborto provocado (124); aborto sofrido (125); aborto consentido (126). Na primeira hipótese, a própria mulher assume a responsabilidade pelo abortamento; na segunda, repudia a interrupção do ciclo natural da gravidez, ou seja, o aborto ocorre sem o seu consentimento; e, finalmente, na terceira, embora a gestante não o provoque, consente que terceiro realize o aborto. 2 Bem jurídico tutelado O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação. O produto da concepção — feto ou embrião — não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto for provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante. Aborto e homicídio: distinção Apresentam-se duas particularidades: uma em relação ao objeto da proteção legal e outra em relação ao estágio da vida que se protege: relativamente ao objeto, não é a pessoa humana que se protege, mas a sua formação embrionária; em relação ao aspecto temporal, somente a vida intrauterina, ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto. 3 Sujeitos do crime 3.1 Sujeito ativo Sujeito ativo no autoaborto e no aborto consentido (art. 124) é a própria mulher gestante. Somente ela própria pode provocar em si mesma o aborto ou consentir que alguém lhe provoque, tratando-se, portanto, de crime de mão própria. No aborto provocado por terceiro, com ou sem consentimento da gestante, sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial. 3.2 Sujeito passivo Sujeito passivo, no autoaborto e no aborto consentido (art. 124), é o feto ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto (há divergência doutrinária). Feto, segundo Manzini, é, pelo menos, uma pessoa em formação. Nessa espécie de aborto, concordamos com Heleno Fragoso, a gestante não é ao mesmo tempo sujeito ativo e sujeito passivo, não havendo crime na autolesão. Ela é somente sujeito ativo do crime. 3.3 Dupla subjetividade passiva A gestante é sujeito passivo no aborto provocado por terceiro, sem seu consentimento. Nessa espécie de aborto, há dupla subjetividade passiva: o feto e a gestante. Crime contra gestante: subsunção No crime de aborto não se aplica a agravante genérica do art. 61, II, h (crime contra gestante), pois fica subsumida no tipo central. 4 Tipo objetivo: adequação típica Aborto “é a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intrauterina”. A conduta típica, no autoaborto, consiste em provocar o aborto em si mesma, isto é, interromper a sua própria gestação, ou consentir que outrem lhe provoque. O aborto sem consentimento da gestante (art. 125) recebe punição mais grave e pode assumir duas formas: sem consentimento real ou ausência de consentimento presumido (menor de 14 anos, alienada ou débil mental). Aborto com consentimento (art. 126) constitui exceção à teoria monística adotada pelo nosso Código. Quem provocar aborto com consentimento da gestante não será coautor do crime capitulado no art. 124, mas responderá pelo delito previsto no art. 126. A segunda figura do art. 124 encerra dois crimes: um para a gestante que consente (art. 124), outro para o sujeito que provoca o aborto (art. 126). Em relação à gestante que consente e ao autor que provoca materialmente o aborto consentido não se aplica o disposto no caput do art. 29 do CP. Definição de aborto — 1 A destruição da vida até o início do parto configura o aborto, que pode ou não ser criminoso. Após iniciado o parto, a supressão da vida constitui homicídio, salvo se ocorrerem as especiais circunstâncias que caracterizam o infanticídio, que é uma figura privilegiada do homicídio (art. 122). Definição de aborto — 2 Aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intrauterina. Configuração do aborto Para se configurar o crime de aborto é insuficiente a simples expulsão prematura do feto ou a mera interrupção do processo de gestação, mas é indispensável que ocorram as duas coisas, acrescidas da morte do feto, pois somente com a ocorrência desta o crime se consuma. Pressuposto e relação causal O crime de aborto pressupõe gravidez em curso, e é indispensável que o feto esteja vivo. A morte do feto tem de ser resultado direto das manobras abortivas. A partir do início do parto, o crime será homicídio ou infanticídio. 5 Espécies de aborto criminoso 5.1 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento O art. 124 tipifica duas condutas: com a primeira, ela mesma provoca o abortamento; com a segunda, consente que terceiro lho provoque. Trata-se, nas duas modalidades, de crime de mão própria, isto é, que somente a gestante pode realizar. Participação em sentido estrito Como qualquer crime de mão própria, admite a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a consentir que terceiro lho provoque. Coautoria: impossibilidade Contudo, se o terceiro for além dessa mera atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos atos executórios, responderá não como coautor, que a natureza do crime não permite, mas como autor do crime do art. 126. Provocar ou consentir o aborto A conduta típica, com efeito, no autoaborto, consiste em provocar o aborto em si mesma, isto é, interromper a sua própria gestação; mas a gestante pode praticar o mesmo crime por meio de outra conduta, qual seja, a de consentir que outrem lhe provoque o aborto. Nesta segunda figura, consentir no aborto, exigem-se dois elementos: a) consentimento da gestante; b) execução do aborto por terceiro. Provocar e consentir: ação múltipla A mulher que consente no aborto incidirá nas mesmas penas do autoaborto, isto é, como se tivesse provocado o aborto em si mesma, nos termos do art. 124 do CP. A mulher que consente no próprio aborto e, na sequência, auxilia decisivamente nas manobras abortivas pratica um só crime, pois provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque é crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Aborto “consentido” e teoria monística da ação A segunda figura do art. 124 — consentir que lhe provoquem o aborto — encerra dois crimes: um para a gestante que consente (art. 124), outro para o sujeito que provoca o aborto (art. 126). Em relação à gestante que consente e ao autor que provoca materialmente o crime de aborto consentido não se aplica o disposto no caput do art. 29 do CP. Exceção à teoria monística Quem provoca o aborto, com o consentimento da gestante, pratica o crime do art. 126 do mesmo estatuto e não o do art. 124. Assim, por exemplo, o agente que leva a amásia à casa da parteira, contrata e paga os seus serviços é autor do crime tipificado no art. 126, enquanto a amásia, que consentiu, incorre no art. 124. Enfim, o aborto consentido não admite coautoria entre o terceiro e a gestante. 5.2 Aborto provocado sem consentimento da gestante O aborto sem consentimento da gestante (art. 125) — aborto sofrido — recebe punição mais grave e pode assumir duas formas: sem consentimento real ou ausência de consentimento presumido (menor de 14 anos, alienada ou débil mental). Consentimento: funções dogmáticas A ausência de consentimento constitui elementar negativa do tipo. Logo, se houver consentimento da gestante, afastará essa adequação típica; logicamente, em se tratando de aborto, o eventual consentimento não elimina simplesmente a tipicidade, mas apenas a desloca para outro dispositivo legal, pelas peculiaridades do próprio crime de aborto, que pode ser com ou sem consentimento. Aborto provocado e constrangimento ilegal O agente que provoca aborto sem consentimento da gestante não respondepelo crime de constrangimento ilegal, uma vez que esse constrangimento integra a definição desse crime de aborto, cuja sanção é consideravelmente superior em razão exatamente dessa contrariedade da gestante. Dissenso presumido Para provocar aborto sem consentimento da gestante não é necessário que seja mediante violência, fraude ou grave ameaça; basta a simulação ou mesmo a dissimulação, ardil ou qualquer outra forma de burlar a atenção ou vigilância da gestante. Em outros termos, é suficiente que a gestante desconheça que nela está sendo praticado o aborto. 5.3 Aborto provocado com consentimento da gestante Quem provocar aborto com consentimento da gestante não será coautor do crime capitulado no art. 124, a despeito do preceito do art. 29 do CP, mas responderá pelo delito previsto no art. 126. Fundamento da exceção ao monismo Essa exceção à teoria monística, no crime de aborto consensual, fundamenta-se no desnível do grau de reprovabilidade que a conduta da gestante que consente no aborto apresenta em relação à daquele que efetivamente pratica o aborto consentido. A censura da conduta da gestante que consente é consideravelmente inferior à conduta do terceiro que realiza as manobras abortivas consentidas. Desvalor: ação e omissão O desvalor do consentimento da gestante é menor que o desvalor da ação abortiva do terceiro que, concretamente, age. Consentir merece determinado grau de censura, ao passo que executar a conduta consentida, definida como crime de aborto, recebe uma censurabilidade bem mais elevada, pois implica a comissão do aborto criminalizado: a conduta da primeira assemelha-se à conivência, embora não possa ser adjetivada de omissiva, enquanto à do segundo é comissiva. Aborto e concurso necessário Convém destacar que o aborto consentido (art. 124, 2ª figura) e o aborto consensual (art. 126) são crimes de concurso necessário, pois exigem a participação de duas pessoas: a gestante e o terceiro realizador do aborto, e, a despeito da necessária participação de duas pessoas, cada um responde, excepcionalmente, por um crime distinto. 6 Tipo subjetivo: adequação típica O elemento subjetivo do crime de aborto é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de interromper a gravidez, matando o produto da concepção ou, no mínimo, assumindo o risco de matá-lo. Na primeira hipótese, configura o dolo direto; na segunda, o dolo eventual, embora este também possa decorrer da dúvida quanto ao estado de gravidez. Matar mulher grávida: concurso Matar mulher que sabe estar grávida configura também o crime de aborto, verificando-se, no mínimo, dolo eventual; nessa hipótese, o agente responde, em concurso formal, pelos crimes de homicídio e aborto. Desígnios autônomos: soma de penas Se houver desígnios autônomos, isto é, a intenção de praticar os dois crimes, o concurso formal será impróprio, aplicando-se cumulativamente a pena dos dois crimes, caso contrário será próprio e o sistema de aplicação de penas será o da exasperação. Lesão corporal gravíssima Heleno Cláudio Fragoso sustentava que, “se o agente quis apenas praticar lesão corporal na mulher (cuja gravidez conhecia ou não podia desconhecer) e sobrevém o aborto em razão da violência, o crime será de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 3º, 2, V)”. Concurso de homicídio e aborto No entanto, se, nas mesmas circunstâncias, o agente quis matar a gestante, conhecendo ou não podendo desconhecer a existência da gravidez, responde pelo crime de homicídio em concurso com o crime de aborto; o primeiro, com dolo direto; o segundo, com dolo eventual. Aborto e lesão corporal gravíssima Da mesma forma, quem desfere violento pontapé no ventre de mulher visivelmente grávida, acarretando-lhe a expulsão e a morte do feto, pratica o crime de aborto provocado e não o de lesão corporal de natureza gravíssima, previsto no art. 129, § 2º, V, do CP. Aborto culposo: atipicidade O aborto culposo é impunível, restando somente a eventual reparação de dano. 7 Consumação e tentativa 7.1 Consumação Consuma-se o crime de aborto, em qualquer de suas formas, com a morte do feto ou embrião. Pouco importa que a morte ocorra no ventre materno ou fora dele. É irrelevante, ainda, que ocorra a expulsão do feto ou que este não seja expelido das entranhas maternas. Enfim, consuma-se o aborto com o perecimento do feto ou a destruição do óvulo. Materialidade do aborto: gravidez em curso Logo, a materialidade do aborto pressupõe a existência de um feto vivo, consequentemente, uma gravidez em curso. Assim, finda a gravidez, não se poderá praticar aborto, uma vez que a morte do feto tem de ser resultado das manobras abortivas ou da imaturidade do feto para viver fora do ventre materno, em decorrência dessas manobras. Relação causal: ação abortiva e resultado É indispensável comprovar que o feto ou embrião, isto é, o ser em formação, estava vivo quando a ação abortiva foi praticada, e que foi esta que lhe produziu a morte, ou seja, é necessária uma relação de causa e efeito entre a ação e o resultado produzido. Em outros termos, o emprego de meios abortivos, por si só, é insuficiente para concluir, com certeza, pela produção do crime de aborto. Insuficiência da prova testemunhal É indispensável que se prove que o aborto é consequência do meio abortivo utilizado. A prova testemunhal, por conseguinte, é insuficiente para comprovar essa relação. Indispensabilidade da prova pericial É necessária prova de que o feto estava vivo no momento da ação. Como crime material, além de suas particularidades especiais, a prova do aborto exige o auto de exame de corpo de delito disciplinado nos arts. 158 e seguintes do CPP. Meios anticonceptivos: não abrangência Desnecessário afirmar que os meios preventivos ou anticonceptivos não são abrangidos pelo conceito de aborto, que se estende desde o momento em que duas células germinais se unem constituindo o ovo até aquele em que se inicia o processo de parto. 7.2 Tentativa de aborto O crime de aborto, como crime material, admite a figura da tentativa, desde que, a despeito da utilização, com eficácia e idoneidade, de meios ou manobras abortivas, não ocorra a interrupção da gravidez com a morte do feto, por causas alheias à vontade do agente. 7.3 Tentativa de autoaborto Por política criminal sustenta-se a impunibilidade da tentativa do autoaborto, pois o ordenamento jurídico brasileiro não pune a autolesão. No entanto, nosso Código não consagra essa impunibilidade. E, ademais, a tentativa de autoaborto está mais para desistência voluntária ou arrependimento eficaz do que propriamente para tentativa punível. Impunibilidade das lesões no autoaborto As eventuais lesões que possam decorrer da tentativa de autoaborto, que poderiam constituir crime em si mesmas, são, como afirmamos, impuníveis. Por esses fundamentos, enfim, endossamos a não punibilidade da referida tentativa. Tentativa de aborto e crime impossível Há crime impossível nas manobras abortivas em mulher que não está grávida ou no caso de o feto já estar morto antes da prática dos atos abortivos, por absoluta impropriedade do objeto; ou, ainda, por inadequação absoluta do meio, quando for inteiramente inidôneo para produzir o resultado, como rezas, feitiçarias ou administração de substâncias absolutamente inócuas. Desistência voluntária e arrependimento eficaz Podem ocorrer, nas outras figuras de aborto, as hipóteses de desistência voluntária e arrependimento eficaz, mas, nesse caso, o agente responderá pelos atos praticados que, em si mesmos, constituírem crime, ressalvada, logicamente, como destacamos, a hipótese de autoaborto. 8 Classificação doutrinária Trata-se de crime de mão própria (no autoaborto e no consentido), que somente a gestante pode praticar; crime comum, de dano, material, instantâneo e doloso. 9 Figuras “qualificadas” de aborto O art. 127 prevê duas causas especiais de aumento: pela primeira — lesão corporal de natureza grave — a pena é elevada em um terço; pela segunda — morte da gestante — a pena é duplicada.Inaplicabilidade no autoaborto Somente a lesão corporal de natureza grave ou a morte da gestante “qualificam” o crime de aborto. As ditas “qualificadoras” aplicam-se ao aborto praticado por terceiro (arts. 125 e 126) e não ao aborto praticado pela própria gestante (art. 124). Aliás, nem teria sentido, pois não se pune a autolesão nem o ato de matar-se. Majorantes na tentativa de aborto É indiferente que o resultado “qualificador” — morte ou lesão — decorra do próprio aborto ou das manobras abortivas. Significa dizer que a majoração da pena pode ocorrer ainda e quando o aborto não se consume, sendo suficiente que o resultado majorador decorra das manobras abortivas. Aborto e lesões corporais leves Se em decorrência do aborto a vítima sofre lesões corporais leves, o agente responde somente pelo crime de aborto, sem a aplicação da majorante constante do art. 127, pois essa lesão integra o resultado natural da prática abortiva. Aborto agravado: preterdoloso Para que se configure o crime qualificado pelo resultado, é indispensável que o evento morte ou lesão grave decorra, pelo menos, de culpa (art. 19 do CP). No entanto, se o dolo do agente abranger os resultados lesão grave ou morte da gestante, excluirá a aplicação do art. 127, que prevê uma espécie sui generis de crime preterdoloso (dolo em relação ao aborto e culpa em relação ao resultado agravador). Nesse caso, o agente responderá pelos dois crimes, em concurso formal. 10 Excludentes especiais da ilicitude 10.1 Aborto necessário e aborto humanitário O art. 128 do CP determina que: “Não se pune o aborto praticado por médico: I — se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II — se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Exclusão da ilicitude Quando o CP diz que “não se pune o aborto”, está afirmando que o aborto é lícito naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame. Lembra, com propriedade, Damásio de Jesus que “haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o CP dissesse ‘não se pune o médico’, que não é o caso”. Excludente de culpabilidade: possibilidade Como em qualquer crime, pode apresentar-se alguma excludente de culpabilidade, legal ou supralegal, quando, por exemplo, apresentar-se a gravidez e a necessidade ou possibilidade do aborto, mas faltar algum dos requisitos legalmente exigidos pela excludente especial, não havendo médico disponível. 10.2 Aborto necessário ou terapêutico O aborto necessário também é conhecido como terapêutico e constitui autêntico estado de necessidade, justificando-se quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Requisitos do aborto necessário São dois requisitos, simultâneos: a) perigo de vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-la. O requisito básico e fundamental é o iminente perigo à vida da gestante, sendo insuficiente o perigo à saúde, ainda que muito grave. O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime. Perigo de vida: desnecessidade de consentimento Quando o perigo de vida for iminente, na falta de médico, outra pessoa poderá realizar a intervenção, fundamentada nos arts. 23, I, e 24. Na hipótese de perigo de vida iminente, é dispensável a concordância da gestante ou de seu representante legal (art. 146, § 3º, do CP), até porque, para o aborto necessário, ao contrário do aborto humanitário, o texto legal não faz essa exigência. Aborto necessário: contra a vontade da gestante O aborto necessário pode ser praticado mesmo contra a vontade da gestante. A intervenção médico-cirúrgica está autorizada pelo disposto nos arts. 128, I (aborto necessário), 24 (estado de necessidade) e 146, § 3º (intervenção médicocirúrgica justificada por iminente perigo de vida). Ademais, tomando as cautelas devidas, agirá no estrito cumprimento de dever legal (art. 23, III, 1ª parte), pois, na condição de garantidor, não pode deixar perecer a vida da gestante. Consentimento: aborto humanitário Enfim, o consentimento da gestante ou de seu representante legal somente é exigível para o aborto humanitário, previsto no inciso II do art. 128. Ausência de direito à vida: médico garantidor É fundamental a cobertura legal do expert, garantindo a licitude de sua conduta profissional, mesmo contra a vontade da gestante, pois esta não tem o direito de sacrificar a própria vida em prol do nascituro, o que, no entanto, não impede que o faça ou, pelo menos, tente. Aborto eugenésico: inexigibilidade de outra conduta O CP não legitima o chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nascerá com deformidade ou enfermidade incurável. Contudo, sustentamos que a gestante que provoca o autoaborto ou consente que terceiro lho pratique está amparada pela inexigibilidade de outra conduta, sem sombra de dúvida. 10.3 Aborto humanitário ou ético O aborto humanitário, também denominado ético ou sentimental, é autorizado quando a gravidez é consequência do crime de estupro e a gestante consente na sua realização. Pelo nosso Código Penal não há limitação temporal para a estupradagrávida decidir-se pelo abortamento. Requisitos do aborto humanitário São necessários os seguintes requisitos: a) gravidez resultante de estupro; b) prévio consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal. A prova tanto da ocorrência do estupro quanto do consentimento da gestante deve ser cabal. Formalização do consentimento O consentimento da gestante ou de seu representante legal, quando for o caso, deve ser obtido por escrito ou na presença de testemunhas idôneas, como garantia do próprio médico. Atentado violento ao pudor Doutrina e jurisprudência admitem, por analogia, o aborto sentimental quando a gravidez resulta de atentado violento ao pudor, que é tão indigno e repugnante quanto o crime de estupro. À semelhança de situações em que esses horrendos crimes ocorrem e das consequências pessoais e morais, seria profundamente injusto punir o médico pelo crime de aborto por puro prurido técnico-dogmático. Prova do crime de estupro A prova do crime de estupro pode ser produzida por todos os meios em direito admissíveis. É desnecessário autorização judicial, sentença condenatória ou mesmo processo criminal contra o autor do crime sexual. Cautela médica e erro de tipo Acautelando-se sobre a veracidade da alegação, somente a gestante responderá criminalmente (art. 124, 2ª figura), se for comprovada a falsidade da afirmação. A boa-fé do médico caracteriza erro de tipo, excluindo o dolo, e, por consequência, afasta a tipicidade. 10.4 Extensão da excludente: violência ficta A excludente em exame estende-se ao crime praticado com violência ficta (art. 224). A permissão legal limita-se a referir-se ao crime de estupro, sem adjetivá-lo. Interpretação restritiva, no caso, implica criminalizar uma conduta autorizada, uma espécie de interpretação extensiva contra legis, ou seja, in malam partem. 10.5 Aborto necessário ou humanitário praticados por enfermeira O Código exclui a ilicitude por dois fundamentos distintos: um por estado de necessidade e outro por razões sentimentais; no aborto necessário, não havendo outro meio de salvar a vida da gestante, não só a enfermeira mas qualquer pessoa que lhe faça as vezes não responderá por crime algum. Enfermeira e estado de necessidade Em estado de necessidade, todas as condutas proibidas no Código Penal são excepcionalmente autorizadas, afastando-se a proibição. Assim, nesse caso, a enfermeira não responde pelo crime de aborto, mas com fundamento no art. 24 do CP e não no art. 128, I, uma vez que, não sendo médica, não pode invocar essa excludente especial. Enfermeira e inexigibilidade de outra conduta Na hipótese de aborto proveniente de estupro, a conduta da enfermeira não está acobertada pela excludente especial da ilicitude, ante a ausência de uma condição especial — ser médico. Contudo, poderá configurar-se a inexigibilidadede outra conduta, que, se reconhecida, excluirá a culpabilidade. Somente se for afastada essa possibilidade a enfermeira deverá responder pelo crime. Enfermeira auxilia médico: acessoriedade limitada Ora, se o fato praticado pelo médico, que é o autor, for lícito, não há como punir o partícipe, e o fundamento da impunibilidade da conduta da enfermeira, enquanto partícipe, respalda-se na teoria da acessoriedade limitada da participação, a qual “exige que a conduta principal seja típica e antijurídica”. 11 Ação penal e sanção penal 11.1 Ação penal A ação penal, a exemplo de todos os crimes contra a vida, é pública incondicionada; nem podia ser diferente, pois esses crimes atacam o bem jurídico mais importante do ser humano, que é a vida, tanto uterina quanto extrauterina. Nesses crimes, as autoridades devem agir ex officio. 11.2 Sanção penal N o autoaborto (art. 124) a pena é de detenção, de um a três anos; no aborto provocado por terceiro, sem consentimento (art. 125), a pena é de reclusão, de três a dez anos; e no aborto consensual (art. 126) a pena é de reclusão, de um a quatro anos. Se a gestante for absolutamente incapaz, a pena do aborto consensual também será de três a dez anos. Nas ditas formas “qualificadas”, as penas serão majoradas em um terço se a gestante sofrer lesão corporal grave, e duplicadas se lhe sobrevier a morte. 12 Questões especiais Crime impossível Assim, benzedeiras, rezas, despachos e similares não são idôneos para provocar o aborto e caracterizam crime impossível por absoluta ineficácia do meio (art. 17 do CP). Finalidade do aborto A ação de provocar o aborto tem a finalidade de interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção. Ela se exerce sobre a gestante ou também sobre o próprio feto ou embrião. Aborto: provocado e espontâneo Só há crime quando o aborto é provocado; se for espontâneo, não existe crime. Se os peritos não podem afirmar, por exemplo, que o aborto foi provocado, não há certeza da existência de crime, e, sem tal certeza, não se pode falar em aborto criminoso. Especializantes dos tipos de aborto O núcleo dos tipos é o verbo provocar, que significa causar, promover ou produzir o aborto. As elementares especializantes, como “em si mesma”, “sem o consentimento da gestante” e “com o consentimento da gestante”, determinarão a espécie de aborto, além da particular figura “consentir”, que complementa o crime próprio ao lado do autoaborto. Elementares do aborto O crime de aborto exige as seguintes condições jurídicas: dolo, gravidez, manobras abortivas e a morte do feto, embrião ou óvulo. Crime impossível Haverá crime impossível quando a mãe pratica o fato e o feto já está morto.
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