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0 UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA O DESAMPARO NA VELHICE ROSA MARIA SPILLARI MANJABOSCO Ijuí – RS 2014 1 ROSA MARIA SPILLARI MANJABOSCO O DESAMPARO NA VELHICE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Psicologia do DHE – Departamento de Humanidades e Educação da UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Psicóloga. Orientadora: Profª Ms. Iris Fátima Alves Campos Ijuí – RS 2014 2 ROSA MARIA SPILLARI MANJABOSCO O DESAMPARO NA VELHICE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Psicologia do DHE – Departamento de Humanidades e Educação da UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Psicóloga. Banca Examinadora: _______________________________________________ Profª Ms. Iris Fátima Alves Campos Orientadora (UNIJUÍ) _______________________________________________ Profª Ângela Maria Drügg (UNIJUÍ) Ijuí – RS, dezembro de 2014 3 RESUMO Esse trabalho aborda a questão do desamparo na velhice. Primeiramente buscamos entender a representação da velhice nas sociedades que nos antecederam para compreender o que significa ser velho nos dias de hoje. A seguir os estudos se voltaram ao entendimento do atual modelo econômico – o capitalismo – e como este atua sobre o sujeito velho. O conceito de desamparo foi sendo construído a partir do pensamento de Freud, Winnicott e Beauvoir. Buscou-se com o trabalho entender como a vivência do processo de envelhecimento acontece e, como cada qual se depara com ele, uma vez que é singular para cada sujeito em função da classe social e da cultura onde se insere. Palavras-Chaves: Desamparo. Velhice. Subjetividade. Sofrimento Psíquico. 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 5 CAPÍTULO I DA ORDEM NATURAL A LÓGICA CAPITALISTA ............................... 7 CAPÍTULO II A TRAVESSIA DA VELHICE E O DESAMPARO ............................... 17 CAPÍTULO III O PROCESSO DE ASILAMENTO E DESAMPARO .......................... 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 30 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 32 5 INTRODUÇÃO Este trabalho tem a pretensão de abordar o tema do desamparo na velhice. Trata-se aqui, do desamparo primordial, experenciado por todos os sujeitos no momento do seu nascimento, e reeditado ao longo da vida em diferentes situações. Na velhice, esse desamparo parece atingir o sujeito de uma forma ainda maior, ficando ele sem recursos subjetivos para lidar com as situações que se apresentam no dia a dia. A vivência do desamparo é singular a cada sujeito e vai dizer da sua organização psíquica. Diante dos enfrentamentos, cada qual vai lançar mão dos recursos subjetivos que possui. O desamparo pode ser considerado um sintoma do sujeito velho tanto nas épocas passadas, quanto nos dias atuais. A humanidade passou por diversas revoluções sociais e tecnológicas, mas o trato para com a velhice pouco mudou, foi e continua sendo negligenciada. Situar a velhice não tem se mostrado tarefa fácil na contemporaneidade, uma vez que nem nome próprio ela possui. A velhice encontra-se revestida hoje com outros nomes: Terceira Idade, Melhor Idade, Idade Ativa e Idoso. Nomenclaturas essas que escondem o verdadeiro significado de ser velho. Os programas públicos contemplam aqueles que se encontram ativos e conseguem participar das atividades propostas, reservando aos restantes a sensação de inutilidade. Não podemos negar que a velhice impõe mudanças na vida do sujeito. As mudanças no corpo provocadas pele idade são impossíveis de esconder. Em uma sociedade onde o corpo belo e jovem é motivo de orgulho e valor, é natural que se procure meios de retardar a velhice. Por mais que se tente, a tarefa mostra-se um engodo. 6 No primeiro capítulo fazemos uma leitura do lugar do velho na sociedade capitalista, a partir principalmente dos trabalhos de Simone de Beauvoir em “A Velhice”. Para a autora, a velhice foi, e continua sendo muito maltratada. Segundo Beauvoir, o modelo capitalista se utiliza da força de trabalho do sujeito, que quando velho é descartado como um objeto que não possui mais valor. No segundo capítulo buscamos o conceito de desamparo, fazendo dele uma relação com a velhice, momento em que este se evidencia com mais intensidade. Nesse capitulo as ideias de Freud e Winnicott nortearam o trabalho. O desamparo visto como constitutivo da psique do sujeito e seus desdobramentos na travessia da velhice. O terceiro capítulo levanta a questão dos asilos, buscando entender os motivos da separação do idoso de suas famílias e, o que essa mudança de lugar representa para o velho em termos subjetivos que podem levar ao desamparo e ao agravamento das doenças já existentes, principalmente no que se refere as demências. Os conceitos de sociedade, abrigamento e velhice foram revisitados, principalmente pelos pensamentos de Ecléia Bosi e novamente Simone de Beauvoir. Entender o desamparo na velhice como um processo social, parte de um processo de distribuição das riquezas injusto, que faz com a grande maioria das pessoas, incluindo o velho, fiquem de fora e precisem do amparo do Estado. Esse, apesar dos avanços no que se refere às Políticas Públicas, muito ainda precisa evoluir para chegar a um nível aceitável de proteção e cuidado com a velhice. Levantar essa discussão, talvez seja um caminho possível para dar alguma visibilidade ao velho que se encontra tão apartado da sociedade. Representa a possibilidade do velho voltar a ser o protagonista da sua história, que apesar de ter boa parte já escrita, ainda falta concluir. Portanto, possível de mudar o final. 7 CAPÍTULO I DA ORDEM NATURAL A LÓGICA CAPITALISTA Recordo ainda… VIII (Para Dyonelio Machado) Recordo ainda… e nada mais me importa… Aqueles dias de uma luz tão mansa Que me deixavam, sempre, de lembrança, Algum brinquedo novo à minha porta… Mas veio um vento de Desesperança Soprando cinzas pela noite morta! E eu pendurei na galharia torta Todos os meus brinquedos de criança… Estrada afora após segui… Mas, ai, Embora idade e senso eu aparente Não vos iluda o velho que aqui vai: Eu quero os meus brinquedos novamente! Sou um pobre menino… acreditai… Que envelheceu, um dia, de repente! (Mario Quintana) (A rua dos cataventos. Coleção Mario Quintana. 2. edição. 6a. reimpressão. São Paulo: Globo, 2005. p. 26). Quando uma mulher gesta uma criança, a família toda é tomada por um misto de ansiedade, excitação e alegria. O bebê esperado passa a receber todas as atenções. Para a sua chegada a casa é preparada, planos são feitos para ele. A criança é, antes mesmo do seu nascimento antecipada por seus pais. Para esse bebê já é reservado um lugar, um lugar subjetivo asseguradopelo discurso parental, e é importante que assim seja para que essa criança venha a se constituir psiquicamente como um sujeito. Para que possa desejar, o Outro deve ter desejado antes por ele. Essa criança vai crescer, e um dia pelo percurso natural da vida tornar-se-á um velho. O velho, aqui considerado aquele de idade avançada que vive a decadência do corpo na perda das habilidades motoras e intelectuais, passa da mesma forma que quando criança, a necessitar de cuidados de outras pessoas, para garantir o atendimento de suas necessidades básicas. Mas diferentemente da criança, que ao experimentar o mundo, vai inaugurar suas experiências na vida, o velho já é portador das experiências de forma que é equivocada a expressão de que ao envelhecer o sujeito torna-se novamente criança. O velho é alguém que já escreveu grande parte da sua história, entretanto, ainda não a completou, pois sabemos que o desejo não obedece as leis do tempo cronológico. Quando chega o tempo em que não pode 8 mais ser o condutor da sua vida e outros precisam ser por ele, o envelhecer que deveria ser uma etapa natural da vida, por que o processo de envelhecimento tem seu inicio com o nascimento, na contemporaneidade mostra-se problemático, uma vez que em nossa sociedade instituiu-se que o velho não representa força econômica. Esse momento, diferentemente daquele de esperar por uma criança, é vivido na maioria das vezes por apreensão por todos que de alguma forma são chamados a ser responsáveis por aquela pessoa que agora é considerada velha. Quando, de alguma forma, o envelhecer vem acompanhado do adoecimento físico ou do comprometimento psíquico, o impasse familiar é ainda maior. Parece que ninguém se preparou para esse momento achando que ele nunca chegaria. E o que acontece, muitas vezes, é um tipo de estranhamento daqueles que lhe são próximos, quando as evidências teimam em mostrar que a pessoa envelheceu. Constata-se na atualidade que a população brasileira está envelhecendo. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta que o numero de idosos dobrou nos últimos vinte anos no Brasil. Os idosos – pessoas com mais de 60 anos – somam 23,5 milhões de brasileiros, mais que o dobro do registrado em 1991 quando a faixa etária contabilizava 10,7 milhões de pessoas. Na comparação entre 2009 (última pesquisa divulgada) e 2011 o grupo aumentou 7,6%, ou seja, mais de 1,8 milhão de pessoas. Ainda de acordo com dados do IBGE em relação a expectativa média de vida no Brasil houve um aumento de 17,9% entre 1980 e 2013. Para o referido instituto se fossem considerados dados atuais o avanço seria ainda maior. Dados estatísticos de 2013, já disponibilizados pelo IBGE apontam que a esperança de vida ao nascer no nosso país, é de 74,8 anos. Estudos mostram que os números são diferentes em relação as regiões do Brasil, e que a expectativa de vida é maior nas regiões mais desenvolvidas economicamente. Enquanto que na região Sul a expectativa média de vida é de 75,8 anos, na região Norte é de apenas 70,8 anos. A expectativa de vida também não é igual quando se leva em conta o gênero; os homens vivem em média 70,2 anos, enquanto as mulheres vivem uma média de 77,4 anos. Se por um lado estamos vivendo mais, envelhecer não tem se mostrado tarefa fácil em nossa sociedade e as dificuldades em relação ao envelhecimento se apresentam maiores na camada menos favorecidas economicamente da população. 9 Pode-se dizer que quanto mais dura for a realidade vivenciada por uma comunidade mais difícil vai ser o envelhecer. Se, o sujeito, precisa lutar, contando apenas com a força física para ter a sobrevivência assegurada, é de se esperar que quando essa se esgota, o futuro se mostra incerto, sem garantias. A aposentadoria, almejada por muitos, na maioria das vezes, tem se mostrado insuficiente para dar conta das necessidades e cuidados que a velhice impõe. Em nosso país, apesar dos avanços nas políticas públicas, na tentativa de resgatar a dignidade dessa expressiva parcela da população muito ainda encontra-se por fazer. A sociedade brasileira, da qual fazem parte nossos velhos, está inserida num modelo capitalista. Nesse modelo o trabalho, ou ainda a força de trabalho está diretamente atrelada ao sujeito. Para aquele que não é o dono dos meios de produção, o que pode oferecer ao sistema é a sua força de trabalho. O sujeito é olhado, falado e reconhecido pelas suas realizações no campo do trabalho. A vinculação do trabalho ao sucesso pessoal está tão presente em nosso meio, que cada vez mais projetos de vida são postergados (constituir família, nascimento dos filhos), na tentativa de vir a ter uma melhor colocação no mercado de trabalho. O que percebemos na sociedade capitalista dos tempos de hoje, é que a constituição de vínculos e laços afetivos com o semelhante estão perdendo espaço para o trabalho, e o objetivo do sujeito em primeiro lugar é a busca pelos bens materiais em uma suposta e nunca alcançada satisfação. O velho, que só possuía a sua força de trabalho para oferecer, quando se vê privado dessa, passa a sentir-se deslocado e inútil. Para um modelo de sociedade alicerçada na produção e no consumo de bens materiais, não interessa o velho com sua experiência de vida. Interessa o conhecimento técnico e o uso de novas tecnologias. Como novos conhecimentos surgem a todo momento, o velho torna-se alguém facilmente ultrapassado, uma vez que não consegue acompanhar com a mesma velocidade dos mais jovens – pois é de outro tempo – pertence a outra época. Se o velho não tem conhecimento das novas tecnologias, por outro lado possui a sabedoria que a experiência lhe proporcionou. Essa sabedoria ele poderia transmitir, se houvesse alguém disposto a lhe ouvir. Não sabendo mais ouvir o velho, todos nós perdemos. Sobre isso, Bosi (1994, p. 83): 10 Ele nos aborrece com o excesso de experiência que quer aconselhar, providenciar, prever. Se protestamos contra os seus conselhos, pode calar- se e talvez querer acertar os passos com os mais jovens. Essa adaptação falha com frequência, pois o ancião se vê privado de sua função e deve desempenhar uma nova, ágil demais para o seu passo lento. A sociedade perde com isso. Se a criança ainda não ocupou nela seu lugar, é sempre uma força em expansão. O velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos. Então, a velhice desgostada, ao retrair suas mãos cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo. Podemos pensar aqui em um declínio da função paterna, ao sujeito velho não é mais dado o crédito, ele perde a importância, uma vez que o novo se coloca a todo o momento. A transmissão, de uma sabedoria de vida que seria uma possibilidade de se fazer útil, não é mais importante. Entendendo transmissão, como a passagem, a entrega de um legado que foi construído durante toda uma vida pelo idoso. Poderíamos pensar aqui, na importância subjetiva de transmitir, como sendo a forma de se fazer continuar, que, se não pode ser ele próprio, pois se percebe como mortal, outros poderão continuar por ele. A transmissão como uma tentativa de não apagamento do sujeito. A sociedade moderna apresenta um circulo complexo que acaba por dispensar o velho da função de transmissão e que traz como efeito justamente o não lugar para transmissão que o velho é capaz de fazer. Para Jerusalinski (2000): A ruptura entre gerações, operada pela interrupção da transmissão simbólica, sob formas de hiatos da memória social, causada pela inconsistência dos ideais enunciados pelas gerações anteriores, vê-se intensificada pela aceleração dos processosmigratórios que provocam uma crescente desarticulação familiar. Aquele que exerceria uma função de saber, o representante da lei e da ordem perdeu espaço e, os sujeitos buscam igualdade e liberdade nas suas relações, reproduzindo nos espaços que ocupam o modelo socioeconômico ao qual estão de alguma forma vinculados. Freud, em “O mal-estar na civilização” (1938), embora sem vivenciar efetivamente o processo de “globalização” que nos afeta diretamente hoje, chama a atenção para a pobreza psicológica dos grupos que se organizam sem levar em conta um Outro a quem se referenciar, assim aponta: 11 Esse perigo (pobreza psicológica dos grupos) é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identidades dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo líder não adquirem a importância que lhes devia caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporciona uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo eu mesmo estar empregando os métodos americanos. A “globalização” se efetivou em nossa sociedade com uma velocidade surpreendente, e adquiriu contornos próprios, está alicerçada no discurso do desenvolvimento, do livre mercado e da liberdade de escolha das pessoas. O que se coloca como verdade é que todos podem chegar aonde querem, basta que queiram. Essa forma de pensar não leva em conta as realidades diversas, nem as singularidades dos sujeitos. No mundo globalizado o crescimento é sem limites e por essa razão não obedece fronteiras. Já não é necessário levar em conta a forma de organização de um grupo ou de mesmo de uma sociedade. A tradição que servia de parâmetro, estatuto de valor e que estabelecia regras a serem seguidas, pode, em nome da modernidade, ser facilmente substituída, deixada para trás, esquecida. Assim como são cada vez mais substituídos e esquecidos nossos velhos, alijados do seu saber, são descartados como mercadorias que perderam seu valor. Hoje, não há mais familiares com tempo para cuidar, amparar e investir no velho e, cada vez mais essas atribuições ficam delegadas a terceiros. As famílias que dispõe de condições financeiras contratam serviços, os que não podem pagar recorrem as instituições de caridade. Em ambos os casos, falta compreender que para além do corpo que se apresenta fragilizado, existe um sujeito com direito a palavra. Isso, quase sempre é ignorado. É a família que toma a decisão do que é “melhor” para o velho, e o que leva em conta é o possível arranjo familiar, de maneira que cuidar do idoso não venha a interferir no que já se encontra organizado. Ninguém se mostra disposto a refazer seus planos em função do velho. Assim refere-se Beauvoir (1990, p. 274): Hoje em dia, o operário mora num lugar e trabalha em outro, mas num esquema puramente individual. A família fica à margem de suas atividades produtivas. Ela se reduz a um ou dois casais adultos, que são responsáveis por filhos ainda incapazes de ganhar a vida; eles não podem, com seus magros recursos, assegurar o sustento de seus velhos pais. Entretanto o trabalhador é condenado à inatividade cada vez mais cedo do que outrora: a tarefa na qual se especializou permanece a mesma a vida inteira, e não se adapta, ás possibilidades de todas as idades. 12 Os sujeitos, que em razão do crescimento econômico e dos avanços das ciências, estão ganhando anos adicionais de vida, não possuem garantias de uma velhice de qualidade, e quando falamos em qualidade, não estamos nos referindo apenas no que é da ordem material, nem tampouco do corpo biológico, (este, sabemos que pode envelhecer sem apresentar doenças), mas falamos de um sujeito desejante, sujeito reconhecido pelo olhar do Outro e, que são seja estigmatizado pelo rótulo imposto pela velhice. Nos parece, no entanto, que na velhice, todos os avanços e facilidades do mundo moderno, pouco se dirigem àquele que pela sua força de trabalho fez a engrenagem andar e contribuiu no processo de modernização. Ao contrário, a engrenagem volta-se contra ele mesmo, aponta para ele a sua incapacidade. Parece haver uma contradição entre a promessa de uma vida mais longa, e o real do corpo que o velho mostra. O olhar que o Outro lhe devolve, vem dizer que o tempo passou para ele e, que essa condição é irreversível e vai acentuar-se cada vez mais rápida. Por mais que os sujeitos se utilizem de recursos para adiar o envelhecimento, a passagem do tempo é inegável. Envelhece-se desde o dia em que se nasce. O mal-estar da civilização encontra hoje a sua causa na própria abolição do sujeito, substituído notadamente por uma concepção puramente biológica do homem, isto é, uma concepção veterinária. O discurso gestionário, que governa atualmente o mundo segundo as regras do mercado, praticamente varreu todos os laços sociais básicos (...). O sujeito moderno, desembaraçado da “monarquia do significante”, segundo a expressão de Michel Foucault, tornou-se enfim “livre”, isto é, louco, perdido, aspirado ao produzir-se a si mesmo como detrito, no discurso da suposta livre empresa (MUCIDA, 1998). Todo o exposto acima nos leva a pensar quais os caminhos que conduziram a concepção da velhice da forma como se apresenta hoje em nossa sociedade ocidental. Frente aos apelos do capital, que convoca os sujeitos a produzir e consumir sempre cada vez mais, o velho é posto à margem como algo sem sentido e inútil de investimento. Esse desinvestimento no velho parece ser uma característica que permeia as relações da sociedade atual com aqueles que de alguma não se apresentam de acordo com os padrões exigidos pelo mercado. É como se houvesse um imperativo afirmando que aquele que não está dentro, está fora e, se está fora, não interessa mais. Não há tempo para ser velho nesse modelo 13 capitalista, e o velho sabe disso, e talvez por isso nega a sua própria velhice. O nome velhice é substituído por “terceira idade”, “melhor idade”, “idoso”. Termos que são usados pelo social na tentativa de vir a dar uma nova dimensão da velhice. Desligando de certa forma, a velhice das ideias de doença, inatividade e pobreza, para relacionar a velhice a um tempo de novas possibilidades, independência e poder aquisitivo, (por que isso é do interesse do mercado). Se por um lado esses novos termos utilizados podem ser positivos, pois remetem a um novo olhar ao velho, também no que se refere a direitos e investimentos por parte das políticas públicas, por outro lado, representam o perigo de se tentar uma categoria ideal de velhice. O termo “velhice ativa” muito usado por aqueles profissionais que apregoam a ideia de que o velho não pode parar, talvez venha a representar um modelo de exclusão moderno, que não aceita o velho que se apresenta com fragilidades inerentes da sua idade biológica. Se, os valores que se apresentam hoje, são todos relacionados à juventude, a saúde e a beleza do corpo, é natural que as pessoas procurem de todas as formas possíveis frear a sua velhice. Existe um engano que leva o sujeito a pensar que é possível ficar idoso sem envelhecer. Algo como: “se eu não ficar com a aparência de velho, não vou envelhecer”. Beauvoir (1990, p. 50) vai nos falar das diferentes sociedades e dos diferentes costumes para com os velhos, chamando a atenção para o que se passa entre os animais que nos são mais próximos – os antropoides – a autora observa que em muitas hordas o macho mais velho é aquele que se apropria das fêmeas, e não deixa que os outros mais jovens se aproximem, quandoesses tentam são por ele agredidos. O mais velho, protege as fêmeas e os filhos, defende a horda do ataque de outras feras. Mas quando os jovens crescem, e ficam mais fortes, se rebelam contra esse mais velho, e passam a espreitá-lo e atacá-lo. Ele então se sente acuado e aos poucos vai enfraquecendo. A arma que possuía, os dentes, começa a quebrar. O mais forte do grupo, então passa a investir mais fortemente sobre ele, até que se retire para longe da horda. Mesmo que ainda seja robusto e poderia lutar para sobreviver, a vida solitária vai fazer com que enfraqueça, adoeça e aos poucos definhe, até morrer. Aquele que foi seu agressor torna-se a partir de então a liderança do grupo, e a história vai se repetir com ele. 14 Conforme Beauvoir (1990, p. 51): Veremos que, como em muitas outras espécies, nas sociedades humanas, a experiência e os conhecimentos acumulados são um trunfo para o velho. Veremos também que ele é muitas vezes expulso, mais ou menos brutalmente, da coletividade. Entretanto, o drama da idade não se produz no plano sexual, mas no plano econômico. O velho não é, como entre os antropoides, o indivíduo que não é mais capaz de lutar, mas aquele que não pode mais trabalhar e que se tornou uma boca inútil. Sua condição nunca depende simplesmente dos dados biológicos: fatores culturais intervém. O que nos leva a afirmar que é singular a cada cultura o tratamento dispensado aos seus velhos. E, se a preocupação com a sobrevivência encontra-se presente, nas relações dos mais jovens para com os que se encontram na velhice, existe sempre algo mais, que é da ordem subjetiva que permeia essas relações. Nas sociedades que nos antecederam a tradição era a garantia do agir daquele que passava a ocupar o lugar que até então era do velho, era da ordem natural que idoso fosse substituído. Mas mesmo sendo natural, não significa que se dava de forma tranquila e sem dor. Mucida (2012) vai trazer o filme japonês A Balada se Narayama, como um exemplo de ritual de passagem, que embora fazer cumprir o destino do velho, fosse a representação do amor e da dedicação, sentimentos ambivalentes encontravam-se presentes no ato: a autora vai dizer que o filme retrata algumas aldeias muito pobres do Japão dos fins do século XIX que, para sobreviverem, eram obrigadas a sacrificar seus velhos. Transportados para uma montanha (montanha da morte) no inverno, os idosos eram ali abandonados e entregues à fome e ao frio morrendo completamente sós. Dor, angústia e abandono acenam para o insensato do tempo vivido pela marca cronológica. Nessa balada de morte há uma idosa, O’Rin, com seus fatídicos 70 anos que ainda está em pleno vigor-ara a terra, colhe, pesca, tece cozinha e cuida das crianças-e, conservando seus dentes intactos, expõe uma espécie de vergonha entre eles; ela não deveria ser mais capaz de tê-los e se alimentar como os outros. Zombada pelo neto como “a velha de trinta e três dentes”, O’Rin, pressionada pela chegada das jovens esposas que deveriam ocupar o seu lugar, e, apressando uma velhice nada natural, retira com pedradas alguns de seus dentes, dirigindo-se ao seu destino funesto e inexorável. Apesar do amor demonstrado pelo filho, que tem dificuldades em cumprir o preceito cultural, ela é deixada nas colinas da morte. Esse 15 retorna ainda para lhe anunciar que neva; um bom presságio, a morte lhe será mais rápida. Se hoje, a garantia da sobrevivência do corpo, (a partilha pela comida), não se faz imperativo para a condução no trato com a velhice, outros fatores se apresentam para justificar o que se apresenta como abandono, indiferença e soberba quando do convívio com velhos. Se não existe mais a garantia da tradição para apontar o que pode e o que não pode se fazer, o modelo econômico, do qual a globalização é um braço aponta o caminho. É ao capitalismo que nos referenciamos ao mesmo tempo que nos perdemos, pois dele viramos reféns. Já não sabemos o que é da ordem do nosso desejo, e, cada vez mais estamos na ordem do querer. Um querer sem limites, que exaure o nosso tempo, fazendo com que deixamos em segundo plano nossos afetos. Não podemos diminuir nosso ritmo, ao contrário, ele deve ser sempre mais e mais veloz, porque se não for assim os outros passam na nossa frente e, isso nós não queremos. Então, se nos falta tempo para realizar todas as tarefas que se apresentam como indispensáveis para a nossa vida, como é possível dar um tempo e abrir um espaço para incluir o idoso nele? Apresenta-se como uma enorme dificuldade aos mais jovens, fazer uma pausa no trabalho, ou em seus projetos, para acompanhar e dar suporte ao um idoso da família que esteja demandando cuidados. Assim, nos coloca Mucida (2012): Mesmo que tecida sob diferentes formas, não é tão distante de nós aquilo que a velhice tem despertado em grande parte das sociedades primitivas ou em outras sociedades mais organizadas. Se não deixamos nossos velhos morrerem nas montanhas da morte, o abandono está presente de formas mais veladas. Hoje o abandono do sujeito velho veste outras roupagens; se maquia para poder aparecer. E não se faz por um só ato e em um só tempo. Vai acontecendo aos poucos: é o mercado de trabalho que não permite sua entrada porque seu saber ficou obsoleto e o jovem rende mais; é a aposentadoria que chega e o faz parar mesmo que ainda poderia continuar; são os filhos que começam a dizer o que é melhor para ele; são os avanços da tecnologia que não consegue acompanhar; é o silêncio imposto a ele quando percebe que o que ele fala é de outra época e não desperta mais o interesse de ninguém. Enfim, são inúmeras as formas que fazem 16 com o velho se retire, pois outros o fazem entender que é chegada a hora de dar o lugar que foi seu à outra pessoa. Conforme Mucida (2010): Fora do tempo atual, fora do mercado de trabalho e da rapidez exigida pelo mesmo, fora do imperativo do novo e, desvalorizado de seu saber, a velhice tende a experimentar o desamparo de maneira mais cruel. Se o velho não pode contar com sua história de vida, se tudo o que construiu abruptamente mostra-se sem valor e tudo lhe parece sem sentido, mesmo assim não há como negar o desejo que existe no velho e que o faz resistir e continuar para além das imposições do capitalismo, do culto ao corpo e do endeusamento do dinheiro. A psicanálise se apresenta como a possibilidade de escuta do sujeito velho, sujeito do inconsciente, esse que é atemporal e, por tanto, não envelhece. Dar voz ao velho é mostrar a ele que alguém se importa com as suas rememorações. Sobre isso, Bosi (1994): Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pele memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgias, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante uma obra de arte. Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual. Dispor de tempo para ouvir o velho é dar a ele um lugar de transmissão, pois o que se escuta não é pura informação, é muito mais, é o vivido como experiência. Representa para as gerações atuais e futuras o entendimento de sua história, em sua dimensão material e, principalmente da sua dimensão subjetiva. 17 CAPÍTULO II A TRAVESSIA DA VELHICE E O DESAMPARO Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que nãomais nada a fazer, mas o homem só respondeu a primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além da limpeza, tinha também a sua responsabilidade alguns trabalhos menores de costura no palácio, como passar as peúgas dos pagens. Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-se ora estendendo-as para os lados, enquanto o homem que queria o barco esperava com paciência a pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode- se saber de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir a procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania por navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há mais ilhas desconhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir a procura, Se eu tu pudesse dizer, não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para para que não mo dês, Sou o rei desse reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre, sempre navegar, Às minhas ordens, com meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só peço um barco, E essa ilha desconhecida, se encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as conhecidas quando o deixam de ser, Talvez essa não se deixe de o ser, Então não te dou o barco, Darás (SARAMAGO, 1998, p. 15). O conto acima, de José Saramago, chamado “O conto da Ilha desconhecida”, ilustra a trajetória da nossa vida, que se nada de trágico acontecer para abreviar, desembocará inevitavelmente um dia na velhice. Esse futuro, ou mesmo presente, que ao mesmo tempo que nos instiga, nos amedronta. Justamente porque dela, a velhice, só pode saber contar quem a vivencia. Lima e Baptista (2013), sobre o conceito de experiência em Benjamin apresentam o seguinte: Em Experiência e pobreza o termo “experiência” (Erfahrung) é o representante do conhecimento transmitido entre gerações. Tido de outro modo “experiência” denota o conhecimento acumulado por gerações que é transmitido em geral por meio das fábulas, histórias, parábolas ou provérbios. Benjamin constata: se o saber da experiência aos homens do passado um conhecimento que os constituía plenamente, que fazia parte da sua história, os homens modernos sofrem para reconhecer esse saber antes tão naturalmente transmitidos entre as gerações (BENJAMIN, 1987, p. 114). 18 Ao contrário das sociedades tradicionais que preservavam suas tradições nos épicos e narrativas, a sociedade moderna se caracteriza pelo declínio de um passado comum a ser transmitido. O homem moderno na visão de Benjamin, ainda que não inteiramente desprovido da lembrança da existência desta transmissão não era mais capaz de dar continuidade a essa experiência, não podia mais comunica-la ou tão pouco invocar o peso de um saber contido no saber da tradição. Essa viagem, rumo ao desconhecido, cada qual, só poderá contar com os recursos subjetivos que possui. Assim como um bebê chega ao mundo na condição de desamparo, e vai precisar da sustentação (Holding, para Winniccott), para poder sobreviver e se constituir psiquicamente, de forma semelhante, na velhice, onde o eu que já se encontra integrado, o sujeito vai sofrer mudanças frentes as perdas reais, que se fazem inerentes ao processo de envelhecer. Todo o contexto social, profissional, afetivo e físico vão mudar. A proximidade da morte, que se apresenta cada vez mais real para o velho, com a perda dos parentes, dos amigos, do cônjuge, o remetem a uma reedição do desamparo originário vivido por ocasião do nascimento. Os referenciais, que lhe serviam de sustentação, aos poucos vão desaparecendo. Com muita sensibilidade, sobre essa fase da vida, Bosi (1994, p. 79) faz uma leitura: O velho sente-se um indivíduo diminuído, que luta para continuar sendo um homem. O coeficiente de adversidades das coisas cresce: as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas de percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica eriçado de ameaças, de ciladas. Uma falha, uma pequena distração são severamente castigadas. Quando o sujeito percebe que o tempo futuro é bem mais curto que o tempo passado, e que o que lhe resta parece insuficiente para que invista em planos a realizar, o sujeito velho, da mesma maneira que uma criança, vai ter que receber, daqueles que o cercam um investimento adicional para que não venha a se desintegrar psiquicamente. Esse investimento, naquele que comprovadamente é desinvestido pela sociedade, que na maioria das vezes, o descarta, é o que poderá dar um lugar outro ao velho. Sobre a função do holding, Abram (1996) afirma: 19 Os pais devem proporcionar ao bebê um ambiente compatível com suas necessidades. Não teria qualquer utilidade para a criança se lhe fosse oferecido algo que apenas eles considerassem ser necessário. Isto fará dela uma criança dócil, uma vez que, sob a pressão dos pais, a criança dirá desejar alguma coisa que na verdade não deseja. Winnicott quer dizer com isso que os pais devem considerar a integridade do bebê ao tentar suprir as suas necessidades, respeitando-o como um ser humano distinto deles próprios, o que forçosamente inclui o direito de ser diferente. A interpretação de Abram do conceito de holding, nos permite fazer uma analogia entre a sustentação na velhice e na criança. Quando o sujeito envelhece ocorre uma inversão dos papéis: cabe aos filhos cuidar dos pais. Esse cuidado deveria levar em conta sempre o respeito do desejo do velho, levando-o a ter lugar na família, como alguém que pode ainda, mesmo com limitações, olhar para frente e planejar. Mas isso, em nossa atual sociedade, mostra-se, com poucas exceções, uma utopia. O velho não é olhado como alguém que valha a pena se fazer investimentos, uma vez que não pode mais trazer retorno, tal como trabalhamos no capítulo anterior. O corpo do velho não é para ser visto, e quando exposto, muitas vezes é motivo de repulsa. Evita-se tocar, manusear, tornando-se, então, um corpo desinvestido. Podemos pensar que, os pais ao investirem no bebê, suprindo as suas necessidades físicas e psíquicas, colocam nesse investimento uma aposta, porque percebem nele um “sujeito vir-a-ser”; diferentemente do velho, onde o olhar é para a finitude da vida, e portanto dispensa a aposta. Essa não aposta lhe é causa de sofrimento levando-o a retirar-se do social, pois sente-se como um incômodo para os outros. Pensa que melhor seria ir para a montanha da morte, esperar pelo fim. Como fatores principais que levam ao desamparo na velhice, estão: a gradativa perda da capacidade de produzir, a sensação de inutilidade que dele se apodera e a perda irreversível de sua independência. Essa última parece ser a que mais lhe dói. Separa uma criança é motivo de alegria e satisfação ser cuidado e manipulado por um outro, para o velho ter seu corpo manipulado representa uma invasão, atestado de seu declínio. Sabemos que o desamparo faz parte do nosso viver, mas é inegável que na velhice ele se acentua. A vivência do desamparo, que tem a sua origem no nascimento de todo o ser humano, parece se reeditar, quando na velhice, o sujeito de se vê precisando de ajuda, nesse momento em que se vê incapaz de satisfazer sozinho as suas necessidades vitais de sobrevivência. Vai ter que inevitavelmente, 20 remeter-se a um outro que lhe diga o que fazer. Vai passar a depender desse outro. Perceber-se velho, é deparar-se com o desconhecido, embarcar em uma viagem onde as paradas não se encontram programadas e, podem acontecer quando o sujeito menos espera. O novo, o inesperado dessa fase, se faz porque nunca antes, o sujeito foi um velho. E, é sempre o outro, seu semelhante, que lhe aponta a sua velhice. Parceiros de juventude, quando se encontram, anos mais tarde, tendem a apontar o envelhecimento no outro, é sempre para o outro que o tempo passou. Por mais que ele insista em negar a velhice, vai chegar o momento em que terá que se haver com ela, lidar com o desamparo. Costa (2007) vai nos falar do desamparo sob o viés psicanalítico: Freud emprega o termo desamparo em dois principais contextos. No primeiro, o termo aparece na discussão sobre os estímulos interiores ou exteriores que afetam organismos humanos. Postula-se, em teoria, que a resposta adequada a esses estímulos é a ação específica motora ou psíquica. A ação específica visa fazer cessar o estímulo pela satisfação da necessidade ou pela fuga a ação penosa. Se isso não acontecer e o estímulo exceder a capacidade de resposta do organismo, surge o desamparo, que pode dar origem a defesas inadequadas, ou seja, a sintomas psicopatológicos. No segundo contexto, desamparo está referido à ideia de “prematuração” do ser humano. Aqui entra a ideia de que entre os seres vivos, o homem, ao nascer é o mais desamparado de todos. Vai precisar que outro venha a fazer as coisas por ele, para poder sobreviver. Se for abandonado morrerá. Essa sua primeira experiência na vida, vai lhe imprimir marcas subjetivas, que frente a novas experiências, busque sempre no Outro garantias para prosseguir. Sobre o processo de “maturação”, Costa (2007), vai buscar em Freud uma melhor compreensão. Entre os fatores que contribuem para causar as neuroses, e que criam as condições nas quais as forças psíquicas se medem umas às outras, três se destacam particularmente: um fator biológico, um fator filogenético e um psicológico. O fator biológico é o estado de desamparo muito prolongado do filhote homem. A existência intra-uterina do homem é relativamente breve, em relação a maioria dos animais. Ele é menos acabado que esses últimos, ao ser lançado no mundo exterior real, se acha, muito reforçada. A diferenciação do eu com o isso é adquirida muito precocemente, os perigos do mundo exterior ganham uma importância enorme, pois ele é o único a poder proteger o eu de tais perigos. Assim, o fator biológico está na origem das primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, que jamais abandonará o ser humano. 21 Tais considerações nos levam a pensar, que viver é buscar de todas as formas possíveis, o amor e a proteção do Outro. Enquanto tivermos isso, o terreno que pisamos vai estar seguro e, estaremos tranquilos para fazer a travessia. Quando, na velhice, o sujeito tem negada essas condições, o desamparo experenciado no nascimento, se reedita com força ainda maior, pois ele vê-se sem saída e sem poder retroceder. Parece estar em constante ameaça, uma vez que se coloca a mercê do Outro em razão de sua fragilidade. A esse respeito, nos atenta Beauvoir (1990): O velho permanece em atitude de defesa, mesmo quando todas as garantias de segurança lhe são dadas, porque não tem confiança nos adultos: é sua dependência que ele vive sob a forma da desconfiança. Sabe que os filhos, os amigos, os sobrinhos que lhe ajudam a viver financeiramente, ou cuidando dele, ou hospedando-o podem recusar-lhes essas ajudas, ou restringi-las; podem abandoná-lo, ou dispor dele contra a sua vontade: obrigá-lo a mudar de residência, por exemplo, oque é um de seus terrores. Conhece a duplicidade dos adultos. Teme que lhe façam favores em nome de uma moral convencional que não implica respeito nem afeição por ele; tratam-no pensa, de acordo com os imperativos da opinião: esta última pode ser contornada, ou contar menos que certas comodidades. As desgraças que o velho teme doenças, deficiências, aumento do custo de vida são tanto mais temíveis quanto a acarretar mudanças nefastas nas condutas de outrem. Longe de esperar que seu irreversível declínio natural seja sustado ou compensado pelo comportamento de seus parentes, ele suspeita que estes últimos, precipitarão o curso desse declínio: por exemplo, se ficar muito cheio de deficiências, será colocado no asilo. Reside aqui, a grande ameaça que paira sobre a velhice. Ter sua autonomia destituída, não poder mais tomar decisões em nome próprio e, outros vir a dizer o que é melhor para ele. O que se contata, na maioria das vezes, é que quando o velho mais precisaria do suporte familiar, que é no momento em que a doença o deixa vulnerável, acontece a decisão pelo asilamento. Essa decisão vem revestida de “estar fazendo o melhor por ele”, ou ainda de “dar a ele um maior amparo”. Isso, na maioria das vezes, tem se mostrado um engodo. Pois, nessa fase vida, o afastamento do território contribui para acelerar o processo de dependência do velho. Acontece então, que na hora em ele mais precisa daqueles que pensava poder contar, as portas se fecham. O desamparo que o velho experimenta decorre muitas vezes daquilo que é “não dito”, do que fica nas entrelinhas e não é para ele esclarecido, com a desculpa de não lhe causar sofrimento, ou porque em razão de sua idade avançada não poderá entender. O que é dissimulado lhe causa mais dor. 22 Sobre a atitude da família, de muitas vezes acobertar a realidade para o velho, posiciona-se Bosi (1994): A característica da relação do adulto com o velho é a falta de reciprocidade que pode se traduzir numa tolerância sem o calor da sinceridade. Não se discute com o velho, não se confrontam opiniões com as deles, negando-lhe a oportunidade o que só se permite aos amigos: a alteridade, a contradição, o afrontamento e mesmo o conflito. Quantas relações humanas são pobres e banais porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e porque nos desviamos das áreas do atrito, dos pontos vitais, de tudo o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a tolerância com os velhos é entendida assim, como uma abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discriminação. Sabemos que na velhice, mais do que em qualquer outra fase da vida, o sujeito tende a agarrar-se aos hábitos, como uma forma de defende-se do novo. Resguarda-se ao realizar as tarefas que para ele são importantes. Repete-as sempre da mesma forma e com a mesma regularidade. A rotina é para ele a sua segurança. Quando isso lhe é negado, como no caso de ter que deixar a sua casa e ir para outro lugar, lhe caem também todas as suas referências. Podemos inserir aqui os conceitos de território e desterritorialização para pensar esse velho que é levado a sair do lugar em estava acostumado viver. Entender que para o velho estar junto a outras pessoas de sua idade cronológica e ser atendido em suas necessidades orgânicas bastam para lhe dar amparo, mostra-se um engano. O territórioque para todo o sujeito, independente da idade possui um papel fundamental na estruturação psíquica, na velhice adquire importância ainda maior. Território, de acordo com o geógrafo Haesbaert (2005): Desde a sua origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de térreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com a dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo- especificamente para aqueles que, com esta dominação ficam alojados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufruí- lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. Esse conceito nos leva a pensar, no caso da velhice, que o sujeito, quando retirado da sua moradia, é lançado também para fora do seu território, experimentando nessa passagem insegurança e medo do desconhecido. A vivência 23 da desterritorialização é acompanhada da dor da perda, do desaparecimento de um território e de tudo o este representava em termos de organização simbólica para ele. Se a mudança de lugar se apresentar para o velho de forma brusca, violenta, sem um mínimo de entendimento e adaptação, pode levar a um desaparecimento não somente do território, mas também do próprio sujeito. O sujeito pode negar-se a mudança, vindo a refugiar-se no seu próprio eu, potencializando sintomas que já existiam, como é muitas vezes o caso das demências. Na velhice, adaptar-se a novas situações é tarefa difícil ou mesmo impossível. Sair do seu lugar representa para ele deixar a suas lembranças, os objetos que vestiam o território eram para ele significativos. Para onde vai tudo lhe é estranho e sem sentido. O novo lugar não lhe permite invocar o passado. Ao falar sobre a cidade, Elia (2011), assim se refere: Ela é feita de espaços, histórias, lugares, marcas que constituem a realidade de um sujeito, que é sempre psíquica, subjetiva, interna e externa, como uma fita de Moebius. Assim, o território da cidade que interessa a um sujeito não é a região em que ele vive, mas os conjuntos de espaços que, ao longo do tempo de sua vida, construíram a sua história subjetiva. O território é o fragmento do Outro, que, como tal, inclui a sujeito e só se define por relação a ele. Essa forma de conceber o território-noção que é tão cara para todos nós- define de outro modo a cidade, e a articula com o inconsciente. O que nos leva a pensar que para o velho não é o lugar que vai dizer por si, mas tudo o que ele carrega como bagagem e que teceu a trama de sua vida. São os fragmentos do lugar que de alguma forma o marcaram e que podem falar por ele, são os registros, sempre subjetivos, que para ele, e só para ele, possuem importância, que talvez nem um outro lugar, por melhor que possa parecer para os outros, poderá para ele o ser. Para dar conta desse desamparo vivenciado por se encontrar longe do seu território, e que é causa de sofrimento, a proposta de uma multiterritorialidade, sobre a qual nos fala Haesbaert (2005) se oferece como uma possibilidade do velho reconstruir gradativamente os laços na tentativa de dar continuidade a sua história: Multiterritorialidade aparece como uma resposta a esse processo identificado por muitos como “desterritorialização”: mais do que a perda ou o desaparecimento dos territórios, propomos discutir a complexidade dos processos de (re)territorialização em que estamos envolvidos, construindo territórios mais múltiplos ou, de forma mais adequada, tornando muito mais complexa nossa multiterritorialidade. 24 De forma que se para o velho a mudança de ambiente é inevitável pelas mais diferentes razões, ainda assim é possível se oferecer outras possibilidades de inserção social. Aonde falta a sustentação real do lugar conhecido, a palavra, o toque, o cuidado, podem se colocar como orientação. Da mesma forma, alguns objetos que sejam significativos para o velho, podem vir compor o ambiente com a função de aproximá-lo da realidade, servindo também de amparo e proteção. 25 CAPÍTULO III O PROCESSO DE ASILAMENTO E DESAMPARO Tocando em Frente (Almir Sater) Ando devagar por que já tive pressa E levo esse sorriso por que já chorei demais Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, Só levo a certeza de que muito pouco eu sei Nada sei. Conhecer as manhas e as manhãs, O sabor das massas e das maçãs, É preciso amor pra poder pulsar, É preciso paz pra poder sorrir, É preciso a chuva para florir Penso que cumprir a vida seja simplesmente Compreender a marcha e ir tocando em frente Como um velho boiadeiro levando a boiada Eu vou tocando dias pela longa estrada eu vou Estrada eu sou. Conhecer as manhas e as manhãs, O sabor das massas e das maçãs, É preciso amor pra poder pulsar, É preciso paz pra poder sorrir, É preciso a chuva para florir. Todo mundo ama um dia todo mundo chora, Um dia a gente chega, no outro vai embora Cada um de nós compõe a sua história Cada ser em si carrega o dom de ser capaz E ser feliz. Conhecer as manhas e as manhãs O sabor das massas e das maçãs É preciso amor pra poder pulsar, É preciso paz pra poder sorrir, É preciso a chuva para florir. Ando devagar porque já tive pressa E levo esse sorriso porque já chorei demais Cada um de nós compõe a sua história, Cada ser em si carrega o dom de ser capaz E ser feliz. Conhecer as manhas e as manhãs, O sabor das massas e das maçãs, É preciso amor pra poder pulsar, É preciso paz pra poder sorrir, É preciso a chuva para florir. 26 Apesar de toda a evolução da nossa sociedade, que nos surpreende a cada dia com a criação de novas tecnologias, os asilos continuam sendo o lugar para onde vão os velhos quando o cuidado na família não se apresenta mais como uma alternativa. Os asilos, também denominados de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) surgem ligados a ideia de amparar aqueles que não tem mais a quem recorrer. A caridade norteia a proposta, prestar socorro aos velhos que se encontram em situação de pobreza e exclusão social, em um caráter puramente assistencialista. O surgimento de instituições para idosos não é recente. O cristianismo mostrou-se o pioneiro no cuidado aos velhos. De acordo com Alcântara Ao. (2004): “Há registros de que o primeiro asilo foi fundado pelo Papa Pelágio II (520-590), que transformou sua casa em hospital para velhos”. Existem hoje várias denominações para os lugares que se oferecem para receber os velhos. Conforme a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (2003): Define-se asilo como casa de assistência social para onde são recolhidas, para sustento e também para educação, pessoas pobres e desamparadas, como mendigos, crianças abandonadas, órfãos e velhos. Considera-se ainda asilo o lugar onde ficam isentos da execução das leis os que a ele se recolhem. Relaciona-se assim, a ideia de guarita, abrigo, proteção ao local denominado de asilo, independentemente do seu caráter social, politico ou de cuidados com dependências físicas e/ou mentais. Devido ao caráter genérico dessa definição outros termos surgiram para denominar locais de assistência a idosos como, por exemplo, abrigo, lar, casa de repouso, clinica geriátrica e ansionatto. Procurando-se patronizar a nomenclatura, tem sido proposta a denominação de Instituições de Longa Permanência para idosos (ILPIs), definindo-as como estabelecimento para atendimento integral a idosos, dependentes ou não, sem condições familiares ou domiciliares para sua permanência na sua comunidadede origem. Esta vasta nomenclatura que tenta dar conta de denominar os asilos de velhos, vem nos dizer do não-lugar que a velhice ocupa no social. Dela não se fala e quando se fala esta sempre relacionada ao negativo, ao sem-valor. Conforme Brum (2012): Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também do idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. 27 Podemos constatar um crescimento do número de lugares que se destinam a receber os velhos. Muitos deles possuem filas de espera. Esse aumento parece vir na contramão da proposta da desinstitucionalização, da não internação para sempre. Se no campo da saúde mental o tratamento e a forma de cuidar evoluíram na tentativa de dar visibilidade e cidadania aquele que antes era apenas visto pela sua loucura, o mesmo não podemos falar no que se refere a velhice. Esta parece ainda condenada ao isolamento e a inexistência. Em relação as instituições de outrora, as que hoje se apresentam, com raras exceções, pouco evoluíram em relação a maneira de cuidar e acolher o velho. A ideia ainda é o assistencialismo, e muito pouco se pensa na promoção do sujeito. Beauvoir (1990, p. 312-317) sobre as condições dos asilos da sua época, assim se refere: Quando não podem mais sustentar-se, física e economicamente, o único recurso dos velhos é o asilo. Na maior parte dos países, o asilo é absolutamente desumano: nada mais que um lugar para esperar a morte... as condições de vida em asilo não são as únicas responsáveis por isso: entre os velhos, a própria mudança de lugar, seja ela de que tipo for, frequentemente acarreta a morte. É antes o destino dos que sobrevivem que se deve deplorar. Num grande número de casos, pode-se resumir esse destino em algumas palavras: abandono, segregação, decadência, demência, morte. O que observamos, ainda hoje, é que nem sempre os lugares que recebem os idosos, possuem profissionais preparados para lidar com as demandas da velhice. Há ainda uma confusão entre velhice e doença e entre velhice e demência. O tratamento e os cuidados parecem ser únicos. Tratar o velho como se ele fosse uma criança, fazendo uso de diminutivos, infantilizando-o, é ignorar seu saber em relação ao mundo, é não respeitar sua experiência. Da mesma forma, não entender o que o processo de demência acarreta para a vida cotidiana do velho, pode levar a um agravamento da doença. A memória do velho, quando falha, precisa encontrar um anteparo, para que não venha a se perder ainda mais. Esse anteparo, essa sustentação pode vir pelo outro, no caso, aquele que cuida, de diversas formas, singulares a cada um. O que pode vir a funcionar como fator organizador não dá para se saber a priori. Poderá ser uma palavra, uma afirmação, um gesto, um objeto. Quem está ao lado do velho, quem o acompanha é que poderá saber. Por essa 28 razão, o perigo de se pensar a velhice como uma categoria, onde o que a define são parâmetros que servem a todos os sujeitos ditos velhos. Sobre esse aspecto, Bosi (1994, p. 80), citando o Dr. Repond, assim nos esclarece: Somos levados a nos perguntar se o velho conceito de demência senil, pretenso resultado de perturbações cerebrais, não se deva revisar completamente, e se essas pseudodemências não são resultados de fatores psicossociológicos agravados rapidamente, por colocação em instituições inadequadamente equipadas e dirigidas, como também por internações nos hospitais psiquiátricos, onde esses doentes muitas vezes abandonados a si mesmos, privados de estímulos psíquicos necessários, separados de todo o interesse vital, não tem a esperar senão um fim que se convém em desejar rápido. Nós chegaremos mesmo a pretender que o quadro clínico das demências senis talvez seja produto artificial, devido o mais das vezes à carência de cuidados e de esforço de prevenção e reabilitação. Como estamos vivendo mais, consequentemente envelheceremos mais, teremos da mesma forma mais doenças relacionadas ao envelhecimento. Poderemos também simplesmente envelhecer e, aproveitar esse ciclo natural da vida. Por essas razões a importância em se pensar na velhice e nos cuidados com a mesma. Deixando de lado a ilusão, que em nada contribui, de que a velhice é dos outros, e que nós não vamos envelhecer. A eterna juventude não existe, o sujeito, esse que é inconsciente, pode sim se manter ativo e desejante, esse, pode desejar viver enquanto a vida se oferece. Ao pensar nas razões que levam nossos velhos ter a sua velhice negligenciada Bosi (1994, p. 81): A noção que temos da velhice decorre mais da luta de classes que do conflito de gerações. É preciso mudar de vida, recriar tudo, refazer as relações humanas doentes para que os velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira. Para que nenhuma forma de humanidade seja excluída da humanidade é que as minorias têm lutado, que os grupos discriminados têm reagido. A mulher, o negro, combatem pelos direitos, mas o velho não tem armas. Nós é que temos que lutar por ele. Os asilos precisarão também passar por reformas, talvez da mesma forma que aconteceu com a reforma psiquiátrica. Se, mostra-se impossível desinstitucionalizar o velho, porque o desamparo seria ainda maior, aqueles que se 29 propõe a oferecer amparo precisam rever o modo de fazê-lo. Pensando sempre que o objeto de trabalho dos asilos é o sujeito velho, esse que em razão da sua velhice, merece por parte daqueles que se dispõe a protegê-lo principalmente respeito. Sobre como deveria ser o tratamento para com o velho na sua velhice, Bosi busca em Beauvoir (1990, p. 80): Durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas que nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significados a nossos gestos cotidianos. Talvez seja esse um remédio contra os danos do tempo. Mas, pondera Simone de Beauvoir, se o trabalhador aposentado se desespera com a falta de sentido da vida presente, é porque em todo o tempo o sentido de sua vida lhe foi roubado. Esgotada sua força de trabalho, sente- se um pária, e é comum que o escutemos agradecendo sua aposentadoria como um favor ou esmola. O sujeito velho de hoje, parece não contentar-se mais com o papel que lhe reservaram na sociedade e, aos pouco busca novamente ocupar um lugar que já foi seu, mesmo que para isso tenha que recorrer à lei. O Estatuto do Idoso se oferece como amparo ao velho, garantia que seus direitos serão assegurados. Mas, em contrapartida, isso nos leva a pensar que se precisamos de leis que venham a assegurar os direitos dos sujeitos velhos, é porque historicamente nossa sociedade os excluiu calando a sua voz e o seu fazer. Precisa-se, então recuperar esse tempo, permitindo que o velho ocupe o lugar que lhe é de direito de vir a ser outra vez o protagonista de sua história. 30 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse exercício de pensar sobre a velhice e, o que significa ser velho em nossa sociedade atual algumas questões se fizeram entendidas ao mesmo tempo em que outras se abriram. Entendendo que há ainda um longo caminho a ser percorrido nesse do se fazer velho. O modo de produção capitalista se utiliza do vigor da juventude para obter a mais valia e, quando o sujeito não dá mais conta de ser fonte de lucro é sumariamente dispensado pelo sistema que até então serviu. Mas já não serve mais, ele, o sistema, lhe diz. Se as tribos antigas abandonavam o velho a própria sorte para morrer, era porque a lei da natureza e a tradição fundavam as regras. O ritual era uma necessidadepara a sobrevivência dos demais, ainda que fosse uma crueldade. O rito de despedida e morte do ancião era revestido de representação simbólica, havia ali um sentido de finitude de um, no caso o velho, e de continuidade de seu legado no outro, o jovem, que viria ocupar o lugar que fora deixado pelo velho. Alguém iria continuar por ele. Hoje não é mais a tradição, muito menos a necessidade que fundam as relações entre as gerações. Essas, as relações são guiadas pelo mercado, pelo lucro e, porque não dizer pela ganância desenfreada que não vê limites para alcançar os objetivos a que se propõe, que é o de justamente lucrar mais e mais. Não temos tempo, é o discurso que mais se houve. Tudo fica então muito fugaz. O homem moderno é aquele que não tem tempo para se debruçar sobre o passado para recolher seus ensinamentos, prefere sempre olhar para frente em busca de novidades, essas, por sua vez, são tão efêmeras que sempre lhe fogem, deixando a ele uma sensação de esvaziamento, um não sentido, assim como é a sua vida. 31 Uma sociedade que não respeita seus velhos é uma sociedade sem memória e, portanto sem história. Se não aprende com aqueles que já vivenciaram os fatos, tende a repetir os erros. Simplesmente vive, mas não registra nada como experiência. Essa é subjetiva e necessita de elaboração para que fique registrada no inconsciente. A modernização parece que não apresentou novidades em relação ao entendimento da velhice. Tudo o que se apresenta para essa fase da vida de um sujeito remete a superficialidade, ao engano da velhice e, são voltadas ao puro do corpo. Um corpo que a modernidade entende como corpo real, que não passa pelo registro da simbolização. Por essa via da negação da velhice, proliferam em nosso meio os serviços que prometem que se envelheça sem que no corpo apareçam os sinais típicos dessa fase. Diante do horror ao corpo envelhecido, chegamos ao absurdo de mesmo ainda na juventude, tentar frear a passagem do tempo com o uso totalmente desnecessário de cirurgias plásticas que descaracterizam o corpo. Se para nos tornarmos sujeitos modernos superamos muitos tabus e suplantamos a barbárie, em relação a velhice, podemos pensar que ela continua sendo um grande enigma. Sobre ela poucos se atrevem a falar e, muito menos a se deixar levar pela beleza e doçura que pode representar essa fase da vida. Paralisados diante dos apelos do social, que exige dos velhos um lugar que estes não podem ocupar, deixamos de reconhecer a importância da passagem do tempo como algo constitutivo que entrelaça o sujeito à sua história. História que só poderá ser entendida pela sucessão dos acontecimentos, que envolvem o tempo, o espaço e o homem, provocando mudanças que permitem a sociedade avançar. Essa sociedade que hoje se apresenta necessita muito ainda avançar em relação aos seus velhos. Talvez estamos dando os primeiros passos. Lentos, mas mesmo assim representam um movimento na direção de uma nova forma de olhar a velhice. Fase natural de vida, desde que forçosamente não seja desnaturalizada. 32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCANTARA, A. O. Velhos institucionalizados e família: entre abafos e desabafos. Campinas: Alinea, 2004. ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000. BEAUVOIR, S. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BRUM, E. Me chamem de velha... Revista Época, 20/02/2012. 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