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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA Salvador 2005 MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Professor Doutor Saulo José Casali Bahia Salvador 2005 ___________________________________________________________________ S192 r Sampaio, Maurício Souza Representação política e institutos de participação direta / Maurício Souza Sampaio. – Salvador, 2005. 200 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito, 2005. Orientador: Professor Doutor Saulo José Casali Bahia 1. Representação Política. 2. Política. 3. Democracia. 4. Estado. 5. Referendo. 6. Forma de Governo. 7. Regime Político. I. Bahia, Saulo José Casali (Orientador). II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito. III.Título. CDD - 320 ___________________________________________________________________ TERMO DE APROVAÇÃO MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora: Nome: Saulo José Casali Bahia Titulação: Doutor em Direito pela PUC/SP Nome: Titulação: Nome: Titulação: Conceito: Salvador, A Claudia, minha esposa, pela paciência e incentivo. Dida, minha mãe, por ter me oportunizado estudar e aprender. Só existem dois dias em que nada pode ser feito: um se chama ontem, o outro amanhã. Dalai Lama RESUMO Essa dissertação tem como proposta uma análise da Democracia Semidireta no Brasil pautada numa suposta crise, causada pelos problemas atuais da representação política e pelos limites dos instrumentos de participação direta. Para iniciar, faz-se necessário fazer uma abordagem do que é estado e seus elementos estruturais: formas de governo; povo, participação e cidadania; regimes políticos, aludindo-se com especificidade à Democracia Semidireta, que é o caso brasileiro, suas características, conceitos, histórico, institutos etc. Diante disso, caberá uma análise mais específica e profunda da representação política e suas características, voltando-se principalmente à demonstração da grave crise por que passa essa parte da Democracia Semidireta, além de abordagens acerca dos mecanismos propostos pela legislação à participação popular, especificamente, nas atividades legislativas: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular e suas limitações, tanto as formais quanto as materiais, impostas pela legislação à participação direta da população, o que gera, desta forma, a contestação do Brasil como verdadeira Democracia, em virtude da falta de uso efetivo, como deveria ser, dos institutos acima mencionados e do desvirtuamento da representação política. O objetivo do texto é, portanto, tentar demonstrar que, em razão da excessiva gama de limitações aos mecanismos de participação direta da população e de toda problemática da representatividade, a definição do Regime Político da Constituição Federal brasileira, de 1988, como Democracia Semidireta, ou mesmo como uma Democracia, torna-se discutível e contestável. Palavras-Chave: Estado; Formas de Governo; Regime Político; Democracia; Participação; Cidadania; Representação Política; Plebiscito; Referendo; Iniciativa Popular; Crise Democrática. ABSTRACT The purpose of this thesis is to analyze the phenomenon of semi-direct democracy in Brazil based on the pressupposition that a political crisis has been created by the existing problems in the actual system of political representation as well as by the limitations caused by the actual instruments of direct democratic participation. The thesis begins with a definition what is the state and the elements of its government: governmental forms; people, participation and citizenship; political regimes, all contextualized in specific reference to semi-direct democracy, with these characteristics utilized principally to demonstrate the serious crisis through which semi-direct democracy passes in Brazil. Also included are descriptions of the mechanisms proposed by current legislation to increase popular participation, specifically in legislative activities: the plebiscite, the referendum as well as other popular initiatives and their limitations, formal as well as material, with the direct participation of the population a goal imposed by current legislation. This generates the question of whether Brazil is truly a democracy, in virtue of its lack of effective use of these institutions and consequent depreciation of true political representation. The objective of the discussion is, as a result, to demonstrate that, in view of the excessive range of limitations on the mechanisms for direct participation as well the range of problems associated with concept representation in Brazil, the definition of political regime of the Brazilian Federal Constitution of 1988 as semi-direct democracy, or even as pure Democracy, becames questionable. Keywords: State; Governmental Forms; Political Regime; Democracy; Participation; Citizenship; Political Representation; Plebiscite; Referendum; Popular Initiative; Democratic Crisis. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 09 2 O ESTADO E SUAS FORMAS DE GOVERNO 12 2.1 O ESTADO 12 2.2 AS FORMAS DE GOVERNO 17 3 O POVO 34 3.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 34 3.2 ASPECTOS RELEVANTES À DEMOCRACIA 40 4 PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA 51 4.1 OS ASPECTOS TEÓRICOS DA PARTICIPAÇÃO 51 4.2 A CIDADANIA 57 4.2.1 Contextualização Histórica 57 4.2.2 Contextualização Teórica 60 5 ESPÉCIES DE REGIMES POLÍTICOS 63 5.1 REGIMES NÃO DEMOCRÁTICOS 65 5.2 A DEMOCRACIA 70 5.2.1 O Princípio Democrático 70 5.2.2 O Princípio do Discurso e o Princípio Democrático 80 5.2.3 Origem e desenvolvimento 84 5.2.4 Conceito e aspectos gerais 88 5.2.5 Espécies de democracia 92 6 INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA 112 6.1 A REPRESENTAÇÃO 112 6.2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR DIRETA 114 6.2.1 O Plebiscito 119 6.2.2 O Referendo 121 6.2.3 A Iniciativa Popular 124 7 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL 137 8 A CRISE DA DEMOCRACIA 142 8.1 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E SUA CRISE 143 8.1.1 A Regra da Maioria 1528.1.2 Os Partidos Políticos e os Grupos de Pressão 155 8.2 LIMITAÇÕES AOS INSTITUTOS DA DEMOCRACIA DIRETA 162 8.2.1 Limitações à Iniciativa Popular 162 8.2.2 Limitações ao Plebiscito e ao Referendo 181 8.2.3 Comissão Permanente de Legislação Participativa 186 9 CONCLUSÃO 190 REFERÊNCIAS 196 10 1 INTRODUÇÃO Quando se faz uma análise reflexiva sobre a democracia dos tempos atuais no Estado brasileiro, principalmente aquela alcançada depois do período de dominação militar que culminou em um novo texto constitucional, a referência mais forte que se tem dela é a estabelecida na própria Constituição Federal de 1988, quando em seu art. 1º expõe que o Brasil é um “Estado Democrático de Direito” (grifo nosso). Junto a isso, o parágrafo único desse mesmo artigo coloca que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifo nosso). Nota-se, portanto, que o regime político estabelecido por esta Constituição está vinculado à idéia de uma democracia denominada de semidireta, ou seja, uma combinação de formas de democracia direta com a democracia representativa. Ainda de acordo com o texto constitucional, o inciso II do mesmo art. 1º expõe que um dos fundamentos desse Estado Democrático de Direito é a cidadania que, baseada em seu sentido estrito, é um vínculo político, próprio do nacional no exercício de seus direitos políticos, que lhe confere o direito de participar da formação da vontade política do Estado. Assim, os atributos da cidadania vinculados ao regime político adotado pelo Brasil conferem ao indivíduo a possibilidade de participar da vida política do Estado, seja através da representatividade política, seja pela utilização dos mecanismos de participação direta na atividade de produção de leis e de políticas governamentais, que se dão mediante a utilização da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo. 11 Acontece que o desvirtuamento do real propósito da representação política, causado por inúmeras práticas moralmente e juridicamente irregulares, junto à falta de utilização efetiva e satisfatória dos instrumentos de participação direta terminam gerando dúvidas acerca da inclusão do Estado brasileiro como uma verdadeira democracia. A representação política está desacreditada e a prova disso é o momento de degradação por que vem passando o Congresso Nacional. Além disso, no decorrer da história até os dias atuais, na vigência da Constituição de 1988, não houve no Brasil o uso regular dos institutos do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de leis, como mecanismos de participação direta. Surgem, assim, alguns questionamentos: o que vem acontecendo atualmente com a política brasileira permite afirmar que no Brasil há uma verdadeira Democracia Representativa? Existe hoje, com base na Constituição Cidadã de 1988 e nas normas infraconstitucionais, o efetivo uso dos mecanismos de participação direta acima citados? A insuficiência desses mecanismos ou mesmo a falta de utilização pela população, em razão das excessivas limitações impostas pela legislação, e ainda a inexistência de uma representatividade política pautada na vontade da maioria, não estariam decretando a ruína do caráter de Democracia Semidireta da Constituição de 1988? Todas essas questões surgidas serão devidamente analisadas e respondidas no decorrer do texto que se segue, o qual, para que se possa chegar à conclusão ora suscitada, contará uma exposição de temas importantes, tais como: a compreensão do que é estado e suas formas de governo; o entendimento do que seja povo, participação e cidadania; abordagem profunda dos regimes políticos existentes, principalmente da democracia, com seus principais aspectos, 12 características, conceitos e espécies; análise teórica e de dados para a comprovação do ponto principal do texto: o Brasil, na prática, não é uma Democracia, apenas o é na teoria. 13 2 O ESTADO E SUAS FORMAS DE GOVERNO 2.1 O ESTADO Sempre houve muita dificuldade em se achar uma definição satisfatória de “Estado”. Autores como Hans Kelsen e Hegel fazem parte dos inseridos nessa controvérsia. Para o último, seria mais fácil conhecer a natureza e seus mistérios do que a sociedade humana e seus problemas, já Kelsen propunha uma conversão da expressão “Estado” a um juízo de valor, vez que as acepções dessa palavra não permitem uma precisão conceitual. Em relação à época do aparecimento do Estado, existem algumas teorias que tentam explicá-lo: a primeira consiste em afirmar que o Estado, assim como a própria sociedade, sempre existiu, pois desde que o homem vive sobre a Terra acha-se integrado numa organização social, dotada de poder e autoridade para determinar o comportamento de todo o grupo; a segunda posição admite que a sociedade humana existiu sem o Estado durante um certo período, e que depois, por diversos motivos, o Estado foi constituído para atender às necessidades ou às conveniências dos grupos sociais; a terceira é aquela que só admite como Estado a sociedade política dotada de certas características muito bem definidas, como por exemplo, o aparecimento da idéia e da prática da soberania, a pluralidade de autonomias que aparecem no mundo medieval, etc. O certo é que essa ordem política da sociedade, chamada de Estado, já é conhecida desde muito tempo, embora nem sempre possuindo essa mesma denominação. 14 Houve época em que o Estado era formado por um conjunto confuso, sem diferenciação aparente, entre a família, a religião, o Estado e a organização econômica. Isso se deu nas localidades do Oriente ou do Mediterrâneo. Há duas características marcantes nesse período: a natureza unitária, pois esse Estado sempre aparece como uma unidade geral, não admitindo qualquer divisão interior, nem territorial, nem de funções, mas, talvez, esse tenha sido um expediente que efetivamente não tenha ocorrido; e, a religiosidade, afirmando-se a autoridade dos governantes e as normas de comportamento individual e coletivo, como expressão da vontade de um poder divino. Aqui há uma estreita relação entre o Estado e a divindade. O Estado Grego, embora não se tenha notícia da existência de um Estado único que englobe toda a civilização, já que era dividido em vários reinos, como o da Macedônia, por exemplo, tem algumas características fundamentais, principalmente entre os dois principais Estados, Atenas e Esparta, sendo a principal delas a “cidade-estado”, ou seja, a polis, como a sociedade política de maior expressão, tendo a auto-suficiência como o ideal buscado. Quando um Estado Grego era tido como democrático, parte restrita da população chamada de cidadãos é que participava das decisões políticas, o que influía também na manutenção das características de cidade-estado. O Estado Romano é marcado pelo fato de ter alcançado grande expansão territorial, o que ocasionou dificuldades para se chegar a uma uniformização. Apesar disso, Roma manteve, principalmente no seu início, as características de cidade- estado, mantendo-se organizado através de uma base familiar. Desde o Estado Romano primitivo, a civitas tem origem de grupos familiares (a gens). 15 Como no Estado Grego, no Romano, durante muito tempo, o povo participava diretamente do governo, mas a noção de povo era muito restrita, compreendendo apenas uma pequenafaixa da população. Mais tarde, depois de lenta e longa evolução, outras camadas sociais foram adquirindo direitos, aparecendo, então, uma nobreza tradicional. Com isso, já despontava a idéia de Império. A idéia de Estado em Roma era representada, agora, mediante o uso das expressões imperium e regnum, que indicavam uma organização de domínio e poder. Eis aí a que se reduzia, pois, o Estado Antigo: numa extremidade, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente; noutra, a onipotência consuetudinária do Direito ao fazer suprema, em certa maneira, a vontade do corpo social, qualitativamente cifrado na ética teológica da polis grega ou no zelo sagrado da coisa pública, a res publica da civitas romana (BONAVIDES, 2003a, p. 20). Com a queda do Império Romano, o modelo de governo da Antigüidade Clássica teve seu fim decretado. Surge, então, a espécie de governo mais conhecida por todos, denominada agora de “Estado”. O sentido aqui atribuído é o de uma instituição possuidora de coerção e geradora da unidade de um sistema normativo com plena eficácia. Esse é o Estado na Idade Média ou Estado Medieval, tendo laender como o termo que traduz essa idéia, significando “países” e se restringindo a uma órbita estritamente territorial. Os principais elementos que se fizeram presentes na sociedade política medieval para a caracterização desse Estado foram o cristianismo, como a base de aspirações à universalidade; as invasões bárbaras, como agente da queda do império romano e de grandes transformações sociais e culturais; e o feudalismo, como modelo de mudança econômica. Nicolau Maquiavel, florentino nascido em 03 de maio de 1469, é que vem empregar, modernamente, a expressão “Estado” dentro de sua obra “O Príncipe”, 16 escrita em 1513. Aqui se fala em um Estado que começa a sair da Idade Média, chamado por alguns de Estado Moderno. Esse Estado Moderno possui uma imprecisão temporal muito clara, vez que é impossível se precisar quando ele realmente teve seu início. Durante os séculos XVI e XVII a expressão foi sendo admitida em escritos franceses, ingleses e alemães. Diante dos diferentes pontos de vista para afirmar o verdadeiro momento do aparecimento do “Estado” e das divergências para se chegar a uma conceituação objetiva, como mencionado no primeiro parágrafo, alguns estudiosos o caracterizam seguindo diferentes acepções. A primeira, em referência, é a concepção filosófica, o “Estado ético- cultural1” trazido por Hegel (1952, apud BONAVIDES, 2000, p. 62-63), que sintetiza o Estado como valor social mais alto, conciliando a contradição Família e Sociedade, sendo uma instituição que está somente abaixo do absoluto, como a arte, a religião e a filosofia. De fato, o Estado é um todo orgânico, no qual todas as articulações são necessárias, como num organismo. Ele é um todo orgânico de natureza ética. O que é livre não tem indivíduos: concede-lhes momentos de construção, e, não obstante, o universal conserva a força que mantém essas determinações unidas a si (HEGEL, 1952, apud BOBBIO, 1997, p. 149). A jurídica, segunda acepção a que se faz referência, é expressa através da idéia de Immanuel Kant (1954, apud BONAVIDES, 2003a, p. 85), segundo a qual o Estado é uma abstração, é isento de elementos históricos e independente do arbítrio humano. O Estado para Kant é um fato absoluto e não apenas um fenômeno 1 “A realidade da idéia ética, da vontade substancial, em que a consciência mesma do indivíduo se eleva à comunidade e, portanto, ao racional em si e para si”. É assim que se constitui o Estado para a filosofia hegeliana (HEGEL, 1952, apud BONAVIDES, 2003a, p. 92). 17 histórico ou uma realidade concreta no tempo, ou seja, ele separa o problema estatal de toda uma causalidade temporal. A terceira e última acepção se remonta a uma idéia sociológica. Aqui, uma parte considerável dos pensadores liga o Estado ao aspecto coercitivo, assinalando que essa instituição é toda sociedade humana onde há diferença entre governantes e governados, fortes e fracos, ocorrendo, assim, uma dominação dos primeiros, como titulares do poder coercitivo, sobre os outros (BONAVIDES, 2000, p. 64). Percebe-se que encontrar um conceito para “Estado” que satisfaça a todas as correntes é absolutamente impossível, dada à complexidade desse ente que pode ser abordado sob diversos pontos de vista. Uma conceituação bastante clara e talvez até concludente é a trazida por De Plácido e Silva, baseada na etimologia da palavra. Neste sentido a expressão “Estado” deriva do latim status (estado, posição, ordem, condição) e possui, distintamente, sentidos próprios no Direito Público e no Direito Privado. O sentido que mais interessa é o primeiro, que significa: o agrupamento de indivíduos, estabelecidos ou fixados em um território2 determinado e submetidos à autoridade de um poder público soberano3 que lhe dá autoridade orgânica. É a expressão 2Território “é o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de império sobre pessoas e bens”. Esse é o conceito de Alexander Groppali trazido por José Afonso da Silva (2002, p.98). Segundo Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 76), “o território estabelece a delimitação da ação soberana do Estado”. 3 A palavra soberania tem dois sentidos, segundo Dalmo Dallari (ibid., p. 68), o primeiro é o político, que conceitua soberania como “o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”; o segundo, o jurídico, conceituando soberania como “o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito”. No entanto, Miguel Reale (1960, p. 127) conceitua soberania como “o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”, não separando, portanto, os aspectos sociais, jurídicos e políticos. Jean Bodin (apud BOBBIO, 1997, p. 96), conhecido como o teórico da soberania dentro da história do pensamento político, expõe que “por soberania se entende o poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado”. 18 jurídica mais perfeita da sociedade4, mostrando-se também a organização política de uma nação5, ou um povo6 (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 627). Mas, se o enfoque principal no conceito de Estado for o componente jurídico, Dalmo Dallari (1991, p. 101) o conceitua como "a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”. 2.2 AS FORMAS DE GOVERNO A importância de se chegar a um conceito definitivo e conclusivo de Estado não é o objetivo central desta primeira parte da exposição, apesar de existir a necessidade de um breve e prévio entendimento sobre o que seja Estado, para se compreender o restante. O que verdadeiramente se mostra de grande valia para a compreensão pretendida é a definição das formas de governo que a partir de agora passará a ser estudada. A caracterização das formas de governo é fornecida pela organização das instituições onde atuam o poder soberano do Estado e suas relações. Há grande divergência entre os autores no que diz respeito à expressão “Forma de Governo”, embora a maior parte deles entenda que esta expressão é sinônima de “Regime Político”. Duverger (1962, p. 9-10), inclusive, dá preferência à segunda, fazendo uma distinção entre regime político em sentido amplo, que indica a forma que, em um 4 Sociedade “é ummeio em que os indivíduos fatalmente vivem. E pode ter sentido equivalente a nação ou a estado, desde que se encontra em qualquer espécie de agrupamento ou associação, seja juridicamente ou politicamente organizada” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 628). 5 Nação “indica agrupamento, quando se mostra unido por uma afinidade de tradição, idioma, costumes e religião, fundado na consciência de uma nacionalidade; mas, nem sempre se exibe na organização política, geradora do Estado, pois pode este ser constituído por mais de uma nação” (ibid., p.628). 19 determinado grupo social, assume a distinção entre governantes e governados, e regime político em sentido estrito, aplicável somente à estrutura governamental chamada de Estado. Há autores, no entanto, que fazem uma distinção diferente, permitindo a identificação de espécies distintas como regime político, forma de Estado e sistema de governo. A primeira referente à estrutura global da realidade política; a segunda afetando a estrutura da organização política; e a terceira tipificando as relações entre as instituições políticas. Porém, a expressão “forma de governo” é mais precisa quando quer se referir à estrutura e às relações dos órgãos de governo (DALLARI, 1991, p. 188). Todavia, há também outra grande confusão em torno das expressões “Forma de Governo” e “Forma de Estado”. Os alemães se referem, baseando-se nas classificações mais tradicionais, à monarquia, à aristocracia e à democracia, como “Formas de Estado” (Staatsformen), diferentemente dos franceses que se utilizam da expressão “Forma de Governo” para se referir aos mesmos institutos. Segundo Paulo Bonavides (2000, p. 192), a nomenclatura francesa é a mais adequada, e nessa linha segue o autor, uma vez que “Formas de Estado” são a sociedade de Estados, como o Estado Federal e a Confederação, conhecidos como forma plural de Estado; e o estado simples ou unitário, conhecido como forma singular de Estado. No Brasil a distinção se dá como na França. As formas de Estado se restringem ao modo pelo qual o Estado se estrutura, classificando-se em simples ou unitário, sendo este o Estado que possui uma unidade de poder político interno, cujo exercício ocorre de maneira centralizada e onde qualquer grau de descentralização 6 Povo “é um agrupamento humano ou de indivíduos, o qual nem sempre se apresenta com a unidade orgânica e jurídica, que é caráter do Estado” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 628). 20 depende da anuência do poder central; e em plural, composto ou complexo, no qual há uma pluralidade de poderes políticos internos. Já as Formas de Governo, que se dão pelo modo de organização política do Estado e pelo funcionamento do poder estatal, são determinadas segundo critérios relacionados à sua natureza. O primeiro critério, o do número de titulares do poder soberano, fazendo- se referência ao “quem”, foi proposto por Aristóteles e por outros autores que também adotaram posteriormente a mesma classificação com pequena variações. Os outros critérios, que são mais recentes, são, respectivamente, o da separação dos poderes e o dos princípios essenciais das práticas de governo. O referente à separação de poderes é apoiado na teoria de Montesquieu, dominando todo o período do Liberalismo. O último critério é o totalmente contemporâneo, sendo uma reação à rigidez do critério anterior, que se preocupava mais com a simples forma do que com o fundo das instituições (BONAVIDES, 2000, p. 193). Muito embora haja uma grande amplitude destes critérios, as classificações mais tradicionais são as que possuem maior relevância doutrinária. Diante desta afirmativa, tradicionalmente, as tipologias das formas de governo dão-se início na discussão entre três persas, Otanes, Megabises e Dario, proposta por Heródoto, na sua obra “História”. A importância dessa passagem se dá pelo fato de esses personagens se referirem, cada um, a uma das três formas de governo clássicas, que são o governo de muitos, de poucos e de um só: democracia, aristocracia e monarquia, respectivamente. 21 Otanes propôs a entrega do poder ao povo persa, portanto, é partidário da democracia. Megabises seguiu a linha do governo oligárquico. Já Dario se manifestou em favor do governo de um só, a monarquia, contestando as outras formas já expostas. Segundo ele, numa oligarquia é fácil nascer conflitos pessoais entre aqueles que formam o governo. Todos querendo ser chefe, surgindo facções e delas os delitos e estes levam à monarquia, provando ser esta a melhor forma de governo. Quando governa o povo, ainda para Dario, é impossível não haver corrupção, não provocando inimizades, mas sólidas alianças entre os mal intencionados. Por isso é que, para ele, a monarquia é a melhor forma de governo (BOBBIO, 1997, p. 39-41). Platão, em sua obra “A República”, diferentemente da concepção de Heródoto, inclui só formas más de formas de governo, mas não com a mesma intensidade. Para Heródoto, as formas são realizáveis na história, já para Platão, a forma boa ultrapassa a história, não podendo ser realizada. As formas corrompidas de Platão são a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania, faltando duas das formas tradicionais, a monarquia e a aristocracia. Mesmo assim, Platão aceita que haja seis formas de governo, reservando duas para a constituição ideal e quatro para as formas reais que se afastam da forma ideal. As quatro formas corrompidas se referem à oligarquia, que é a forma ruim de aristocracia; à democracia, que teria uma forma ideal, positiva, e outra negativa; e por fim à tirania, sendo a forma ruim de monarquia. A timocracia, palavra que se origina da expressão timé, que significa “honra”, é uma forma introduzida por Platão para designar a transição entre a forma ideal e as três formas corrompidas. 22 Nesta representação de Platão há apenas um movimento descendente para as formas de governo, ou seja, as três formas boas são postas em uma determinada posição (monarquia, aristocracia e democracia), e as más em uma posição inversa (democracia, oligarquia e tirania). Platão não explica se a partir desse ponto ocorre um retorno, nem de que maneira. O certo é que a democracia está ao mesmo tempo no fim da série “boa” e no começo da série “má”, ou seja, a democracia é a pior das formas boas e a melhor das formas más, fazendo um contínuo na concepção de Platão (BOBBIO, 1997, p. 54). Portanto, as seis formas aceitáveis para Platão são a monarquia, a aristocracia, a democracia positiva, a democracia negativa, a oligarquia e a tirania, sendo que as três primeiras são as ideais, mas não as reais. A teoria clássica das formas de governo é aquela trazida por Aristóteles (2002, p. 185) em sua classificação: monarquia, aristocracia e democracia. A monarquia, conhecida como o governo de um só, está relacionada à unicidade da organização do poder político. Essa expressão vem da palavra grega monarkia que é a junção de mono (um) com arché (governo) e se caracteriza pela vitaliciedade, hereditariedade e irresponsabilidade do chefe de Estado. O monarca governa enquanto viver, e sua escolha é feita dentro da linha de sucessão dinástica. Portanto, o poder político está concentrado nas mãos de uma só pessoa, sendo exercido por ela, mas podendo ser delegado. Em oposição à monarquia surgem a aristocracia e a democracia. A aristocracia significa o governo de alguns, o governo dos melhores e se origina da palavra grega aristocratia.Segundo Paulo Bonavides (2000, p. 193), esta expressão está ligada à idéia de força, força entendida de modo qualitativo, ligada, 23 portanto, à cultura e à inteligência, força dos melhores, daqueles que dirigem o governo. Neste caso, o governo ou autoridade está nas mãos de uma classe, constituída por pessoas que se consideram formadoras de uma casta ou elite, em razão de sua nobreza, fortuna, bravura, talento ou por qualquer outro meio que as distingam do restante da sociedade. Pode ser, ainda, a aristocracia, eletiva ou hereditária, se os membros do governo forem escolhidos dentro de uma classe, ou se está concentrado dentro de uma ou várias famílias, fazendo com que somente o nascimento dê direito à sucessão política, excluindo-se todos que não forem descendentes delas. A democracia, última espécie classificatória de Aristóteles, opõe-se tanto à monarquia, por ser uma forma de governo plural, quanto à aristocracia, pois o poder soberano não repousa numa simples classe, mas no próprio povo. Toda a descrição e classificação das formas de governo de Aristóteles são trazidas dentro de sua obra “Política”, nos livros três e quatro. O termo utilizado por ele para se referir à “forma de governo” é politeia, que, na verdade, significa “constituição”. “A constituição mesma é governo” (ARISTÓTELES, 2002, p. 87). Considerando-se que as palavras constituição e governo querem dizer a mesma coisa, considerando-se que o governo é autoridade suprema nos Estados e que, necessariamente, tal autoridade suprema deve ficar nas mãos de um apenas, ou de diversos, ou de uma multidão, se sirvam da autoridade com vistas ao interesse coletivo, a constituição é pura e sadia, obrigatoriamente; em vez disso, se se governa pensando no interesse particular, quer dizer, no interesse de um apenas, ou de muitos, ou da multidão, a constituição é viciada e corrompida; [...] (ARISTÓTELES, 2002, p. 89). Aristóteles formula brevemente a teoria das seis formas de governo de Platão. Para isso ele se utiliza de dois critérios simultaneamente: quem governa e como governa. No primeiro, as constituições podem ser distinguidas se o poder está numa só pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia), e em muitas 24 (politia, que significa a boa democracia). No segundo critério, as constituições (forma de governo) podem ser boas ou más, gerando das três primeiras boas outras três más (a tirania, a oligarquia e a democracia). Como já se sabe, monarquia significa governo de um só, mas na teoria de Aristóteles quer dizer “governo bom de um só”, correspondendo a este um governo mau de um só, a tirania, porque busca somente o interesse do monarca. A oligarquia corresponde ao governo mau de poucos, porque vê apenas o interesse dos ricos, contrapondo-se ao governo bom de poucos, a aristocracia. E, por fim, ele utiliza a expressão “politia” para designar o bom governo de muitos, contrariamente a democracia, que significa o governo mau de muitos, buscando apenas o interesse dos pobres. Assim, as formas boas são aquelas em que os governantes visam ao interesse comum, e nas más visam ao interesse próprio. Aristóteles adota um critério numérico para distinguir a oligarquia da democracia: a diferença entre ricos e pobres. [...]: a real diferença entre democracia e oligarquia reside na pobreza e na riqueza; é necessário que todas as vezes que a riqueza chega ao poder, com a maioria ou sem ela, haja oligarquia, a democracia, quando os pobres chegam ao poder. Acontece, entretanto, como dissemos, que em geral os ricos formam minoria e os pobres maioria; a opulência pertence a uns, porém a liberdade é de todos. Essa é a razão das diferenças eternas entre uns e outros, quanto ao governo (ARISTÓTELES, 2002, p. 91). Bobbio (1997, p. 57) acha estranha a utilização da terminologia politia usada por Aristóteles, uma vez que está derivada de outra expressão, politeia, que significa “constituição”, sendo, portanto, um termo muito genérico e pouco específico. A melhor forma desta última classificação de Aristóteles seria a utilização da expressão “democracia” tanto para a forma boa como a má de governo de muitos, como fez Platão. 25 Para Aristóteles, portanto, numa escala hierárquica, as formas de governo se colocam da seguinte maneira: monarquia, aristocracia, politia, democracia, oligarquia e tirania, sendo que a pior forma, a tirania, é a degeneração da melhor, a monarquia e assim sucessivamente. Expõe ainda ele que o regime mais propício para assegurar a paz social seria a fusão da oligarquia com a democracia e isso seria chamado de “política”, ou seja, a fusão constituiria um regime em que a união dos ricos e dos pobres remediaria as causas dos conflitos sociais (ARISTÓTELES, 2002, p. 91 e ss). E conclui: Afirmamos que existem três bons governos; o melhor é necessariamente o administrado pelos melhores chefes. Assim é o Estado onde se acha um indivíduo apenas sobre toda a massa dos cidadãos, ou uma família toda, ou até um povo inteiro que possua uma virtude excelsa, uns sabendo obedecer, outros ordenar, visando à maior soma de ventura possível. Deixamos demonstrados também que, no governo perfeito, a virtude do homem de bem é necessariamente aquela do bom cidadão. É, portanto, notório também que com os mesmos meios e as mesmas virtudes que formam o homem de bem, formar-se-á, do mesmo modo, um Estado aristocrático ou monárquico. Desse modo, a educação e os costumes que constituem os cidadãos serão pouco mais ou menos iguais aos que constituem o rei e o cidadão (ARISTÓTELES, 2002, p. 114-115). A terceira grande obra em importância para a teoria das formas de governo na Antigüidade clássica, além dos textos de Platão e Aristóteles, foi “História” de Políbio. Para ele existem seis formas de governo, três boas e três más, representando o uso sistemático das formas de governo. Essas seis formas se sucedem uma às outras em um determinado ritmo, se alternando no tempo, constituindo, assim, um ciclo, e isso seria o uso historiográfico das formas. Todavia, existe, também, uma sétima forma, além das outras seis tradicionais, o governo misto. Forma esta que seria a melhor de todas por ser a síntese das três boas, e 26 aqui estaríamos diante do uso axiológico das formas de governo (BOBBIO, 1997, p. 65-66). Como já mencionado, em relação à terminologia, Políbio chama de democracia a terceira forma de governo, ou seja, emprega o termo “democracia” com conotação positiva, diferentemente de Aristóteles que a chama de politia e de Platão, que consagra uma denominação má e uma boa para ela. Assim, Políbio classifica as seis formas boas de governo como monarquia, aristocracia e democracia, e as três más, derivadas das primeiras, como tirania, oligarquia e “oclocracia”. Esta nova expressão, “oclocracia”, introduzida por Políbio como a forma corrompida de democracia, vem de oclos, que significa multidão, massa, plebe, e corresponde ao governo de massa ou das massas (BOBBIO, 1997, p. 66-67). Há uma divergência entre Platão e Políbio no que tange à teoria dos ciclos. O ciclo polibiano possui uma linha decrescente fragmentada pela ocorrência de uma alternância de momentos bons e maus no tempo, mas sempre com tendência negativa, diferentemente do ciclo platônico que possui uma linha decrescente contínua. Além do fato de que a forma final de Platão é a tirania, e a de Políbio é a oclocracia, em virtude da alternância. Mas a principal contribuição de Políbio dentro da teoria das formas de governo é a idéia de um governo misto. Para ele todas as formas simples são más porque são simples, sendo assim, o governomisto é aquele que combina as três formas clássicas de governo, consistindo no fato de que o rei está sujeito ao controle do povo, que este participa do governo, que é controlado pelo senado. 27 Observa-se, então, que a teoria do governo misto de Políbio está atrelada ao mecanismo de controle entre os poderes. No entanto, não se pode confundi-la com a teoria moderna da separação dos poderes de Montesquieu. O que difere, na verdade, o governo misto do governo simples não é o fato de o primeiro ser estável, e o segundo não, vez que ambos buscam uma estabilidade, mas o fato de o primeiro possuir uma estabilidade mais duradoura, ou seja, o ritmo das mudanças é que difere os dois tipos de governo. Segundo Bobbio (1997, p. 77), “no curso da filosofia política medieval nada há de genuinamente fundamental para o desenvolvimento das teorias das formas de governo”. Assim, ultrapassa-se essa fase histórica, a Idade Média, e começa-se outra abordagem, a de Maquiavel, importante pensador político do início do século XVI, que traz nova classificação das formas de governo, separando-as de maneira dualista em monarquia (principado) e república. Todos os Estados que existem e já existiram são e foram repúblicas ou principados. Os principados ou são hereditários, quando por muitos anos os governantes pertencem à mesma linhagem, ou foram fundados recentemente (MAQUIAVEL, 2003, p. 29). Neste trecho, logo se observa que o autor substituiu a classificação de Aristóteles e de Políbio (tripartite) por uma bibartite. O principado (monarquia) corresponde ao reino, já a república se refere tanto à aristocracia quanto à democracia. Portanto, os Estados são governados ou por uma só pessoa ou por muitas. Uma diferença essencialmente quantitativa, mas não somente. A monarquia é o poder singular e a república é o poder plural que, como visto acima, engloba a aristocracia e a democracia. República, etimologicamente, é uma palavra de origem latina, oriunda da expressão res publica, que significa coisa pública, comum ou bem comum, isto é, o que é de todos ou pertencente a todos. 28 A república aristocrática “é aquela em que o governo somente pode ser exercido pelas pessoas consideradas como as mais notáveis ou que, por alguma circunstância, tenham se sobressaído às demais” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 1354). Já a república democrática é aquela em que se adota a forma de governo, em que o poder soberano ou soberania do Estado reside na vontade do povo ou da totalidade do povo, que o habita, sem exclusões ou privilégios, devendo o mesmo governo ser exercido em seu nome e por sua delegação, por meio de representantes e responsáveis, diretamente ou indiretamente designados pelo povo, conforme sistema eleitoral admitido ou instituído (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 1354) A modificação substancial entre principado e república é a natureza da vontade envolvida, se é de um ou de muitos. Da república aristocrática para a república democrática o que se modifica é o modo de formação da vontade, que nesse caso já é coletiva, ou seja, se a vontade é de poucos ou de muitos. Vale ressaltar ainda que na classificação de Maquiavel, além do desaparecimento da tripartição, falta também a duplicação das formas de governo em boas e más, como nos outros autores mencionados. Para ele, as três formas de governo boas podem também se corromper facilmente. Maquiavel expõe, ainda, uma idéia acerca do ciclo das formas de governo. Mas, segundo Bobbio (1997, p. 90), sua idéia se contrapõe a de Políbio, uma vez que Maquiavel, por ser um escritor realista, afirma que os ciclos não podem se repetir até o infinito, como quis Políbio, já que isso não possui sustentação na realidade histórica. Conclui Maquiavel, então, que um Estado, chegando ao ponto mais baixo de sua decadência, não tem força para retornar ao ponto de partida, sendo presa fácil de outro Estado mais forte. Inicia-se, assim, nova forma de governo não dentro da estrutura do próprio Estado, mas dentro do domínio de outro. 29 Outro autor que contribuiu para a teoria das formas de governo é o francês Jean Bodin, em sua obra “De La Republique” (1576), a qual é considerada a obra de teoria política mais ampla e sistemática desde Aristóteles (apud BOBBIO, 1997, p. 95). Bodin estrutura sua teoria com base na idéia de soberania, ou seja, o início de seus estudos sobre as formas de governo se dá dentro de uma análise prévia da definição de soberania, principalmente dentro de dois de seus principais pontos: o caráter absoluto e a indivisibilidade. Classifica as formas de governo em três: monarquia, aristocracia e democracia, além de contestar as teses da duplicação das formas em boas e más e a do governo misto. Primeiro, Bodin afirma que as formas de governo são somente três porque não há distinção entre formas boas e más, baseando-se no argumento de que, se tivéssemos que distinguir as formas com base nos defeitos ou nas qualidades que apresentam, o número de categorias seria infinito. Segundo, expõe que não existe também uma sétima forma como o governo misto, pois, se houvesse a junção dos poderes real, aristocrático e popular, o único resultado seria a democracia, portanto, uma forma simples e não mista. Bodin também faz uma distinção entre “Estado” e “governo7”. Não há para ele a possibilidade da coexistência de podres soberanos, um único poder predomina e os outros são subordinados. O predominante constitui o regime (o Estado), e os outros, o governo. Portanto, diante do seu pensamento, as formas de governo 7 Rousseau, dois séculos depois, faz também a distinção entre Estado e governo. A diferença é que para ele a soberania reside somente no povo que exprime a vontade geral, chamando a forma de Estado de “república” e esta pode ser governada de três formas diferentes pelo poder executivo, dependendo de quem possua o exercício do poder: uma só pessoa, poucas pessoas ou muitas pessoas. Rousseau não rejeita a tese do governo misto como Bodin, porque a entende não como divisão de Estado, mas de governo, ou seja, o fato de o governo ser dividido não implica numa divisão da soberania que se mantém única (BOBBIO, 1997, p. 100-101). 30 podem chegar a nove: monarquia monárquica, monarquia aristocrática, monarquia democrática, aristocracia monárquica, aristocracia aristocrática, aristocracia democrática, democracia monárquica, democracia aristocrática, democracia democrática, ou seja, há a possibilidade de existência de um só poder soberano distribuído por várias formas de governar. Para Bodin (apud BOBBIO, 1997, p. 102), cada uma das três formas (monarquia, aristocracia e democracia) pode assumir mais três formas diferentes. A monarquia pode ser real, despótica e tirânica, a aristocracia pode ser legítima, despótica e facciosa e a democracia pode ser legítima, despótica e tirânica. A monarquia real ou legítima é aquela em que os súditos obedecem às leis do rei, e o rei às leis da natureza, restando aos súditos a liberdade natural e a propriedade de seus bens. A monarquia despótica é aquela em que o príncipe se assenhoreou de fato dos bens e das próprias pessoas dos súditos, pelo direito das armas e da guerra justa, governando-os como um chefe de família governa seus escravos. A monarquia tirânica é aquela em que o monarca viola as leis da natureza, abusa dos cidadãos livres e dos escravos, dispondo dos bens dos súditos como se lhe pertencessem. A aristocracia e a democracia se utilizam mais ou menos dessa mesma forma que a monarquia. Hobbes, seguindo as idéias de Bodin, não aceita as tesesdas formas de governo boas e más e do governo misto. No que tange ao problema das formas boas e más, Hobbes sustenta que o poder soberano é absoluto, pois se não fosse absoluto não seria soberano. No entanto, sua posição diante da de Bodin diverge na intensidade desse caráter absoluto. Para o francês, o poder soberano, embora absoluto, comporta certos limites: as leis naturais e divinas e os direitos privados. Para o inglês, esses limites não existem. Ele não nega a existência das leis naturais e divinas, mas não se tratando como leis positivas, porque não são aplicadas com a força de um poder 31 comum, não sendo, portanto, obrigatórias externamente, mas no nível interno, da consciência. Já os direitos privados, para Bodin, não podem ser interferidos pelo soberano, pois não fazem parte de sua alçada, pelo fato de estarem atrelados aos indivíduos em suas relações econômicas, independente da sociedade política. Hobbes não concorda com tal posição porque, se o Estado for instituído, a esfera privada se junta à esfera pública. A outra tese de Hobbes, a crítica da teoria do governo misto, parte da característica da indivisibilidade da soberania. Para esse teórico, é certo que o poder soberano não pode ser dividido, somente a preço da sua destruição. Diante de seu raciocínio, se o poder soberano estiver dividido, não é mais soberano. Partindo da crítica de Hobbes ao governo misto, outro problema surge: a confusão entre essa teoria e a teoria da separação de poderes. A coincidência dessas duas teorias se dá apenas no fato de ambas buscarem a divisão das funções do Estado, e por aqui pára. Na verdade, no governo misto a função legislativa, que é a principal, é exercida em conjunto pelas três partes que o compõem (rei, nobres e povo). Na separação de poderes, cada um dos componentes assume uma função específica (executiva, judiciária e legislativa). Para haver uma verdadeira sobreposição seria necessário estabelecer que ao rei caberia a função executiva, ao senado a judiciária e ao povo a legislativa, mas não é isso que acontece. Por fim, ainda no tocante à teoria das formas de governo, aparece Montesquieu, classificando-as em república8, monarquia9 e despotismo10. Segundo ele, 8 A república tem um sentido muito próximo do significado de democracia, uma vez que indica a possibilidade de participação do povo no governo. Com Maquiavel essa forma de governo tem um sentido de oposição à monarquia. Suas características são a temporariedade (o chefe do governo 32 o governo republicano é aquele que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquela em que um só governa, mas de acordo com as leis fixas e estabelecidas, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer às leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos (MONTESQUIEU, 2003, p. 23). Nesta teoria, a república também compreende a democracia e a aristocracia, como em Maquiavel. “Quando, na república, é o povo inteiro que dispõe do poder supremo, tem-se uma democracia. Quando o poder supremo se encontra nas mãos de uma parte do povo, uma aristocracia” (MONTESQUIEU, 2003, p. 24). A tipologia de Montesquieu não corresponde à tripartição tradicional (monarquia, aristocracia e democracia), apesar de ser também tríplice, nem à dúplice de Maquiavel (principado e república). A particularidade da teoria de Montesquieu em relação à antiga é que ele acrescenta à monarquia e à república uma terceira que até então era considerada uma forma específica de monarquia, o despotismo. Essa terceira forma de governo de Montesquieu corresponde a uma das formas más ou corrompidas na teoria clássica. Segundo Bobbio (1997, p. 135), “não há dúvida de que a preferência de Montesquieu se inclina para a monarquia”. Para este o poder do monarca é controlado pelos chamados corpos intermediários (“contrapoderes”), ou seja, por uma faixa intermediária de poder situada entre os súditos e o soberano que recebe um mandato com o prazo de duração preestabelecido), a eletividade (o chefe de governo é eleito pelo povo) e a responsabilidade (o chefe de governo é politicamente responsável). 9 A monarquia se trata do regime das separações, das variações e dos desequilíbrios sociais. É o governo de um só, mas o soberano fica adstrito a governar mediante leis estabelecidas. Os poderes da monarquia são o clero, a justiça e a nobreza, que atuam na presença do monarca. Suas características fundamentais são a vitaliciedade (o monarca governa enquanto viver), a hereditariedade (observa-se a linha de sucessão na escolha do monarca) e a irresponsabilidade (o monarca não tem responsabilidade política). A monarquia anterior ao Estado Moderno era absoluta, ou seja, sem limitações ao poder do monarca. Passando depois, aos poucos, a ser qualificada como monarquia constitucional, em virtude da resistência ao absolutismo e da observância de limitações jurídicas. 33 impedem o abuso da autoridade por parte do monarca. Esses “contrapoderes” exercem funções estatais que não permitem a concentração do poder público nas mãos de uma só pessoa. Essa é uma forma de divisão de poder chamada de “horizontal”. Ao lado dessa divisão horizontal existe uma divisão “vertical”, que constitui a famosa teoria da divisão de poderes de Montesquieu. Essa teoria, com já mencionada, pode ser considerada como a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto, mas não se equiparando na sua plenitude. Montesquieu, quando se refere à teoria da separação dos poderes, utiliza- se da expressão “governo moderado”, que deriva da dissociação do poder soberano, separando-o nas três funções fundamentais do Estado, a legislativa, a executiva e a judiciária. Em conclusão, a importância que Montesquieu atribui à separação dos poderes, que caracteriza o governo moderado, confirma a tese de que, ao lado da tríplice classificação das formas de governo (república, monarquia e despotismo), que corresponde ao uso descritivo e histórico da tipologia, há uma outra tipologia, mais simples, relacionada com o uso prescritivo, a qual distingue os governos em moderados e despóticos (abrangendo estes últimos não só monarquias mas também repúblicas) (BOBBIO, 1997, p. 137-138). O que interessa, no entanto, embora haja tantas considerações acerca das formas de Governo, é que a Democracia, estando ela enquadrada como Forma de Governo, de Estado ou como Regime Político, ainda vai ser a melhor opção diante das outras aqui enumeradas. E é dentro dessa ótica, da melhor opção para qualquer Estado, que o autor segue sua análise. 10 O despotismo se resume à ignorância ou transgressão da lei, reinando, o monarca, fora da ordem jurídica. Aqui há o império do medo, da desconfiança, da insegurança e da incerteza. 34 3 O POVO 35 3.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS Este capítulo propõe mais que uma breve análise acerca de um dos componentes do Estado, é um estudo sobre um dos mais importantes elementos da democracia: “o povo” e sua relevância para a compreensão deste regime político e de sua estrutura.O crescimento do interesse em torno desse elemento constitutivo do Estado, principalmente dentro dos parâmetros dos modelos de democracia no mundo, é inquestionável. Esse interesse se dá diante do aparecimento de questionamentos que geram a necessidade de esclarecimento do conceito de “povo” e de como ocorre a efetivação de sua participação dentro dos processos democráticos. Antes, porém, é preciso fazer uma distinção acerca de alguns vocábulos que podem ser confundidos: povo, população e nação. A nação, como visto no capítulo anterior, invoca certos sentimentos, identidades culturais, sociais e políticas. Para Lênio Streck (2001, p. 154), é um conceito “psicossocioantropológico”. O constitucionalista português Jorge Miranda (2002, p. 190) afirma que “o específico da nação encontra-se no domínio do espírito, da cultura, da subjetividade [...]. Uma nação não é qualquer grupo cultural. É uma comunidade cultural com vocação ou aspiração à comunidade política”. Por outro lado, muitos autores designam como população e não como povo o elemento pessoal que constitui o Estado. A população é uma simples expressão numérica, abrangendo todas as pessoas que estejam no território de um Estado definitiva ou temporariamente. Acontece que a inclusão na população de um 36 determinado Estado não significa a posse de vínculos jurídicos e também políticos com este. Assim, não se pode confundir as expressões população e povo. Este possui direitos e obrigações políticas, enquanto aquela não. O conceito de povo pode ser estabelecido de pontos de vista distintos: do político, do sociológico ou do jurídico. O conceito político foi conhecido desde a Antigüidade, quando Cícero (apud BONAVIDES, 2000, p. 74), escritor romano, disse que “povo é a reunião da multidão associada pelo consenso do direito e pela comunhão da utilidade”. Durante a Idade Média o conceito de povo, em seu sentido político, não existia como o é hoje. A teoria do Estado se baseava no território, na organização feudal. A formação política do conceito, mais próximo do que é atualmente conhecido, vem aparecer nas idéias da Revolução Francesa com a implantação da sociedade liberal-burguesa, uma vez que o absolutismo não conhecia este aspecto, já que só identificava a comunidade estatal como um conjunto de súditos. Com os ideais democráticos e com a implantação do sufrágio, o povo passou a ser “o quadro humano sufragante, que se politizou, ou seja, o corpo eleitoral” (BONAVIDES, 2000, p. 75). O conceito sociológico, conhecido também como conceito naturalista ou étnico, decorre de dados culturais. Desta ótica há uma equivalência do conceito de povo com o de nação11. O povo é compreendido como todos os componentes da sociedade, de todas as gerações e de todas as épocas, ou seja, os vivos e mortos, e os que irão viver. É o povo que é colocado numa dimensão histórica que liga todos os tempos e que transcende a contemporaneidade de sua existência. 11 Por sua origem etimológica, do latim natio, de natus (nascido), já se tem a idéia de que nação significa a reunião de pessoas, nascidas em um território dado, procedentes da mesma raça, falando o mesmo idioma, tendo os mesmos costumes e adotando a mesma religião, formando assim, um 37 Por último, o conceito jurídico. Essa noção de povo aparece num momento mais recente, dada a necessidade de se disciplinar juridicamente esse instituto, ou seja, só o Direito pode explicar o conceito de povo de forma completa. Na Grécia antiga cidadão era apenas aquele que participava das decisões políticas. Já existia aí uma noção jurídica, pois, quando se falava no povo de uma cidade-estado, só se incluía aqueles que tinham direitos. Atualmente, o conceito jurídico de povo está ligado à idéia de um conjunto de indivíduos vinculados a um determinado ordenamento jurídico. Não basta afirmar que povo é o elemento humano possuidor de direitos e deveres. Tem-se que enfatizar o laço de cidadania, o vínculo que une o indivíduo a um certo sistema de leis. Para Hans Kelsen (2000, p. 334) povo “é constituído pela unidade da ordem jurídica válida para os indivíduos cuja conduta é regulamentada pela ordem jurídica nacional, ou seja, é a esfera pessoal de validade dessa ordem”. Para ele, portanto, o indivíduo só pertencerá ao povo quando estiver na esfera pessoal de validade de sua ordem jurídica, ou seja, o povo constitui uma unidade jurídica e não natural, porque, da mesma maneira que o Estado possui apenas um território cuja unidade é jurídica, tem somente um povo também. Jellinek fixa a noção jurídica de povo e disciplina sua participação na vida do Estado, fazendo a distinção entre um aspecto subjetivo e outro objetivo desse elemento. Para ele “o Estado é sujeito do poder público, e o povo, como seu elemento componente, participa dessa condição. [...]. Por outro lado, o mesmo povo é objeto da atividade do Estado, [...]” (JELLINEK apud DALLARI, 1991, p. 84). O primeiro, quando o que está em evidência é sua qualidade de cidadão, é o aspecto povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características raciais e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião e língua (DE PLÁCIODO E SILVA, 1967, p. 1047). 38 subjetivo do povo; e o segundo, quando o que está em evidência é sua qualidade de súdito, é seu aspecto objetivo. Quanto ao aspecto subjetivo, Jellinek sustenta que o simples fato de se reunir várias pessoas e submetê-las a uma autoridade não chegaria a ser um Estado. Mas se essas pessoas se reunirem com outros elementos em um dado momento jurídico, tornam-se uma unidade, surgindo, assim, um Estado. Cada indivíduo que integra essa unidade participa também da natureza de sujeito, da qual deriva duas situações: a primeira, quando os indivíduos, enquanto objeto do poder do Estado, estão numa relação de subordinação, sendo sujeito de deveres; a segunda, enquanto membros do Estado, os indivíduos, se relacionam com ele e com os outros integrantes coordenadamente, sendo sujeitos de direitos. Nas palavras de Jorge Miranda (2002, p. 182), “o povo vem a ser, simultaneamente, sujeito e objecto do poder, princípio activo e princípio passivo na dinâmica social”. A qualidade subjetiva de certa comunidade garante o sentido de povo, que é causa da unidade do Estado. Esta unidade, proveniente dos laços que unem os indivíduos, permite que seja sujeito de direitos, já a subordinação lhes confere uma sujeição ao poder do Estado, sendo, assim, sujeito de deveres. Portanto, todo indivíduo submetido ao Estado é reconhecido como pessoa, participando ao mesmo tempo de sua constituição, exercendo funções como sujeito de deveres e como sujeito de direitos, sendo titular de direitos públicos subjetivos12. 12 Para Eduardo Espínola (1941, p. 573 e ss), o direito subjetivo “é a relação que une um bem da vida a um determinado sujeito, e da qual resulta, para o sujeito, o poder de, por si ou representado, tirar, no interesse próprio, de outrem, ou coletivo, toda a utilidade de que é suscetível o mesmo bem, ficando à disposição exclusiva de tal sujeito movimentar a ação coercitiva do direito”. Esse direito subjetivo é público porque tem natureza de prerrogativa oponível a qualquer tempo, pelo cidadão, seu titular, erga omne, contra o Estado (BRITO, 1993, p. 60-61). 39 Para que esta subjetividade de oposição aoEstado realmente aconteça é necessário que este reconheça o indivíduo como membro da comunidade. Todavia, esse reconhecimento se deu de forma tardia, porque, o indivíduo teve apenas reconhecido o seu direito na esfera privada. A aceitação de um direito público subjetivo foi alcançada ao longo de um processo histórico iniciado na Antigüidade e se efetivou na Idade Média, com a luta entre o Estado e a Igreja. Essa luta permitiu o aparecimento da doutrina do direito natural e do direito originário da liberdade de consciência religiosa na Inglaterra, que em 1628 editou a Petition of Rights13 e em 1689 o Bill of Rights14. Isto contribuiu para a primeira tentativa de positivação de direitos públicos subjetivos na América do Norte. O primeiro documento não criou nenhum direito novo, reafirmando apenas o antigo, que eram as limitações da coroa britânica; o segundo, reconhecia a liberdade de consciência a todos os homens que habitavam as treze colônias inglesas na America. Nessas colônias é que, em 1776, ocorreu a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, que previa uma gama de direitos que o povo poderia exigir do Estado como, por exemplo, as vedações à expedição de mandados gerais de busca ou de detenção, sem especificação exata e prova do crime, além de outras. Essa Declaração foi inspirada por tudo que também inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que gerou a Constituição Francesa 13 Era um documento dirigido ao monarca em que os membros do Parlamento de então pediram o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os súditos de sua majestade. A petição constituiu um meio de transação entre o Parlamento e o rei, que este cedeu, porquanto aquele já detinha o poder financeiro, de sorte que o monarca não poderia gastar dinheiro sem autorização parlamentar (SILVA, 2002, p. 152). 14 Decorreu da Revolução Gloriosa do mesmo ano (1688), pela qual se firmara a soberania do Parlamento, impondo a abdicação do rei Jaime II e designando novos monarcas, Guilherme III e Maria II, cujos poderes reais limitavam com a declaração de direitos a eles submetida e por eles aceita (SILVA, 2002., p. 153). 40 de 1791 e outras constituições na Europa, muito embora tivesse nascida 15 anos antes. A partir daí, nasce a doutrina do direito público subjetivo, que reconhece ao indivíduo certa posição perante o Estado, passando a ser visto como membro do povo, considerado em sua qualidade subjetiva. Para Jellinek (apud DALLARI, 1991, p. 84), portanto, ser cidadão cabe a todos que participam da constituição do Estado, existindo uma categoria especial que são aqueles que têm cidadania ativa (como a do eleitor), ou seja, aqueles que exercem certas atribuições que o Estado reconhece. Essas atribuições se dão da seguinte maneira: a exigência pelo Estado de atitudes negativas, pois o Direito, que disciplina os indivíduos, garante que o Estado não ultrapasse seus limites; de atitudes positivas, quando o Estado é obrigado a agir para proteger e favorecer o indivíduo; por fim, de atitudes de reconhecimento, pois há indivíduos que agem no interesse do Estado e este é obrigado é reconhecê-los como órgãos seus. Esse reconhecimento em relação às atitudes positivas traduz a idéia de que o Estado deve implementar ações positivas que estarão a serviço de interesses individuais, com a finalidade de proteger e favorecer a comunidade estatal, sendo uma compensação que o Estado oferece ao indivíduo pelos sacrifícios impostos. Assim, no que tange a relação dos indivíduos com o Estado, o povo permanece sendo componente ativo mesmo depois de o Estado ser constituído. “O povo é elemento que dá condições ao Estado para formar e externar sua vontade” (DALLARI, 1991, p. 85). Deve-se compreender como povo o conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir um Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano (DALLARI, 1991, p. 85). “Bill”, segundo De Plácido e Silva (1967, p.254), é o “nome que se dá, na Inglaterra, à minuta ou projeto de lei que é apresentado ao parlamento ou à Câmara, para ser examinado e que, se aprovado, é reduzido à lei ou ato”. 41 A participação e o exercício dos indivíduos podem, também, ser subordinados ao atendimento de certas condições objetivas, condições estas que garantam a total aptidão desses indivíduos quando atuarem dentro do Estado. Todos aqueles que façam parte juridicamente do Estado, quando da sua constituição, adquirem a condição de cidadãos. Povo, assim, passa a ser “o conjunto dos cidadãos do Estado” (DALLARI, 1991, p. 85). 3.2 ASPECTOS RELEVANTES À DEMOCRACIA Trata-se esta parte referente a povo de uma abordagem desse elemento componente do Estado, sujeito indispensável da transição estritamente teórica para a prática, numa perspectiva voltada à compreensão da democracia. Para José Afonso da Silva (2002, p. 134-135), o conceito trazido por Abraham Lincoln de que “democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, é essencialmente correto se for dada uma interpretação real aos termos que o compõem, embora possua limitações. Uma, quando ele define democracia como governo, vez que ela é mais um regime, forma de vida ou um processo; outra, em relação à formalidade, mas essa limitação desaparece com o sentido real proposto. Segundo esse mesmo autor, governo do povo significa que este é fonte e titular do poder [...]. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apóia no consentimento popular; [...] Governo para o povo há de ser aquele que procure liberar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança (SILVA, 2002, p. 135) Apesar dessas limitações expostas, é fato que toda democracia assenta suas bases no povo. O povo é o elemento fundante do regime democrático. 42 Tal análise se inicia com o postulado de Rousseau (1987, p. 66) de que as premissas básicas da democracia são a liberdade e a igualdade e que, de acordo com ele: Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela. Em relação às doutrinas mais atuais, tem-se que acrescentar mais uma premissa básica e necessária para nortear os Estados como exigência da democracia: a supremacia da vontade popular já abordada em capítulo anterior, que Dallari (1991, p. 128) arrola junto a três outros pontos fundamentais (a preservação da liberdade e a igualdade de direitos15). É exatamente dentro dessa premissa da supremacia da vontade popular que sobressai a idéia central do texto. Quando se expõe que “todo poder emana do povo”, nota-se que essa máxima é o estandarte da democracia moderna, sendo, portanto, a vontade popular o ponto mais importante para a construção de um Estado legítimo. No entanto, o postulado ideal da supremacia da vontade popular se tornou um objetivo difícil de ser alcançado, por causa do alargamento da própria base popular que constitui o Estado moderno, desde a concepção desse modelode Estado. Dentro dessa ótica é que Friedrich Müller desenvolveu uma análise crítica da utilização do termo “povo”, em inúmeras constituições do mundo, e do papel que 15É entendida a preservação da liberdade como o poder de fazer tudo que não incomodasse o outro e como o poder de dispor de seus bens e de si próprio, sem qualquer interferência do Estado, já a igualdade de direitos é entendida como a proibição de diferenças nos gozos dos direitos entre os 43 lhe é atribuído pelos diversos ordenamentos jurídicos, sempre em busca de se legitimarem a partir do uso dessa importante palavra para as democracias modernas. Para Müller o conceito de povo assume um caráter plurívoco, traduzindo esse termo como: povo ativo; como instância global de atribuição de legitimidade; como ícone; e como destinatário de prestações civilizatórias do Estado. A espécie de legitimidade, que se venha a inferir do poder constituinte do povo, pode ser formulada em gradações: a incorporação dessa pretensão ao texto da constituição tem por interlocutor o povo enquanto instância de atribuição; o procedimento democrático de pôr em vigor a constituição dirige-se ao povo ativo; e a preservação de um cerne constitucional (que sempre é também democrático) na duração do tempo investe o povo-destinatário nos seus direitos. Lá, onde esses aspectos da pretensão de legitimação permanecem apenas fictícios, o discurso se torna icônico (MÜLLER, 2000, p. 108). No entendimento de Müller, o Estado é, basicamente, uma expressão de poder-violência, ficando evidente quando da constatação de que o Estado é o detentor do monopólio da aplicação da justiça e da imposição de penas. Neste sentido o Estado detém a legitimidade para exercê-la em nome de todos e diante de todos os partícipes da sociedade. Tal legitimidade decorre exatamente da presença do povo como elemento humano na conformação do Estado. Definir o significado e o alcance de “povo”, empregado nas constituições democráticas tornou-se imprescindível, em virtude do aperfeiçoamento do Estado e de sua evolução até se tornar um Estado Democrático de Direito. Essa imprescindibilidade aumentou à medida que o Estado passou a buscar os significados de democracia e soberania popular. Aqui se trata do conceito jurídico ou, mais precisamente, dos modos de emprego da expressão ‘povo’ nos textos das normas de uma constituição democrática; de uma constituição, para dizê-lo em outros indivíduos, principalmente quando se refere a motivos econômicos ou de discriminação social (DALLARI,1991, p. 128). 44 termos, que quer justificar o seu aparelho de Estado e o exercício de sua violência e do seu poder enquanto ‘democráticos’. ‘Quem é o povo?’ transmuda-se aqui na pergunta: como se pode empregar ‘povo’ nesse contexto, caso a pretensão de legitimidade ‘do governo do povo’ deva fazer suficientemente sentido? (MÜLLER, 2000, p.52). Trata-se, portanto, de buscar legitimar as ações do Estado. E para Müller, essa legitimação tem de ser buscada dentro de uma perspectiva democrática e que sua busca deve ser constante. Como mencionado, seu ponto de partida é o “povo como povo ativo”, atribuindo um caráter político ao tema. Esse termo significa a totalidade de eleitores, constituindo-se fonte da determinação da convivência social por meio de imposições jurídicas, sendo considerados os titulares da nacionalidade (MÜLLER, 2000, p. 55). Numa constituição que se diga democrática, consegue-se uma primeira identificação de povo, como no caso da brasileira de 1988, quando coloca em seu art. 1°, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Müller (2000, p. 79) afirma que “o povo ativo está definido ainda mais estreitamente pelo direito positivo (textos de normas sobre o direito a eleições e votações, inclusive a possibilidade de ser eleito para diversos cargos públicos)”, ou seja, o povo corresponde ao maior grau de legitimação de um regime representativo, estando presente em eleições ou em votações. Quando se fala em eleições está-se referindo à escolha pelo povo dos seus representantes através do voto. Essa escolha visa ao preenchimento dos cargos políticos - no caso brasileiro - dentro da estrutura dos Poderes Executivo e Legislativo, servindo como uma procuração para que os escolhidos ajam em nome da maioria. 45 Vale ressaltar que todos aqueles que recebem essa incumbência de exercer em nome do povo as funções de decidir o futuro do país e, principalmente, aqueles que têm o encargo de elaborar a constituição, precisam ter a origem do seu exercício do poder reconhecida pelo povo. Dependendo do modelo democrático de referência, os cargos passíveis de preenchimento através da escolha popular irão crescer. Em alguns casos a radicalização da democracia é tanta que cargos de direção em empresas públicas, por exemplo, serão preenchidos dessa maneira. Mas na verdade, o importante é o preenchimento dos cargos com competências decisórias e de elaboração de normas, para que a sociedade seja gerida da maneira mais democrática possível. Ressalta-se aqui a Democracia Representativa, que vem passando por séria crise dentro da realidade brasileira e mundial. Além das eleições dentro da idéia de “povo como povo ativo”, existem outras formas de participação popular na definição do direito a ser criado, que são as votações em consultas plebiscitárias, referendárias ou por iniciativa popular de leis. Estes são os casos de participação popular de forma direta e não mais de escolha dos seus representantes através do voto. Dentro desse modelo de participação popular, Carole Pateman (1992, p. 38-42) se refere a uma “teoria da democracia participativa”, cujo maior expoente seria Rousseau, entendendo que a participação é um fenômeno necessário para o crescimento e desenvolvimento da democracia, como meio de exercício social de poder. A grande relevância da participação se dá pelo seu caráter educativo16; como modo de proteger os interesses privados e de assegurar um bom governo; como 46 meio de libertar o indivíduo, na medida em que funciona como forma de controle sobre os que executam a lei e sobre seus representantes; quando permite que as decisões coletivas sejam aceitas mais facilmente pelo indivíduo; e como meio de integração do indivíduo em sua comunidade. A participação se configura, dentro do pensamento rousseauniano, como prática educativa auto-alimentadora. Além de Pateman, outros autores, dentro da perspectiva de implementação de novas formas de interferência nas discussões políticas, também se utilizam da expressão “democracia participativa”, como Bobbio, José Joaquim Gomes Canotilho, como nomes estrangeiros, e José Afonso da Silva e José Alfredo de Oliveira Baracho, na sua “Teoria geral da cidadania”, como referências nacionais. Bobbio utiliza o termo quando menciona os problemas do sistema político contemporâneo e as possíveis soluções aplicáveis. Dos quatro remédios de que falamos no item anterior, o que parecia mais decisivo, o quarto (ou o controle a partir de baixo, o poder de todos, a democracia participativa, o Estado baseado no consenso, a realização no limite do ideal rousseauniano da liberdade como autonomia), é também aquele para o qual se orientam, com particular intensidade, as formas mais recentes e mais insistentes de contestação (BOBBIO, 1992,
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