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Universidade Federal do Rio de Janeiro A “MATÉRIA DOS QUINTOS” E OS “HOMENS DO OURO”: A DINÂMICA DA ARRECADAÇÃO DOS QUINTOS REAIS NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS E AS ATRIBUIÇÕES, ATUAÇÃO, PERFIL E RELAÇÕES DOS COBRADORES DOS QUINTOS (c. 1700 – c. 1780) Simone Cristina de Faria 2015 2 � A “MATÉRIA DOS QUINTOS” E OS “HOMENS DO OURO”: A DINÂMICA DA ARRECADAÇÃO DOS QUINTOS REAIS NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS E AS ATRIBUIÇÕES, ATUAÇÃO, PERFIL E RELAÇÕES DOS COBRADORES DOS QUINTOS (c. 1700 – c. 1780) Simone Cristina de Faria Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de História da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Economia Orientador: Antonio Carlos Jucá de Sampaio RIO DE JANEIRO 2015 � 3 � Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de História da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Aprovada por: ____________________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos Jucá de Sampaio - Presidente ____________________________________________________________ Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso ____________________________________________________________ Profª. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida ____________________________________________________________ Profª. Drª. Cláudia Maria das Graças Chaves ____________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Guedes Ferreira ____________________________________________________________ Prof. Dr. Angelo Alves Carrara - Suplente ____________________________________________________________ Prof. Dr. William de Souza Martins - Suplente � � 4 � � � � � � � � � � � � � � � ��������� ����� � Faria, Simone Cristina de. A “matéria dos quintos” e “os homens do ouro”: a dinâmica da arrecadação dos quintos reais na Capitania de Minas Gerais e as atribuições, atuação, perfil e relações dos cobradores dos quintos (c. 1700 – c. 1780) / Simone Cristina de Faria, 2015. Vi, 500 f.: il.; 30 cm. Orientador: Antonio Carlos Jucá de Sampaio. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de História, Rio de Janeiro, 2015. Referências: f. 449-500. 1. Minas Gerais – fiscalidade e sociedade (c. 1700 – c. 1780). 2. Direitos régios (Minas Gerais) – Quintos reais. 3. Sociedade e economia – tese. I. Sampaio, Antonio Carlos Jucá de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-graduação em História Social. III. T. � � 5 � RESUMO O presente trabalho apresenta uma pesquisa dedicada ao que denominamos de uma história social da fiscalidade. Em um primeiro momento, o objetivo foi fundamentalmente investigar a dinâmica da arrecadação dos reais quintos na Capitania de Minas Gerais, entre 1700 e 1780, quando a mineração era tida como sua atividade econômica principal. Tal investigação, atenta ao funcionamento cotidiano da atividade de cobrança do direito régio do quinto (como o mesmo era cobrado, guardado, acondicionado, conduzido e remetido ao Reino), buscou demonstrar ainda o complexo jogo de jurisdições no controle da dita função entre a Real Fazenda e as câmaras municipais. Já o segundo grande propósito da pesquisa foi investigar as atribuições, a atuação, o perfil dos cobradores dos quintos reais e as relações que os mesmos estabeleceram com seus escravos, forros, pardos, mulatos e afilhados negros, no quadro da construção de sua autoridade na sociedade mineradora setecentista. Amparados em um rico corpus documental, buscamos repensar o papel da Coroa portuguesa e das elites locais na configuração do poder nas Minas do século XVIII, através do estudo da “matéria dos quintos” e do conhecimento de quem eram os “homens do ouro”. Palavras-chave: Minas Gerais, fiscalidade, quintos reais, elites sociais, cobradores dos quintos, relações sociais. � 6 � ABSTRACT The “matter of fifths” and “the men of the gold”: the royal fifths raising dynamics at Minas Gerais captaincy and the tasks, performance, profile and relationships of the fifths collectors (c. 1700 -1780) Simone Cristina de Faria Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Jucá de Sampaio Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de História, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em História Social. This paper presents a research dedicated to what we call a social history of fiscal system. At first, the goal was to investigate primarily the royal fifths raising at Minas Gerais captaincy, between 1710 and 1780, when mining was regarded as the main economic activity. Such research work, focused on the daily operation of collection activity of the royal fifth right (as it was charged, stored, packaged, conducted and sent to the Kingdom), has also sought to demonstrate the complex jurisdictions scenery to control the mentioned activity between the Royal Treasury and town councils. The second major purpose of the research was to investigate the tasks, performance, profile and relationships established among the royal fifth collectors and their slaves, freed slaves, browns, mulattos and black godchildren, as part of building their authority in eighteenth-century mining society. Supported by a rich documentary corpus, we seek to rethink the Portuguese Crown and local elites roles in power configuration in eighteenth-century Minas Gerais, through the study of “matter of fifths” and the knowledge of who were “the men of the gold”. Key-words: Minas Gerais, fiscal system, royal fifths, social elites, fifths collectors, social relations. Rio de Janeiro Janeiro - 2015 � 7 � Às minhas meninas Lavínia e Júlia, as maiores alegrias da vida da titia. � 8 � Agradecimentos A Capes agradeço pela concessão de uma bolsa de estudos no último ano do curso. Ao ART, o grupo de pesquisa do CNPq Antigo Regime nos Trópicos, agradeço pelo apoio durante todo o período do doutorado. As diversas atividades que desenvolvi no grupo me permitiram permanecer no curso e me garantiram um aprendizado sem medida. Sem o amparo e o cuidado do ART teria sido impossível levar essa pesquisa adiante, e de maneira concreta, finalizar essa tese. Ao ART devo esse trabalho, mas mais do que isso, ao ART devo tudo que aprendi e que me transformei no decorrer desses quatro anos pra que essa tese se tornasse umarealidade. Ao convênio Capes-Cofecub, ainda por intermédio do ART, agradeço a oportunidade única da permanência no exterior pelo período de seis meses, o que trouxe uma contribuição inestimável pra minha formação profissional e experiência cultural. Através de tal convênio pude participar dos seminários, cursos e atividades dos centros de pesquisa da École de Hautes Études en Sciences Sociales – Paris; apresentar a pesquisa em dois congressos internacionais, um em Paris (na EHESS) e um em Lisboa (na Universidade Nova de Lisboa); entrar em contato com vários pesquisadores estrangeiros renomados; coletar bibliografia e documentação pertinente, tanto em Paris quanto nos preciosos arquivos portugueses; além de enriquecer e aprofundar diversas reflexões teóricas e metodólogicas para a pesquisa. Ao meu orientador Antonio Carlos Jucá de Sampaio agradeço por mais quatro anos de uma orientação cuidadosa e precisa. Agradeço imensamente pela alegria com que acompanhou cada etapa de mais essa pesquisa, pelo estímulo constante, pelas dicas preciosas e pela incrível confiança que sempre demonstrou na minha capacidade de trabalho. Como se todos esses fatores já não fossem suficientes e dignos de agradecimento, a ele agradeço ainda pela amizade que já ultrapassa uma década, uma amizade pela qual tenho um carinho muito grande e enorme satisfação de cultivar. Aos professores João Fragoso e Roberto Guedes, muito mais do que o apoio através do ART, e das valiosas e enriquecedoras sugestões para a pesquisa, agradeço pela amizade, pela atenção e pelo carinho que sempre me dedicaram. Agradeço por serem inspirações enquanto pesquisadores e referências historiográficas indiscutíveis para a pesquisa, mas � 9 � também por serem seres humanos extraordinários e por terem literalmente cuidado de mim em momentos importantes da minha vida que tanto precisei de ajuda. Aos professores João Fragoso e Carla Almeida agradeço pela participação e preciosa contribuição à pesquisa no exame de qualificação, quando me ajudaram a refletir sabiamente sobre os rumos que o trabalho ainda estava por tomar. Aos professores João Fragoso, Roberto Guedes, Carla Almeida e Cláudia Chaves agradeço pela composição da banca da defesa, certa da leitura cuidadosa e enriquecedora que certamente farão desse trabalho, como especialistas tão renomados e conhecedores do meu tema e/ou de aspectos que o tangenciam. Ao professor William Martins agradeço pelo gentil auxílio nas questões religiosas que perpassaram a tese. Seu cuidado, atenção e indicações bibliográficas muito me ajudaram. Aos professores Nuno Gonçalo Monteiro, Cláudia Damasceno Fonseca, Leonor Freire Costa e Jean-Frédéric Schaub agradeço pela recepção em Paris e em Lisboa, na ocasião do estágio sanduíche, e pelas inestimáveis sugestões e horizontes que abriram em minha pesquisa. Agradeço especialmente ao acompanhamento quase diário do professor Nuno Monteiro em minha estada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e às discussões mais específicas de pesquisas sobre Minas com a professora Cláudia Damasceno. Ao mestre Victor Oliveira agradeço pela cuidadosa ajuda na confecção do banco de dados da pesquisa. Aos funcionários dos vários arquivos do Brasil e de Portugal devo sinceros agradecimentos. Nos arquivos das minhas Minas encontrei uma atenção já característica de anos atrás, um cuidado e uma atenção que já de costume me dedicavam. Nos arquivos no Rio de Janeiro pude contar com pessoas que me ajudaram a encontrar o que precisava e a reproduzir documentos essenciais. Nos arquivos em Portugal também me deparei com pessoas gentis e atenciosas e que me ajudaram a entender a organização dos fundos portugueses tão vastos e a filtrar o que melhor poderia se adequar às necessidades de pesquisa mais imediatas. Também devo lembrar de agradecer aos funcionários do PPGHIS, principalmente Sandra e Ana Beatriz, com seu cuidado diário com questões burocráticas, agradeço a gentileza e dedicação já conhecida de seu trato. Aos meus queridos amigos, verdadeiros anjos na minha vida, devo mais que agradecimentos, mas infelizmente não posso a eles dedicar mais do que essas palavras. A eles agradeço por terem sido meu apoio mais do que certo em momentos felizes e em momentos muito difíceis também. Ana Beatriz, Andréia, Angélica, Daniela, João Rafael, � 10 � Joelma, Lívia, Lucimeire, Luiz Guilherme, Marcello, Mareana, Natiele, Rebeca, Regiane, Tatiana, Victor e Wander, foram, repito, anjos que Deus mandou do céu pra cuidar de mim e me dizer as palavras certas nos momentos certos. Uns mais perto, outros nem tanto, todos eles tiveram e certamente ainda tem um papel inquestionável na minha vida e um lugar especial em meu coração. Não há como não mencionar ainda que durante a temporada em Paris e em Lisboa, Sílvia e Maria foram presentes que a vida reservou pra mim, precisei atravessar o oceano pra ter o privilégio de conhecê-las e de desfrutar de uma amizade tão verdadeira. Por fim, peço perdão se esqueço de mencionar alguém e assumo a culpa pela omissão. A minha irmã repito os agradecimentos que faço quase que diariamente, o primeiro de ser minha melhor amiga e de participar de praticamente todos os melhores e piores momentos da minha vida, me dando apoio, compreensão e um carinho único. O segundo agradecimento é por ter me dado minhas queridas sobrinhas a quem dedico esse trabalho. Lavínia e Júlia são hoje simplesmente as razões da minha vida, a alegria dos meus dias, o colorido das minhas horas. Minhas meninas me cobrem do amor mais verdadeiro e gratuito do mundo e me ensinam que quando tenho o sorriso e o carinho delas é como se não precisasse de mais nada pra ser feliz. Aos meus pais, puxa, aos meus pais é mais difícil ainda agradecer. Além da vida, me deram e continuam me dedicando um amor que não tem tamanho, que não tem limites, que não tem barreiras. São minha base, meu eixo, meu refúgio, meu alicerce, meu tudo. Eu sou o que eles me fizeram, o que eles me ensinaram e até o que não puderam me ensinar. Mesmo não entendendo tanto o que estudo, o que essa tese significa, foram os que mais ajudaram, os que mais estimularam, os que mais se alegraram pelas minhas vitórias, por cada capítulo escrito, por cada ponto final que eu dava nos textos. Torceram junto, transmitiram calma e transbordaram em compreensão. Por eles acredito que posso ser alguém melhor e graças a eles busco isso todo dia, na certeza de que tenho muito ainda o que aprender com seus conselhos e com nossa convivência. A Deus, que conhece meu coração, agradeço pela vida, mas principalmente por ter me permitido me reconstruir e refazer minha vida ao longo de todo esse processo que acompanhou a tese. Nesses quatro anos passei por situações que nunca imaginei passar, por experiências que mesmo que alheias à tese não eram alheias a mim. Se não fosse a presença de Deus jamais teria superado tanta coisa e aprendido a lidar com uma outra � 11 � Simone que foi surgindo, como resultado diário das modificações que às vezes não percebemos que se operam em nós. � 12 � Sumário Lista de Abreviaturas 16 Lista de Tabelas 17 Lista de Gráficos 19 Introdução 20 Capítulo 1 “Para a satisfação dos quintos”: a dinâmica da arrecadação do direito régio do ouro das Minas Gerais 45 1.1 “De que pagou de quintos a fazenda de Sua Majestade que Deus guarde”: como se lançava o ouro dos reais quintos 48 1.1.1 Os primeiros parcos registros (1701-1713, 1713-1721) 49 1.1.2 Os queandavam pelos caminhos (1710-1717) 51 1.1.3 Os róis dos moradores e escravos das Minas e os quintos atrasados (1714-1717, 1719-1720) 53 1.1.4 Fazendo entregas e ajustando contas (1714, 1716, 1720-1725) 57 1.1.5 Os quintos das carregações e os termos de fiança (1709,1715-1721) 60 1.1.6 Os arrolamentos de escravos para o lançamento dos quintos de 1718 a 1720 64 1.1.7 “Nas Casas da Câmara”: os lançamentos dos quintos de 1721 a 1723 68 1.1.8 Os meios quintos, pagamentos restantes antes das Casas de Fundição (1724-1725) 72 1.1.9 Registros dos reais quintos ou dos donativos reais? (1727-1733) 73 1.1.10 Capitação de negros forros, matrículas de escravos e censo de clérigos (1737-1783) 75 1.1.11 O retorno das Casas de Fundição – 1751 em diante 76 1.1.12 Os registros da derrama (1764, 1765, 1770) 83 1.1.13 Livros de cálculos de rendimento do quinto – de 1751 em diante 89 13 � 1.2 Em “cofres com quatro chaves”: como se guardava o ouro dos reais quintos 90 1.3 “Para conduzir, escoltar e entregar na Real Intendência de Vila Rica”: como se acondicionava e conduzia o ouro dos reais quintos 92 1.4 “Em naus de guerra que hão de comboiar a frota”: como se remetia o ouro dos reais quintos para o Rio de Janeiro e de lá para o Reino 100 1.5 Pagando tudo o “necessário para os quintos”: o que se despendia com os reais quintos 107 1.6 O “cair no crime de sonegados”: como se condenavam os desviantes do ouro dos reais quintos 114 1.7 Da forma “que o Senado da Câmara ordenar” ou “em receita da Fazenda Real”: a responsabilidade institucional com a cobrança dos reais quintos 119 1.8 Uma perspectiva renovada para se entender a “matéria dos quintos” 129 Capítulo 2 “Com toda a exatidão e bom modo”, porém “de sorte que venha pago”: atribuições, atuação e poder de mando da elite local ligada aos reais quintos 131 2.1 Os “homens do ouro”: os cobradores/provedores dos reais quintos 134 2.1.1 “Com boas e sãs consciências assim o fariam”: os cobradores dos quintos em atividade 136 2.1.2 Os “homens do ouro” de toda a Capitania de Minas: o mapeamento dos cobradores dos reais quintos 155 2.2 Guardas Mores, Juízes Ordinários, Tabeliães, Procuradores da Câmara e outros envolvidos com os Quintos Reais 161 2.3 Os tesoureiros dos quintos reais 168 2.4 Os escrivães dos quintos reais 170 2.5 Os fiscais dos quintos reais 172 2.6 Os Superintendentes, Intendentes, Ouvidores, Provedores e Desembargadores do Ouro 173 2.7 Por “conduzir, escoltar e entregar todo o ouro pertencente ao Real Quinto”: os condutores dos reais quintos 174 2.8 Os ofícios de “suporte” ao real quinto 176 2.9 Os vários agentes do ouro: os responsáveis por cada etapa do cuidado com o precioso metal 177 14 � Capítulo 3 Esquadrinhando a vida dos “homens do ouro”: o perfil dos cobradores dos quintos da Leal Vila do Carmo (c. 1700 – c. 1780) 227 3.1 “Porque todos os moradores destas Minas são de diversas pátrias”: a naturalidade dos cobradores dos quintos e seus ascendentes 233 3.2 Delimitando o grupo: as pessoas “antigas das Minas” cuidando do ouro do real quinto 244 3.3 Casados, solteiros, com filhos ou “embaraços”: a situação civil dos cobradores dos quintos 249 3.4 “O exercício que tem e teve depois que da sua pátria passou para o Brasil”: as ocupações econômicas dos cobradores dos quintos reais 260 3.5 “Com boa satisfação e honrado procedimento”: as patentes militares dos cobradores dos quintos reais 266 3.6 Pelo “bem comum” e pelo “grande desejo de servir a Sua Majestade”: as demais solicitações ao Conselho Ultramarino 278 3.7 De camarários a encarregados do governo das Minas: os outros tantos cargos ocupados pelos cobradores dos quintos 281 3.8 E eram “muito cristãos velhos, que de longe se via”: os processos de habilitação para familiar do Santo Oficio dos cobradores dos quintos 290 3.9 Por “tão justos motivos, costuma Vossa Majestade sempre por via de graça, dispensar”: os pedidos de hábitos da Ordem de Cristo pelos cobradores 299 3.10 Entre jóias finas de ouro e diamantes e móveis de jacarandá e pau branco: a composição da fortuna dos cobradores dos quintos 308 3.11 “Desejando por a minha alma no caminho da salvação”: a relação com o sagrado – disposições fúnebres, ordens terceiras e irmandades, missas e legados 325 3.12 Dotes e heranças: notas sobre a partilha, mecanismos de reprodução social e estratégias de manutenção do patrimônio 345 3.13 Contendas, fugas, omissões, sequestros e prisões: a obrigação de “dar contas” das legítimas e disposições testamentárias – uma “confusão da Babilônia” 362 3.14 “Falecido nas Minas” ou “viera muito rico do Brasil”: o fim da trajetória dos cobradores dos quintos 370 15 � Capítulo 4 “Para tratar de sua vida tomando estado, e vivendo bem”: as relações dos cobradores dos quintos com seus escravos, forros, pardos, mulatos e afilhados negros 374 4.1 “Entre machos e fêmeas, bons e maus, grandes e pequenos e finalmente os que se acharem”: a composição do plantel dos cobradores dos quintos 377 4.2 Alforrias e legados: “pelos bons serviços prestados”, “pelo haver criado”, “pelo amor que lhe tinha” 395 4.3 O “tronco com sua fechadura”, as “missas pelas almas dos escravos”: o complexo embate entre conflitos e cuidados 418 4.4 “Todos os seus negros armados que são número grande”: os escravos armados dos cobradores dos quintos reais 424 Considerações finais 433 Anexos 438 Referências Bibliográficas 449 16 � Lista de Abreviaturas ACML Arquivo da Casa da Moeda de Lisboa AEAM Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana AHCSM Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana AHCMM Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana AHTCP Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal AHU Arquivo Histórico Ultramarino – Minas Gerais AN Arquivo Nacional do Rio de Janeiro ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Portugal APM Arquivo Público Mineiro BN Bibilioteca Nacional do Rio de Janeiro CC Casa dos Contos de Ouro Preto HOC Habilitação da Ordem de Cristo HSO Habilitação do Santo Ofício RGM Registro Geral de Mercês SC Seção Colonial 17 � Lista de Tabelas Tabela 1 - Os cobradores dos quintos reais da Vila do Carmo (Mariana) 180 Tabela 2 - Os cobradores dos quintos reais de Vila Rica (Ouro Preto) 184 Tabela 3 - Os cobradores dos quintos reais da Vila de São João del Rei 185 Tabela 4 - Os cobradores dos quintos reais da Vila Real do Sabará 187 Tabela 5 - Os cobradores dos quintos reais da Vila de São José del Rei (Tiradentes) 189 Tabela 6 - Os cobradores dos quintos reais da Vila Nova da Rainha (Caeté) 190 Tabela 7 - Os cobradores dos quintos reais da Vila do Príncipe (Serro) 192 Tabela 8 - Os cobradores dos quintos reais da Vila de Pitangui193� Tabela 9 – Patentes militares dos cobradores dos quintos reais por vila 156 Tabela 10 - Guardas Mores, Juízes Ordinários, Tabeliães, Procuradores da Câmara e outros envolvidos com os quintos reais 194 Tabela 11 - Tesoureiros dos quintos reais 201 Tabela 12 - Escrivães dos quintos reais 204 Tabela 13 - Fiscais dos quintos reais 208 Tabela 14 - Superintendentes, Intendentes, Ouvidores, Provedores, Desembargadores do Ouro 211 Tabela 15 - Condutores dos quintos reais 213 Tabela 16 - Ofícios de "suporte" ao real quinto 223 Tabela 17 - Naturalidade dos cobradores dos quintos reais 235 Tabela 18 - Naturalidade dos pais e avós dos cobradores dos quintos reais 236 Tabela 19 - Ocupações dos pais, avós paternos e avós maternos dos cobradores dos quintos reais 240 Tabela 20 - Tempo de permanência no cargo de cobrador dos quintos reais 246 Tabela 21 - Idade exata quando cobrador dos quintos reais (para os quais temos informações) 248 Tabela 22 - Situação civil dos cobradores dos quintos reais 249 Tabela 23 - As "donas" esposas dos cobradores dos quintos reais 251 Tabela 24 - Ocupações econômicas dos cobradores dos quintos reais 262 Tabela 25 - Patentes militares dos cobradores dos quintos reais enquanto exerciam o cargo e ao fim da vida 267 18 � Tabela 26 - Tipologia de pedidos ao Conselho Ultramarino e RGM (fora os referentes a postos militares) 278 Tabela 27 - Os outros cargos ocupados pelos cobradores dos quintos reais (fora os postos militares) 283 Tabela 28 - Os outros cargos ocupados pelos cobradores dos quintos reais II (fora os postos militares) 286 Tabela 29 - Tipologia dos bens possuídos pelos cobradores dos quintos reais ao fim da vida 310 Tabela 30 - Composição da fortuna dos cobradores dos quintos reais em réis 317 Tabela 31 - Média de escravos possuídos pelos cobradores dos quintos reais em 1725 318 Tabela 32 - Dívidas ativas e passivas dos cobradores dos quintos reais 319 Tabela 33 - Monte-mores dos cobradores dos quintos reais 321 Tabela 34 - Cabedal presumido em processos de habilitações para o Santo Ofício 323 Tabela 35 - Monte-mor médio por tipos de propriedades dos cobradores dos quintos reais 324 Tabela 36 - Destinação dos legados dos cobradores dos quintos reais em testamentos (para os 31 que temos informações) 329 Tabela 37 - Distinções religiosas dos cobradores dos quintos reais 334 Tabela 38 - Distinções religiosas dos cobradores dos quintos reais 337 Tabela 39 - Pedidos de celebrações de missas, ofícios, bulas e capelas pelos cobradores dos quintos reais 340 Tabela 40 - Herdeiros dos cobradores dos quintos reais 347 Tabela 41 - "Escrituras fantásticas" dos cobradores dos quintos reais 354 Tabela 42 - Composição da escravaria dos cobradores dos quintos reais 380 Tabela 43 - Pedidos de celebração de missas pelas almas dos escravos 421 19 � Lista de Gráficos Gráfico 1 – Tempo de permanência no cargo 246 Gráfico 2 - Situação civil dos cobradores dos quintos reais 250 20 � Introdução “Como o principal desejo de Sua Majestade inteiramente se dirige a encher de felicidade os povos desta Monarquia justamente os de Minas Gerais lhe merecem o maternal cuidado de lhe procurar todos os meios de os fazer felizes e abundantes porquanto eles são como a fonte, da qual se emanam as excessivas riquezas, que constituem a riqueza da maior parte dos seus vassalos, que fazem este Reino respeitado, e atendível aos estranhos, e que aumentam o Erário Régio, (...) e finalmente o Quinto do Ouro (...) o que Legitimamente devem ao Soberano.”1 Tomás Antonio Gonzaga, nas famosas Cartas Chilenas, nos relata que “a nossa Chile”, na verdade Vila Rica, “Em toda parte tinha, à flor da terra, / Extensas e abundantes minas de ouro”.2 No trecho acima, de uma representação de 1783 de um documento do Erário Régio, vê-se a clara referência que as Minas Gerais eram a fonte da qual emanavam enormes riquezas, riquezas estas que tornavam o Reino de Portugal respeitado frente aos demais no século XVIII. Além dessas constatações, tão propagadas à época, de que a região das Minas rendia à Coroa portuguesa rendimentos extraordinários e sem precedentes, pela citação acima se aponta ainda para o fato de que o quinto do ouro, a designação dada ao quinhão devido ao monarca sobre o ouro das minas, era ao soberano rei devido legitimamente, ou seja, por direito. A expressiva quantidade e diversidade de estudos sobre as Minas Gerais no século XVIII dá a falsa impressão que temas como o da arrecadação desse direito régio sobre o ouro da então preciosa região mineradora é assunto já excessivamente consagrado e esgotado pela historiografia. Tal impressão não se sustenta, não obstante o fascínio causado em tantos pesquisadores pelo fenômeno desencadeado pela corrida ao famoso metal amarelo, que segundo Antonil tinha reflexos “que parecem raios do Sol”.3 Apesar da riqueza e abrangência dos variados trabalhos produzidos até o momento, as lacunas da nossa historiografia no que tange ao cotidiano da fiscalidade na formação da sociedade colonial e a uma história dos agentes que a concretizavam são mais do que evidentes e demonstram a relevância de novas perspectivas nesse âmbito. ���������������������������������������� ������������������� 1 AHTCP, Livro 4066, Erário Régio, 1783, f. 86, 87. 2 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. 1789. Site: www.hotbook.com.br, p. 23. 3 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1982, p. 135. 21 � Considerando-se a tamanha preocupação que a questão da coleta do ouro adquiriu, principalmente nos reinados de D. João V (1706-1750) e de D. José I (1750-1777), e de ter sido o metal amarelo “de longe o recurso mais vital do império português”4 – constatações estas que dispensam excessiva explicação – , são raros os historiadores que investigaram como a Coroa tentou arrecadar a parte que teria direito nas riquezas naturais, ainda que tenham acentuado a quantidade de ouro e logo depois de diamantes que chegou em Portugal nesse período. Poucos pesquisadores se preocuparam também em conhecer quais foram as diferentes políticas régias discutidas e delineadas para cada tipo de cobrança do ouro.5 Acrescentamos a tais constatações, além disso, que nenhum investigador procurou até o momento entender o funcionamento local dessa atividade na capitania de Minas Gerais, e continua sendo um desafio maior ainda conhecer quem foram aqueles que diretamente estavam envolvidos na cobrança desse ouro. Parte da explicação do desinteresse por essas questões reside nas dificuldades das próprias fontes ligadas à fiscalidade, e também na ausência de estudos críticos sobre elas.6 A fragmentação dessas fontes e seu caráter árido, o pouco conhecimento da organização dessas informações restantes e parciais, bem como os contratempos ligados à organização dos arquivos, são patentes e têm causado significativos obstáculos ao trabalho dos historiadores. Contudo, a explicação para essas lacunas não se resumem obviamente, a nosso ver, apenas a esses contratemposda pesquisa com séries documentais dessa natureza. O tipo de interpretação reinante até a década de 1990 tinha um caráter estrutural marcante e tornava impensável que reflexões como aquelas sobre o papel da Coroa nas regiões de produção aurífera partissem de uma perspectiva local.7 O estudo das cobranças ���������������������������������������� ������������������� 4 PEDREIRA, Jorge M. “As conseqüências econômicas do império: Portugal (1415-1822).” Análise Social, vol. XXXII (146-147), 1998, pp. 433-461, p. 438. 5 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. “Ouro e diamantes: as dificuldades da cobrança dos Direitos Reais.” Anais de História de Além-Mar. Lisboa: 2007, Vol. VIII, pp. 89-101, p. 89. 6 Com exceção do trabalho sobre o Códice Costa Matoso. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida, CAMPOS, Maria Verônica (coord.). Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. São Paulo: Fundação João Pinheiro, 1999; e ainda dos importantes livros de Angelo Carrara: CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil; 1607-1700. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2009; ______. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2009. 7 Entre outros, o clássico estudo de Laura de Mello e Souza, por estes motivos e pelos inerentes às fontes, deixou vazios no que tange às questões ligadas à fiscalidade. É o caso de: MELLO E SOUZA, Laura de. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, e também de MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 22 � dos reais quintos originando-se, portanto, do seu funcionamento mais rudimentar e local não teria significado algum até a bem pouco tempo atrás. Nem muito menos despertaria interesse um estudo do grupo que a essa atividade se dedicava. Recentes trabalhos permitem que esse tipo de tema ganhe espaço de produção.8 Os trabalhos, portanto, que até o momento de certa forma trataram da arrecadação dos quintos do ouro de Sua Majestade privilegiaram, em geral, o fazer conhecer as periodizações dos métodos de cobrança, ou seja, o construir sistematizações dos tipos de coleta por período, geralmente tendo por base a legislação e os regimentos decretados sobre as Minas. Tais estudos, alguns mais indiretamente que outros na abordagem do tema, remontam à década de 1930.9 Desde lá se sucederam várias menções às formas de arrecadação do ouro, considerado o principal aspecto que importava conhecer sobre o assunto. Percebem-se apenas pequenas discordâncias em tais periodizações, que em geral dividem as décadas da mineração em períodos de alternância dos métodos de bateias, ���������������������������������������� ������������������� 8 Destaca-se a importância das atuais perspectivas prosopográficas e suas consequentes inovações nas interpretações sobre o Império português. Para citar apenas alguns trabalhos, entre outros tantos: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (Orgs.) O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; FRAGOSO, João Luís Ribeiro de, ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006. 9 Os trabalhos mais comumente citados, ainda que não focados exclusivamente na arrecadação dos quintos, são os seguintes, entre outros tantos: BOXER, Charles R. A idade do ouro do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1969; HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Metais e pedras preciosas.” In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973, pp. 259-310; PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1979; RUSSEL WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História. São Paulo, v. 55, ano XXVIII, 1977, pp. 25-80. Alguns mais específicos podem ser mencionados: CALÓGERAS, João Pandiá. As minas do Brasil e sua legislação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1935; CARDOSO, Manuel da Silveira Soares. “Os quintos do ouro em Minas Gerais (1721-1732).” Congresso do Mundo Português. Lisboa, vol. 10, 1940, pp. 117-128; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002; MAGALHÃES, Joaquim Romero. As Câmaras Municipais, a Coroa e a cobrança dos quintos do ouro nas Minas Gerais (1711-1750). In: ______. Labirintos Brasileiros. São Paulo: Alameda, 2011. É importante também destacar que diversos memorialistas e viajantes nos oferecem importantes informações sobre as cobranças, ainda que esparsas: ANTONIL, André João [João Antônio Andreoni]. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1982; ROCHA, José Joaquim da. Geografia histórica da Capitania de Minas Gerais. Descrição geográfica, topográfica, histórica e política da Capitania de Minas Gerais. Memória histórica da Capitania de Minas Gerais (1788). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995; entre outros. 23 � capitação, e casas de fundição, com a conclusão de que nunca se chegou durante todo o século a um mecanismo estável de arrecadação dos quintos.10 Devem-se enfatizar ainda alguns trabalhos bem recentes dedicados às políticas de cobrança dos quintos que eram delineadas a cada mudança de modo de arrecadação, que tipo de forças podiam mover essas decisões e debates. Alguns acentuam, através de troca de cartas e defesas de secretários do rei, os projetos de novas formas de cobrança (como o de Alexandre de Gusmão) e suas discussões na Corte.11 As alterações fiscais são relacionadas com a formulação e uma nova percepção sobre a política ultramarina com discussão sobre o exercício da política e a organização do poder na Corte. Discussões sobre projetos se repetem, às quais “além de um método de arrecadação, se discutia, nas entrelinhas deste processo de implementação fiscal a estrutura de mando – o modo de governar.”12 Os circuitos de decisão e de tomadas de decisão acerca dos métodos de arrecadação do ouro podem ser dessa maneira bem melhor conhecidos e problematizados.13 Em um caminho um pouco distinto, mas igualmente inovador, outra série de estudos têm conferido atenção às remessas do ouro da Coroa ou de particulares, bem como o seu transporte, logo após que o precioso metal fizesse essa passagem para o lado de lá do oceano, e assim uma parcela chegasse ao destino dos cofres da realeza de Portugal. Afinal, “fiscalizar bem a entrada de ouro era tão importante quanto registrar os pormenores de sua produção na Colônia e de seu transporte até Portugal.”14 Alguns desses estudos tentam dar um enfoque mais monetário, analisando as emissões de moeda de ouro em Portugal e as ���������������������������������������� ������������������� 10 Para detalhes sobre as formas que a Coroa portuguesa lançou na cobrança dos quintos ver: CARRARA, Angelo Alves. Administração fazendária e conjunturas financeiras da capitania de Minas Gerais – 1700- 1807. (Relatório de Pesquisa). Mariana:UFOP, 2002; CARRARA, Angelo Alves. Produção mineral e circulação mercantil na capitania de Minas Gerais – 1700-1807. (Relatório de pesquisa). Mariana: UFOP, 2002; PAULA, João Antônio de. “A mineração de ouro em Minas Gerais do século XVIII.” In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLATA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Vol. 1. Belo Horizonte: Autêntica, Companhia do Tempo, 2007, pp. 279-301. Essas sistematizações foram feitas com base em uma série de autores desde Simonsen, Pinto, Boxer, Eschwege, entre outros, como se pode verificar nos artigos. 11 NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. “Ouro e diamantes:.. 12 Apud: BICALHO, Maria Fernanda. “Inflexões na política imperial no reinado de D. João V”. Anais de História de Além-Mar. Lisboa: 2007, Vol. VIII, pp. 37-56, p. 54. 13 COSTA, André. Sistemas fiscais no Império: o caso do ouro do Brasil, 1725-1777. Tese (Doutorado em História), Universidade de Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, Lisboa, 2013. 14 COSTA, Leonor Freire; ROCHA, Maria Manuela; SOUSA, Rita Martins de. “Primeira parada: Portugal”. Dossiê ouro. Revista de História da Biblioteca Nacional, novembro 2008, ano 4, no 38, pp. 22-25, p. 23. 24 � políticas monetárias no Brasil;15 outros procuram caracterizar o fluxo do ouro sob a forma de pó, barra e moeda entre o Brasil e Portugal como fator para a compreensão das relações econômicas;16 ou ainda visam conferir relevância a questionamentos mais específicos do universo de agentes ligados ao circuito do ouro, buscando conhecer a rede de sujeitos ligados a essa rota, com fontes até então desconhecidas.17 Uma recente publicação engloba grande parte dessas problemáticas, sistematizando conclusões sobre os apontamentos nesses artigos. Esse excelente trabalho preocupou-se, portanto, com a importância dos fatores monetários na prestação da economia portuguesa; com o enquadramento fiscal dos livros de manifesto (fontes principais da pesquisa); com o apuramento dos quantitativos anuais chegados ao Reino; com o estudo das categorias institucionais de receptores desse ouro, Estado e particulares; com a estimativa do ouro acumulado em Portugal; com as características sociológicas dos agentes envolvidos; e com as características organizacionais do comércio transatlântico.18 Como a historiografia sobre os reais quintos padece de um estudo mais sistemático, especialmente afeito ao seu cotidiano e ao que poderíamos chamar de uma história mais social da fiscalidade, porque interessada também nos agentes nela envolvidos, o objetivo principal dessa tese é reparar essas lacunas. O objeto dessa pesquisa, portanto, é o processo de arrecadação dos quintos na capitania de Minas Gerais no que diz respeito ao seu funcionamento mais cotidiano, leia-se, de como se exercia corriqueiramente a cobrança nas vilas, freguesias e variados lugarejos dessa região. Tais preocupações presumem a investigação, além do dia a dia e dos procedimentos da coleta, da responsabilidade institucional na gestão dessa atividade, delimitando em que períodos efetivamente a Real Fazenda ou o Senado da Câmara deviam se incumbir do cuidado com a cobrança, e o que isso significava para um entendimento mais geral da presença da Coroa nas Minas. Além desses propósitos, também é objeto dessa tese, cumprindo a pretensão de se construir uma história social da fiscalidade, investigar aqueles que concretizavam as ���������������������������������������� ������������������� 15 SOUSA, Rita Martins de. “O Brasil e as emissões monetárias de ouro em Portugal (1700-1797).” Penélope, nº 23, 2000, pp. 89-107. 16 COSTA, Leonor Freire; ROCHA, Maria Manuela; SOUSA, Rita Martins de. O ouro do Brasil: transporte e fiscalidade (1720-1764). In: site www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_83.pdf -, pp. 1-23. 17 COSTA, Leonor Freire; ROCHA, Maria Manuela. “Remessas do ouro brasileiro: organização mercantil e problemas de agência em meados do século XVIII.” Análise Social, Vol. XLII (182), 2007, pp. 77-98. 18 COSTA, Leonor Freire; ROCHA, Maria Manuela; SOUSA, Rita Martins de. O ouro do Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A., 2013. As análises contidas nesse livro certamente merecerão análises futuras, tanto pela riqueza das suas informações, quanto pelas possibilidades comparativas com nossa pesquisa, já que 31 dos cobradores dos quintos constam entre os emissores de ouro para Portugal. 25 � atividades ligadas ao ouro das Minas, cuidando dela diretamente antes que o metal atravessasse o Atlântico para abastecer os cofres da Coroa portuguesa. As atribuições, atuação, poder de mando de toda uma elite local atrelada aos reais quintos podem ser conhecidas; além do perfil sócio-econômico e político dos cobradores dos quintos reais de Mariana e das relações que os últimos estabeleceram com seus escravos, forros, pardos, mulatos e afilhados negros. Para tanto, o recorte espaço-temporal estabelecido abrange toda a região que ficou conhecida por Minas Gerais entre cerca de 1700 até aproximadamente a década de 1780. De uma forma geral, nossa escolha se legitima por se tratar do período em que a capitania teve a mineração como sua atividade principal. De 1750 a 1770 deu-se o auge minerador, pois apesar do ponto máximo de coleta ter se verificado entre 1735-1739, em 1750 a cota de 100 arrobas fora até excedida. A queda depois foi para 86 arrobas, mas só entre 1774- 1785 com uma arrecadação de 68 arrobas tal declínio teria sido mais marcado. Apesar do decréscimo, até pelo menos 1770 a estrutura produtiva foi conservada sem maiores modificações. Só em meados desta década o declínio começou a provocar uma “rearticulação econômica intencional” que poderia ser percebida a partir de 1780. E assim, de 1780 a 1810 a mineração não mais seria a atividade econômica principal das Minas perdendo espaço para as atividades agropecuárias.19 A delimitação do período de dominância da atividade mineradora nas Minas, e consequentemente de representatividade do montante de ouro arrecadado nesse espaço de tempo, portanto, dá a devida pertinência ao recorte. De forma mais específica, todavia, o marco inicial se justificou ainda pelo princípio das séries de fontes fiscais trabalhadas (livros de receita e lançamento dos quintos, de capitação de escravos, entre outros), e o marco final por coincidir com o período em que os cobradores começam a desaparecer dos diversos registros em que pudemos detectá-los em atuação variada, inclusive devido ao fato de que a maioria já tinha falecido até essa década. Passamos nesse instante para um momento que entendemos por essencial dessa introdução, qual seja a explicitação dos conceitos chave norteadores dessa pesquisa, tanto ���������������������������������������� ������������������� 19 Partilhamos nesse momento da periodização reformulada pela professora Carla Almeida, em trabalho importante onde rompe com mitos da historiografia sobre Minas, ainda que a ideia de decadência já viesse sendo repensada por outros estudos. De forma muito evidente, Almeida chama atenção ainda para o fato de que a decadência da produção aurífera não significou, em medida alguma, uma estagnação econômica da região, mesmo no auge minerador havia a clara concomitância dessa atividade com a agricultura e a pecuária. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750-1822. Tese de doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 16-33. 26 � mais gerais quanto mais específicos. Os conceitos mais gerais dizem respeito fundamentalmente aos de monarquia pluricontinental, sociedade corporativa e autogoverno, ideias que permitem que essa sociedade ganhe inteligibilidade aos olhos de nós pesquisadores, além de lhe conferira devida complexidade. Já os conceitos mais específicos fazem referência ao que compreendemos por direito régio (em contraposição a imposto) e por elite, noções estas que perpassam todo o trabalho e que guiam muitas de nossas conclusões sobre os dados empíricos encontrados. Iniciamos, portanto, destacando que estudamos um período e uma região caracteristicamente vinculados ao que vem sendo denominado mais recentemente de monarquia pluricontinental. Tal noção foi primeiramente desenvolvida por Nuno Gonçalo Monteiro, em um artigo sobre as redes de parentesco da família dos Távoras. No dito artigo, o autor conclui que a monarquia portuguesa tinha uma dimensão imperial única no contexto da Europa dos séculos XVII e XVIII pela dependência das receitas vindas do império atlântico e por sua experiência de circulação pelo império. Assim, os “domínios ultramarinos” da monarquia portuguesa e a capacidade de autonomia das suas elites lhes conferiam “uma feição decididamente pluricontinental”. Isso por conta dos domínios que conferiam à monarquia sua dimensão territorial.20 Logo depois, João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa trabalharam mais detidamente na formulação do conceito, agregando a ele a concepção corporativa de sociedade e de autogoverno das comunidades. Dessa forma, essa ideia se tornaria, segundo os últimos, uma chave cognitiva importante e capaz de dar conta da dinâmica do império ultramarino português.21 Nessa monarquia pluricontinental, “caracterizada pela presença de um poder central fraco demais para impor-se pela coerção, mas forte o suficiente para negociar seus interesses com os múltiplos poderes existentes no reino e nas conquistas”, os diferentes espaços, Reino e domínios, estariam integrados em uma mesma construção política. Tanto para Portugal quanto para as diversas conquistas extra-europeias, havia um grande conjunto de leis, regras e corporações, que conferiam unidade e significado às ���������������������������������������� ������������������� 20 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. A “tragédia dos Távaras”. Parentesco, redes de poder e facções políticas na monarquia portuguesa em meados do século XVIII. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 317-342. 21 FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII. Tempo. Niterói, v. 14, n. 27, dez/2009, pp. 36-50, p. 38. 27 � variadas áreas vinculadas entre si e ao Reino.22 Esse quadro tornava possível que as ligações entre as partes dessa monarquia fossem muito mais próximas do que em outras monarquias (as monarquias compósitas).23 Segundo Fragoso e Gouvêa, essa monarquia pluricontinental se tornava realidade ainda pela “ação cotidiana de indivíduos que viviam espalhados pelo império em busca de oportunidades de acrescentamento social e material”, e que tais indivíduos “não se colocam passivos diante das regras gerais e que se utilizam das fraturas existentes no permanente diálogo travado entre regras gerais e locais.”24 Esses homens, fosse no Reino, no Rio de Janeiro, ou nas Minas Gerais, comungavam de tal uniformidade mencionada, não significando, no entanto, que não levassem em conta os valores de onde eram provenientes, Portugal, África, ou até os indígenas. Há, para essa concepção, em vista de tudo isso, a ideia de que o Reino não existia sem os seus territórios do ultramar, e que esses territórios, por sua vez, não eram meros apêndices de Portugal e garantiam a centralidade material do mesmo.25 As dimensões da dominação se completavam e se combinavam com as dimensões da negociação, sem as quais é impossível entender as relações nessa monarquia. Afinal, já não é mais cabível entender o período colonial no Brasil com o esquematismo excessivo até há pouco tempo adotado, onde a sociedade se reduzia a senhores e escravos e seria “um simples corolário da expansão mercantil europeia”.26 A construção do conceito de monarquia pluricontinental, após esse estudo detalhado acima, tem sido uma das preocupações atuais, segundo João Fragoso, dos pesquisadores do grupo Antigo Regime nos Trópicos para se compreender melhor o império ultramarino luso. Ressalta-se cada vez mais que no interior da ideia de monarquia pluricontinental deve-se destacar a ação dos municípios entendidos como repúblicas, com as câmaras interferindo na dinâmica do império. E já são vários os estudos nessa direção.27 ���������������������������������������� ������������������� 22 Idem, p. 42. 23 Tais monarquias incorporam territórios já existentes antes, preservando, ao menos no início, suas instituições específicas e essas diversidades pareciam ser mantidas. ELLIOT, John. “A Europe of Composite Monarchies”. Past and Present, nº 137, 1992, pp. 48-71. 24 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Monarquia pluricontinental e repúblicas..., p. 43. 25 Idem, p. 43. 26 Fragoso e Gouvêa mencionam ainda que questionando tais interpretações não se quis negar o fato colonial, mas sim não se reduzir tudo a ele. Ibidem, p. 41. 27 Ver as obras: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica imperial no antigo regime português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados: séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro, Mauad X, 2011; FRAGOSO, João e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. 28 � Além dessas obras, outro artigo revela um importante esforço analítico de aprimoramento dessa concepção. Nele os pressupostos mencionados acima são ainda mais detalhadamente explicitados, nos ajudando a compreender como uma monarquia que abordava muitos continentes vivia em uma dimensão pactuada, policentrada, onde existiam vários corpos que tinham papel e voz diante da Coroa através de constantes negociações com a mesma. Essa monarquia, portanto, que tinha na periferia, ou seja, nas suas conquistas ultramarinas, a sua centralidade e seu sustento, viva fazendo sucessivos acordos com os municípios pertencentes a ela e aos seus domínios, sendo que os últimos tinham capacidade declarada de ingerência na gestão do império ultramarino.28 Bem, como mencionado, o conceito de monarquia pluricontinental se assenta em uma concepção de mundo corporativa e polissinodal com autonomia do poder local. E sobre tais noções competem ainda se fazer algumas considerações. Uma sociedade corporativa pressupunha primeiramente que não houvesse a possibilidade de um poder incompartilhado. A cabeça, ou seja, o rei, deveria manter a harmonia e realizar a justiça, mas seu poder era também distribuído com os demais membros, e só assim se garantia o funcionamento do “bem comum”. Essa indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade se desdobra da constatação da impossibilidade de um poder “puro”, “absoluto”, diga-se de passagem, impraticável em qualquer meio social. Hespanha define esse modelo corporativista como um “pensamento social e político medieval dominado pela idéia de uma ordem universal que orientava as criaturas”, cada parte cooperando de uma forma.29 Nuno Monteiro também sustentou que, ao invés de um movimento de centralização, o que prevaleceu foi um modelo corporativo ���������������������������������������� ������������������� 28 FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio. História (São Paulo), v. 31, n. 2, jul/dez 2012, pp. 106-145. Nesse importante artigo é possível ter acesso ainda a um requintado retrospecto da discussão historiográfica em torno dos modelos que explicaram a economia colonial desde as décadas de 1970e 1980. 29 HESPANHA, António Manuel. “A representação da sociedade e do poder.” In: Mattoso, José. (Org.) História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 122-125. Hespanha menciona, em outros textos, que a impossibilidade de um poder “puro” e “absoluto” deriva, ou melhor, só foi possível de ser concebida, graças a um progresso das concepções acerca dos diferentes níveis e mecanismos de instauração da ordem nas sociedades pré-contemporâneas, atingido por Michel Foucault, ao provocar uma explosão do conceito de poder, “antes só nos lugares institucionais, agora em todos os nichos do tecido social”. HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. “As redes clientelares.” In: Mattoso, José. (Org.) História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, pp. 381-393; HESPANHA, António Manuel. “Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites.” In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 39-44. 29 � no período moderno e a Coroa podia dispor de “poucos meios para se afirmar de maneira exclusiva”.30 Ainda segundo Hespanha, esse modelo corporativo de governo se adapta perfeitamente às fontes da época e é indispensável para “remover algumas distorções muito difundidas na história colonial brasileira”. O autor destaca que se o policentrismo, o pluralismo jurídico-político, a confusão jurisdicional, entre outros, se verificavam no Reino, com seus 89.000 km2, como poderia, segundo ele, deixar de acontecer num imenso território, cujas costas estavam separadas da metrópole por mais de um mês de Oceano, com interiores pouco acessíveis, sertões, rios, florestas, entre outros obstáculos.31 Nesse contexto, todos tripudiavam e faziam tropelias “em nome d’el-rei”, segundo Hespanha. Assim, a própria coroa, “em estado de necessidade e em transe de perder até a face, frequentemente cobria os desmandos, ou com o silêncio de presumida ignorância, ou com o manto do perdão ou mesmo com o alarde de uma mercê por tais serviços”.32 E é importante mencionar ainda, conforme muito bem trabalhado pelo autor, que os escravos compunham essa moldura do sistema corporativo, afinal eles faziam parte da casa, da família, estando para as sociedades coloniais como os criados, camponeses e outros estavam para as sociedades europeias, e eram regidos por um direito fundamentalmente doméstico, controlado pelos pais de família.33 Já a prerrogativa do autogoverno das comunidades, isto é, a legitimação desse poder pela legislação da própria monarquia, deu-se para “reconhecer o papel de liderança local que cabia às “pessoas principais das terras” (1570), aos “melhores dos lugares” (1603, Ordenações), aos “melhores da terra” (1618), às “pessoas da melhor nobreza” (1709)”, e assim “reservando-lhes os “principais ofícios da República” nas diversas povoações do reino, ou seja, os ofícios honorários das câmaras e os postos superiores das ordenanças.”34 Joaquim Romero Magalhães teria sido um dos primeiros a enfatizar a vitalidade e autonomia dos corpos políticos locais “face a um absolutismo declarado desde fins da Idade Média”.35 A realeza, segundo ele, não dispunha de meios para provir ���������������������������������������� ������������������� 30 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: ICS, 2003, p. 26, 27. 31 HESPANHA, António Manuel. Depois do Leviathan. Almanack Braziliense. No 5, maio 2007, pp. 55-66, p. 60, 61. 32 Idem, p. 64. 33 Ibidem, p. 65-66. 34 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder..., p. 43. 35 Idem, p. 26, 27. 30 � nomeações em toda parte, e para aprovar e interferir nas escolhas locais, por isso teve que reconhecer os grupos locais prestigiados em quem confiar. Assim, a vida econômica, as questões de abastecimento, o recrutamento militar, a defesa sanitária e parte das imposições fiscais, ou eram atribuições que iam sendo reforçadas, ou eram novamente delegadas aos municípios, ou até para eles transferidas.36 Segundo João Fragoso, a Coroa conferia autonomia aos conselhos nas colônias e assegurava a legitimidade das normas locais e de uma hierarquia social costumeira, possibilitando assim sua grande fluidez. Dessa forma, o autogoverno dos municípios dava aparato institucional a uma monarquia que, segundo ele, “convivia por se espalhar pelo mundo”, com diversas realidades culturais e sociais. Práticas estas que correspondiam a um determinado pensamento cristão e à sua disciplina social, apesar das diferenças dos costumes locais de município a município.37 Encerrando essa parte de nossa introdução, dedicada aos conceitos mais gerais que norteiam esse trabalho, destacamos as palavras de António Manuel Hespanha que parecem ser bem elucidativas das fragilidades de um império que não pode mais ser interpretado rigidamente por absolutista: “A centralidade “do Império” dissolvia-se num emaranhado de relações contraditórias entre uma multiplicidade de pólos, nos quais a coroa ocupava lugares e hierarquias diversas, frequentemente insignificantes, por vezes escandalosamente rebaixadas; e em que, em contrapartida, tanto se alevantavam poderes locais altaneiros, como as tais sombras dos “funcionários” régios se alongavam em dimensões autônomas, cobrindo e dando legitimidade prática a toda sorte de iniciativas e ousadias, que os regimentos rejeitavam e as cartas régias mal podiam coonestar.”38 Passando agora aos conceitos ditos acima como mais específicos a reger esse trabalho, iniciamos pela noção de direito régio, que aplicamos ao real quinto em contraposição à ideia de tributo ou imposto. Segundo Raphael Bluteau o quinto é “a quinta parte de uma fazenda, de uma soma” e a quinta parte “lhe fez doação do Quinto, que ���������������������������������������� ������������������� 36 MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os nobres da governança das terras”. In: MONTEIRO, Nuno; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares da (org.). Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005, p. 66, 67. 37 FRAGOSO, João e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, p. 11. 38 HESPANHA, António Manuel. Depois do Leviathan..., p. 58. 31 � pertencia a el Rey desta conquista”.39 E principiamos por essa concepção, de ser o quinto pertencente ao monarca português, por sua conquista das Minas Gerais com a descoberta do tão procurado ouro do Brasil. Friedrich Renger acentua, no início de um artigo onde busca sistematizar diversas informações sobre formas de cobranças dos quintos desde seus primeiros regimentos, até anteriores à descoberta das gerais, que o “quinto não é um imposto, nem contribuição ou tributo: na realidade, trata-se do pagamento de um direito”.40 Instituição anterior à descoberta das futuras Minas Gerais, o autor nos leva a compreender como o quinto era tratado como um direito pela legislação portuguesa desde o rei D. Duarte (1433-1438), sendo incorporado depois às Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Com acrescentamentos pontuais, é possível acompanhar na leitura do texto o quinto visto como um “direito real” sobre veios de ouro ou prata ou qualquer outro metal e como os reis em diversas ocasiões afirmavam repetidamente seu direito sobre essas extrações. Nas Ordenações Filipinas, que também teriam sido base da legislação do Brasil Colônia até 1916, os direitos reais, segundo destaca Renger, continuavam os mesmos, e é até criado um novo título: Das Minas e Metais, certamente inspirado pelas notícias dos novos descobrimentosde ouro no Brasil, conforme acredita o autor.41 Nesse título das Ordenações Filipinas, o título XXXIV, diz-se que o rendimento dos direitos devia se dar “como sempre se usou nestes Reinos”. O registro de tudo devia ser feito pelas câmaras, e “de todos os metais que se tirarem, depois de fundidos e apurados, nos pagarão o quinto em salvo de todos os custos”.42 Além disso, só depois de pagos os devidos direitos se poderia vender o ouro para quem se quisesse. Fica evidente a questão do costume já empregado de se dar ao rei a quinta parte sobre todos os metais que se tirassem de qualquer solo de seu domínio. E nas Minas Gerais, também regida pelas ditas ordenações, igualmente deveria se compreender que o quinto sobre seu precioso ouro era devido ao rei salvo de seus custos. ���������������������������������������� ������������������� 39 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. DINFO: Universidade do Estado de Rio de Janeiro. CR-ROM. 40 RENGER, Friedrich. O quinto do ouro no regime tributário nas Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, n. 1, jul./dez. 2006, pp. 90-105, p. 92. 41 Idem, p. 92 ss.. 42 ALMEIDA, Cândido Mendes de, ed. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d'El-Rey D. Philippe I. 14ª Edição. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Filomático, 1870, Livro II, Título XXXIV. In: CARDIM, Pedro; XAVIER, Ângela Barreto e SILVA, Ana Cristina Nogueira da (coord.). Ius Lusitaniae - Fontes Históricas do Direito Português. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, POCTI, Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=85&id_obra=65&pagina=69 32 � Antonil, na sua terceira parte de Cultura e Opulência do Brasil, em vários momentos diz dos quintos “devidos à Sua Majestade”. No entanto, há um tópico específico onde ele disserta sobre a obrigação de se “pagar a El-Rey nosso Senhor a quinta parte do Ouro, que se tira das Minas do Brasil”.43 Em tal tópico, o autor começa por tratar de pontos nas ordenações onde fica claro o direito do rei sobre parte os metais retirados das minas, trechos inclusive que já mencionamos acima. Todos os que falaram dessa questão, segundo ele, eram concordantes “serem de tal sorte as Minas do Direito Real, por razão dos gastos, que El-Rey faz em prol da República, que por essa causa não os pode alienar”.44 Citando vários juristas, não só portugueses, Antonil vai comprovando como é patrimônio régio o que se minera, independente do metal, em vários lugares semelhantemente às Minas Gerais e ainda que fossem terras particulares. Contudo, Antonil também levanta a questão de se o quinto seria um tributo, mas ainda assim destaca: “Ou se considerem pois as Minas como parte do Patrimônio Real, ou como justo Tributo para os gastos em prol da República, é certo, que se deve a El-Rey o que para si reservou, que é a quinta parte do Ouro, que delas se tirar, puro, e livre de todos os gastos: e que o que se manda nas Ordenações acima referido, está justamente ordenado: e que prescindindo de qualquer pena, o quinto ex natura rei se lhe deve, não menos, que outro qualquer justo tributo, ordenado para bem da República, ou como cobra a pensão, que impõem sobre qualquer outra parte do seu Patrimônio, como é a que se lhe deve, e se lhe paga dos Feudos.”45 Perceba-se que a distinção entre direito e tributo para Antonil aparentemente parece não ser uma questão importante, mas pelas suas próprias palavras é possível notar que o que considera mais relevante, de ser o quinto devido ao rei por direito dele, legitima o que se entende pela primeira acepção, qual seja, a de direito régio. Continuando seu raciocínio da assertiva acima, Antonil sublinha ainda que dessa matéria não se deveria permitir por dúvida “por ser sentença do Vigário de Cristo na Terra, dada, e publicada legitimamente, depois de maduro conselho, e grande atenção, como pedia a matéria, e defendida por justa, ���������������������������������������� ������������������� 43 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1982, p. 146. 44 Idem, p. 147. 45 Ibidem, p. 150. 33 � válida, e lícita de tantos, e tão insignes Doutores”, dúvida esta que não devia ser colocada na própria conquista do Brasil.46 Juntamente à discussão detalhada que Antonil trava em torno dos quintos como direito ou tributo, outro ponto ainda é tratado e diz respeito ao fato dessa quinta parte do ouro tirado das Minas ser obrigação em consciência ao rei ou questão meramente penal. O autor é exato ao dizer que: “E deste fundamento certíssimo se infere também certamente, que os quintos do Ouro, que se tira das Minas do Brasil, se devem a El-Rey em consciência: e que a Lei feita para segurar a cobrança deles, não é meramente penal, ainda que traga anexa a cominação da pena contra os transgressores; mas que é Lei dispositiva, e moral, e que obriga antes da sentença do Juiz em consciência.”47 A obrigação em consciência parece, a nosso ver, endossar ainda mais a concepção do quinto como um direito máximo do rei, a ele devido, e legitimamente, como destacado ainda na primeira citação dessa introdução. Aliás, nos próprios livros dos quintos a palavra direito aparece a eles se referindo, ainda que a natureza dos documentos fiscais não nos permita travar esse tipo de discussão, devido à sua aridez. Mas o uso do termo também era frequente em outros documentos da época que tivemos acesso, ainda que não tenhamos nos detido especificamente em correspondências, pareceres, instruções e outros documentos afins.48 Em um deles se diz claramente do “Direito Senhorial dos Quintos nas cem arrobas de ouro, que os Povos da dita Capitania ofereceram a Sua Majestade para se premirem da Capitação com que eram vexados”.49 O segundo conceito mais específico que gostaríamos de mencionar é o de elite. Ao trabalharmos com um grupo específico, que certamente se localizava no topo da sociedade mineradora, entre seus principais, como veremos, é essencial mencionar o que tratamos nessa pesquisa por elite, sendo esse conceito tão caracteristicamente vago. E fazendo tal afirmação concordamos com António Manuel Hespanha quando discorre sobre a ���������������������������������������� ������������������� 46 Ibidem, p. 150, 151. 47 Ibidem, p. 154. 48 AHTCP, Livro 4066, Erário Régio, 1783, 1784. 49 AHTCP, Livro 4070, Erário Régio, 1790. 34 � imprecisão do termo destacando que todos os grupos são de certa forma elite por ter algum grupo que os reconheçam como detentores de uma legitimidade para dirigir.50 Apesar de reconhecer esses preciosos questionamentos, destacamos que vivemos em um contexto crítico onde as tendências atuais da historiografia brasileira apontam para a colocação do estudo das elites em cena, bem como também da sua relação com os demais grupos sociais que as rodeavam, revelando produção notável e elevada qualidade. Nesse momento deixamos claro que, nos amparando nesses estudos, entendemos por elites aqueles que “controlavam ou pretendiam controlar as artérias da economia colonial”,51 no plural considerando a heterogeneidade desses grupos.52 A nobreza da terra era um desses grupos, um “punhado de famílias que comandaram a conquista da América para a monarquia portuguesa e, entre outros agentes, foram os responsáveis pela organização da sua base produtiva (cana-de-açúcar, pecuária, lavras de ouro etc.) e do governo econômico da res publica”.53 Para as Minas, esses grupos locais, “reconhecidos como parte fundamental do organismo pelo qual o rei devia zelar”54, já começaram a ser satisfatoriamente conhecidos. Os conquistadores, que se tornavam a nobreza da nova terra, faziam surgir, segundoFragoso, uma “nova geografia política”, com novas feições e alianças familiares supracapitanias.55 Trabalhos visando conhecer o perfil econômico, origem e inserção política e social desses grupos, revelam que esses homens em geral se destacavam pelos bens que possuíam, pelas patentes militares que ostentavam, pelos pleitos com o Conselho Ultramarino ou cargos da administração colonial que ocupavam.56 Na sua maioria vindos do norte de Portugal, esses homens tinham feições cosmopolitas, e construíam redes nos ���������������������������������������� ������������������� 50 HESPANHA, António Manuel. “Governo, elites e competência social..., pp. 39-44. 51 FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Introdução”. In: ______. Conquistadores e Negociantes..., p. 19. 52 Sobre as múltiplas formas que a nobreza assumir na colônia ver: NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Ser nobre na colônia. São Paulo: Unesp, 2005. 53 Idem. 54 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. “A conquista do Centro-Sul: fundação da Colônia de Sacramento e o “achamento” das Minas.” Texto inédito (em prelo). Rio de Janeiro: 2009, pp. 1-39, p. 38,39. 55 FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra, supracapitanias, no Setecentos”. In: MONTEIRO, Nuno; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares da (org.). Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005, pp. 133-168, p. 133. 56 Destaque especial para: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e pobres em Minas Gerais: produção e hierarquização social no mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. 35 � mais distintos pontos do império.57 O conhecimento da imigração e do sistema de casamentos, e assim dos seus entrelaçamentos familiares,58 ajudam a compreender como as relações eram tecidas cotidianamente, quais eram as opções abertas para estes homens, e o que faziam para alcançar o que almejavam.59 No entanto, há de se considerar também o fato desses grupos se encontrarem em Minas em constante formação, devido à fronteira aberta por conta da atividade mineradora que trazia novas levas de população por sucessivas décadas. Destacamos ainda, conforme constatações de Nuno Monteiro, que as elites sociais e institucionais do Brasil, ainda que se estruturassem em hierarquias próprias, e obviamente diferentes por ocasião do espaço em que estavam inseridas, procuravam conquistar os mesmos tipos de distinções que eram importantes no centro do império.60 E o rei as premiaria, pois à custa de seu suor e fazendas serviam das mais diversas formas ao monarca.61 Tais constatações que caracterizam as elites do Brasil também nos serviram de base para compreender como atuavam e qual era o perfil de uma elite ligada ao ouro, os cobradores dos reais quintos. Chegamos a outro momento importante dessa introdução, qual seja, a exposição de nosso suporte metodológico da pesquisa, aqueles pressupostos que guiaram, portanto, a maneira como olhamos e trabalhamos as nossas fontes documentais. Tal suporte diz respeito fundamentalmente a procedimentos microanalíticos e de caráter prosopográfico, técnicas e métodos que se mostraram essenciais e que, a nosso entendimento, se adequaram perfeitamente aos nossos objetos de estudo. Quanto aos primeiros procedimentos, os microanalíticos, há de se destacar que tais pressupostos foram resultado de um conjunto de reflexões decorrentes do questionamento das grandes interpretações, seguido de um movimento de recuperação do sujeito na cena ���������������������������������������� ������������������� 57 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Do Reino às Minas: o “cosmopolitismo” da elite mineira setecentista.” In: FRAGOSO, João... [et al.] (orgs.) Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006, pp. 331-354. 58 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Trajetórias imperiais: imigração e sistema de casamentos entre a elite mineira setecentista”. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006; pp. 71-100. 59 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados.” In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 121-193, p. 129. 60 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder..., p. 135. 61 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. “Uma nobreza da terra com projeto imperial..., p. 144. 36 � histórica. Essa perspectiva alternativa, no que rompe com interpretações estrutural- funcionalistas da sociedade, procura conferir atenção ao estudo da ação social, enquanto relações que os indivíduos verdadeiramente experimentavam e participavam ativamente. Falamos do que ficou conhecido por micro-história. Mais do que uma nova metodologia, a micro-história, em sua vertente italiana, surgiu na década de 1970 com um inovador corpo teórico, ainda que obviamente não homogêneo, respondendo aos problemas vividos pela disciplina histórica naquele determinado momento. Em período de dúvidas e interrogações, de perda da confiança na quantificação, de abandono dos recortes clássicos, e de questionamento de noções, categorias e modelos vigentes,62 as concepções dessa nova abordagem surgiram como uma opção interessante aos estudos dedicados ao conhecimento da sociedade, especialmente as pré-industriais. A diferença estava inicialmente no modo mais refinado de se conceber a própria ideia de sociedade e essa raiz interpretativa nasceria principalmente de um diálogo constante com a antropologia. Deter-nos-emos brevemente nos estudos do antropólogo norueguês Fredrik Barth, devido à sua incontestável influência nos trabalhos da perspectiva mencionada.63 Na busca “por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades”,64 Barth entendia que todo comportamento social era interpretado e construído constantemente, já que o mesmo não era “transparente, objetivo e inconteste”.65 Assim, os sistemas sociais que regulam esses comportamentos são consequentemente desordenados, já que repletos de fissuras e incoerências. Para compreender melhor uma sociedade, o caminho era pensar nesse conceito “como o contexto de ações, e não como uma coisa – caso contrário, ele permanecerá como um objeto ossificado no corpo de nossa teoria social em ���������������������������������������� ������������������� 62 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRS, 2002. 63 A obra de Karl Polanyi também foi referência igualmente importante para alguns autores, na medida em que defendeu uma substância humana e natural da sociedade, onde a economia sempre estaria submersa nas relações sociais, sendo assim impossível de se pensar em uma mão invisível a controlar o mercado em qualquer época. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 64 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2000, p. 167. 65 Idem, p. 173. 37 � desenvolvimento.”66 Para ele, uma sociedade só existiria devido à ação de seus componentes. Como o mundo social é compreendido de forma aberta à ação dos seus agentes, se torna possível a busca pela reconstituição das redes de relações sociais, estratégias, escolhas e recursos possuídos por essas pessoas, ainda que
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