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Gonzalo Torrente Ballester Cronica do rei pasmado (pdf)(rev)

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Gonzalo Torrente Ballester 
 
Crónica do Rei Pasmado 
 
 
Scherzo em re(i) maior 
alegre, mas não demasiado 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://groups.google.com/group/digitalsource 
 
 
UMA TERRA SEM AMOS 
 
EDITORIAL CAMINHO 
Gonzalo Torrente Ballester 
Título original: 
Crónica del Rey Pasmado 
8ª edição 
Tradução de António Gonçalves 
(C) Gonzalo Torrente Ballester, 1989 
Direito de tradução para 
Portugal reservados por 
Editorial Caminho, SA, Lisboa – 1992 
 
 
 
 
 
Tal como acontecera já em Espanha, A Crónica do Rei Pasmado foi um grande êxito 
em Portugal. 
Nada mais natural. É que este «scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado», 
como o próprio autor lhe chama, é um livro particularmente saboroso, hábil e irónico, 
narrado com a maestria e a sabedoria de um escritor como Ballester. 
A partir do pasmo extasiado do rei ao ver pela primeira vez uma mulher nua, e ao 
querer ver nua também a rainha, toda uma intriga se tece na corte, metendo nobres, 
inquisidores, uma afamada meretriz, um jesuíta português, a superiora do convento; toda 
uma tela de uma obra que bem justifica o qualificativo de pitoresca, num divertimento de 
primeira água. 
De Gonzalo Torrente Ballester, a Caminho publicou, nesta mesma colecção, 
Fragmentos de Apocalipse, Prémio da crítica 1977, e A Morte do Decano. 
 
 
 
 
Para o meu colega Jesus Ferrero, 
- fraternalmente 
G. T. B. 
 
 
 
 
Capítulo I 
 
 
1. 
 
A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres, maravilhas e 
surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre testemunhas e 
testemunhos. Mais exacto seria, certamente, dizer que toda a gente falou deles, ainda que 
ninguém os tivesse visto; mas, como a exactidão é impossível, mais vale deixar as coisas 
como as contam e contarão: foi a cova da rua do Pez, que ficou à vista do mundo durante 
todo o dia, e o povo acorreu a vê-la e cheirá-la como se fosse a abada. O caso, segundo se 
relata, foi, por exemplo, assim: uma velha, de madrugada, viu sair uma víbora de debaixo de 
uma pedra: a víbora desatou a correr para baixo como podia ter desatado a correr para 
cima; mas o que viu o correeiro da Rua de São Roque já não foi uma víbora, mas sim uma 
cobra de razoável tamanho, que também desatou a correr para cima ou para baixo, a 
direcção não consta. A beata que saía de São Ginés, de ouvir a missa da alba, viu um 
verdadeiro cobrão que, esse sim, ia a caminho do Paço, mais coisa menos coisa; e, 
finalmente, alguém da Guarda Valona que ia para o serviço ou vinha dele (isto não é muito 
preciso), o que pôde contemplar, atónito ou esbugalhado, foi uma gigantesca boa que 
rodeava o Paço, pela parte que assenta na terra ou confina com ela, e parecia apertar o 
edifício com ganas de o derrubar, ou pelo menos de o espremer, o que parece mais 
verosímil, pelo menos do ponto de vista da semântica. O guarda valão começou aos gritos 
na sua língua, mas, como ninguém o entendia, deu tempo a que a gigantesca serpente 
desistisse do seu propósito, pelo menos aparentemente, e se escapulisse com espantosa 
mansidão para o Campo del Moro, onde foi procurada em vão durante toda a manhã por 
equipas de peritos que se revezavam de hora a hora. A história do tesouro de moedas 
antigas atribuiu-se à sorte de um catraio, mas havia algumas variantes na localização do 
achado: segundo uns, fora da Portela de Embaixadores, conforme se sai, à direita; segundo 
outros, à saída da Porta de Toledo, segundo se sai, à esquerda. Nem o tesouro nem o 
catraio foram encontrados. 
Os sinos de Santa Águeda tocando sozinhos, toda a gente os ouviu; mas quem é toda 
a gente? A história dos gritos angustiantes saindo de uma casa em ruínas veio do bairro de 
Las Vistillas: uns gritos tremendos e doloridos, de condenados ao fogo eterno ou coisa 
assim, embora também pudessem corresponder a penitentes do Purgatório: eram, vejam 
bem, gritos pestilentos. O que pôde ser comprovado por quem o quis fazer foi o caso da 
rua do Pez: com efeito, havia uma cova que atravessava a rua em linha quebrada, de sul a 
norte; a princípio, ao que parece, saíam da greta (da furna, segundo as primeiras 
testemunhas, desconhecidas) gases sulfurosos, pelo que toda a gente pensou, e com razão, 
que no fundo da greta começava o inferno, sobretudo se se tiver em conta que, com os 
gases, saíam rugidos de dor e blasfémias horrendas; mas, quando o povo começou a juntar-
se e a dar os seus alvitres, a furna já não o era, e não cheirava pior do que a própria rua. Vê-
se que os gases se tinham esgotado. 
 
 
2. 
 
O pároco de São Martinho, o da capa, D. Secundino Mirambel Pacheco, tinha estado 
em novo nas Índias, e da viagem por mar tinha trazido um óculo, presente de um piloto 
genovês com o qual travara amizade durante a travessia. Todas as noites, D. Secundino 
perscrutava o céu com aquele aparelho, se a noite era medianamente clara ou se as estrelas 
se distinguiam com suficiente fulgor. Durante muito tempo, D. Secundino não passou de 
perito em estrelas, de que falava aos seus amigos quando tomava o chocolate, à tardinha, e 
com alguns íntimos; mas as pessoas não pareciam dar mais importância às questões da 
abóbada celeste do que a aconselhada pelos pregadores, que soíam apresentá-la como 
exemplo da predilecção que a Divindade tinha pela beleza, e também de obediência, 
movendo-se como se moviam conforme as ordens recebidas há muitos séculos, não se 
sabe quantos nem convém investigá-lo. Uma noite, todavia, uma noite de sábado, 
descobriu, além das estrelas, bruxas, e considerou oportuno dar conta da sua descoberta ao 
Santo Ofício. Depois de uma sessão secreta, o Inquisidor-mor, em pessoa, encomendou a 
D. Secundino um relatório semanal sobre a qualidade e o número de bruxas reunidas, e 
possivelmente dos bruxos que transitavam pela noite sabática da cidade, ainda que fosse 
apenas por razões de estatística. Naquela manhã de domingo, tantos de Outubro, uma 
manhã cálida e soalheira, D. Secundino Mirambel redigiu o seu relatório semanal com os 
habituais escrúpulos e a bela prosa de quem tinha bebido nos melhores clássicos latinos e 
aprendido o castelhano nos arredores de Écija: se ceceava um pouco, o ceceio não se 
transmitia ao papel (O ceceio, em Espanha, é próprio das regiões do Sul do país; Écija é uma cidade andaluza 
da actual província de Sevilha. (N. do T.). Saiu de casa pela fresca, entregou o relatório a um 
fâmulo da Santa Inquisição e regressou a casa depois de dizer missa, de tomar um 
chocolate e beber um copo de água fresca, como lhe pedia o corpo; deitou-se sem se 
despir, pois, aos domingos e à cautela, apenas costumava fazer uma curta soneca. O fâmulo 
da Santa Inquisição passou o escrito a Sua Excelência, de pé desde a madrugada, com a 
missa já dita e graves problemas no coração e na cabeça. Estava no seu gabinete, anexo ao 
salão do Conselho. Abriu a carta de D. Secundino, deu-lhe uma olhadela, mas, de repente, 
alguma coisa lhe deve ter chamado a atenção, porque se pôs a ler atentamente, com o 
cenho franzido e exclamações intercaladas, tais como: 
- Deus nos valha! Onde isto chegou! Anda o demónio à solta! 
Acabou de ler, fechou a carta e ordenou que fossem imediatamente ao convento de 
São Francisco e que se apresentasse frei Eugénio de Rivadesella, sem mais delongas. 
 
 
3. 
 
O conde da Peña Andrada dava os últimos retoques ao seu penteado diante de um 
espelhinho que lhe trouxera Lucrécia. Ela observava-o por trás, observava-os a ele e à sua 
imagem no espelho. Quando o conde largou o pente, ela deu-lhe um beijo no cabelo e 
disse-lhe: «Estás lindíssimo.» E foi-lhe buscar a roupeta azul-celeste,para que acabasse de 
se vestir. 
- Já terá acordado, a tua ama? 
- Costuma ser mandriona, e mais aos domingos. 
- Pois, ao Rei, haverá que acordá-lo. Vão sendo horas. 
- Eu não me atrevo. Acorde-o o senhor. 
Aproximaram-se da porta do quarto de Marfisa, e Lucrécia abriu-a cautelosamente. 
Um raio de Sol atravessava a sala, iluminava os grandes mosaicos, brancos e vermelhos, do 
pavimento, e chegava até à beira da cama. 
Na sua penumbra, dormiam duas figuras: a do Rei, à beirinha; a de Marfisa, ao fundo. 
O conde aproximou-se em bicos de pés e tocou no ombro nu do monarca. 
- Senhor, já são horas. 
Sua Majestade abriu os olhos preguiçosamente. 
- O que é que há? 
- É preciso levantar-se. É tarde. 
Começaram a dar as oito numa torre: as badaladas tremiam no ar quente, 
prolongavam-se, misturavam-se umas com as outras até parecerem uma só. 
- Não é muito cedo, conde? 
- Temos que atravessar a cidade. 
- A pé? 
- Espero que a minha carruagem nos aguarde. 
O Rei levantou-se: nu, deixava ver a sua magreza, e esta adivinhar os seus ossos 
delicados. Afastou o cobertor de papa e ficou em pelota. 
- Dá-me a minha roupa. 
O conde obedeceu, em silêncio. O Rei começou a vestir-se. 
- Gostaria de me refrescar um pouco. 
- Não é impossível, senhor. 
O corpo de Marfisa tinha ficado meio a descoberto: deixava ver a cabeleira, as costas, 
a fina cintura, o arranque das nádegas. O Rei fitou-a. Com surpresa, com estupefacção. 
- Viste coisa mais bela? 
- Há muitas coisas belas no mundo. 
- Mais do que o corpo de uma mulher? 
- Se é o de Marfisa, dificilmente. 
- Até ontem à noite, nunca tinha visto uma mulher nua. 
- E então? 
- O paraíso tem que ser uma coisa semelhante. 
O conde torceu o nariz. 
- Não creio que os senhores inquisidores aprovassem essa ideia. 
- Que saberão os senhores inquisidores de mulheres nuas? 
- Segundo eles, tudo. 
O Rei já se encontrava meio vestido. O conde pediu a Lucrécia uma bacia com água 
fresca. O Rei começou a remexer na escarcela. 
- Que procura Vossa Majestade? 
- O meio ducado para Marfisa. 
- Meio ducado, só? 
- É o que indica o protocolo, segundo ouvi dizer. 
O conde sorriu. 
- Senhor, o protocolo está antiquado, e Marfisa é a puta mais cara da cidade. Pelo 
menos dez ducados. 
O Rei fitou-o, assombrado. 
- Não os tenho. Nunca tive dez ducados. Este meio que procuro tive que o pedir ao 
meu moço de câmara. Depois, vão contá-lo nas suas memórias. 
O conde meteu a mão na sua escarcela e tirou uma bolsa de veludo. 
- Aqui estão os dez ducados. Trazia-os para Lucrécia. 
Lucrécia entrava com a bacia e ouviu a frase do conde. 
- Vossa Senhoria a mim não me tem que dar nada. Considero-me paga. 
O Rei fitou o conde, e o conde tornou a sorrir. 
- A mim - disse o Rei -, Marfisa não me disse isso. 
- É que a minha ama, Senhor, fá-lo por ofício, e... eu, por gosto, e o senhor conde 
deixou-me satisfeita. 
- Podes beijá-la na minha presença, conde. 
O Rei salpicou a cara e enxugou-a com a toalha que Lucrécia lhe oferecia. Enfiou o 
chapéu, mas o conde manteve-se descoberto. 
- Cobri-vos, conde - disse o Rei. 
O conde obedeceu. 
- Obrigado, senhor. 
- Contá-lo-emos no palácio, diante do Valido (Espécie de primeiro-ministro característico dos 
reinados dos monarcas espanhóis durante o século XVII. (N. do T.), para que se roa de inveja. 
Agora vamo-nos embora. 
Lucrécia acompanhou-os à porta. Deu um beijo ao conde e chamou-lhe bonitão ao 
ouvido. A carruagem esperava: pouco sumptuosa, mas sólida e elegante. Lucrécia agitou a 
mão. A carruagem corria pela rua, cheia de altos e baixos, como pela superfície de um 
espelho. O Rei olhava em frente, como se o envolvesse o infinito. Tinha cara de pasmado. 
- Que fitais com tanta atenção, Senhor? 
- O corpo de Marfisa. Não posso ver outra coisa. 
 
 
4. 
 
O moço de câmara que emprestara o meio ducado ao Rei entrou no gabinete pela 
porta dos confidentes e ficou quieto, humilde, mas fitando de soslaio o Valido. 
- Passa-se alguma coisa, Cosme? 
- Vossa Excelência que junte o fio à meada: Sua Majestade não dormiu no palácio, 
tem a cama por desfazer e não aparece em parte nenhuma. Ontem, quando me despedi 
dele, pediu-me meio ducado. 
- E que deduzes tu, Cosme? 
- Que o Rei foi para a farra, Excelência; meio ducado é o que pagam os Reis às suas 
putas, conforme sempre ouvi dizer. 
- Há coisas, Cosme, que não devem ouvir-se nunca. 
- Peço-lhe perdão, Excelência, mas, graças a que não sou surdo, Vossa Excelência 
recebe-me em segredo. 
- Tens razão, Cosme. E saiu sozinho, o Rei? 
- Ao certo, ao certo, não sei. Mas, quando eu o deixei, estava com o conde da Peña 
Andrada. 
O Valido ficou em silêncio, a olhar para o friso da parede fronteira que confinava 
com o artesoado. Uma loucura de esfinges e de dragões multicéfalos de muito boa factura. 
- O conde da Peña Andrada. E quem é esse? 
- Não saberia explicar-lho, senhor, a não ser que é um cavalheiro jovem, de muito 
bom aspecto, que o Rei trata com confiança. 
- Retira-te, Cosme. Obrigado. 
Cosme inclinou-se e saiu pela mesma porta por onde tinha entrado. Nessa altura, o 
Valido fez soar a campainha, de som fino, mas penetrante. Entrou um pajem e ficou mudo 
junto da porta. O Valido escreveu umas letras num papel. 
- Leva isto ao chanceler-mor e que traga imediatamente o que lhe peço. 
Saiu o pajem, o Valido murmurou: 
- Com que então às putas, sem eu saber. 
A cara do Valido não parecia muito satisfeita, nem muito tranquilo o seu olhar. O 
chanceler-mor não tardou muito a chegar. 
- Aqui está o que pede, Excelência. 
- Custou-te muito encontrá-lo? 
- Nada, Excelência. Estava em cima da minha mesa. 
- E por que é que lá estava? Fez alguma petição, esse conde, ultimamente? 
- Não, que me lembre, Excelência. E é um nome que eu nunca tinha ouvido. Conde 
da Peña Andrada. É tudo muito estranho. No entanto... 
- No entanto, o quê? 
- Aí estão os seus papéis. Tudo em regra: é um condado concedido pelo imperador, a 
título pessoal, mas declarado hereditário e de Castela pela majestade de D. Filipe II, que 
além disso concede aos titulares patentes de corso contra ingleses e holandeses, com a 
condição de que mantenham uma esquadra de seis navios e entreguem à coroa um quinto 
das presas. As contas estão em regra, senhor, e pagaram aos reis de Espanha um bom 
punhado de moedas e outros bens. Há também... - o chanceler-mor fez uma pausa e fitou o 
Valido. - ... Há também um pleito com a casa de Andrade, por questão de limites de 
senhorio. O que se disputa é o vale de Valdoviño. A causa está na Real Chancelaria de 
Valladolid. 
- E onde fica esse tal Valdoviño? 
- Tem que ser na Galiza, senhor. Terra de bruxas, onde nada é claro. A gente boa que 
por lá há, ou vem para Madrid, como os de Lemos, ou fica em Salamanca, como os de 
Monterrey. Aqui citam-se aldeias e cidades de que ninguém faz ideia: Cedeira, Santa Marta 
de Ortigueira... Qualquer coisa como Caraño ou Cariño, não é muito claro. São os portos 
autorizados para essa esquadra... 
O Valido olhou para o volumoso processo, sopesou-o. 
- Papéis e mais papéis. Guarde-os Vossa Mercê, mas não os perca de vista. Posso 
precisar deles. 
O chanceler-mor pegou no cartapácio, fez uma reverência, tornou a reverenciar ao 
chegar à porta, e saiu: a sua partida coincidiu com a chegada do padre Germán de 
Villaescusa, um capuchinho: tinha entrado pela porta dos confidentes. Fez uma profunda 
vénia. O Valido levantou-se e beijou-lhe a mão. 
- Já está ao corrente, padre? 
- Todo o palácio o sabe. E o Rei acaba de regressar. Não disse uma única palavra, 
meteu-se nos seus aposentos, sentou-se diante de uma janela, e parece que contempla o 
céu.- Sintomas de arrependimento? 
- Como se pode interpretar o olhar de um homem para o horizonte? 
- De mil maneiras, metade boas, metade más. 
- Esse homem é o Rei. 
- Que acaba de passar a noite nos braços do pecado. 
- É o que parece, padre, e isso é que é o pior. 
- Vossa Excelência tem alguma outra notícia? 
- Que o alcoviteiro foi um tal conde da Peña Andrada, que desconheço. 
- Eu, em compensação, ouvi o seu nome... Sim, deixe-me pensar. É um galego, não é 
verdade? 
- Assim parece. 
- A presença do Apóstolo naquelas terras não parece ter favorecido a causa do 
Senhor. Sei de muito boa fonte que mais de noventa por cento dos galegos, clérigos 
incluídos, se condenam. 
- Não são muitos réprobos, padre? 
- Pode haver algum erro, mas escasso. Digamos oitenta e nove. 
- Mesmo assim... 
- As mulheres, as que não são bruxas, são putas. Os relatórios do Santo Ofício 
garantem-no. 
- Deveria haver maneira de o Rei, sem se desfazer dessas terras, se libertar de 
semelhante gente. 
- Pois não me parece difícil... 
O Valido imaginou o distante Reino da Galiza ardendo pelos quatro costados, num 
gigantesco auto-de-fé. O remédio do padre Villaescusa era sempre o mesmo. 
Ficaram um momento em silêncio, fitando-se. 
- O pior, padre, é que se anuncia a chegada de uma frota das Índias e, por outro lado, 
nos Países Baixos parece iminente uma grande batalha. 
O frade persignou-se. 
- Se os ingleses nos roubarem o ouro e os holandeses a vitória, haverá que acatar a 
vontade de Deus. 
- Isso, padre, é evidente. Mas a vontade de Deus é inflexível. 
O frade pôs-se de pé. 
- Vou-me pôr a rezar, para ver se o Senhor me inspira o remédio. É muito cedo. 
Daqui até à missa solene, ainda faltam umas duas horas. O que se pode obter de Deus, 
nesse tempo! 
- Pois lembre-se também de mim, padre; desde há três dias que a minha esposa está 
de novo com as regras... 
- É um duro fardo das mulheres, do qual se deduz a sua condição inferior em relação 
aos homens. 
O Valido levantou-se, aproximou-se do frade e pôs-lhe as mãos nos ombros. 
- Mas eu preciso de um herdeiro, padre, mais do que da própria vida, que não pode 
esgotar-se em mim próprio. E Vossa Reverência conhece as minhas súplicas e sacrifícios. 
O Senhor não parece ouvir-nos, nem à minha esposa nem a mim. 
- Será porque as suas súplicas não chegam ao céu. 
- Teremos que gritar, padre? Gritar publicamente, vestir-nos de penitentes, passar 
sem comer e sem beber? 
- Não posso responder-vos, senhor. Vou rezar. Alguma coisa me há-de inspirar o 
Altíssimo. 
Fez nova reverência, um pouco mais curta, e saiu pela porta dos confidentes. 
 
 
5. 
 
Lucrécia acorreu ao terceiro grito de Marfisa. A verdade era que não tinha gritado 
tanto como noutras manhãs, em que a ouvia a vizinhança. 
- Lucrécia, Lucrécia do demónio, onde te meteste? 
Lucrécia entrou compungida. 
- Estava a preparar o banho da senhora. 
- Ah, isso parece-me bem. Realmente o que me pede o corpo é um banho, mas não 
muito quente. Como está o dia? 
- Escaldante, senhora. Pode-se estar no pátio graças à sombra da parra. Parece que o 
Verão se prolonga. 
Marfisa estava nua e esparramada em cima da cama, com as roupas aos pés, feitas 
numa rodilha, como se as tivesse espezinhado. 
- E aqueles dois? 
- Partiram de manhãzinha, senhora. 
- Iam satisfeitos? - E, antes que Lucrécia lhe respondesse, acrescentou: - Pagaram-te? 
- Em cima da mesa está uma bolsa com dez ducados de ouro, e a mim o Rei deu-me 
meio ducado. Creio que não tinha mais. 
Deu o dinheiro a Marfisa, que o fez tilintar. 
- Pelo menos é ouro. Dez ducados, dizes tu? Sai a dois e meio por cada ofensa a 
Nosso Senhor, e a bolsa pela nega. É de bom veludo. 
- Uma nega, disse a senhora? 
- Sim, filha, a quinta já não pôde ser. Empenhou-se em mirar-me e remirar-me, e, 
quando se cansou, disse que tinha sono e deixou-me com a água na boca. Precisamente 
quando me começava a apetecer. E tu? 
- Eu passei a noite, senhora, num puro gozo, com o conde sempre em cima de mim, 
e aqueles olhos de gato que não deixavam de me fitar. Mais que de gato, de tigre. 
Os olhos dos tigres devem ser assim. Iluminavam o quarto todo. 
- Exageras. 
- Juro-lhe pela memória de minha mãe, que também foi puta, mas que se arrependeu 
a tempo. E o belo enterro que teve, graças a Deus e às almas cristãs! 
- Deixa em paz a memória da tua mãe, e alcança-me uma toalha, para me embrulhar. 
Enquanto tomo banho, prepara-me de almoçar. Estou morta de fome. 
Saltou da cama e embrulhou-se no toalhão que Lucrécia tinha tirado de um arcaz. 
Deixava-lhe a descoberto as coxas morenas e justas, as pernas esguias. Lucrécia 
contemplava-a. 
- Por isso é que as coisas são como são e não como deviam ser. Esse corpo merecia 
outra sorte. 
- Queres dizer um marido? 
- Deus me livre de tal coisa! Quero dizer melhores amantes. 
- Parece-te pouco o Rei, ainda que seja só por uma noite? 
- O Rei não a deixou satisfeita, pelo que acabo de ouvir. Em compensação, eu... 
Enquanto saía do quarto, Marfisa respondeu-lhe: 
- O Rei é um catraio. Não sabe da missa a metade, nem nunca tinha visto uma 
mulher nua. O que aprenderia na minha cama, em sete noites! 
- Então, para que é que é Rei? 
 
 
6. 
 
O Rei deixou de contemplar o horizonte, onde a última mulher nua se tinha 
desvanecido, e ficou alguns instantes cabisbaixo, embora com cara de aluado. Depois 
levantou-se e disse a Cosme, que esperava ao pé da porta: 
- Traz-me as chaves da sala proibida. 
Cosme tremeu visivelmente. 
- Isso mesmo, ouviste bem. 
- E se mas recusarem, que faço? 
- Dizes que é ordem real. 
O moço de câmara inclinou-se profundamente e saiu. O Rei hesitou por instantes. 
Aproximou-se da janela aberta, que dava para a praça de armas. Um pelotão de soldados 
exercitava-se ao longe. Mais perto, conversavam alguns cavalheiros, e um cavaleiro muito 
emplumado caracoleava com o seu cavalo perante um grupo de espectadores estupefactos: 
tudo sob um sol que começava a ser tórrido. Alguém enxergou o Rei, e fez uma saudação 
com o chapéu. Os outros saudaram também, e os soldados do pelotão apresentaram armas, 
mas o Rei não os via: via apenas um imenso vazio: impreciso nos seus contornos, como se 
fosse feito de nuvens. Mas o céu estava limpo. O Rei fechou os olhos e continuou a vê-lo, 
e só então se convenceu de que o tinha dentro de si, de que não podia ver outra coisa. 
Ficou a contemplá-lo com o rosto imóvel e o olhar fixo, até que chegou o pajem e fez soar 
as chaves. O Rei voltou-se e estendeu a mão; o pajem, ao entregar-lhas de joelhos, advertiu: 
- Tive que as roubar, senhor. 
- Fizeste bem. 
O Rei saiu, carregado com as chaves, cujo tilintar enchia a penumbra. Atravessou 
salas e passadiços, abriu com a chave mais grossa a porta maior e fechou-a por dentro: 
tinha entrado num dédalo de corredores ziguezagueantes, interrompidos por escadas que 
subiam e escadas que desciam. Teve que abrir, ainda, mais duas portas, que também fechou 
depois de as ter transposto. A sala proibida correspondia a uma torre, a do nordeste. Estava 
às escuras. Às apalpadelas, encontrou uma janela e abriu-a. A sala não tinha móveis, mas 
das paredes pendiam quadros. Quando os seus olhos se habituaram à luz escassa, pôde ver 
que em todos eles havia mulheres nuas, sozinhas ou em companhia. Encontrava-se diante 
das mitologias que seu avô tinha coleccionado, e que só podiam contemplar-se com uma 
autorização especial da cúria toledana, assinada pelo punho e letra do primaz: privilégio 
deste que o Inquisidor-mor lhe disputava e que, como pleito dos que jamais se resolvem, se 
encontrava em Roma havia lustros. Por sorte, o outro Rei, seu pai, nunca tinha penetradonaquele local, pois de contrário o pleito teria sido decidido pelo fogo. 
- Os teólogos mais subtis, Majestade, têm dúvidas de que seu avô, o Grande Rei, se 
tenha salvo, só por ter gasto o dinheiro do povo nestas porcarias. 
As porcarias assinavam-nas, entre outros, Ticiano e um estranho holandês chamado 
El Bosco, Hierombosc, segundo as cartas do avô às suas filhas mui amadas. O Rei 
percorreu com o olhar aquela acumulação de corpos ao relento e deteve-se num, onde uma 
velha alcoviteira recolhia no regaço da sua saia o ouro que Zeus lançava à entreperna de 
Dafne, a qual, no entanto, algum ouro devia receber no sítio preciso, a julgar pela cara que 
fazia. Dafne tinha umas coxas esguias e um corpo dourado, semelhante ao de Marfisa. O 
Rei ficou diante dele, como pasmado, durante muito tempo. 
 
 
7. 
 
Frei Eugénio de Rivadesella chegou deitando os bofes pela boca, ou, pelo menos, foi 
o que disse, pois o santo titular da sua ordem não se tinha lembrado de inventar, para os 
dias cálidos, um hábito mais ligeiro, de maneira que o Inquisidor-mor teve de acudir ao seu 
sufoco e pedir urgentemente que lhe trouxessem um refresco eficaz, dos que guardavam 
para estes casos no fundo do poço. Com ele, e com uma aguardente que se lhe seguiu, o 
padre Rivadesella ficou bastante tratável, embora continuasse a cheirar a suor, coisa que 
incomodava o prelado. Mas ofereceu-o em sacrifício pelo perdão dos seus pecados, e 
passou ao frade o texto do relatório que lhe tinha trazido naquela mesma manhã o pároco 
de São Pedro. 
- Que pensa Vossa Paternidade dessas notícias? 
Do padre Rivadesella sabia-se nas altas esferas da cúria e da Santa Inquisição que 
todas as tardes, ao cair a luz, recebia o Maligno e mantinha com ele saborosas conversas, 
que se aplicavam depois à maior glória de Deus e da monarquia. O padre Rivadesella, 
depois de pôr as lentes (que alguém lhe tinha trazido da Holanda, fabricadas certamente 
por hereges, mas de muito boa visão), meteu-se na leitura e não levantou a vista antes de 
ter percorrido a última linha: por sorte, a letra miúda do pároco era das claras e legíveis. 
- Fi-lo vir cá tão de manhãzinha, reverendo padre, para ouvir o seu parecer acerca do 
que se diz nesses papéis. Vossa Reverência é a única pessoa da corte em cuja opinião me 
posso fiar, dada a sua conhecida amizade com o Inimigo do género humano e de Deus 
Nosso Senhor. 
- Eu não diria amizade, Excelência, mas antes mera relação. - Com as lentes na mão, 
brincando com elas, o padre Rivadesella acrescentou: - Por agora, Excelência, é a primeira 
notícia que tenho destes acontecimentos. Por outro lado, devo dizer que, no crepúsculo de 
ontem, Satanás faltou ao seu encontro comigo. Costumo esperá-lo debaixo de uma 
azinheira que temos no pátio, de copa tão frondosa que tudo oculta e tudo tapa, de maneira 
que, sentado debaixo dela, ninguém vislumbra nem as cruzes nem as suas sombras. Satanás 
sente-se incompatível com umas e com outras, como é sabido. Mas ontem não 
compareceu, e esperei por ele até tarde, entretendo-me com o fumo dessa erva que se traz 
das Índias e a que chamam tabaco. Recomendo-lha para as tribulações. - E, durante alguns 
minutos, cantou as excelências do tabaco e a conveniência de o usar. A seguir, continuou: - 
Não deixa de ser curioso, Excelência, e digno de ter em consideração, o facto de que esta 
manhã, com as primeiras luzes da aurora, um formidável dragão, de pelo menos sete 
cabeças, mas possivelmente de mais, tenha abraçado as fundações da alcáçova com o 
propósito de a destruir, segundo declarações de testemunhas que o viram, e como já sabe 
toda a gente na cidade. De outros prodígios também se fala, embora não de tanta monta. O 
meu confidente Satanás, que me conta muitas coisas, mas não todas as que maquina, como 
é óbvio, costuma adoptar a figura de dragão multicéfalo quando quer ser especialmente 
notado, já que um bicho dessa natureza, que se saiba, não o criou o Senhor. 
- O que a mim me interessa, padre Rivadesella, é essa outra metamorfose, que me 
parece menos lógica ou, pelo menos, inadequada ao caso. Segundo o relatório que acabais 
de ler, de todas as figuras de bruxas e de bruxos que pulularam esta última noite pelo céu 
da cidade, uma era mais bela do que as restantes, tinha sexo de varão e, ao deslizar pelos 
ares, deixava um rasto de prata. Segundo o meu entendimento, mais parece figura de anjo, 
e não dos menores. 
- Não podemos esquecer-nos de que o maior de todos eles foi Lúcifer, e que entre os 
seus atributos está o da beleza. 
- A si apresenta-se-lhe assim, como um formoso mancebo? 
- Para comparecer aos seus encontros com este humilde servidor de Deus, Satanás 
costuma escolher figuras mais modestas. A mais nobre delas é a de um fidalgo entrado em 
anos, com um bigode muito erecto; na outra ponta da escala estão o cão ou o passarinho 
que se instalam no meu regaço e falam comigo por sinais. Entre cavalheiro e pássaro, tudo 
o que Vossa Excelência se digne imaginar. 
- E como sabe Vossa Paternidade que é o Diabo? 
- Temos as nossas contra-senhas, e ele explicou-me que adopta uma forma ou outra 
por prudência e para não me comprometer. Não se esqueça Vossa Excelência de que as 
minhas relações com o Maligno, embora sejam conhecidas dos meus superiores 
hierárquicos e das autoridades competentes, até chegar a Roma, são ignoradas pelos frades 
do meu convento, apesar de algum vivaço suspeitar delas. Do mesmo modo, Satanás oculta 
aos seus sequazes as suas relações comigo. Por alguma razão, ontem, não só não veio, 
como me ocultou a sua intenção de concentrar, no céu da cidade, essa gentalha que o serve. 
- Gente belíssima também, segundo diz o relatório, e dada a toda a espécie de 
fornicações. 
- Será que Vossa Excelência esperava outra coisa de semelhantes pessoas? 
- Esperava que, pelo menos, para o fazerem, tivessem que se deitar. Mas, como 
Vossa Paternidade leu, faziam-no mesmo no ar, sem perderem o equilíbrio, e dando 
cambalhotas. Padre Rivadesella, o Diabo trata tão bem os seus amigos que não me espanta 
que os tenha. A Vossa Paternidade, faz-lhe algum favor? 
O padre Rivadesella ficou um momento pensativo. 
- Sim, Excelência, mas gratis et amore, ou pelo menos assim parece. Eu creio que 
precisa de desabafar com alguém das suas preocupações, e escolheu-me a mim. 
- Pela sua discrição, se calhar? 
- Poderia ser por isso... 
E foi nesse mesmo momento que entrou um fâmulo, que se aproximou 
silenciosamente do Inquisidor-mor e lhe falou ao ouvido. Sua Excelência respondeu-lhe: 
- Está bem, que entre. - Depois dirigiu-se ao franciscano. - Não terá Vossa 
Paternidade nenhum inconveniente em conviver, embora apenas por alguns minutos, com 
um frade capuchinho? 
- Na presença de tão alto magistrado, as rivalidades adiam-se. 
- É o padre Villaescusa. 
- Ah, o capelão-mor do palácio! Belo figurão. 
- De belo não tem nada, padre Rivadesella, pelo contrário, que nessa matéria não 
deve muito à bondade do Senhor. Quanto a figurão, em contrapartida, estou de acordo. 
O fâmulo mantinha aberta a grande porta com guarnições de bronze e figuras pagãs 
na decoração, apesar de castas. O padre Villaescusa entrou, fazendo reverências cortesãs. 
- Que o Senhor acompanhe Vossa Excelência e lhe dê longos anos de vida! - Levou a 
mão ao nariz. - Também aqui chegou esse fedor do inferno? Refiro-me, como é óbvio, a 
esse cheiro sulfuroso que penetrou na cidade e que nos tem a todos alarmados. 
- Pois o meu nariz não deu, até agora, por semelhante pestilência. 
- Só o explica o costume, reverendo padre, meu irmão no Senhor São Francisco de 
Assis. Mas toda a gente sabe que esta manhã se abriu uma greta na rua do Pez por onde 
saíam os cheiros do inferno. 
- E quaissão, Reverendo Padre, esses cheiros? 
- Se havemos de acreditar no que diz a tradição, cheiro a enxofre, nem mais nem 
menos. 
- Dizem que é um cheiro saudável, e sei de muitos lugares onde se usa para 
desinfectar o ar de espíritos malignos. Os demónios não lhe resistem, por isso o lançam 
para fora do inferno assim que surge uma oportunidade. O caso da rua do Pez terá sido 
efeito de uma dessas ventilações. 
- E é para falar do enxofre que me visita tão de manhãzinha, padre Villaescusa? 
- Não me teria atrevido, Excelência, a incomodá-lo por tão pouco, sobretudo quando 
as causas são do domínio público. Mas sucedeu uma coisa esta noite que justifica a minha 
visita tão madrugadora, e esta impertinência de vir com questões graves ao domingo. Posso 
falar sem reservas? 
- O que se diz nesta sala, o que nela se ouve, é segredo de confissão. 
- Isso tranquiliza-me. Pois o caso conta-se em poucas palavras: Sua Majestade foi às 
putas a noite passada. 
O Inquisidor-mor sobressaltou-se, mas o padre Rivadesella limitou-se a sorrir. 
- Que me diz? 
- O que já sabe toda a gente no palácio, Excelência, o que começa a saber-se na 
cidade. 
O Inquisidor-mor meneou a cabeça com gravidade doutoral. 
- A esse rapaz, teriam que vigiar-lhe as companhias. 
- De que maneira, Excelência, se no palácio há saídas secretas e servidores corruptos? 
E também há, e a isso venho principalmente, um confessor do Rei octogenário e de vista 
grossa, que perdoa tudo com as mais leves penitências e que, como toda a gente sabe, é 
tolerante com os pecados da carne, se calhar, e Deus me perdoe se penso mal, porque ele 
os cometeu. 
- Ele, nesse caso, é o Rei, não é assim, padre Villaescusa? 
O capuchinho sentiu-se incomodado com o olhar do Inquisidor-mor, e baixou a 
cabeça. 
- Evidentemente, Excelência. Era ao Rei que me referia. Mas não deixarei por isso 
que se perca no esquecimento a questão do confessor. Recordo a Vossa Excelência que se 
chama padre Pérez de Valdivielso, um converso, sem dúvida. 
O Inquisidor-mor tornou a meditar, brevemente. 
- Os judeus não se caracterizam pela sua tolerância. Recorde o meu antecessor 
Torquemada (Tomás de Torquemada (1420-1498), Inquisidor-mor de Castela e Aragão a partir de 
1483, foi o organizador da instituição em Espanha, que dirigiu até à sua morte; judeu converso, 
distinguiu-se pelo seu zelo brutal e doentio (3000 execuções). (N. do T.). 
- Os judeus, Excelência, pretendem a destruição dos reinos de Espanha, e nada 
melhor do que começar pela sua cabeça. 
- Pela cabeça dos judeus, padre Villaescusa? Desconheço-a. - Fez uma pausa e olhou 
para os frades. - Já ouvi falar do Grande Sanedrim, mas creio que são lendas. 
- E o Grão-turco, também o é? 
O Inquisidor-mor tinha começado a brincar com uma pena de faisão cortada para a 
sua escrivaninha de prata repuxada, obra, inegavelmente, de mouriscos. 
- Não, certamente; mas o perigo não vem daí. 
- Com efeito, Excelência: o perigo vem-nos da Inglaterra, da França, dos Países 
Baixos, da Alemanha, e da Turquia, além disso. Mas quem senão os judeus os move a todos 
contra nós? 
O padre Rivadesella, que estava calado havia um bom bocado, interveio: 
- Contra si e contra mim, padre Villaescusa? Porque suponho que deixará de fora 
dessa conspiração o Senhor Inquisidor. 
- Quando disse nós, quis dizer as Espanhas - respondeu com ênfase o capuchinho; e 
os outros exclamaram: 
- Ah! 
A manhã tinha-se posto quente e mesmo naquele salão, protegido por grossas 
paredes, fazia calor. Ao padre Villaescusa escorriam-lhe até à barba, onde ficavam a 
tremelicar, as gotas de suor. Ao padre Rivadesella, como estava barbeado, não lhe 
passavam das faces: ali se acumulavam, dali exalavam o seu fedor. Quanto ao Inquisidor-
mor, a esse não lhe suava nada visível, o que lhe permitia manter-se respeitavelmente 
quieto; talvez também com o espírito razoavelmente frio. Fosse como fosse, o padre 
Villaescusa tinha ousado puxar de um lencinho de cor esverdeada e enxugava a testa. 
- Em resumo, Reverendos Senhores, por um lado a cidade cheira a enxofre, o que 
corrobora a presença do Diabo, que me foi denunciada oportunamente por um espião 
especializado da minha confiança. E, por outro, temos que o nosso jovem Rei, de apenas 
vinte anos, foi às putas... 
- Reduzida a esses termos, Excelência, a coisa não passa de mera anedota. Mas, e o 
importante? Poderemos esquecer-nos de que a Armada das Índias está a chegar, e de que 
na Flandres se prepara uma grande batalha? Vistas dessa maneira, as coisas mudam... 
O Inquisidor-mor, com ar bastante aborrecido, meditou. 
- Mudam, com efeito, padre Villaescusa. E que propõe Vossa Paternidade para 
atalhar o mal? 
O padre Villaescusa compreendeu claramente, pela primeira vez, o que vinha 
sentindo no mais obscuro das suas entranhas: que dependia da sua palavra o futuro do 
mundo. E não se apressou a responder, nem o fez com arrebatamento, mas sim com 
tranquilidade. 
- Em primeiro lugar, Excelência, proponho para hoje à tarde uma reunião do 
Supremo, com a participação dos teólogos mais acreditados da cidade. E, em segundo 
lugar, como medida de precaução, que se tire do palácio o confessor do Rei, conhecido 
judeu, e que se meta nas prisões do Santo Tribunal essa Marfisa... 
- Que não é judia, mas sim cristã velha, e boa cumpridora dos mandamentos da 
Igreja. Tenho a certeza de que, a esta hora, obedece ao preceito de assistir à missa 
dominical, e de que estará na sua paróquia. 
- Proponho que a prendam por suspeitas de endemoninhamento. A atitude do Rei, 
desde que chegou ao palácio, esta manhã, é altamente suspeita: anda metido consigo, como 
pasmado. E quem, senão ela, pode ser a responsável? Metê-la num calabouço a pão e água 
parece-me uma sábia medida de precaução. Quanto ao confessor do Rei... 
- que o senhor distingue com o seu afecto... interveio o padre Rivadesella. 
- Não o amo mais do que pode amar-se um próximo perigoso, reverência. 
- Bem se vê: mas eu não posso esquecer que o padre Valdivielso é franciscano. 
- O hábito não faz o monge. 
- Neste caso, quem sabe? 
Parecia que os dois frades iam reproduzir a antiga e famosa contenda entre os 
diversos e inimigos ramos filiais de São Francisco. O Inquisidor-mor atalhou com mão 
firme. 
- Far-se-á tudo o que pede, padre Villaescusa, far-se-á o mais rapidamente possível. 
Para já, ficam os dois convocados para a reunião do Supremo, esta mesma tarde, mas não 
demasiado cedo, por causa da canícula. Digamos às cinco. 
O padre Villaescusa inclinou a cabeça. 
- Parece-me uma hora pouco usual, mas aceito. 
- Nesse caso, ide-vos. 
Depois de os dois frades se terem despedido, e de supostamente terem abandonado 
o edifício do Santo Tribunal, o Inquisidor-mor abanou suavemente a campainha. Entrou 
um fâmulo. 
- Diz ao meu criado Diego que venha cá. 
O criado Diego passava dos cinquenta anos, tinha aspecto de beato e, por baixo, um 
sorriso cínico. 
- Sabes onde vive Marfisa. Vai ter com ela e diz-lhe uma única palavra: esconde-te. E 
faz o recado voando. 
- Sim, Excelência. 
O criado Diego saiu, sem mudar de sorriso, e o Inquisidor-mor, ajudado pela 
canícula e pelas boas recordações dos vinte anos que tinha passado em Roma, jovem 
dominado pela paixão teológica, entregou-se docemente aos prazeres de uma soneca. 
 
 
8. 
 
Foram encontrar o Rei à porta dos aposentos secretos, a que muita gente chamava 
também proibidos. A grande chave de ferro continuava na fechadura, e o Rei, encostado à 
ombreira, parecia em êxtase, o que quer dizer que tinha cara de tolo. Não respondeu aos 
primeiros chamamentos do seu moço de câmara, e só quando foi sacudido com certa força 
é que no seu rosto aconteceu algo de semelhanteao despertar de um sonho. O relógio do 
palácio dava as badaladas das onze, e o moço de câmara sussurrou-lhe, primeiro, e gritou-
lhe depois: 
- Majestade, são horas de ir à missa, e toda a corte espera. Vossa Majestade tem que 
mudar de roupa. 
O Rei, ainda meio estremunhado, deixou-se levar. 
- Pois, tenho que mudar de fato. Pois, tenho de ir à missa com a corte. Estará lá a 
Rainha? 
O moço de câmara conduziu-o até aos aposentos reais por corredores pouco ou nada 
frequentados àquela hora do dia, talvez pelo muito que o eram de noite: dali partiam os 
passadiços secretos, os meandros pelos quais deslizava o pecado nocturno. Em breve, o Rei 
viu-se diante do seu grande espelho, e o moço de câmara com dois fatos nas mãos. 
- De preto ou de azul-celeste, Majestade? 
Quase sem pensar, o Rei respondeu-lhe que de preto, e, quando se achou vestido, 
pediu o colar de ouro para quebrar um pouco aquela escura monotonia. Já batiam à porta, e 
perguntavam se o Rei estava pronto. 
- Vai num credo! - respondeu o moço de câmara, e apressou-se a abrir a porta. 
Uma saleta, e, mais ao fundo, o salão onde esperava a corte: o mais visível, o Valido, 
mas visível também a Rainha, linda e maliciosa, e também um pouco brincalhona, cujo 
rosto contrastava com a seriedade que a rodeava. O Rei dirigiu-se para ela, cumprimentou-a 
e ofereceu-lhe o braço; mas o seu rosto não deixava de parecer esparvoado, e os presentes 
começaram a cochichar. A caminho da capela, ouviam-se os registos do órgão, e as vozes 
concertadas do coro. À frente do cortejo, quatro acólitos vestidos de vermelho e branco 
faziam diabruras com os incensários, e aquele pouco fumo oriental despertava nos 
cortesãos a sua sensualidade secreta. A capela, que vinha do avô do Rei, era simples e 
imponente. A corte mal lá cabia. Foram-se instalando como puderam, de acordo com as 
suas categorias. Os condes e os viscondes ficavam de pé: entre eles o da Peña Andrada, 
muito aperaltado, vestido à inglesa, rutilante. Toda a gente parecia conhecê-lo, e 
cumprimentavam-no com sorrisos. Alguém sussurrou para o lado: 
- Dizem que foi ele que ontem à noite foi às putas com o Rei. 
- Pois o Senhor pagar-lho-á na sua Glória. 
Dizia a missa o padre Villaescusa, e o Núncio de Roma ocupava um cadeirão no 
presbitério. Talvez fosse o próprio Núncio o mais surpreendido com o espírito críptico e 
em certo sentido tétrico do sermão do capuchinho, que ninguém percebeu, e, menos do 
que ninguém, o Rei, sempre com o olhar perdido sabe Deus em que trevas e a expressão de 
basbaque, que não o tinha abandonado. A única novidade era que, de vez em quando, 
dirigia o olhar para a Rainha, mas para o sítio onde devia estar o seu decote, 
cuidadosamente tapado à espanhola por veludos requintados e jóias discretas. À Rainha, a 
sua primeira dama dava-lhe de vez em quando uma cotovelada: «Majestade, o Rei está a 
olhar para si»; mas, quando a Rainha voltava a cabeça, o olhar do Rei já se tinha desviado 
para as silhuetas das suas recordações. 
- Quer saber se a Rainha tem mamas - exclamou um bobo malicioso, que recebeu na 
nádega o castigo de um agudo beliscão. 
- Quem se atreverá a perscrutar os mistérios da vontade divina? - troava o padre 
Villaescusa. - Os que o tentaram, o Senhor castigou-os com a loucura ou a morte. Ele disse: 
Eu sou aquele que sou, e para que não turvássemos a pureza da sua consciência, deixou-
nos o seu decálogo: «... não matarás, não fornicarás, não cometerás adultério...» Dirigiu-se 
aparentemente a cada um de nós, mas em cada um de nós está representada a humanidade. 
E assim nos deixou, para assombro de todos e exercício de humildade, o mistério das 
responsabilidades. Dirige-se a cada um, mas a responsabilidade é partilhada por todos. Se 
peca o pai, paga-o a família; se o Rei, o seu povo; se o Papa, toda a cristandade... 
Quando falou de fornicar, ninguém se deu por atingido; quando de adultério, muitas 
damas sentiram-se mais inocentes do que aparentavam, mas quando asseverou que a 
família pagava os pecados do pai, o Valido pensou na sua mulher, que estava ali, a seu lado, 
com um sorriso feliz e os olhos semicerrados. Pensaria, como sempre, nos prazeres da 
cama? Havia tempo que o Valido se tinha convencido pelos seus próprios meios 
intelectuais, algo misturados de temor, é certo, de que a esterilidade do seu casamento se 
devia ao pendor da esposa para os jogos conjugais: enroscava-se-lhe na cama e provocava-
o, arregaçando a camisa de noite mais acima do que o indispensável. Mas, por outro lado, o 
seu confessor tinha-lhe dito que nada daquilo era pecado. Ah, que missa aquela! O Núncio 
olhava para o pregador e dizia em voz quase audível: «Mas que diz este energúmeno?» Os 
presentes encontravam nas palavras do padre Villaescusa motivos para declinarem 
tormentos de consciência. E o conde da Peña Andrada tinha-se ausentado da capela antes 
da elevação, embora sem fazer ruído: tinha-se escapulido como uma enguia e voltado 
depois ao seu lugar, ao terminar a comunhão, como se nada fosse. Ao conde da Peña 
Andrada, no salão, depois da missa, quando fazia a reverência ao Rei, este mandou-o 
cobrir-se, para grande estupor da corte inteira e, sobretudo, do Valido. Mas não foi esta 
grande surpresa que se comentou nas conversas do átrio de São Filipe, mas sim que Sua 
Majestade, em voz baixa e cautelosa e com certa dissimulação, tivesse sussurrado à 
camareira-mor da Rainha, a pessoa mais próxima dela segundo o protocolo: 
- Diz a Sua Majestade que quero vê-la nua. 
- Vossa Majestade está louco. 
A cara que fez a dama ultrapassou os limites do estupor, mas restaram-lhe forças 
para desabafar com a sua amiga mais próxima, e esta com a sua vizinha, e, assim, a notícia 
deu imediatamente a volta ao salão, e chegou até ao padre Villaescusa, chegou com a sua 
carga de horror e de clarividência; o capuchinho compreendeu que, entre tanta gente, só ele 
tinha a razão do Senhor repartida entre o coração e a cabeça, e só ele sabia como havia de 
agir. Não se despiu: com paramentos e casula, permaneceu no altar e, ao descer dele, fez-se 
preceder pela cruz e pelos ciriais; desta guisa deambulou por corredores e galerias, de modo 
que, quando o Rei se aproximou dos aposentos da Rainha, com intenção de entrar, ele 
estava lá. E quando o Rei estendeu a mão para o puxador, a cruz atravessou-se-lhe diante 
da porta, em ângulo inclinado sobre o eixo vertical, e nos olhos inflamados do padre 
Villaescusa pôde ler um veto indiscutível. A sua mão largou o puxador, persignou-se e 
rodou sobre si próprio. O Valido estava ali, e o Rei confiou-lhe: 
- Quero ver a Rainha nua. 
E afastou-se com o mesmo rosto pasmado, embora nas suas pupilas já brilhasse a 
esperança. 
 
 
9. 
 
Lucrécia foi abrir a porta, alarmada pela força da campainhada; mas, ao ver o criado 
Diego, desatou a rir. 
- És tu, peralvilho? 
- Venho ver a tua ama, em segredo e com urgência. 
Marfisa encontrava-se no banho, meio adormecida entre as carícias da água morna. A 
chegada de Lucrécia acordou-a, e o recado da urgente visita do criado Diego pô-la 
repentinamente em sobressalto, porque os recados do Inquisidor-mor não costumavam ser 
tão madrugadores. 
- Será pelo calor que faz, e porque hoje é domingo. Atira-me uma toalha que tape a 
selha, e que entre. 
Quando o criado do Inquisidor-mor a viu, deplorou que até as putas, 
incompreensivelmente, sentissem pudor. 
- Que te traz por cá? - perguntou-lhe Marfisa, e ele respondeu-lhe: 
- Uma única palavra: esconde-te. 
Fitaram-se. Entenderam-se. Marfisa mal sussurrou: 
- Está bem. Vai-te embora. 
E o criado Diego fê-lo, sem se atrever a bisbilhotar no que se ocultava por baixo da 
toalha, naquilo que, alarmada Marfisa, já começavaa emergir. Marfisa chamou Lucrécia. 
- Depressa. Ajuda-me a vestir. Um fato de homem. E prepara o mais indispensável 
numa trouxa leve. 
Antes que Lucrécia tivesse acorrido com a roupa interior, já Marfisa, nua, embora 
enxuta, percorria o quarto e abria os armários. 
- Esse não, que é muito espalhafatoso. Este, castanho, que é de mais discrição. Com 
a roupa interior não te preocupes: a mais grosseira que houver, a de menos luxo. 
Vestiu-se sozinha, e ficou feita um garçon de cabeleira loura, com uma madeixa que 
lhe toldava os olhos e os dissimulava. Marfisa experimentou dois chapéus: ficou com o que 
melhor a cobria. 
- Agora vou-me embora, e tu fechas a casa e vais ao mentidero, bem velada, que não te 
reconheçam, e informas-te do que se conta, e publicas o que se passou ontem à noite nesta 
casa. Não a tua história com o conde, que isso não interessa a ninguém, e dorme esta noite 
em casa de uma amiga, ou de quem quiseres, mas afasta-te dos do Santo Ofício que, se não 
me encontram à mão, podem contentar-se contigo e submeter-te a tormento, para que 
digas onde me escondo. Como poderás dizê-lo, senão o sabes? Por isso, como ainda que te 
torturem não poderás confessar, será melhor que não te apanhem. Não deixes de ir à missa 
ao mosteiro de São Plácido, que eu cá me arranjarei para te mandar notícias. À missa das 
nove, hem? Que não te passe pela cabeça demorares-te na cama com algum bonitão que te 
atraia ou com algum novo-rico que te pague. Eu, agora, vou-me embora. E tu vai também, 
o mais depressa que puderes. Adeus. 
Marfisa pegou na trouxa, enterrou o chapéu até esconder o rosto debaixo da aba, e 
saiu. Fazendo um desvio, embora não muito longo, encaminhou-se para o mosteiro de São 
Plácido. Cruzou-se com gente endomingada que falava dos milagres daquele dia, e pôde 
saber, por alguém que o comentava aos gritos, que Sua Majestade o Rei tinha expressado o 
desejo de ver a Rainha nua. 
- Onde iremos parar? Se o Rei não dá o exemplo, de quem havemos de o receber? 
Ao chegar à portaria do mosteiro, pediu para falar com a abadessa, que no mundo 
tinha sido uma menina de La Cerda. 
- Da parte de quem lhe digo que quer vê-la? - perguntou a rodeira. 
- Diga-lhe que da parte de Marfisa. E receba, de passagem, esta esmola para o cepo 
dos desamparados. 
Tilintou o ouro. A rodeira estendeu a mão ávida. Os seus passos ressoaram pelas 
lajes da portaria e perderam-se em claustros e corredores. Marfisa sentou-se à espera. Fazia 
calor, e tirou o chapéu para se abanar. Era bela, a cabeleira de Marfisa, e vê-la assim, de 
garçon, teria feito pecar muitos que reprimiam desejos inconfessáveis. 
Repetiram-se os passos, desta vez duplos e em sentido contrário: uns soavam com 
autoridade; os outros, com timidez. A rodeira abriu uma portinha e rogou a Marfisa que 
entrasse. Atrás dela, fechou a porta com duas voltas. A abadessa esperava-a, sorridente. 
- Já sei que te apresentaste com uma esmola esplêndida. 
- O produto de uma noite, que ofereço a Nossa Senhora dos Desamparados. 
- Que te traz por cá? 
- Procuro refúgio contra os aguazis da Santa. 
- Meteram-se contigo? 
- Vão-se meter. 
- Posso mandar a meu primo, o Inquisidor-mor, recado para que te deixe em paz. 
- É à sua amabilidade que devo o aviso. 
- Então?... 
- Uma freira mais, neste mosteiro, não chamará a atenção de ninguém. 
A abadessa pegou-lhe na mão. 
- Vem comigo. É uma pena que tenhas que vestir o hábito, porque estás muito 
bonita. Mas posso garantir-te que não te exigirei que cortes o cabelo, apenas que não te veja 
o capelão, que é um tipo estranho. 
Sem a largar, passou com ela por uma porta de grandes almofadões e levou-a pelos 
frescos meandros do mosteiro. Através de uma janela, verdejavam as plantas do jardim e 
ouviam-se os trinados das avezinhas, recolhidas naquela frescura. A madre rodeira ficou a 
pensar por que razão metia a abadessa um mancebo tão formoso na clausura, mas, como 
outras tantas coisas que não entendia, afugentou a pergunta do seu espírito. Também tinha 
calor, e naquela solidão era-lhe permitido arregaçar o hábito e refrescar um pouco a 
entreperna com o ar que entrava por algum orifício. 
 
 
10. 
 
Por causa do calor, as pessoas tinham deixado a capa em casa. Abanavam-se com o 
que tinham mais à mão, e muitos apareciam ligeiramente esgoleirados, peitos peludos de 
machos excessivos, uns de preto, outros de cinzento. Os grupos tinham-se reunido aqui e 
além, sobre os degraus, ou no meio do átrio, ou aos cantos, até pisarem as próprias pedras 
do limiar sagrado. Clérigos de barretes pontiagudos iam de cá para lá. E o sol batia com 
força. O círculo mais concorrido rodeava Lucrécia, bem tapada, que por vezes levantava 
uma ponta do véu e pedia ao mais próximo que lhe soprasse no pescoço suado. Tinha 
contado já a aventura de sua ama com o Rei, e começava a descrever com abundância de 
pormenores a sua com o conde, mas essa não interessava tanto à assistência. 
- Com que então quatro pecados mortais? 
- E uma nega. 
- Pois quatro na mesma noite é o limite que os teólogos põem aos exageros da carne. 
- Sabes lá se foram quatro! Tu não estavas lá. 
- Mas sei-o de boa fonte. 
- E nós sabemos que Marfisa é devota da monarquia. Como havia ela de deixar mal o 
monarca? Quator cadem nocte é um número que abona qualquer um. 
- Para mim, a única coisa crível é a nega - disse um padre narigudo e entrado em 
anos. - O resto são fantasias de Marfisa, que abonam, mais do que a sua fidelidade às 
instituições, o seu orgulho profissional. Para uma mulher como ela, menos de quatro 
pecados capitais não seria nada. Ocorrem-me uns versos... 
- Diga-os lá, D. Luís, se é que os tem na mente! 
- Só quatro, de momento, que podem ser os primeiros de uma décima: 
 
Con Marfisa en la estacada 
entraste tan desguarnido, 
que su escudo, aunque hendido, 
no pudo rajar tu espada. 
 
(“Com Marfisa na estacada 
entraste tão desvalido, 
que seu escudo, inda fendido, 
não pôde rachar tua espada.” (N. do T.) 
 
- Muito bons, D. Luís! Prometem uma décima imortal! 
- O que diz o padre é uma ignomínia. O Rei pecou quatro vezes e, à quinta, 
adormeceu. Pobrezinho! Convém não esquecer que, além de Rei, é um rapaz. 
- Tu cala-te, alcoviteira. Por que havemos de acreditar em ti, e não em D. Luís? É 
homem de experiência. 
- Gostaria de saber que faria ele na cama com Marfisa. 
O chamado D. Luís ergueu as sobrancelhas e sorriu tristemente. 
- Tem razão, a moça. Que haveria eu de fazer na cama com Marfisa, a não ser olhar 
para ela e procurar umas metáforas? Um soneto também, talvez: mas vamos lá a ver quem 
é o valentão que se atreve a pintar, ainda que seja em verso, uma mulher nua! 
E fez com as mãos um sinal alusivo à Santa Inquisição. 
Foi nesse momento, talvez, ou talvez um pouco mais tarde, que alguém recém-
chegado armou rebuliço noutra roda, um rebuliço descomunal que deixou Lucrécia sem 
clientela e, de momento, sem continuação a décima de D. Luís. O recém-chegado jurava 
pelos seus mortos que o Rei, não havia nem uma hora, à saída da missa, tinha expressado 
aos gritos, e sem a menor precaução, que desejava ver a Rainha nua. “Desejo”, disse, ou 
“quero”? Porque não é a mesma coisa. 
Foi uma gargalhada geral, uma gargalhada sensual e estentórea, provocada pela 
maneira como cada um dos presentes imaginou o Rei contemplando a Rainha em pelota: 
de dia ou de noite, com sol ou à luz das candeias. Saíram a brilhar, de lábios grossos sob 
bigodes retorcidos, alusões aos quatro pecados do Rei com Marfisa e à comentada nega, 
gracejos subidos de tom e suposições desrespeitosas, até que um cavalheiro esguio, de 
semblante ascético e olhar dogmático, fez calar os risos com um imperioso “Cavalheiros,moderem-se”, dito em tom tão dramático que, de repente, foi como se o Sol se pusesse. O 
círculo calou-se e toda a gente olhou para aquele severo enlutado em cuja mão, estendida 
para o centro da roda, posta sobre o peito a seguir, parecia ter recaído a honra da Rainha. 
Mas não foi dela que se falou quando o silêncio deu lugar à sua palavra, antes disse: 
- Que espécie de insensatos são Vossas Mercês que assim se regozijam com o que 
pode trazer-nos calamidades, e as trará de certeza se não se lhe põe remédio? - Ninguém 
lhe respondeu, a não ser com olhares e rostos surpreendidos, e ele continuou: - Não é só o 
protocolo da corte que se opõe a semelhante disparate, também o impedem as leis de Deus 
e da Igreja. O homem pode aceder à mulher com fins de procriação e, se os seus humores 
Lho exigirem, para os acalmar, mas nunca com intenções levianas, como seria a de 
contemplar nua a própria esposa. 
Lucrécia, ao ver-se solitária, tinha-se integrado no grupo. 
- Pois bem olhava o Rei para Marfisa nua, quando acordou, esta manhã, enquanto ela 
dormia! 
O cavalheiro da mão ao peito voltou-se para ela. 
- Não é a mesma coisa, menina ignorante, olhar para uma prostituta, que para isso 
serve, ou para a esposa, recebida em santo sacramento, por muito francesa que seja, 
porque, ainda que as francesas sejam levianas por natureza, ao atravessarem os Pirenéus 
contaminam-se das nossas virtudes e aceitam os nossos costumes e protocolos. O corpo da 
esposa é sacrossanto; pode-se tocar-lhe, mas não olhar para ele. 
- Pois há dedos que têm olhos! – respondeu desavergonhadamente Lucrécia; e o 
cavalheiro da mão ao peito fitou-a com um desprezo tão fulminante que a rapariga, 
apertando o véu com a mão, saiu a correr da roda e da praça, e se perdeu na calle Mayor, 
em direcção à Porta del Sol. 
- Será uma marafona - disse alguém; e outro desconhecido, ainda que de mui bom 
porte, corroborou: 
- Uma marafona cuja voz não me é desconhecida! Juraria que é a criada de Marfisa. 
Toda a gente se voltou para ele, incluindo o cavalheiro da mão ao peito, e todos 
pensaram que quem assim conhecia a criada, não deveria desconhecer a ama. E invejaram-
no. O cavalheiro distinto cumprimentou e foi-se embora. A roda começou a desfazer-se, 
uns para aqui, outros para acolá. O clérigo chamado D. Luís partiu em companhia de dois 
ou três incondicionais. 
- E essa décima, D. Luís, já está concluída? 
- Esse imbecil da mão ao peito arrebatou-me a inspiração, mas garanto-lhes que a sua 
conclusão não passará desta noite. Era o que faltava! 
 
 
 
 
Capítulo II 
 
 
1. 
 
A cela que o Inquisidor-mor ocupava na casa do Santo Ofício não correspondia, nas 
suas proporções, ao poderio do inquilino, mas sim à sua pessoa: era grande, harmoniosa, de 
paredes caiadas e vigamento escuro, com móveis enegrecidos pelo tempo, e um quartinho 
em que o Inquisidor-mor escondia o seu catre, que por ter esse nome não era 
necessariamente incómodo. Por trás da grande mesa guarnecida de veludo, pendia um 
quadro em que se apresentava Maria Madalena penitente numa gruta; a grande cabeleira 
incrível deixava ver os resquícios de um corpo dourado; nas outras paredes, dispostos 
segundo o princípio de simetria mais absoluto, duas séries de pequenos quadros com a vida 
e as tentações de Santo Antão, equilibrando o conjunto: uma, à direita, de mão flamenga, 
onde as mulheres nuas eram feias, e a outra, à esquerda, de mão italiana, onde as mulheres 
nuas eram belas. O tinteiro, de doze penas, ocupava um canto da mesa, e a braseira, de 
bronze e couro, tinha sido repuxada por artífices cordoveses, provavelmente mouriscos, 
mas essas origens duvidosas não inquietavam a consciência do Inquisidor-mor, temperada 
nas tolerâncias da corte romana. No canto do fundo, com a luz da janela vindo da 
esquerda, estava instalada a camilha, que usava para comer e para aquecer as pernas no 
Inverno, desenganado da utilidade, meramente decorativa e um tanto imponente, da grande 
braseira, que avultava no meio da sala e repelia o visitante com a sua imponência. As 
toalhas eram sóbridas, embora dignas; a baixela, de boa prata antiga; a comida, pelo que 
podia ver-se, abundante e simples, mas o Inquisidor-mor servia-se com parcimónia, e o que 
não comia o criado Diego, dotado de melhor dente e mais manifesta gula, regressava à 
cozinha para regozijo de ajudantes e outros subalternos. Naquele dia tinha-se servido 
apenas uma sopa e trutas à navarra, e, como sobremesa, uma das guloseimas de massa 
folhada e ovos que elaboravam para ele e para outros magnates as Madres de Santa Clara a 
Velha (as de Santa Clara a Nova tinham-se especializado em escabeches, que não 
ofereciam, vendiam, porque, sendo mais novas, eram mais pobres. Fosse como fosse, o 
Inquisidor-mor não ignorava os sabores dos seus bacalhaus, pura delícia para o palato 
atribuída à intervenção directa dos anjos, embora não pelo Inquisidor-mor, que, a esse 
respeito, sabia a que se ater). 
Havia um pássaro na cela, exemplar talvez perdido da tribo migratória, senão 
enganado pela suavidade do ar. Deu umas voltas, chocou aqui e além e saiu para o jardim 
pela mesma janela por onde tinha entrado. O Inquisidor-mor não teria sabido explicar por 
que razão seguiu o seu voo com inveja. 
O criado Diego, sentado num escabelo, tinha posto de lado a escudela de sopa, já 
vazia, e limpava de espinhas a truta com a sua navalha de corno. Tinha também ao lado, no 
chão, um grande copo de estanho a transbordar de tinto. O Inquisidor-mor, brincando 
com a cruz peitoral, parecia ter-se transido, depois do voo do pássaro, de modo que o 
criado Diego mastigava ruidosamente, sem medo do raspanete. Mas o prelado acordou e 
chamou-o à ordem. 
- Diego, interrompeste-me uma possível sesta, com os estalidos da tua língua e com 
esse tornado que provocas ao mastigar. Agradecer-te-ia que comesses com mais 
comedimento. 
- E que importa, Excelência, agora que o acordei? Por muito cuidado que se tenha, 
senhor, ao comer sempre se emitem rumores. 
O pássaro, no seu voo, roçou o vidro da janela com rápido, efémero ruído. 
- E, a propósito de rumores, Diego, que se diz hoje Pela corte? 
O criado acabou de mastigar o pedaço de truta que os seus dedos gordurosos tinham 
levado à boca. As mãos do criado eram grandes, e quando remexiam no prato cobriam-no. 
- Um frade capuchinho, dos de Medinaceli, tocou a rebate, como se houvesse fogo, e 
à gente que se ajuntou, lançou um sermão incendiário contra os pecados dos grandes que 
cabe ao povo pagar, ou, pelo menos, compensar por meio de penitências públicas pelos 
danos que não cometeu. Isto tinha também algo a ver com uma serpente boa e com um 
belíssimo diabo. Garanto-lhe, Excelência, que o povo teria posto fogo ao Paço se o frade 
lho tivesse ordenado, mas limitou-se a organizar procissões a desoras, uma num bairro, 
outra noutro, por aí fora, com cantos penitenciais e ele próprio à frente de uma delas, 
arrastando uma cruz. Está toda a gente em brasa e não há ninguém que não espere sair à 
rua carregado de correntes. Isso excita muito as mulheres, e quando voltam a casa, 
derreados, encontram-nas inquietas, e têm que fazer uma segunda penitência. 
- E no mentidero? 
- No mentidero, Excelência, tratou-se de três temas, por sua ordem, digamos: ao 
princípio todos falavam de Marfisa, Vossa Excelência sabe a quem me refiro: se é assim, se 
é assado, se tem as mamas tesas ou descaídas. 
O pássaro que esvoaçava pelo jardim, e que às vezes gritava, não podia sugerir a 
imagem de umas mamas, nem descaídas nem tesas: Sua Excelência lamentou-o. 
- Depois, se o Rei tinha passado a noite com ela, o que fez Sua Majestade subir dois 
ou três pontos na estima dos presentes, embora nãotenham faltado maledicentes que 
reduziram a nada a acutilância real; por último, senhor, continuou-se a falar do Rei, mas 
desta vez porque se disse que tinha pedido aos gritos para ver a Rainha nua. E aqui, senhor, 
as opiniões dividiram-se, porque alguns, poucos, consideravam-no um mau exemplo e 
muitos, a maioria, como o exemplo que havia a seguir, e que se deixassem de tretas e 
considerações. Nisto um cavalheiro bem posto, embora com ar de novo-rico, mais que de 
fidalgo, proferiu mais ou menos estas palavras: “Se o Rei consegue ver a Rainha nua, todos 
teremos pretexto para despir as nossas fêmeas, sejam esposas ou queridas, e despir-se-ão 
todas as destes reinos, e as mulheres das Índias, e acabarão nuas as mulheres do mundo 
inteiro, se pega a moda, o que vai sendo hora de que aconteça, porque de camisas de noite 
compridas e de disputas para que as levantem um pouco mais, estamos nós tão cansados 
como elas. O único perigo, e este meramente imaginário, reside em que se disponham a sair 
nuas para a rua, ou com trajos tão transparentes que deixem ver tudo, pois são bem 
conhecidos os desejos que têm as mulheres de publicarem os seus segredos.” 
Posso dizer a Vossa Excelência que na roda onde se dizia isto não havia padres, e, se 
algum havia, não vestia roupa talar, e não esteve em desacordo com a opinião do novo-
rico. 
- Os velhos princípios, Diego, vão perdendo vigência, os tempos mudam e as 
pessoas pensam de maneira diferente. Não tenho nada contra o nu em privado, sobretudo 
às escuras, mas levá-lo para a rua é como tirar o sal à comida. Não sei que vai ser de nós. 
- Ao que se diz por aí, e já há algum tempo, abundam os cabrões complacentes; e que 
acontecerá se a coisa alastra? 
- É o que eu te digo, Diego. Que vai ser de nós? De ti e de mim, por exemplo. 
- No que a mim me toca, Excelência, resta-me pouco tempo de vida, e, desde que 
haja vinho... 
Bebeu o que restava no copo. O Inquisidor-mor fechou os olhos e recordou os 
velhos tempos de Roma. A ave passou roçando os vidros da janela e escondeu-se no alto 
cipreste que ocupava o centro do pátio quadrangular. 
 
 
2. 
 
Primeiro foi um Te Deum, a quatro vozes mistas, com repetida intervenção do órgão, 
que umas vezes ficava por baixo, como quem serve de suporte às piruetas melódicas, e, 
outras, as perseguia na sua complicada ascensão: laudamus, laudamus, laudamus, até chocar e 
se reflectir nas altas abóbadas; outras, por fim, excluía-as da corrente sonora, e era o único 
a subir e a encher o espaço com o resfolegar da sua abundante tubagem; uma música de 
muito mérito, trazida de Roma, concebida para a imensidão do Vaticano, que naquela 
capela de mediana dimensão ficava um pouco grande: de tal modo que às vezes vibravam 
as paredes e estremeciam as colunas. Depois, a asfixia do incenso e do calor, de tal modo 
que alguém desmaiou e foi preciso levá-lo para fora e socorrê-lo com aguardente e ar 
fresco: era um mercedário seco, especialista na questão De auxilus, que não tinha nada a ver 
com a ordem do dia, mas que não se podia deixar de fora de uma consulta geral como 
aquela. Quando terminou o Te Deum, formou-se no claustro a procissão; duas filas de 
hábitos variados e o Inquisidor-mor atrás: muito teso, embora um pouco distraído, 
indiferente aos pajens que lhe seguravam a cauda. Cantavam o Veni Creator, segundo o 
cantochão, que lhes era mais acessível do que aquelas polifonias romanas, ainda que o 
cantassem com vozes frouxas e bastante ásperas. Não saía muito bem, mas tanto fazia. 
Nem todos os da procissão entraram, só os que tinham assento no Supremo, quer como 
membros titulares quer como teólogos convidados; ou seja, consultores, e entre estes 
figurava um jesuíta português, o padre Almeida, bastante novo ainda, mas de rosto 
queimado pelos sóis brasileiros. O padre Almeida estava de passagem por Madrid: tinham-
no destinado a capelão secreto de uma casa de Inglaterra, porque o outro capelão tinha sido 
justiçado, o que era o mesmo que admitir que não restava muito tempo de vida ao padre 
Almeida; mas não parecia acabrunhado nem entristecido, nem tão-pouco entusiasmado 
com o seu futuro martírio: comportava-se com naturalidade, muito mais do que os seus 
companheiros, apesar da reputação de teólogo sábio que o seu reitor proclamava na carta 
de apresentação para o Inquisidor-mor com que justificava a sua presença. O padre 
Almeida chocava um pouco entre os restantes clérigos, porque usava por cima da sotaina 
um colarinho à francesa, e porque, ao desabotoá-la por causa do calor, se lhe tinham visto 
meias pretas e calção. Mas, como estrangeiro, não lho levavam a mal. 
Depois de instalados na sala de reuniões, de acordo com as categorias e seguindo um 
critério piramidal, ainda se rezaram mais latinórios, estes sem música, e a coisa ficou como 
num cenário de teatro: o Inquisidor-mor no topo, embora a cauda do seu hábito descesse 
até aos níveis inferiores e estendesse sobre as lajes o triplo triângulo do seu remate; depois 
vinham os juízes proprietários, o padre Pérez, o padre Gómez, o padre Fernández y 
Enríquez de Hinestrosa, assim até seis, com hábitos brancos, hábitos pretos e hábitos 
combinados; uns gordos, outros magros, rechonchudos de cara ou chupados, reservados 
ou expansivos: tudo o que no mundo se sabia de Deus e de tudo o que lhe diz respeito 
estava armazenado nas cachimónias daqueles seis, que votavam as decisões, e, em caso de 
empate, desempatava o Inquisidor-mor; o qual, além disso, tinha o privilégio de vetar os 
acordos colegiais e de os substituir pela sua opinião própria, caso que se verificava poucas 
vezes, sobretudo por causa das más-línguas. Mais abaixo sentavam-se os diferentes peritos: 
daquela vez um por cada ordem, incluindo os premonstratenses e algumas ordens novas, 
como a Societate Iesu, a que pertencia o padre Almeida. Entravam e saíam com discrição, 
bufos, esbirros e demais gentalha, a que se vedou a entrada um pouco antes do juramento. 
A partir deste, a grande sala do conselho ficou encerrada para o exterior: ampla e sombria, 
iluminada por candelabros, era dominada por um Cristo entre duas luzes: pouco Cristo e 
muitas velas para local tão amplo, onde o que avultava era o presidente. Tão refinado, tão 
aborrecido, lá em cima, no seu cadeirão, quase nimbado, quase divino sob o barrete de 
quatro pontas agudas! Costumava ferrar uma soneca depois de receber o juramento dos 
presentes e fazer o resumo dos temas, ou dos factos que se iam discutir; desta vez 
acrescentou a notícia de que a suspeita Marfisa, que o Santo Tribunal tinha convocado e 
mandado prender, não tinha sido encontrada. Certamente, alguém a preveniu, e fugiu. E 
muitos lamentaram-no, sobretudo o padre Villaescusa, capelão do palácio, que suava no 
nível dos peritos consultores. 
Mas naquela tarde o presidente não pôde dormitar, porque os frades menores 
gritavam, talvez para que o tom elevado das vozes enchesse de razão as suas ideias. Para 
começar, o padre Villaescusa manifestou o seu desacordo com a exposição que se fizera 
dos factos, de tal modo redigida que dava a impressão de que se tinham reunido por causa 
de uns pecados veniais do monarca. Não é que tivessem mentido, ele não dizia isso!, mas 
tinham-se contado sem intercalar censuras, comentários ou condenações. Nada de 
pecadilhos! Um verdadeiro adultério e uma verdadeira profanação do santo sacramento do 
matrimónio! E foi aqui que o padre Almeida, o jesuíta transeunte e destinado ao martírio, 
se levantou e pediu a palavra. 
- É para manifestar as minhas dúvidas de que se tenha cometido adultério. 
- Vossa Paternidade nega que o Rei passou a última noite nos braços de uma 
prostituta? - perguntou-lhe o padre Villaescusa, admirado e ao mesmo tempo irritado,e 
com um tom de voz como se o padre Almeida viesse de outro planeta e se tivesse 
expressado numa língua desconhecida. - Ou será que Vossa Mercê nega a verdade do que 
acaba de nos ser lido? Diz-se claramente que o Rei passou a noite nos braços dessa tal 
Marfisa. 
- Deus me livre de semelhante atrevimento! 
- Então? Qual é a opinião do padre Almeida? 
- Simplesmente, duvido de que Suas Majestades estejam casados, pelo menos perante 
o Senhor. 
Toda a gente voltou os olhos para o jesuíta português, e qualquer coisa como uma 
rajada de incompreensão colectiva sacudiu aqueles espíritos esclarecidos. Até que o 
Inquisidor-mor, da sua altura indiferente, se dignou examiná-lo com curiosidade, e foi 
precisamente ele que perguntou: 
- Que diz o senhor, padre Almeida? 
O jesuíta continuava de pé, e aquela convergência de olhares reprovadores não 
parecia afectá-lo. À pergunta do Inquisidor-mor seguiram-se várias vozes. 
- Explique-se, explique-se. 
E o padre Villaescusa acrescentou: 
- O que acaba de dizer incorre numa dupla sanção, da Igreja e do Estado, porque está 
a atribuir aos Reis nada menos do que um concubinato. 
- É verdade, ainda que eles o ignorem; mas a Igreja não pode ignorá-lo. 
- Insisto, padre Almeida, que seja mais explícito - rogou, com voz apaziguadora, o do 
assento eminente. 
Quando o padre Almeida pediu que lhe permitissem tirar a sotaina, porque fazia 
muito calor, mais do que com hostilidade, a maior parte dos membros do Supremo 
fitaram-no atentamente, já não irados, mas estupefactos, e embora quase todos pensassem 
que conviria examinar aquele desconhecido em 0matéria de ortodoxia, a maior parte deles 
tinha admitido, sem graves dificuldades mentais, que não seria necessário o tormento, e que 
um hábil interrogatório bastaria. E entre eles figuravam bastantes com reputação de hábeis 
interrogadores. O padre Almeida dobrou cuidadosamente a sotaina e pô-la sobre o seu 
assento, com o chapéu. 
- Reverendos senhores, não vou citar os santos padres nem os textos sagrados. 
Apenas me permitirei recordar-vos a unanimidade de todos os moralistas e de todos os 
teólogos em exigirem, como condição básica do casamento, a liberdade dos cônjuges. Ora 
bem, seriam os nossos amados Reis livres ao casarem-se? 
Passeou os olhos à sua volta. Ouviam-no, mas não pareciam dispostos a responder-
lhe, salvo o padre Villaescusa. 
- Quem duvida? Foram interrogados de acordo com as formalidades do cerimonial, e 
ambos disseram que sim. 
- E poderiam dizer que não? Rogo a Vossa Paternidade que medite a resposta. 
O padre Villaescusa pareceu hesitar um momento. Depois, respondeu: 
- Não entendo a pergunta. O padre Almeida é bastante subtil. Não parece jesuíta. 
- Subtil, diz Vossa Reverência? Pois eu vejo o caso bem claro: trata-se de dois 
príncipes imbuídos desta condição; trata-se de dois adolescentes, que foram educados na 
obediência a seus pais, que, além disso, são Reis. Como poderiam dizer que não? No 
entanto, os seus sins estavam condicionados pelo duplo carácter de príncipes e de 
adolescentes. Não foram afirmações livres. 
De entre a massa dos peritos saiu uma voz de cana rachada. 
- Talvez o padre Almeida não se aperceba de que está a pôr em causa o mais antigo 
dos nossos costumes, o de que os pais concertem o casamento dos filhos, bem como o de 
solicitar a anuência da Igreja. 
O padre Almeida voltou-se para o falante, que era um frade velho de uma ordem 
secundária. 
- Eu não ponho nada em causa. Eu nem sequer julgo. Limito-me a apresentar a 
Vossas Paternidades factos indiscutíveis, dos quais, para este caso, e só para este caso, me 
permito tirar ilações. O resto é da incumbência deste Santo Tribunal, não da minha. 
- Mesmo supondo que o padre Almeida tivesse razão, a ulterior consumação do 
casamento legaliza-o e santifica-o. 
O padre Almeida não precisou de mudar de posição, nem sequer de mexer a cabeça: 
o seu interlocutor encontrava-se diante dele, bem visível na sua cólera contida, mas 
evidente. 
- Rogo ao reverendo padre Villaescusa que imagine por um momento que dizem a 
um adolescente: logo à noite tens que entrar no quarto da Rainha, e fazer isto e aquilo. E 
que dizem à Rainha: logo à noite, o Rei entrará no teu quarto: não lhe oponhas resistência, 
porque é a tua obrigação. 
- Efectivamente, padre: era essa a sua obrigação. 
Quem se atreve a duvidar? A obrigação da esposa é receber o seu esposo no leito e, 
como Vossa Paternidade diz, não lhe opor resistência. 
- Admito que também fosse a obrigação do Rei; mas quem vai obrigado não vai livre. 
- Se seguíssemos a sua doutrina, a maior parte dos casamentos seriam ilegais. 
- Isso, reverendo padre, não sou eu que tenho que o concluir. Limito-me a mostrar a 
vossas reverências que os sucessivos acessos do Rei ao corpo da Rainha foram fruto do 
dever, não da liberdade. 
- Esquece Vossa Mercê a obrigatoriedade do dever conjugal? 
- Do ponto de vista do Rei ou da Rainha? – arguiu rapidamente o jesuíta. 
- Eu entendo-o como recíproco - interveio da sua altura um dominicano do 
Supremo; - ainda que, naturalmente, na maior parte dos casos seja uma obrigação da 
esposa, que nem sempre está disposta e, no entanto, deve aceder, para evitar males maiores. 
- Não é esse o nosso caso - respondeu o padre Villaescusa. - O Rei não foi às putas 
porque a Rainha o tenha repelido. Investiguei tudo: o Rei há várias semanas que não acorre 
aos aposentos da Rainha. Não houve, pois, rejeição que explique, sem a justificar, uma 
infidelidade. 
Foi neste momento que o Inquisidor-mor interrompeu a discussão com um bocejo: 
tão grande que quase se lhe desencaixa a mandíbula; tão sonoro que cobriu a resposta do 
padre Almeida. 
- Reverências - disse -, não vos parece que o primeiro ponto da discussão está 
suficientemente debatido? Consta-nos que o Rei foi às putas, mas o padre Almeida, com o 
seu enorme senso comum, semeou a dúvida de que os Reis nossos senhores estejam 
efectivamente casados. Eu disse a dúvida, não a certeza. Nomear-se-á uma comissão que 
estude o caso e emita o seu parecer. Fica de pé um pecado, no ar outro, mas aquele é da 
incumbência do confessor, não deste alto Tribunal. Observo que Vossas Mercês estão 
encaloradas. Eu também. Proponho um descanso, enquanto nos refrescamos com umas 
bebidas frias que mandei preparar. Suspende-se, pois, a sessão por meia hora. 
Os presentes que tinham estado sentados puseram-se de pé, com rebuliço de hábitos 
de diversos cortes e cores. Os contendores daquela batalha dialéctica esperaram que o 
Inquisidor-mor saísse, depois de ter recolhido (o Inquisidor-mor) as longas caudas da sua 
vestimenta. À saída respeitaram uma rigorosa ordem de hierarquias, de modo que, sem se 
olharem, o padre Villaescusa e o de Almeida saíram a par. No claustro esperavam-nos os 
refrescos. 
 
 
3. 
 
Distribuíram-se por afinidades teológicas e pela preferência por determinadas 
bebidas: uns pela água de cevada, outros pela salsaparrilha, outros ainda pela popular 
orchata, salvo o Inquisidor-mor, que preferiu um copo de frio clarete bebido na sua taça 
etrusca, uma jóia que trouxera de Itália, adquirida após misteriosos e arriscados tratos em 
que tinham participado um cardeal da Santa Cúria e uma prostituta de clara linhagem, 
muito afecta aos interesses da Santa Sé, da qual tinha recebido um título de princesa que 
arrastava por leitos ilustres, ou pelo menos ricos: Sua Excelência acariciava o requintado 
cristal enquanto saboreava o vinho, e tanto os seus dedos como a sua língua estremeciam 
de recordações gloriosas. Olhava, da sua altura, para os seus colegas, e, salvo o padre 
Enríquez, que era irmão de um grande de Espanha, metido a frade devido a um fracasso 
amoroso,

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