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23691 BRETTON WOODS

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BRETTON WOODS, 60 anos
Silio Boccanera.
Em Julho, vai fazer 60 anos que representantes de 44 países, incluindo o Brasil, se reuniram numa pequena cidade do Estado americano de New Hampshire para tentar criar mecanismos que livrassem o mundo de crises globais. FMI e Banco Mundial nasceram ali. Sexagenárias, ambas as instituições já não atendem ao espírito que orientou a sua criação e estão sob intenso bombardeio. 
Alguns marcos daquele encontro, como o padrão-ouro, a que Keynes se opunha, já não existem mais.
Publicado na revista Primeira Leitura. Edição nº 25, março/2004, pág. 38
Um espião de Moscou, um futuro ministro brasileiro e um dos maiores economistas da história participaram de um encontro que, 60 anos atrás, moldou a economia internacional no formato que, com pequenos ajustes, se mantém até hoje. O espião era o americano Harry Dexter White, assessor do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Morgenthau, e membro mais atuante da delegação de seu país. O brasileiro chamava-se Roberto Campos, então um jovem diplomata na embaixada de Washington. E o economista, representando o Reino Unido, era o gigante - em talento e estatura física - John Maynard Keynes. Local do encontro: a pequena cidade de Bretton Woods, no Estado americano de New Hampshire. Data; julho de 1944. Participantes: delegações de 44 países, entre os quais o Brasil, que enviou 12 pessoas, do chefe Arthur de Souza Costa, então ministro da Fazenda, aos economistas Otávio Gouvêa de Bulhões e Eugênio Gudin.
	Vivia-se ainda o clima de guerra, a invasão aliada da Normandia (dia D) tinha só um mês de lançada, mas a preocupação com a nova ordem econômica mundial já inspirava discussões sobre a melhor maneira de evitar disputas financeiras dos anos 20 e 30, dominadas por protecionismo comercial e desvalorizações contínuas de moedas para ganhar vantagens na concorrência.
	O plano imediato, já definido em reuniões preparatórias, era estabelecer taxas de câmbio fixas (admitindo-se apenas pequenos ajustes) e, aos poucos, ir eliminando os controles criados durante a guerra sobre movimento de capital e trocas de moedas entre países. Como resultado da reunião, o dólar se impôs como moeda internacional e de reserva, criou-se o Fundo Monetário Internacional (FMI) para reger as finanças mundiais após a Segunda Guerra Mundial e fundou-se um banco - mais tarde chamado de Mundial - para ajudar na reconstrução dos países afetados pelo conflito bélico ainda em andamento.
	As propostas de Keynes, que muitos até hoje consideram criativas e geniais, foram atropeladas pelos planos da (já) superpotência da época, os EUA. Como delegado do Reino Unido, Keynes representava um país admirado pela resistência aos nazistas, mas à beira da falência e sem cacife para impor uma nova ordem econômica internacional que não agradasse a Washington. Plus ça change....
	O FMI já nasceu moldado pelo Tesouro americano para impor disciplina fiscal a países que se vissem atrapalhados com o balanço de pagamentos. Taxas de câmbio foram fixadas então em referência ao dólar e iriam servir de base às transações internacionais até os anos 70, quando implodiram - e isso é história para mais à frente.
	O novo banco surgido do encontro para reconstruir os países destruídos pela guerra virou alvo de interesse de nações pobres que tinham sido poupadas dos danos físicos do conflito armado, mas também queriam financiamentos para se desenvolver. Assim, sob pressão da delegação mexicana, o Banco Internacional de Reconstrução ganhou mais um apalavra - Desenvolvimento - e virou Bird. Aos poucos, o nome se consagrou permanentemente até hoje: Banco Mundial.
Keynes era contra a adoção do outro como base da moeda ("uma relíquia bárbara"), mas teve de aceitar a posição oposta de White, que dizia não conceber a incapacidade de se trocar dólar por ouro. Nem ele nem Keynes viveram o suficiente para ver um país rico anunciar ao mundo que não iria mais trocar dólar por ouro: os próprios Estados Unidos, em 1971.
Mais radical e inovador, no entanto, era o plano de Keynes para criar o que chamada de União Internacional de Compensação - esta última palavra entendida em seu significado bancário. Seria um banco onde todos os países manteriam suas contas de comércio externo (importação e exportação). O déficit ou superávit de cada um seriam representados por uma moeda internacional que ele propunha criar para esse banco. 
A novidade na proposta é que um país pagaria juros não só pelo déficit, como se faz com cheque especial nos bancos brasileiros atualmente, mas também pelo superávit na balança comercial. O que Keynes pretendia era criar um incentivo para que todos os países zerassem suas contas ao fim de cada ano, evitando não só déficits - como cada país sempre deseja -, mas também superávits. Essa era a inovação dele. Quem se encontrasse com saldo positivo precisaria zerar sua conta, o que seria feito reinvestindo nos países que estivessem no vermelho.
"Uma idéia de gênio, vista na época por economistas do mundo inteiro como solução para o problema da dívida externa dos países e do poder que as nações ricas exercem sobre os pobres", diz ò analista britânico George Monbiot, autor do livro The Age o Consent. Porque não foi aprovado? Segundo Monbiot, o plano, que Keynes levou 13 anos desenvolvendo, "foi esmagado pelos Estados Unidos", que tinham superávit gigantesco no período e só admitiam penalizar nações em dívida, não em crédito. "O resultado foi o que muitos economistas previram na época: a dívida dos países pobres cresceu, e o poder dos países ricos aumentou", diz Monbiot.
O sistema de Bretton Woods funcionou, sem maiores atritos, nos anos 40 e 50, mas começou a sofrer pressão na década de 60, quando os EUA começaram a entrar em déficit de conta corrente, processo acelerado pelas despesas com a guerra do Vietnã. O governo francês do general Charles de Gaulle acumulava dólares e exigia de Washington a troca por outro, conforme acertado em Bretton Woods. Em 1971, o então presidente Richard Nixon, sentindo a pressão sobre a economia americana, implodiu o mecanismo: desvalorizou o dólar em 10% e anunciou o abandono do padrão-ouro. Ou seja, o Tesouro americano não trocaria mais sua moeda pelo valioso metal. Mais dois anos, e outro pilar de Bretton Woods ruiria: as taxas de câmbio passaram a flutuar.
E como flutuaram! Do iene na Ásia ao franco, marco e libra na Europa, desequilíbrio geral. Apelos a Washington para intervir no mercado de câmbio e controlar o processo bateram em ouvidos surdos e até desprezo de autoridades como o ortodoxo secretário do Tesouro, George Schultz, que ainda debochou: "Papai Noel morreu". Os EUA derrubaram então outra peça-chave de Bretton Woods ao eliminar o controle oficial do movimento internacional de capital. Enquanto o câmbio entrava em parafuso, a inflação disparava nas economias avançadas (a periferia em desenvolvimento, como de hábito, nem apitava nas decisões dos grandes).
Em meio a esse clima, estoura a guerra de 1973 no Oriente médio, entre árabes e judeus, e os EUA apóiam Israel. Os países árabes, produtores de petróleo, já irritados com a desvalorização do dólar que recebiam por sua mercadoria, decidem quintuplicar o preço do barril. Sufoco nas economias ocidentais, mais inflação, mais desequilíbrio financeiro.
O Reino Unido joga a toalha em 1976 e pede ajuda ao FMI, passando pela humilhação (tão conhecida do Terceiro Mundo), de submeter suas contas a um organismo internacional que impõe condições para emprestar dinheiro e passa a supervisionar a economia da nação tomadora de recursos. Foi o último país industrializado a apelar ao FMI, que, daí em diante, passou a ter a atenção desviada quase exclusivamente para o mundo em desenvolvimento.
Motivo? Os árabes receberam tantos dólares com o petróleo mais caro (e o preço do barril subiria mais ainda em 1979), que não tinham como gastar tudo e depositaram a nova fortuna em bancos privados mundo afora. Estes, por sua vez, recheados, saíram oferecendo empréstimosfartos a quem quisesse, sem examinar muito a capacidade de cada país em pagar as dívidas, sempre atreladas aos juros americanos.
Quando Paul Volcker, então diretor do banco central americano, o Federal Reserve, decidiu combater a inflação em seu país na base do porrete, jogou para as nuvens a taxa de juros. Surtiu efeito antiinflacionário desejado dentro de casa, mas provocou cataclismo em outra ponta: os países que tinham tomado os tais empréstimos dos pretrodólares não conseguiam pagar os novos juros altos do Fed. O México foi o primeiro a pedir água: em agosto de 1982, anunciou moratória da dívida externa. Brasil e outros completaram a reação em cadeia. Pânico dos bancos privados que tinham emprestado tanto dinheiro e não viam perspectivas de receber.
FMI e Banco Mundial entraram em cena novamente, já despidos de suas funções originais de Bretton Woods. Na tentativa de se adaptarem à nova realidade financeira do mundo, transformaram-se em administradores de crises. Dessa vez, não se tratava apenas de salvar os países endividados - que, na verdade, estavam apenas bloqueados no acesso a mais dinheiro. Mais difícil talvez fosse a situação dos bancos privados, com bilhões a receber de governos que anunciavam não ter condições de pagar.
Tem origem aí a linha mais severa de críticas às instituições de Bretton Woods porque, apesar de já virem adotando um receituário conservador na concessão de empréstimos, tornaram-se mais rigorosas suas exigências para socorrer os sufocados. Impuseram uma austeridade que seus críticos denunciam mais como estrangulamento, pois impede crescimento da economia na hora em que precisa mais. As vantagens vão para os países ricos, o Tesouro americano e o sistema bancário privado internacional, que passa a ter melhores condições de receber o que lhe devem.
SANGRANDO OS PACIENTES, ATÉ O FIM.
A expressão é do economista Paul Krugman, um dos mais notórios críticos do FMI, para se referir ao procedimento da instituição em relação aos países que recebem a "ajuda"; Joseph Stiglitz, ex diretor do Banco mundial, não é menos severo.
A lista de críticos das instituições de Bretton Woods é longa demais para enumerar, pegando da esquerda anticapitalista revolucionária à direita tradicionalista que não gosta de controles e defende só o mercado como solução para questões econômicas.
O Banco mundial é até mais poupado dos ataques, talvez porque se dedique a financiar projetos de desenvolvimento e tenha revelado mais abertura para acatar recomendações e aceitar reformas O FMI, no entanto permanece sob bombardeio intenso dos que consideram a instituição intransigente, ortodoxa e servil aos interesses de bancos e governos ricos, sobretudo o americano.
Seu receituário pode ser ignorado por países ricos, como acaba de ocorrer com os EUA, formalmente criticados pelo FMI por causa do gigantesco déficit no orçamento do governo Bush (US$ 521 bilhões, segundo o previsto para este ano), problema apontado pela instituição como uma ameaça à estabilidade da economia mundial. Bocejos na Casa Branca e no Congresso, que não pede socorro à instituição e, por isso, não precisa acatar suas recomendações.
Já país que pede empréstimo, como aprendem simples mortais que buscam financiamento no banco da esquina, tem de aceitar "as condições de gerente". Precisa mostrar que tem fonte de renda confiável e que vive com disciplina suficiente para pagar as contas futuras. Melhor ainda se demonstrar cortes de gastos e disciplina de caixa.
Os gritos anti-FMI na rua, em protestos antiglobalização, até podem ser descartados como arroubos de rebeldes em busca de uma causa. O mesmo não ocorre, porém, diante do tiroteio disparado por quem conhece a máquina de perto. Ou por dentro, como é o caso do ex-economista-chefe do Banco Mundial Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002.
Stiglitz já deixava críticas públicas ao sistema Bretton Woods quando ainda trabalhava no banco e discordava de práticas rotineiras das instituições irmãs, que propunham apagar incêndio financeiro com elevação considerável dos juros para conter fuga de capitais. Isso protegia o dinheiro dos investidores estrangeiros, protestava o economista, mas sufocava a capacidade de recuperação interna da economia. Abertura comercial apressada, privatização mal conduzida e liberalização descontrolada do mercado de capitais foram alguns dos outros alvos de Stiglitz, além das restrições à influência do governo americano.
Sua bateria de ataques, sobretudo ao FMI, ganhou mais ímpeto quando ele deixou o banco e passou_as tribunas de jornais e livros. Na publicação mais recente - The Roaring Nineties (edição brasileira: Os Exuberantes Anos 90, Cia. Das Letras) -, Stiglitz escreve: "lutamos [nos EUA] contra privatização da previdência social americana, enquanto a promovíamos no exterior. Lutamos aqui contra a lei que nos obrigaria a manter equilíbrio de orçamento, porque restringiria nossa capacidade de usar política fiscal expansionista no caso de recessão, mas impusemos políticas fiscais contracionistas em países que mergulhavam em recessão".
Opositor do fundamentalismo econômico - a fé no mercado como melhor remédio para a economia -, Stiglitz nota que o próprio governo americano não segue essa receita ortodoxa em casa, pois tem vários mecanismos de intervenção governamental. Mas a promove no resto do mundo, principalmente por meio do FMI. Idem para as práticas de comércio internacional, onde Washington prega abertura no exterior, mas fecha suas portas quando convém (aço, suco de laranja, açúcar...).
Stiglitz adverte que muitas propostas do FMI ou do Banco Mundial promovidas como apenas "tecnocráticas" ou neutras, na verdade, com freqüência, envolvem escolhas com implicações sociais: alguns ganham, outros perdem. "São propostas freqüentemente mais baseadas em ideologia do que em ciência econômica", diz ele.
Portanto, sugere Stiglitz, decisões "técnicas" que afetam a economia merecem passar pelo filtro democrático de líderes políticos nacionais eleitos para julgar que segmentos de sua população merecem ganhar ou perder. Na crise financeira da Ásia, por exemplo, empréstimos do FMI ajudaram a salvar credores internacionais, mas atingiram com dureza trabalhadores e empresas nacionais, nota Stiglitz.
Outro crítico severo das instituições Bretton Woods é o economista também americano Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton, colunista do New York times e ganhador da medalha John Bates Clark que, no mundo da economia, tem tanto ou mais valor do que um Nobel. Em seu mais novo livro The Great Unravelling (O Grande Desmanche), escreve: "com justificativa considerável, o mundo vê o FMI como braço do Tesouro americano".
Como demonstração dos equívocos da organização no tratamento a países em desenvolvimento, ele cita o exemplo da Argentina, com sua política de câmbio fixo de um peso por um dólar: "Os operadores do FMI sabiam havia meses, se não anos, que essa política era insustentável. Podiam ter oferecido orientação sobre como escapar dessa armadilha monetária, bem como dar cobertura política aos líderes argentinos para fazer o que tinham de fazer. Em vez disso, como médicos medievais que insistiam em sangrar seus pacientes e que repetiam o processo quando o paciente piorava, dirigentes do FMI receitaram austeridade e mais austeridade, até o fim". O chamado Clube de Madri, que reúne 43 ex-presidentes e chefes de Estado (entre eles, Fernando Henrique Cardoso, Bill Clinton, Mikhail Gorbatchov, Raúl Alfonsín, Helmut Kohl, Felipe González e Mário soares) está analisando o impacto do FMI sobre a democracia dos países onde são adotados programas de ajuste. Os estudos prosseguem, mas um relatório preliminar publicado em Janeiro criticou a instituição por falta de em9ocracia tanto em sua estrutura interna (o esquema de votação, a escolha dos dirigentes) como na atuação externa. "Para muitos, a intervenção do FMI é inerentemente não democrática", observou o ex-presidente brasileiro quandoo primeiro relatório foi entregue em Washington a representantes da instituição. "O FMI deve ser sensível à importância de fortalecer, e não debilitar, democracias. As políticas devem ser tecnicamente corretas, mas é preciso que os cidadãos percebam que elas são política e socialmente justas", diz um trecho do documento.
FHC comentou, no momento da distribuição do estudo, que o FMI é uma das várias instituições criadas na época da Segunda Guerra Mundial ou da Guerra Fria que precisam ser reestruturadas para se criar uma nova arquitetura financeira internacional. O ex-presidente notou que as propostas de reformas já existem há algum tempo, mas não são adotadas. "Continuamos esperando. Esperando o quê, afinal? Esperando Godot?"
Thomas Dawson, diretor de relações externas do FMI, recebeu o documento e reconheceu que a instituição tem sido muito fechada desde sua criação. "Antes, nos escondíamos atrás do regulamento do FMI. Agora, estamos mais abertos para buscar consenso nos países que tratamos de auxiliar".

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