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Eosinófilos, basófilos e monócitos são células mieloides e, corno os neutrófilos, derivam de células precursoras comuns. A diversidade de funções dessas células, quando maduras, expressa-se no hemogra- ma pela diversidade das causas de aumento ou diminuição. EOSINOFILlA Eosinofilia (eosinocitose) é o aumento do número absoluto de eo- sinófilos, ultrapassando o limite de referência, arbitrado em SOO/J.!L. Todas as linhas de contadores eletrônicos são notavelmente fidedig- nas na identificação e contagem de eosinófilos (ver Figura 1.2, p. 39). Urna rara causa de erro é a presença de pigmento malárico fagocitado por neutrófilos; o pigmento despolariza a luz e pode identificar a cé- lula corno eosinófilo. O número de eosinófilos no organismo é estreitamente regula- do. O número no sangue mantém-se baixo, e a presença nos tecidos restringe-se à mucosa intestinal. Diversas doenças e eventualidades clínicas acompanham-se de acúmulo de eosinófilos no sangue e nos tecidos acometidos. A eosinofilia é muito comum, estava presente em 2 a 3% dos hemo gramas feitos no laboratório do autor; deve ser ainda mais prevalente em laboratórios que atendam pessoas de menor nível socioeconômico. Pode ser danosa, pelo efeito pró-inflamatório dos eo- sinófilos, ou benéfica, por seu efeito antiparasítico. Alterações das eosinófilos, basófilos e monócitos 287 Eosinofilia nas parasitoses A eosinofilia faz parte da resposta imunológica às parasitoses. Os linfócitos T, estimulados pelos antígenos exógenos, secretam inter- leuquina-5, que funciona como eosinofilopoetina. Segue-se discussão sumária das helmintíases que causam eosinofilia, desde as de alta pre- valência até as possíveis de encontrar no Brasil. Nematódeos intestinais: a eosinofilia é constante nas infestações por Ascaris lumbricoides, Necator americanus, Ancylostoma duodenale e Strongyloides stercoralis, todos de alta prevalência no Brasil. Todos fazem ciclo pulmonar e podem causar síndrome de Loeffler - eosino- filia intensa e infiltrados pulmonares intersticiais, que evolui para a resolução em algumas semanas. Depois há eosinofilia proporcional à magnitude da infestação intestinal; grandes infestações podem pro- vocar eosinofilias superiores a 50.000/11L. Na clínica do autor, onde é frequente a consulta por eosinofilia, a estrongiloidíase, não notada no exame parasitológico convencional de fezes (devem ser pesquisadas as larvas por técnica própria), é a causa mais comum. Os ancilostomídios e o S. stercoralis causam anemia ferropênica. Enterobius vermicularis e Trichuris trichiura não costumam causar eosinofilia. Nematódeos teciduais: todos causam eosinofilia, geralmente> 2.000/11L. As infestações por Trichinella spiralis e Toxocara canis/caris (larva migrans visceralis) não são raras. A triquinelose é um diagnós- tico clínico, por imagem e por biópsia. A toxocaríase é um diagnóstico presuntivo (não aparece nas fezes, e a sorologia é difícil); a eosinofilia dura até um ano. A infestação pelo Angiostrongylus costaricensis (con- taminação pela ingestão fortuita de moluscos em vegetais crus) e pelo Anisakis sp. (contaminação pela ingestão de peixes de água salgada, crus) provavelmente existe no Brasil; na infestação pelo Anisakis, o diagnóstico é feito por biópsia das lesões gástricas ou por sorologia. O Ancylostoma brasiliense e o caninus, que causam larva migrans cutâ- nea, podem fazer ciclo pulmonar, nesse caso, com eosinofilia. A Wu- chereria bancrofti e as filárias africanas e asiáticas causam eosinofilia constante e são responsáveis pela eosinofilia tropical, síndrome com evolução de semanas ou meses, com tosse, infiltrados pulmonares, alta IgE e considerável eosinofilia. Cestódeos intestinais e teciduais: Taenia saginata e Taenia solium, quando solitárias no intestino, causam eosinofilia moderada (eosinó- SI 288 Renato Failace & cais. filos < 15%) e inconstante. Na cisticercose e no cisto hidático (Echino- coccus granulosus), há eosinofilia moderada em 20 a 25% dos casos. Trematódeos teciduais: a Fasciola hepatica (rara, mas várias vezes descrita no Brasil), adquirida pela ingestão de plantas aquáticas, e os trematódios dos gêneros Clonorchis e Opistorchis, com contaminação pela ingestão de peixes de água doce e crustáceos crus (o autor des- conhece diagnóstico comprovado no Brasil, mas há descrição de casos suspeitos), causam doença hepatobiliar grave, sempre com eosinofilia > 2.000/111. É provável que o Paragonimus mexicanus, que causa do- ença pulmonar com grande eosinofilia, exista no Brasil. O Schistosoma mansoni, de considerável prevalência nas regiões central e nordeste do Brasil, causa eosinofilia durante a dermatite da infestação e na sín- drome febril aguda; já na localização tecidual, com hiperesplenismo e pancitopenia, a eosinofilia é inconstante. O Schistosoma japonicum, visto no Brasil (inclusive pelo autor) em pacientes contaminados no estrangeiro, causa eosinofilia e hematúria. Trematódeos intestinais, prevalentes no Oriente, não foram des- critos no Brasil. Entre as protozooses intestinais, somente as diarreias causadas por Dientamoebafragilis e Isospora belli acompanham-se de eosinofilia. Artrópodos: a escabiose e a larva migrans de insetos causam leve eosínofilia. A miíase, quando única, não causa. Demais causas de eosinofilia Doenças alérgicas e da pele: na asma são comuns eosinofilias até 1.500/111. Nos surtos de rinite alérgica, com fluido nasal rico em eo- sinófilos, a eosinofilia sanguínea é moderada « 1.000/I1L) ou ausen- te; é moderada, também, na urticária, prurigo, eczema e ictiose. No edema de Quincke e doença do soro pode ultrapassar 2.000/I1L, mas é fugaz. Há eosinofilia no pênfigo e nas farmacodermias. Não há na psoríase; na dermatite herpetiforme é exceção. As micoses superficiais e ungueais não causam eosinofilia. Há duas doenças dermatológicas com considerável eosinofilia: a dermatite granulomatosa com eosino- filia (doença de Well) e a fascite eosinofílica (doença de Schulman). Alterações dos eosinófilos, basófilos e monócitos 289 Radioterapia: causa eosinofilia constante, geralmente entre 1.000 e 2.500/~L, que dura algumas semanas e não tem consequências ou implicações prognósticas. Eosinofilias "epidêmicas": houve, no fim do século XX, dois surtos de intoxicações graves, em que eosinofilia, severa e durável, fez parte do quadro clínico. • Síndrome do óleo tóxico (Espanha, 1981-82): epidemia com mais de 20 mil casos, que se acreditou ser devida ao consumo de óleo de canola desnaturado com anilina. Os pacientes apresentaram eosi- nofilia com rash cutâneo, mialgias, cefaleia, edema e insuficiência respiratória aguda; a metade dos casos evoluiu cronicamente com neurites, escleroderma, alopecia e contraturas. • Síndrome da eosincfilia/mialgia (EUA, 1989-90): o surto com mais de 1.500 casos foi associado ao uso da medicação popular, de venda livre, L-triptofano, não se sabe se devido ao ingrediente em dose alta ou a contaminante(s) na fabricação japonesa. Os pacientes apresen- taram eosinofilia (> 2.000/~L, alguns até > 20.000/~L), mialgia incapacitante e fadiga durante meses. Houve óbitos por paralisia ascendente e envolvimento cardíaco. Síndrome hipereosinofílica: é uma rara síndrome caracterizada por eosinofilia considerável e persistente, com dano tecidual. Certamente correlaciona-se com alterações dos linfócitos T e secreção excessiva de interleuquina-5 e outras. Em muitos casos, a citometria em fluxo mos- tra populações T aberrantes: C03-/C04+/C08-; C03+/C04-/C08-; linfócitos T, sem aspecto LGG, mas C016+, C056+ (características de linfócitos NK). No hemograma, há eosinofilia, geralmente entre 2.000 e 20.000/~L, mas que pode exceder 60.000/~L, eosinófilos hipo e agranulados e com granulações basófilas concomitantes, ane- mia (com características de anemia de doença crônica), neutrófilos e plaquetas normais. Há infiltrados pulmonares, fibroseendocárdica e miocardiopatia, serosites, algumas vezes rash cutâneo. O diagnóstico diferencial com a leucemia eosinofilica é difícil; alterações citogenéti- cas e moleculares (ver Capítulo 22), ou excesso de blastos na medula favorecem o diagnóstico desta. A evolução é crônica; o tratamento com corticoides e hidroxicarbamida é eficaz, mas paliativo. 290 Renato Failace & cais. Eosinofilia em leucemias: na leucocitose da leucemia mieloide crô- nica, os eosinófilos estão em baixa porcentagem, mas, em número absoluto, há eosinofilia. Há casos de leucemia linfoblástica aguda com eosinofilia; essa rara combinação nota-se no hemograma inicial, desaparece com a remissão pelo tratamento e reaparece se houver recidiva. A leucemia eosinoftlica é discutida nas leucemias mieloides (Capítulo 22). Causas variadas: eosinofilia discreta é acompanhante infrequente de neoplasias (carcinomas do trato digestivo e hepatobiliar, doença de Hodgkin e outras), das colagenoses, das serosites e da tuberculose. Costuma ocorrer na periarterite nodosa e é parte integrante de sua equivalente pulmonar (com asma, cardiopatia e neuropatia), a sín- drome de Churg-Strauss. Eosinofilias sem causa aparente: são comuns. Um questionário cui- dadoso e exames repetidos não revelam causa para muitos casos de eosinofilia crônica, às vezes com contagens elevadas. Em pacientes hígidos, e que se mantêm hígidos durante 3 a 4 meses de acompanha- mento, a eosinofilia quase nunca se mostra, mais tarde, expressiva de doença grave. EOSINOPENIA Eosinopenia é a diminuição do número de eosinófilos do sangue. Como o limite inferior é muito baixo, o valor zero na fórmula leucocitária convencional pode ser obtido apenas por chance estatística, não repre- sentando ausência de eosinófilos; é de boa técnica prorrogar a observa- ção até 200 leucócitos para tomar o zero mais significativo. Nas fórmulas automatizadas, < 50 eosínófilos/ul, significa eosinopenia real. Há eosinopenia em todos os casos de estímulo do eixo hipófise/ suprarrenal, desde o estresse de eventos cotidianos até o começo de doenças infecciosas em geral. A precocidade da desaparição dos eo- sinófilos na apendicite e demais casos de abdômen agudo é útil para o diagnóstico. O tratamento com doses farmacológicas de corticoides causa eosinopenia. A diminuição da contagem após injeção de ACTH era usada como teste de função suprarrenal (teste de Thom). Alterações dos eosinófilos, basófilos e monócitos 291 BASOFILIA Os contadores eletrônicos geralmente identificam e contam ba- sófilos pelos métodos usuais (impedância, condutividade, light scatter) após tratamento da amostra de sangue com solventes ácidos; ao con- trários dos demais leucócitos, os basófilos são resistentes à lise. A con- tagem, entretanto, não é fidedigna em nenhuma linha de contadores eletrônicos. São confundidos com plasmócitos (Advia), com neutrófilos displásicos (Beckrnan-Coulter) ou simplesmente não são notados (to- das as linhas). A contagem ao microscópio, no decorrer da fórmula leucocitária, dado o pequeno número presente, tem inaceitável erro estatístico: para que porcentagens tão baixas como 0,2 a 2% tornem-se significativas (p < 0,05), há necessidade de estender-se a observação a cerca de 10.000 leucócitos, o que é obviamente inviável. A contagem âe basófilos é um exame que, por falta de tecnologia confiável, não pode ser solicitado ao laboratório; também não teria utilidade clínica. Basofilia (sinônimo: basocitose), igualou superior a 3% na fór- mula fornecida por contador eletrônico, exige confirmação ao micros- cópio. Esse valor, obtido em fórmula ao microscópio, deve levar o técnico a prorrogá-Ia até 200-300 elementos, para maior sígnificân- cia; salvo em síndromes mieloproliferativas (discutidas a seguir), o achado geralmente não se confirma. Trabalhos publicados comprobatórios da presença de basofilia em estados alérgicos (urticária crônica), embora atinjam significância estatística pela elevada casuística, são impossíveis de transposição a resultados laboratoriais individuais. Querer "contar" basófilos no san- gue, na expectativa de correlação com o nível de histamina, não tem cabimento. Basofilia nas síndromes mieloproliferativas: basofilia é constante na leucemia mieloide crônica, persistindo mesmo na melhora com o tratamento; pode ser o único achado anormal nesse período. Nas etapas tardias da doença, pode haver basofilia > 4.000/I1L; pacien- tes com acentuada basofilia geralmente queixam-se de prurido. Nas demais síndromes mieloproliferativas, uma porcentagem de 2 a 4% é comum. Na opinião do autor, na suspeita de síndrome mielopro- liferativa, cabe fazer-se uma fórmula ao microscópio estendida a 500 leucócitos, porque alta porcentagem de basófilos é um dado a mais a favor do diagnóstico - difícil em casos incipientes - e justifica pedido 292 Renato Failace & cais. de exames mais elaborados, como pesquisa da mutação JAK2 por bio- logia molecular. A basopenia é impossível de confirmar ou interpretar, pois o li- mite de referência inferior é zero. MONOCITOSE Os monócitos circulam brevemente no sangue e exercem suas fun- ções nos tecidos, onde se localizam duradouramente como macrófagos fixos. No sangue normal, os contadores Beckman-Coulter e Cell-Dyn identificam monócitos com maior exatidão que a linha Advia. Tem sido descrita certa discrepância entre as fórmulas ao microscópio e as eletrô- nicas, com maior porcentagem de monócitos nestas. Crê-se que sejam mais corretas e que a microscopia tome alguns monócitos por linfócitos; o autor crê que o limite de referência superior do número de monócitos, com fórmulas eletrônicas, deva ser elevado a 1.000/flL. Os scatterplots de populações de linfócitos atípicos, linfócitos leucêmicos e linfomatosos, blastos e hairy cellsmesclam-se com o dos monócitos. As fórmulas eletrô- nicas, nesses casos, são inválidas; a microscopia é indispensável. Monocitose é o aumento dos monócitos do sangue acima de 800 (ou 1.000)/J..lL. Monocitoses reacionais (passageiras) entre 1.000 e 2.000/J..lL são comuns: a monocitose acompanha a neutrofilia nos pro- cessos inflamatórios. Émais tardia e persiste na convalescença. Nas doenças infecciosas discutidas a seguir, a monocitose cos- tuma ser citada na literatura como característica; na experiência do autor, nas duas primeiras é inconstante e de baixo valor preditivo. • Endocardite subaguda: só há monocitose em 30-40% dos casos. Pre- domina a neutrofilia. Éverdade que, em raros casos, há monocitose > 2.000/J..lL, que dura semanas e pode até sugerir o diagnóstico de leucemia mielomonocítica crônica. • Tuberculose: há monocitose nos casos de doença cavitária pulmonar e na tuberculose ganglionar; acompanha-se de neutrofilia e eritrosse- dimentação elevada. Desde o advento do tratamento eficaz, o hemo- grama é de pouca utilidade no acompanhamento da tuberculose. • Brucelose: a literatura descreve um hemo grama com neutrocitopenia, monocitose e ADC. O autor não tem experiência com brucelose. Alterações dos eosinófilos, basófilos e monócitos 293 Crianças de até 2 anos respondem às doenças infecciosas com monocitose precoce, além da neutrofilia. Há monocitose após 2 a 3 dias do infarto do miocárdio; foi des- crita monocitose correlacionada à depressão; na mononucleose infec- ciosa, além da linfocitose com virócitos, há monocitose. Há monocitose vicariante na neutropenia crônica benigna, na neutropenia cíclica e na agranulocitose por fármacos, mas não na agranulocitose imunológica clássica. Na regeneração pós-aplasia por quimioterapia, há considerável mono cito se antes da neutrofilia. A contagem de jagócitos (= neutrófilos + monócitos) possivelmente é mais significativa que a contagem global de leucócitos, ou só a de neutrófilos, como indicador da necessidade de redução ou adiamento de doses de quimioterapia. Monocitose persistente em idosos (> 1.500/11L)geralmente é leucemia mielomonocítica crônica. As monocitoses leucêmicas/rnielo- displásicas serão discutidas nos Capítulos 21 e 24. MONOCITOPENIA É um achado incomum. Na fórmula convencional, deve ser con- firmado prorrogando-se a observação até 200 ou 300 leucócitos, já que o limite de referência inferior é baixo. No caso de fórmula ele- trônica, convém passar novamente o sangue, se possível em máquina alternativa. Na anemia aplástica, há monocitopenia junto com a neutrope- nia, daí a maior gravidade das infecções. Na hairy cellleukemia, há monocitopenia, disfarçada na fórmula eletrônica pelo defeito de iden- tificação descrito no começo do capítulo; na forma variante, não há monocitopenia.
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