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Karyne Dias Coutinho D outoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conceito e relevância da pesquisa Karyne Dias Coutinho* A disciplina de pesquisa sobre a infância tornou-se mais relevante nos cursos de formação de professores à medida que as transformações sociais se intensificaram. Diante de todas as mudanças que o mundo contemporâneo vem operando, a escola e todos os seus modelos pedagógicos parecem ficar em constante descompasso com as práticas culturais que crianças, jovens e adultos de hoje produzem e nas quais estão imersos. Por isso, a ação de pesquisar o cotidiano profissional nas escolas se constitui não apenas em mais uma maneira de organi- zar as práticas escolares, mas, principalmente, em uma forma radicalmente nova e diferenciada de conceber o processo educativo, em seus mais diversos aspectos: o papel do professor e do aluno, a organização do espaço, a distribuição do tempo, o planejamento das atividades, a avaliação, entre outras coisas. Portanto, além de permitir outro modo de conduzir o processo pedagógico, o ato de pesquisar supõe uma alteração na maneira de pensar e repensar os conceitos de infância, criança, aluno, ensino, aprendizagem, educação, currículo. A pesquisa propicia mudanças importantes nas formas de significar as funções sociais da escola no mundo atual, cujas características centrais diferem intensamente do mundo no qual a escola (tradicional) foi criada. A escola (tal como a conhecemos) e suas metodologias foram inventadas pelo final do século XVI, período em que, na Europa ocidental, estavam dadas as condições para o advento de uma época histórica chamada de Idade Moderna. Com a consolidação das sociedades industriais e a invenção das “fases da vida”, houve uma significativa separação entre crianças e adultos, o que resultou em novas práticas e sentimentos familiares, culminando no enclausuramento das crianças, processo que Ariès (1981) chama de escolarização. Portanto, a invenção de novas práticas educativas esteve associada à instituição de ambientes fechados para a educação e o recolhimento de crianças e jovens em locais (as escolas) caracterizados pela racionalização do tempo e do espaço. Essa lógica supunha, é claro, todo um conjunto de saberes e de discursos que acabaram por produzir uma série de formas de ensino, determinando os modos pelos quais o processo pedagógico deveria ser conduzido. Grande parte desses modos, por terem sido instituídos pelos jesuítas (cujos objetivos eram a catequização por meio da transmissão de conhecimentos e da modelação de comportamentos), acabou por assumir uma metodologia específica (conhecida como tradicional) que persiste até hoje. Doutoranda e mestre em Educação pela Universi dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Uni versidade Luterana do Brasil (ULBRA). 7Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br É certo que, ao longo dos tempos, as práticas escolares tradicionais foram alvo de inúmeras críticas e passaram por uma série de transformações. No entanto, ainda que se apresente sob novas configurações, a ideia de transmissão do conhecimento continua, em muitos casos, servindo de orientação ao processo educativo nas escolas. Para que a investigação seja um instrumento de reflexão e crítica por parte dos professores, é preciso que esses profissionais conheçam minimamente a história da Educação e da Pedagogia. Afinal, não se pode pensar o presente sem se pensar nas condições de possibilidade do tempo presente, ou seja, quais foram as condições que possibilitaram, que permitiram sermos o que somos hoje? Como a escola e suas práticas pedagógicas chegaram a ser o que hoje dizemos que elas são? Eis mais uma importância da pesquisa: problematizar as condições de possibilidade de uma série de situações cotidianas dos sujeitos envolvidos com a escola. Três modelos pedagógicos para as crianças É bastante interessante e útil ao campo da Educação o modo como Varela (2000) discute, organiza e apresenta o cruzamento entre espaço, tempo, poder, saberes e sujeitos no interior das instituições escolares, destacando três modelos pedagógicos, sob a forma de tendências educativas, produzidas em períodos históricos distintos. Para essa autora (VARELA, 2000), as três formas de pedagogia que histo- ricamente constituíram os processos de socialização escolar são: as pedagogias disciplinares, cujo cenário foi composto por humanistas, filósofos, reformadores e moralistas do século XVI e XVII1; as pedagogias corretivas, protagonizadas por Binet, Simon e pelos representantes do Movimento das Escolas Novas, como Montessori e Decroly2; e as pedagogias psicológicas, destacando-se em especial os nomes de Freud e Piaget. As pedagogias disciplinares foram configuradas na segunda metade do século XVI, a partir da preocupação dos reformadores e humanistas pelo governamento3 da infância. Desde as definições de infância assinaladas por católicos e protestantes até as modernas concepções dessa fase como sendo especial e inocente, dotada de características próprias, foram previstos programas de ensino que alteraram o uso dos espaços e dos tempos nas instituições educativas formais, tendo como efeitos a produção social do indivíduo e o disciplinamento dos saberes. Numerosos filantropos, economistas e reformadores sociais, ao aceitar a teoria segundo a qual a ontogênese recapitula a filogênese (Lei de Haeckel), vão estabelecer toda uma série de analogias entre a criança, o selvagem e o degenerado. Desse modo, se fará corresponder o estágio de selvageria com o da infância. As crianças, e especialmente as crianças das classes populares, se identificam com os selvagens. Civilizá-los e domesticá-los constitui o objetivo dessa escola pública obrigatória na qual seguirão reinando as pedagogias disciplinares. (VARELA, 2000, p. 88) A constituição da chamada infância anormal – possibilitada pelos casos de inadaptação às práticas do modelo das pedagogias disciplinares – e as novas técnicas e métodos de ensino criados pelos pioneiros do Movimento 1 Entre eles: Erasmo, Vives, Locke, Descartes, Rousseau, Kant, La Salle, Lutero. 2 E também Freinet, Dewey e os brasileiros Anísio Teixeira e Lourenço Filho. 3 O termo governamento refere-se à ação ou ao ato de governar, para diferenciá- -lo do termo governo, enten- dido aqui como a instituição do Estado: Governo da Repú- blica, Governo Municipal etc. Sobre o uso da expressão governamento – bem como governo e governamentali- dade – ver Veiga-Neto (2002). Conceito e relevância da pesquisa 8 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br da Escola Nova fizeram emergir o que Varela (2000) chama de pedagogias corretivas, direcionadas em especial para as crianças que apresentavam problemas de aprendizagem e de conduta. Nesse outro modelo, que surgiu à sombra das crianças ditas anormais, faz-se a crítica ao uso do tempo, do espaço e dos saberes nas formas tradicionais de ensino, defendendo a ideia de que a criança, com seus interesses e tendências naturais, deve estar no centro da ação educativa. É partindo desse princípio geral que Montessori e Decroly, por exemplo, apesar de divergirem em alguns aspectos, concordam em valer-se dos preceitos psicológicos para fundamentar cientificamente seus sistemas teóricos. Trabalhando inicialmente com as recém-constituídas crianças anormais e opondo-seao controle exercido pelo mestre no ensino tradicional (por meio da programação das atividades e dos exames), esses novos pedagogos, procedentes da área da saúde, propõem a autodisciplina, supondo “a possibilidade de uma socialização universal, individualizada, válida para qualquer sujeito, desligada das classes sociais e do contexto histórico e legitimada por códigos chamados experimentais” (VARELA, 2000, p. 94). As pedagogias corretivas estiveram intensamente envolvidas num deslocamento de exercício do poder: do poder disciplinar (sobre o qual se organizaram as instituições escolares que colocavam em prática as pedagogias disciplinares) para o psicopoder, que, no que se refere às práticas educativas, cria uma relação diferenciada entre crianças e adultos, posicionando de modos diferentes o aluno e o mestre. As novas concepções de uso do tempo, do espaço e dos saberes defendidas pelos representantes da Escola Nova abrem a possibilidade para a diversificação do campo da Psicologia escolar. Desse modo, são as próprias pedagogias corretivas que fazem emergir um terceiro modelo pedagógico implicado no governamento da infância: as pedagogias psicológicas, que têm Piaget e Freud como principais representantes. Apesar de piagetianos e psicanalistas apresentarem sistemas teóricos diferentes, ambos concordam entre si e com as pedagogias corretivas no que se refere a situar a criança no centro do processo educativo. O que difere as pedagogias psicológicas das corretivas é a forma de controle exercido sobre os alunos, que, num enfoque psicológico, se esforça cada vez mais em ser menos visível. Se as pedagogias corretivas priorizavam a autodisciplina em contraposição à disciplina rígida das pedagogias disciplinares, agora as pedagogias psicológicas preocupam-se, sobretudo, em fortalecer ainda mais o controle interior. Para tanto, colocam o enfoque das práticas escolares não tanto na organização do meio (como queriam os representantes da Escola Nova), mas na programação e vigilância do chamado desenvolvimento correto, com base nos estágios de desenvolvimento infantil. Poder-se-ia dizer sem dúvida que, como por ironia, esta criança foi vigiada e controlada muito mais do que nas “velhas pedagogias”, porque não apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas também agora era necessário que mesmo seu verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse controlado. Os alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria aprendizagem, já que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem conhecer os progressos ou retrocessos que realizam. [...] Sofrem, portanto, um processo de expropriação cada vez mais intenso que constitui a outra face da intensificação de um estatuto de minoria que, além dos cânticos à criatividade, à liberação e à autonomia, supõe dependência e subordinação cada vez maiores. (VARELA, 2000, p. 99) Conceito e relevância da pesquisa 9Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As críticas, vindas em especial da Psicanálise, ao controle exercido pelas práticas pedagógicas sobre a criança, com base nas leis de desenvolvimento, fazem emergir certos discursos sobre a ideia de cada aluno ter um ritmo próprio, que deve ser considerado pelo professor nas situações de aula que ele programa e coloca em funcionamento. A ideia de ritmo individual prioriza uma pedagogia centrada na atividade do aluno – para que ele se expresse “livremente” – em detrimento das normas de desenvolvimento infantil. Além do sujeito epistêmico de Piaget, dá-se visibilidade agora ao sujeito psíquico, que possui desejos, pulsões, sintomas e a quem se deve oferecer uma educação livre de coações. Dessa forma, há uma intensificação da ação pedagógica psicologizada, à medida que, reforçando-se a imagem de cada aluno, supostamente permite-se que ele exerça um trabalho sobre si mesmo, processo que Varela (2000) chamou de “personalização”. Recapitulando: na própria constituição dos espaços e tempos modernos, estão as pedagogias disciplinares; para os que não se adaptaram a elas, surgem as pedagogias corretivas, configurando o que se passou a chamar de infância anormal. Aos que não se adaptam ao controle excessivo do meio, característico da tendência corretiva, sugere-se um modelo pedagógico centrado na liberdade de expressão do aluno. A questão é que, ainda assim, exatamente por estarem envolvidos em relações de poder – que implicam necessariamente relações de resistência –, os modelos educativos apresentam brechas, fendas, fissuras, que fazem com que os inadaptados pareçam ser falhas do sistema pedagógico. Acontece que as falhas podem estar no próprio sistema, que talvez não corresponda aos sujeitos infantis contemporâneos. Será que isso poderia explicar o descompasso entre a escola e a sociedade atual? Pesquisa e a crise da escola Vários podem ser os motivos pelos quais a escola moderna parece não estar mais correspondendo às formas atuais de organização social. Vejamos três motivos, ligados entre si. Um dos motivos refere-se à típica afirmação de que a instituição escolar está em crise. Tratando-se do terreno educacional brasileiro, esta é uma constatação há tempos em voga em diferentes discursos sobre educação. Parece-me que quanto mais se aborda a chamada crise, tanto mais a repetência, a evasão e outros elementos considerados fracasso escolar aumentam em consideráveis proporções. Em tentativas de solução, são produzidas várias discussões sobre as possíveis causas desse fracasso: incansavelmente, o debate em torno das razões que levam à crise escolar continua acontecendo dentro e fora da escola. Como resposta a essa crise, num jogo quase circular, outros discursos modernos vão sendo produzidos, numa incansável tentativa de explicar como o mundo é e como ele deveria ser. O próprio termo crise é problemático. Momentos de crise são aqueles em que corpos e situações se manifestam com mais força. No sentido clássico grego, crise é o momento de mudança (para melhor), enquanto, no sentido moderno, crise é o momento de paralisia. No que se refere Conceito e relevância da pesquisa 10 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mais especificamente à crise educacional, enfraqueceu-se o poder que a escola, supostamente, tinha de proporcionar melhores condições de vida aos sujeitos e de inseri-los numa “sociedade de todos”. Nesse sentido, o fracasso escolar pode ser entendido como o pavor que a escola moderna criou e que ela própria prometeu, mas não conseguiu, extinguir. A permanência do fracasso escolar é o resultado de uma promessa não cumprida pela Modernidade. Outro motivo pelo qual a escola moderna parece não estar mais corres- pondendo às formas atuais de organização social refere-se ao fato de que as tentativas modernas de composição do indivíduo uno, coerente, integral fracassam à medida que os sujeitos deparam-se com a necessidade de assumir o desmantelamento e a construção incompleta de sua identidade individual. Ora, que lugar ocupa a escola frente a esse fato se ela se constituiu como uma instituição responsável por, entre muitas outras coisas, fabricar um sujeito cuja identidade deveria se encaixar a uma (preferencialmente única) moldagem cultural? Funcionando por meio da disciplinaridade – no que se refere tanto aos sa- beres quanto aos corpos –, a escola moderna, desde sua constituição, subordina sua função cognitiva e instrucional à principal de suas funções: governamento e regulação moral dos indivíduos e populações. É também por isso que a escolari- zação pode ser entendida como uma prática cultural para a produção de sujeitos cujos pensamentos, valores e condutas correspondam a um único e determinado padrão cultural. Dessa forma, a maioria das práticas escolares, ao mesmotempo em que fabrica identidades consideradas verdadeiras e, portanto, supostamente melhores, mais puras, mais reais do que outras, acaba por produzir a diferença como pejorativa, percebendo-a como um desvio da norma, como uma falha que precisa ser corrigida. O último motivo refere-se à valorização generalizada do sujeito, traduzida principalmente por um individualismo cada vez mais afastado dos grandes sistemas de sentido. A psicologização das relações humanas, que se desenvolveu paralelamente à revolução científico-tecnológica, torna possível certo tipo de hiperinvestimento do eu, seja como resposta à situação de vulnerabilidade com a qual os sujeitos vêm se deparando, seja como tentativa de seguir a “ordem” da privatização tão característica dos nossos tempos. Além dos três motivos aqui apresentados, é bem possível que os professores tenham novas respostas para o descompasso entre a escola e a sociedade atual. No entanto, como é que eles poderão chegar às respostas? Ou melhor, como é que poderão se fazer novas e diferentes perguntas, que sejam úteis ao seu trabalho e à sua pretensão de problematizar o próprio descompasso? Por meio da pesquisa. Investigando o seu cotidiano profissional e os sujeitos com os quais trabalham, os professores certamente estarão mais bem preparados para enfrentar os desafios que a contemporaneidade lhes impõe. Não é nada difícil perceber que o mundo contemporâneo vem passando por rápidas e intensas transformações na sua organização social, política, econômica e cultural. No entanto, o que as transformações do mundo de hoje têm a ver com a educação? De que maneira elas afetam as práticas educativas que são desenvolvidas Conceito e relevância da pesquisa 11Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br nas escolas? Bem, para tentar responder a essas questões, deve-se considerar que os alunos de hoje nascem num mundo cuja organização é radicalmente diferente da forma como o mundo era organizado anteriormente. A emergência de uma tecnologia eletrônica ampliou as possibilidades de interação entre pessoas e máquinas. Com isso, criam-se determinadas situações cotidianas que possibilitam o surgimento de outro discurso em relação à infância e à juventude, diferente daquele já conhecido entendimento de que a criança e o jovem são naturalmente dependentes e aprendizes em potencial dos adultos. O advento de alguns episódios tecnológicos recentes alterou os modos como crianças e jovens intervêm no mundo. Esse é apenas um dos fatores que explicam, até certo ponto, o enfraquecimento da ideia de que a escola é a instituição responsável por transmitir, desde cedo, os conhecimentos aos alunos. Os modos de vida contemporâneos demandam que o professor execute a função de problematizador das práticas em que os alunos e suas famílias encontram- -se enredados. Daí a necessidade de o professor assumir uma postura de pesquisador, orientando, promovendo e estimulando a discussão dos conteúdos, em vez de simplesmente apresentá-los aos alunos como verdades absolutas. Ao lidar com as informações a serem ensinadas, o professor faz recortes, seleciona, valoriza e reinterpreta a suposta objetividade do conteúdo. Essa operação influencia não apenas o posicionamento intelectual dos alunos, como também suas condutas diante da cultura escolar (regras de convivência, formas de ação, atitudes e comportamentos que vigoram na dinâmica das interações entre a comunidade escolar) e também diante da cultura social mais ampla. Portanto, o papel do professor é o de auxiliar na compreensão, utilização, aplicação e constante avaliação dos conteúdos e das informações escolares. A análise desses artefatos justifica-se, pois, em função de que conhecendo como eles se organizam e funcionam, pode-se melhor compreender as formas pelas quais crianças e adultos são subjetivados a assumir determinadas identidades (tanto individuais quanto coletivas). Por isso, no contexto de uma sociedade caracterizada como “digital”, o papel do professor amplia-se, em vez de empalidecer. A partilha e a problematização dos recursos materiais e informacionais de que professores e alunos dispõem possibilita o estabelecimento de uma ordem, ainda que efêmera, que encaminhe os processos educativos formais a partir de uma filtragem de informações disponíveis em dife- rentes lugares. Diante da velocidade com que as mudanças ocorrem, não é mais suficiente que os professores aprendam os saberes pedagógicos. É necessário e imprescindível que eles questionem os saberes já produzidos, verificando se tais saberes continuam a ser úteis aos sujeitos para os quais foram criados. Em tempos anteriores, era possível que houvesse uma metodologia de ensino pronta e acabada que, uma vez aprendida pelos profissionais da escola, garantiria o êxito das práticas escolares. No entanto, o maior desafio de todos os profissionais de Educação, atualmente, não é tão somente adaptar-se às mudanças, mas adaptar-se ao fato de que as pessoas mudam constantemente e com muita rapidez. Conceito e relevância da pesquisa 12 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Além disso, também será preciso manter uma constante ação de pesquisar, para que seja possível processar novos pensamentos e ideias que sejam compatí- veis aos modos de vida das crianças, dos jovens e dos adultos do século XXI. Que razão melhor poderia ser apresentada aos professores a engajarem-se na tarefa de pesquisar? O desafio está lançado. 1. A partir do que foi discutido no texto, escreva qual a relevância da pesquisa na formação de professores. 2. Sintetize, em uma frase, os três modelos pedagógicos estudados por Varela (2000), caracteri- zando brevemente cada um deles. 3. Na sua opinião, quais fatores evidenciam o descompasso entre escola moderna e sociedade atual? Discuta com dois ou três colegas e produzam um pequeno texto que apresente suas ideias. Conceito e relevância da pesquisa 13Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 4. Ainda em discussão com seu grupo, apontem como as transformações tecnológicas e culturais das sociedades contemporâneas invadem o cenário escolar. Existem muitas concepções de pesquisa na literatura pedagógica. Procure, em uma biblioteca pública, livros que tratem da pesquisa em educação e faça um levantamento de tais concepções. Frente à identificação do que se considera o professor reflexivo com o professor pesquisador, sugere-se a leitura de dois textos: Formar professores como profissionais reflexivos, de Donald Schön. In: NÓVOA, Antônio. Os Professores e sua Formação. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1995. Pesquisa, Formação e Prática Docente, de Marli André. In: ANDRÉ, Marli. O Papel da Pesquisa na Formação e na Prática dos Professores. Campinas: Papirus, 2002. Esses textos permitirão realizar um interessante confronto entre as duas perspectivas que hoje têm forte reflexo nas propostas de formação de professores. Conceito e relevância da pesquisa 14 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. 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No entanto, a infância, diferentemente dos corpos, é uma ideia, um sentimento, uma fase da vida que foi criada para esses seres chamados crianças. Portanto, esse sentimento de infância, essa fase da vida que se denomina infância nem sempre existiu. Então, como era a vida das criançasquando não existia a infância? Crianças medievais De acordo com o historiador francês Philippe Ariès (1981), as condições para que a infância fosse inventada começaram a acontecer no final da Idade Média, na Europa. Antes disso, as crianças eram vistas e tratadas, por elas mesmas e pelos adultos, como miniaturas de adultos (crianças traves- tidas de adultos: fazendo os mesmos gestos e usando o mesmo vestuário). Já que eram entendidas e tratadas assim, não havia nenhuma diferença fundamental entre crianças e adultos, a não ser a dife- rença de tamanho. Até os dois anos de idade, aproximadamente, a criança era vista como tal. Dos dois anos em diante, a partir do momento em que a criança começava a adquirir algum desembaraço físico (falar, andar), ela já era vista imediatamente como adulto jovem. Portanto, o sentimento de infância era muito passageiro e superficial, durava no máximo dois anos para cada criança que conseguia sobreviver em meio às precárias condições de vida da Idade Média. Até mesmo as famílias ricas presenciavam a morte de muitas crianças, pois as condições de saneamento eram inadequadas e as campanhas de saúde pública não existiam. Outro fenômeno importante com relação à frequência da morte entre as crianças era o infanticídio, por mais brutal que isso possa nos parecer. No prefácio da segunda edição do livro História Social da Criança e da Família, Ariès (1981, p. 17), referindo-se a dados relativos à Idade Média, diz: Eu chamaria a atenção para um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido: a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita [...]. O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las. Nesse contexto, em que não havia interesse pela vida infantil nem o consequente desejo de conservar os filhos, as crianças que morriam eram logo substituídas por outras; nessa repetida substituição não se percebiam sentimentos de afeição ou culpa por parte das famílias, já que os recém- -nascidos não eram considerados. Com a disseminação dos discursos de alguns reformadores, no sentido de informar às famílias sobre sua missão de proteger seus filhos, os pais e as mães (a exemplo das parteiras) passaram aos poucos a adquirir consciência da morte infantil e, paulatinamente, passaram a respeitar a vida das crianças e a se preocupar com elas. De acordo com Ariès (1981, p. 17), “a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por razões 15Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br médicas e higiênicas; simplesmente, as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar”. Percebe-se, pois, que, antes do século XVIII, as crianças não estavam dotadas de personalidade integral. Nasciam e desapareciam feito animais domésticos. Eram enterradas no quintal. No máximo serviam de distração nos primeiros anos, bichinhos engraçadinhos; depois, perdiam-se entre os adultos. Nesse sentido, também é importante referir que a infância individualizada esteve ausente da representação iconográfica – túmulos, pinturas religiosas – antes do século XVIII. Outro aspecto que merece destaque nos modos de vida das crianças da Idade Média refere-se à educação dos “miniadultos”: as crianças medievais aprendiam as coisas da vida diretamente com os adultos, ajudando-os a realizarem suas tarefas. Não havia uma instituição (como a escola, por exemplo), para onde todas as crianças deveriam ir para aprender. A aprendizagem acontecia no contato direto entre crianças e adultos, o que acabava por intensificar a indistinção entre eles. Além disso, antes do século XVII, não havia distinção de vestuário: meninos e meninas usavam as mesmas roupas, que tinham o mesmo modelo dos trajes para adultos. O lúdico tinha enorme relevância; crianças e adultos brincavam sem distinção. As atividades lúdicas propostas eram realizadas por todos, sem preocupação de idade ou sexo: brincar com bonecas, cata-ventos, pioras, jogos cantados. A dança e os jogos com bolas também faziam parte do cotidiano das pessoas. Em relação à vida em sociedade, as crianças participavam das festas de adultos, dos jogos de azar, das atividades profissionais da época. Tratava-se de um meio social muito intenso e difuso, do qual as crianças participavam sem distinção. A família – diferentemente do que veio a acontecer depois, com a chegada da Modernidade – não possuía um núcleo, composto de pai, mãe e filhos. A família medieval era composta de muitas pessoas que geralmente moravam numa mesma casa, e cujo espaço não era organizado de forma a permitir a privacidade das pessoas. Não havia necessariamente quartos separados para crianças, adultos e empregados: todos ocupavam o mesmo espaço, de modo que as crianças presenciavam até mesmo as práticas sexuais entre os adultos. Na visão moderna, as crianças devem ser protegidas e resguardadas de vários assuntos e questões, em especial àquelas relativas à sexualidade. No entanto, na Idade Média, de modo geral, tais práticas eram consideradas normais, tanto para os adultos quanto para as crianças. Essa ausência de reserva diante das crianças, esse hábito de associá-las a brincadeiras que giravam em torno de temas sexuais para nós é surpreendente: é fácil imaginar o que diria um psicanalista moderno sobre essa liberdade de linguagem, e mais ainda, essa audácia de gestos e esses contatos físicos. (ARIÈS, 1981, p. 129) As preocupações com a individualidade das crianças eram inexistentes e, portanto, ignorava-se a necessidade de respeito a elas. “Os adultos se permitiam tudo diante delas: linguagem grosseira, ações e situações escabrosas; elas ouviam e viam de tudo” (ARIÈS, 1981, p. 128). No entanto, como alerta Ariès, a atitude diante da sexualidade varia de acordo com o meio em que se vive em uma deter- minada época e a partir de uma determinada mentalidade. História da infância 16 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Dessa forma, não se trata de julgar a sociedade da Idade Média, culpando-a de não cuidar direito de suas crianças e de não reservá-las das práticas adultas. A questão está em entender que, naquela época, a maneira como as crianças deve- riam ser tratadas não era discutida pelos pais e pelos estudiosos, afinal, elas eram consideradas miniadultos. A lógica da sociedade medieval era outra e, por isso, não pode ser julgada pela sociedade atual. Na época, não havia discursos que sugerissem o que era certo. Não circulavam, entre as pessoas, estudos que apresentassem outros modos de vida, dizendo que eles seriam mais saudáveis ou melhores para as crianças. A sociedade medieval simplesmente desconhecia todos esses preceitos que funda- mentam atualmente a criação e a educação de uma criança. Só seria possível afirmar que a sociedade medieval estava errada se nela circulassem discursos e alertas que fossem capazes de ensinar as pessoas como é a maneira correta de tratar uma criança e, ainda assim, a sociedade continuasse com as mesmas práticas. Entretanto, esses discursos e esses alertas não existiam e, portanto, o modo como as crianças eram tratadas, criadas e educadas não era uma preocupação da época. Crianças modernas Discursos preocupados com as formas de vida das crianças começaram a aparecer pelo final do século XVII, período caracterizado por numerosas trans- formações sociais, na economia, na cultura, na política. Foi em meio a tais trans- formações que o conceito de infância aceito hoje (o que era apenas umamiragem antes do Renascimento) começou a ganhar forma e força, atingindo seu apogeu no século XX. Foi também no final do século XVII que as famílias passaram a se estruturar seguindo um novo modelo familiar: o modelo da família nuclear, composto por pai, mãe e filhos. Além disso, começou a haver uma especialização funcional do espaço privado: as casas do novo modelo familiar passaram a ser organizadas de modo a respeitar a individualidade dos pais e dos filhos. Houve, então, uma estruturação dos cômodos nas casas: a reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças. Excluem-se, agora, os criados, os amigos e os clientes. Com o modelo familiar moderno, que se estruturou conjuntamente ao surgimento da escola moderna, novas relações foram estabelecidas entre os membros das famílias. As novas práticas familiares resultaram, é claro, em novas formas de se entender e tratar as crianças. Estas passaram a aprender as coisas não mais por sua convivência cotidiana junto aos adultos, mas na escola. Todas essas transformações possibilitaram que surgisse um novo sentimento familiar. O afeto dispensado às crianças passou a ser medido em função da importância que os pais e as mães davam à educação de seus filhos. História da infância 17Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Não é nada difícil de imaginar o que resultou de todas essas transforma- ções: o reconhecimento de que as crianças são diferentes dos adultos, ou seja, o mundo infantil foi considerado único. Deu-se, assim, a separação entre crianças e adultos. Antes da Modernidade o modo de vida estava relacionado à sobrevivência dos sujeitos. Esse período foi chamado de Pré-Modernidade e era caracterizado pela ausência de problematização acerca dos conceitos de família, infância, crianças, entre outros. A Modernidade é compreendida, por Max Weber, como um processo de racionalização da vida social no término do século XVII, período em que se iniciou a formação do sujeito consumidor. O período atual é chamado de Pós-Moderno e suas condições foram se estabelecendo, segundo Lemos (2002, p. 67) a partir da “segunda metade do século XX, com o advento da sociedade de consumo e do mass media [mídia de massa], associados à queda das grandes ideologias modernas e de ideias centrais como história, razão e progresso”. Dessa forma, pode-se dizer que foi com o surgimento do período conhecido como Modernidade que as crianças passaram a ser separadas do imaginário adulto e a escola assumiu o papel preponderante de educá-las, em um processo de enclausuramento, de segregação. Para Ariès (1981), a imagem infantil relacionada à inocência foi forjada por razões morais, religiosas e higiênicas: preservar a criança da sujeira da vida e especialmente da sexualidade tolerada entre os adultos; fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão. Nesse sentido, de acordo com Ariès (1981), a noção de fragilidade da criança foi possível por inúmeras condições; mas tal noção foi discursada e sistematizada (o que ajudou a consolidá-la) por Rousseau. A partir daí, no século XX, essa noção foi difundida por pedagogos, psicólogos e psiquiatras: A família e a escola retiraram, juntas, a criança da sociedade dos adultos. A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que, nos séculos XVIII e XIX, resultou no enclausuramento total do internato. A solitude da família, da igreja, dos moralistas e dos administradores privou a criança da liberdade que ela gozava entre os adultos. Infligiu-lhe o chicote, a prisão, em suma, as correções reservadas aos condenados das condições mais baixas. Mas esse rigor traduzia um sentimento muito diferente da antiga indiferença: um amor obsessivo que deveria dominar a sociedade a partir do século XVIII. (ARIÈS, 1981, p. 172) A única função da família na Idade Média era assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes. Diferentemente disso, na Modernidade, a família passou a assumir uma função moral e espiritual responsável pela formação dos corpos e das almas: “O sentimento de família, o sentimento de classe e talvez em outra área, o sentimento de raça, surgem, portanto, como as manifestações de uma História da infância 18 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mesma preocupação, a uniformidade” (ARIÈS, 1981, p. 252). Dois sentimentos de infância fizeram-se presentes: idade da corrupção versus idade da inocência. Narodowski (1993, p. 51), referindo-se à história da infância, diz que “o corpo infantil não adquire suas características definitivas a não ser a partir da escolarização”. Esse autor salientou, também, que a infância seria um processo histórico, apesar de tentarmos associar o histórico ao biológico e ao psicológico: [...] durante muito tempo a escola permaneceu indiferente à repartição e à distinção das idades, pois seu objetivo essencial não era a educação da infância [...], ela acolhia da mes- ma forma e indiferentemente as crianças, os jovens e os adultos, precoces ou atrasados, ao pé das cátedras magisteriais. (NARODOWSKI, 1993, p. 187) A escola medieval que atendia meninos entre os seis e os vinte anos de idade, geralmente em um grande auditório e com um único mestre, começou a reconstruir-se ainda na Idade Média, também indiferente à idade dos alunos, mas atenta agora aos conteúdos transmitidos. Com tal preocupação, conectada a outras transformações sociais (inclusive, à invenção do conceito de infância), a disciplina de outrora existente na escola (disciplina humilhante, baseada em delação e castigos) passou a associar-se a uma disciplina relacionada à dignidade e à responsabilidade. Dessa forma, a disciplina passou a constituir a diferença essencial entre a escola da Idade Média e a escola da Idade Moderna. De acordo com Revel (apud ARIÈS; DUBY, 1991), em meio às transformações que alicerçaram a Modernidade, passaram a se intensificar os discursos sobre as normas de civilidade, especialmente os chamados Tratados de Civilidade, entre os quais se destaca a obra de Erasmo, cujo título é Civilidade Pueril. Essa obra, publicada em 1530, foi um dos tratados mais importantes devido à descrição de condutas prescritivas com finalidade pedagógica: a intenção era a de ensinar boas maneiras relacionadas à postura e a comportamentos sociais desejáveis: gestos, atitudes, moralidade. As boas maneiras propostas pelo autor foram reeditadas durante quase um século. Surgiu, assim, o que se chama hoje de aprisionamento do corpo, não somente do adulto, mas essencialmente da criança. Para os discursos relativos às normas de civilidade, a criança ainda não estava pervertida pela vida social. Entendida como símbolo da inocência, da simplicidade, ela deveria desde pequena ser disciplinada: interiorizar códigos, regras e normas sociais válidas para todos. Todos esses valores deveriam ser transmitidos pela escola. Este texto apenas apresentou uma breve e genérica “pincelada” sobre a história da infância, que se confunde e se mescla com a história da família nuclear e da escola moderna. De lá para cá, certamente muitos outros episódios aconteceram, de modo isolado e descontínuo, que foram colocando as condições para as infâncias de hoje. História da infância 19Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 1. Com base nas ideias de Ariès sobre a história da infância, liste três características que descrevam as crianças da Idade Média. 2. Pense nas características da sociedade medieval, referidas neste texto, e responda: de todas elas, qual mais te surpreende? Por quê? 3. Estabeleçaa relação entre os Tratados de Civilidade e a invenção da infância moderna. História da infância 20 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 4. Em grupos, discutam o que a Modernidade significou em termos de transformações nos modos de entender e tratar as crianças. Depois, façam breves registros do que foi discutido, em forma de frases curtas. Visite os álbuns de família: neles, você poderá encontrar fotografias de seus bisavós, avós, pai, mãe e tios. Repare nas roupas, nos brinquedos e na aparência deles. Em seguida, compare-as com as suas fotografias, de seus irmãos, primos, filhos, sobrinhos. Por último, passe os olhos nas revistas atuais, nos encartes de lojas especializadas em roupas de crianças e jovens. O que mudou? Pense sobre isso. História da infância 21Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br História da infância 22 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. Pontos de Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1995. BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1997. 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São Paulo: Cortez, 1999. 73Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Karyne Dias Coutinho D outoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A infância hoje A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições capturaram: algo que podemos explicar e nomear. [...] ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Larrosa A fabricação da infância insere-se nas tramas que os sujeitos criam e que nelas mutuamente se envolvem, ou seja, ela está associada a um amplo conjunto de alterações dos modos como os sujeitos, ao longo dos tempos, percebem e organizam seus corpos e sua existência. A caracterização das chamadas fases da vida – primeira infância, segunda infância, meninice, puberdade, adolescência, adultez, meia idade, terceira idade, idade senil – está inserida numa lógica disciplinar que divide o tempo de vida dos seres humanos em etapas especificadas, buscando dife- renciá-las (quanto mais, melhor), para que cada uma delas tenha suas próprias particularidades e seu lugar devidamente demarcado. Mais do que isso, ao definir as idades de cada uma das etapas, também são definidas as próprias pessoas (de acordo com a fase da vida em que se encontram), acarretando em uma caracterização do que se considera como comportamento normal em determinada idade. As crianças foram e continuam sendo submetidas a determinadas caracterizações, com a finali- dade de garantir a delimitação da infância e, assim sendo, também garantir a delimitação das demais fases da vida. Delimitação que, antes da constituição dos chamados tempos e espaços modernos, praticamente não existia se levarmos em consideração as formas pelas quais os sujeitos de diferentes idades se relacionavam e organizavam o cotidiano de suas vidas. Em seu estudo sobre a história social da criança e da família, Ariès (1981) aponta que, antes do século XVII, o período da infância era reduzido e a passagem de criança (basicamente os recém- nascidos) a adulto jovem era operada de forma imediata, ou seja, não existiam outras fases pelas quais os seres passavam até atingirem a adultez. Os cuidados e afetos hoje dispensados às crianças (enquanto algo sublime e naturalmente aceito, se não por todas, pelo menos pela grande maioria das pessoas) não eram nem valorizados, muito menos necessários ao equilíbrio das relações familiares e em sociedade. Com a emergência das sociedades industriais e a invenção das chamadas fases da vida, há uma significativa separação entre crianças e adultos, o que resulta em novas práticas e sentimentos familiares, culminando no enclausuramento das crianças, processo que Ariès chama de escolarização. Utilizando-se do referencial foucaultiano, Bujes (2002) salienta que as transformações nos modos de ver e de tratar as crianças foram produzidas no interior de relações de poder típicas dos tempos e espaços modernos. A autora nos mostra que a alteração dos mecanismos de poder (que deixam de se exercer pela ameaça da morte e passam a exaltar a vida), associada ao funcionamento do biopoder e do poder disciplinar, colocam as “condições para que adulto e criança se diferenciem e se distanciem, numa operação que constitui a justificativa para a intervenção familiar e para a prática 23Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br da educação institucionalizada” (BUJES, 2002, p. 35). Nesse contexto, há um intenso investimento sobre a vida das crianças, que se tornam alvo de uma série de estudos que intentam conhecê-las em detalhes, observando e descrevendo seus comportamentos com a finalidade de descobrir sua natureza. É por esse viés que, imersa num emaranhado de invenções modernas, a criança tornou-se, cada vez mais, foco de estudo da Ciência. Tomando a infância como objeto de análise, os saberes científicos “dizem” as verdades sobre ela e estabelecem determinados tipos de cuidado e de educação que correspondam a esses discursos tidos como verdadeiros. Foi também nas práticas educacionais e nas relações que começaram a estabelecer-se cotidianamente com as crianças que novos saberes e novas verdades foram sendo produzidas. Tratava-se, sobretudo, de um duplo processo que consistia, por um lado, em extrair das crianças saberes constituídos por elas em suas recentes experiências infantis, readaptando esses saberes a novas normas e, por outro lado, em observar, classificar, comparar as crianças, registrando e analisando seus comportamentos. Portanto, um processo que permite, ao mesmo tempo, um saber da criança e um saber sobre a criança. Foi assim que “a pedagogia se formou a partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se, em seguida, leis de funcionamento das instituições e forma de poder exercido sobre a criança” (FOUCAULT, 1996, p. 122). Os sujeitos infantis que eram submetidos ao olhar científico passam a ter suas características, seus comportamentos e sua conduta esmiuçados, o que torna possível sua maior diferenciação. O caráter deficitário que é atribuído às crianças relativamente aos adultos faz com que elas sejam ainda mais envolvidas em minuciosos estudos e pesquisas, que permitem o estabelecimento de hierarquias, estágios, etapas pelas quais as crianças têm necessariamente que passar para que se “encaixem” em formas desejáveis de desenvolvimento infantil. Como resultado, dá-se a produção de vários discursos, de diferentes campos do conhecimento, que contribuem para a formação da ideia de um sujeito infantil idealizado e, mais do que isso, de um sujeito infantil naturalizado. Os estudos da criança Os estudos da criança emergiram e se intensificaram em meio às transfor- mações sociais, políticas e econômicas que estiveram envolvidas na constituição dos tempos e espaços modernos. Em sua análise sobre a maquinaria escolar, Varela e Álvarez-Uría (1992) atentam para o fato de que, mesmo antes de a infância ser delimitada como uma etapa cronologicamente precisa, foram atribuídas a essa parte da vida algumas características, que se constituíram em condições de possibilidade para o moderno sentimento de infância. Tais características foram definidas por católicos (Erasmo, Vives, Rabelais) e protestantes (Lutero, Calvino) que, apesar de divergirem quanto aos estágios da infância e quanto ao momento certo de ensino das letras aos pequenos, concordavam com a necessidade de que a aprendizagem da fé e dos bons costumes deveria iniciar desde muito cedo. A infância hoje 24 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Em geral, as características que vão conferir a essa etapa especial da vida são: maleabili- dade, de onde se deriva sua capacidade para ser modelada;fragilidade (mais tarde imatu- ridade) que justifica sua tutela; rudeza, sendo então necessária sua “civilização”; fraqueza de juízo, que exige desenvolver a razão, qualidade da alma que distingue o homem dos animais [...]. (VARELA; ÁLVAREZ-URÍA, 1992, p. 71) Apoiando-se nessas características e ao mesmo tempo fortalecendo-as, intensifica-se uma ação educativa institucional em colégios, albergues, casas de doutrina: espaços onde se iniciam as graduações por idade. Conectado a isso, tem-se a ação educativa da recém-estreada família cristã, para quem se dirigiram tratados que assinalam os papéis do homem e da mulher em relação aos seus filhos, de onde advêm as ideias de amor natural entre pais e filhos e de verdadeira mãe, agora reclusa ao lar. Uma terceira forma de ação educativa uniu-se às ações institucionais e familiares: as práticas de recristianização, de vigilância multiforme dos jovens no que se refere à sua direção espiritual, à linguagem que devem usar, ao que podem ou não ler, fazer, vestir. Desse modo, chega-se ao século XVIII, com uma infância inocente [...] E se Rousseau pode redefinir a infância como idade “psicológica”, com etapas às quais correspondem necessidades e interesses, e em consequências suscetíveis de uma educação diferenciada, deve-se, sem dúvida, a todas essas orientações e direções sofridas anteriormente pelos jovens. (VARELA; ÁLVAREZ-URÍA, 1992, p. 74) Portanto, ainda que as condições para o estudo da criança remontem a épocas anteriores, pode-se dizer que desde alguns pensadores do final do século XVIII, como Rousseau, Kant e outros, tem-se constituído um extenso acervo de estudos sobre o comportamento infantil. Ao destacar a obra Um Esboço Biográfico de um Infante, de Charles Darwin, como pioneira desse movimento, Walkerdine (1998, p. 167) salienta: Formaram-se Sociedades de Estudo da Criança e a prática de observar crianças se tornou bastante generalizada. Os corpos das crianças eram pesados e medidos. Estudavam-se os efeitos da fadiga, bem como seus interesses; imaginações; ideias religiosas; atitudes em relação às condições atmosféricas, aos adultos; desenhos; bonecas; mentiras; ideias e seus estágios de crescimento. [...] [Esses discursos] eram extraídos da Biologia, da Topografia e do senso comum da vida cotidiana. Para Narodowski (2001), é com Rousseau que a infância surge delineada em seus aspectos mais puros e claros. Em Émile, a criança é nomeada como um não adulto, ser carente de razão e de juízo; ser ingênuo e inconsciente; portanto, ser dependente, que necessita ser conduzido, amado, protegido pelos já completos: os adultos. “Com base nessa dependência, surge um incontrolável desejo epistemoló- gico: vontade de saber a respeito das zonas inexpugnáveis do corpo infantil. Como não conhecer o que vai se proteger?” (NARODOWSKI, 2001, p. 37). Descrevendo a criança como um ser sobre o qual é preciso exercer uma ação educativa adulta que considere as condições naturais da própria infância, Rousseau a nomeia de duas formas distintas, mas complementares: a criança é apresentada ao mesmo tempo como um ser inacabado e como um ser naturalmente capaz de aprender. As crianças de hoje podem continuar sendo representadas e entendidas tal como Rousseau as descreveu? Será que a sociedade continua a produzir o mesmo tipo de sujeito infantil, dependente e obediente, ingênuo e imaturo como antes? Será que os profissionais da educação sabem quem são as crianças e os jovens que vão para A infância hoje 25Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br a escola atualmente, ou seguem reproduzindo essa ideia de Rousseau ao trabalhar com os alunos? A escola do século XXI está preparada para receber os estudantes do século XXI? Infâncias atuais Vimos que a infância foi configurada em meio a intensas transformações sociais e que conectado a isso também foram configurados os modelos pedagógicos para a educação formal das crianças. Considerando todas as intensas e rápidas transformações tecnológicas, políticas, econômicas e culturais das sociedades ocidentais contemporâneas, como as crianças passam a ser representadas, entendidas e tratadas? Que modelos educativos estarão sendo pensados para as infâncias atuais? Nosso mundo contemporâneo tem sido edificado sob uma crescente valorização da autonomia individual. Não é à toa que os objetivos educacionais considerados imprescindíveis à formação infantil sejam a atuação da criança de forma cada vez mais independente e o oferecimento de atividades e situações que favoreçam e permitam o desenvolvimento da autoconfiança, da imagem positiva de si mesmo, do autogoverno, da capacidade de realização de escolhas e do exercício da autonomia (BRASIL, 1998). Tais objetivos se caracterizam por entender a criança como um ser naturalmente dependente que, ao passar pelo processo da educação, pode (ou deve) ir conquistando certa independência e autonomia na realização de suas próprias tarefas e de suas próprias ideias. No entanto, uma das preocupações constantes da maioria dos discursos pedagógicos em circulação tem sido a de formar crianças que sejam capazes de, progressivamente, ir aprendendo a solucionar os mais diversos problemas que possam surgir em sua vida cotidiana. No entrecruzamento de objetivos de tal natureza com alguns importantes acontecimentos tecnológicos desenvolvidos no e pelo mundo contemporâneo (e colocados em funcionamento de forma muito intensa na vida de praticamente todas as pessoas), os referidos objetivos acabam por se tornar não apenas uma pretensão para a formação infantil como, mais do que isso, acabam tornando-se efetivamente uma realização da infância. Essa infância que dependente do adulto parece estar desaparecendo para dar lugar a uma infância autônoma, crítica e com vontade própria. É nesse sentido que alguns autores falam no fim da infância moderna. Mariano Narodowski (1999), por exemplo, diz que estamos nos despedindo dos sentidos modernos de infância e que esses sentidos estão sendo reconduzidos a dois polos, que o autor chama de infância hiperrealizada e infância desrealizada. A infância hiperrealizada é aquela infância que é realizada exatamente na interação com todas as possibilidades tecnológicas que o mundo contemporâneo oferece. É por isso que a infância, ao contrário da concepção moderna, não espera e não se prepara para viver um mundo que seria legitimamente de adultos. Trata- se, agora, de uma “infância imediata”, ou seja, trata-se de crianças que vivem sua infância em contato com um mundo altamente digital e que “compreendem A infância hoje 26 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mais sensivelmente do que seus pais os novos artefatos tecnológicos. [...] Crianças que não precisam ler o manual para aprender: interagem digitalmente com desenvoltura e surpreendem os adultos, descobrindo aquilo que para estes estava vedado” (NARODOWSKI, 1999, p. 48). Num outro polo, estaria aquilo que o autor chama de infância desrealizada: “trata-se da infância excluída fisicamente destas relações de saber, mas também excluída institucionalmente: assim como a invenção da imprensa produziu o analfabetismo, a internet está também criando uma nova geração de analfabetos virtuais” (NARODOWSKI, 1999, p. 52). É nas ruas e no mundo off-line que certas crianças vão, na contemporaneidade, (des) realizando sua infância. Na mesma direção, Neil Postman (1999) diz que a infância, tal como a enten- díamos, está desaparecendo, exatamente porque as crianças passaram novamente a ter acesso a todo tipo de informações que antes eram exclusivas dos adultos. Todas essas mudanças culturais, possibilitadas em especial pela combinação entre tecnologia e consumo, fazem emergir novas crianças no cenário social.Crianças que usam piercing, que fazem tatuagens, que estão muito mais habilitadas para manusear a aparelhagem tecnológica do que os adultos, que prestam atenção em várias coisas ao mesmo tempo. Crianças do self-service, do shopping center, do mundo fashion, crianças do consumo, em seu sentido mais amplo: consumo de bens, mercadorias, produtos e marcas, mas também consumo de afetos, ideias, imagens, slogans, estilos de vestir, de falar, de se comportar: estilos de ser. E não se trata apenas das crianças de condições socioeconômicas favorecidas, afinal, o mercado oferece inúmeras possibilidades para o consumo: as réplicas de Barbies, da Nike, enfim, imitações quase perfeitas de produtos e marcas altamente desejados, que estão acessíveis à população pobre. A intensificação do mercado informal chama a atenção para a expansão de um contingente de cidadãos de “segunda classe” – crianças, jovens e adultos pobres, trabalhadores eventuais, subempregados, desempregados, não empregáveis – que, segundo a lógica do capitalismo tardio, não podem ficar de fora do circuito do consumo. Mesmo que não estejam habilitados a adquirir mercadorias de primeira linha, inventam-se categorias a elas adaptadas – réplicas, versões baratas de objetos de consumo desejados, que circulam amplamente no fluxo contínuo dos mercados globais espetacularizados. (COSTA, 2006, p. 101) Portanto, crianças consumidoras, independente de sua situação socioeconô- mica. Crianças da rua, do sinal, das flanelas, que moram nos viadutos, nas pontes. Crianças que se transformam em estátuas humanas, vestidas e pintadas de bran- co, coordenando seus movimentos ao barulho das moedas. Crianças malabaristas em frente aos carros, que pedem esmolas, que vendem flores, panos de prato e quinquilharias pelas ruas da cidade, durante o dia e durante a noite: as acrobacias daquelas crianças que inventam suas próprias formas de sobrevivência. Sem falar, é claro, no apelo midiático à erotização precoce. Crianças da telefonia celular, da cultura cibernética, do dinheiro digital, da MTV (com estilo descontínuo de programação). Crianças do modem, da internet, da TV a cabo, de lan houses. Crianças dos Power Rangers, dos X-Men, dos skates, do surf, do hip-hop, das raves, do grafite. Crianças dos sistemas dinâmicos, A infância hoje 27Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br caracterizados como tão complexos a ponto de não serem previsíveis por métodos lineares. Crianças dos fliperamas, dos jogos eletrônicos. Essa nova infância pode parecer assustadora para os adultos. Com relação aos jogos eletrônicos, por exemplo, de forma geral a ideia é a de que é preciso afastar as crianças da frente da tela, não deixá-las muito tempo expostas aos con- teúdos dos jogos, enfim, evitar que as crianças passem muito tempo envolvidas com essa atividade, pois pode ser prejudicial à sua formação. Tais ideias estão associadas a um sentimento de inadaptação dos próprios adultos frente à imagem de um mundo virtual que não pode ser materialmente controlado. A maioria dos jogos eletrônicos atuais caracteriza-se por exibirem histórias geralmente não lineares e por apresentarem uma visão “confusa” e “descontrolada” de mundo. Os jogos eletrônicos são complicados, aos olhos adultos, exatamente porque apresentam uma mistura desordenada de diferentes elementos visuais e sonoros; muitas vezes, são barulhentos e com uma sequência desorganizada de situações, o que sugere certo tumulto exposto na tela da televisão. As crianças veem-se envolvidas em histórias colocadas pelos jogos que, aos adultos, apresentam uma total ou parcial falta de clareza: na maioria das situações, elas têm que enfrentar nos jogos obstáculos que são “arriscados”, obscuros, imprecisos e descontínuos. Os estágios e os níveis (muitas vezes irregulares) que as crianças têm que superar para passarem à fase seguinte dos jogos são, geralmente, imersos num contexto caótico; pois são de conteúdo turbulento, com símbolos sobrepostos e desencadeados que aparecem aleatoriamente na tela da TV. Por tudo isso, não é de admirar que os adultos se esforcem para impor certos limites a essa atividade infantil: eles não entendem a lógica dos jogos eletrônicos atuais. Para os adultos, que tentam, de todas as formas, ordenar a maioria das situ- ações do mundo no qual vivem, que almejam a ordem acima de tudo, o conteúdo proposto pelos jogos gera uma enorme sensação de desconforto. Os jogos eletrôni- cos atuais estão muito mais inseridos numa lógica de caos do que numa lógica de ordem. Uma lógica de caos com a qual os adultos não estão acostumados a lidar. No entanto, é importante referir que essa atividade é confusa e contraditó- ria aos olhos adultos. As crianças (que de forma geral têm tal atividade como a preferida delas), na maioria das vezes sabem bem o que e como fazer para vencer os obstáculos, – para elas, nem tão difíceis – para enfrentar assituações que se apresentam, para superar os níveis e passar às fases posteriores. Enfim, as crian- ças sabem como “navegar” pelo ondulatório conteúdo dos jogos. Rushkoff (1999), em seu livro Um Jogo Chamado Futuro, faz um interessante estudo acerca do surgimento e desenvolvimento dos videogames, relacionando-os a acontecimentos tecnológicos desenvolvidos no mundo contemporâneo. O avanço dos videogames ao longo das três últimas décadas se baseou no surgimento de novas tecnologias. Foi menos um desenvolvimento artístico conscientemente dirigido do que uma corrida para utilizar os novos chips, técnicas de criação de imagens e placas gráficas. Toda vez que surgia uma nova tecnologia, os criadores redefiniam a essência de seus jogos em função do novo hardware. [...] O estilo e conteúdo dos jogos se baseia nas qualidades específicas das novas máquinas à medida que são criadas. Dessa forma, a própria tecnologia impõe a direção da evolução do videogame. (RUSHKOFF, 1999, p. 167-168) A infância hoje 28 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O autor – ao traçar a evolução tecnológica dos jogos de duelo (Pong, Street Fighter, Mortal Kombat), dos jogos de busca ou de estratégia (Adventure, Zelda, Déjà Vu), e dos jogos do tipo apocalipse (Asteróides, Space Invaders, Ms Pacman, Mario, Super Mario, Mega Man, Doom) – salienta que os primeiros jogos que apareceram (independente do tipo) eram produzidos com processadores de formas muito simples, que permitiam apenas uma imagem bidimensional que pouco se movia. A partir do momento em que as máquinas de videogames ganharam capacidades gráficas reais, os personagens passaram a ser representados não mais por linhas simples, mas por figuras de desenho ou por fotografias digitalizadas que se moviam muito mais rapidamente. Em seu último estágio, os jogos apresentam figuras poligonais tridimensionais, permitindo que o campo de jogo seja circular e que os jogadores se movimentem livremente. “Os jogos evoluem de pontos de vista objetificados até os cada vez mais participativos. Passam de histórias contadas ou observadas a histórias vividas. O mundo é gerado pelos comandos à medida que andamos por ele. Em alguns jogos, pode-se ver o cenário sendo renderizado1 à medida que se aproxima” (RUSHKOFF, 1999, p. 173). Os jogos eletrônicos em seu último estágio, por toda a tecnologia com que são produzidos, permitem que o jogador esteja completamente dentro do ponto de vista do personagem e se caracterizam por colocarem histórias e cenários em que o mundo está em completa desordem. A relação dos jogos eletrônicos em seu último estágio com uma completa desordem do mundo não é muito difícil de ser feita. Os jogos atuais inserem-se num contexto tecnológico contemporâneo caracterizado exatamente pela escassez de regulamentos normativos: regulamentos
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