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Karyne Dias Coutinho D outoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conceito e relevância da pesquisa Karyne Dias Coutinho* A disciplina de pesquisa sobre a infância tornou-se mais relevante nos cursos de formação de professores à medida que as transformações sociais se intensificaram. Diante de todas as mudanças que o mundo contemporâneo vem operando, a escola e todos os seus modelos pedagógicos parecem ficar em constante descompasso com as práticas culturais que crianças, jovens e adultos de hoje produzem e nas quais estão imersos. Por isso, a ação de pesquisar o cotidiano profissional nas escolas se constitui não apenas em mais uma maneira de organi- zar as práticas escolares, mas, principalmente, em uma forma radicalmente nova e diferenciada de conceber o processo educativo, em seus mais diversos aspectos: o papel do professor e do aluno, a organização do espaço, a distribuição do tempo, o planejamento das atividades, a avaliação, entre outras coisas. Portanto, além de permitir outro modo de conduzir o processo pedagógico, o ato de pesquisar supõe uma alteração na maneira de pensar e repensar os conceitos de infância, criança, aluno, ensino, aprendizagem, educação, currículo. A pesquisa propicia mudanças importantes nas formas de significar as funções sociais da escola no mundo atual, cujas características centrais diferem intensamente do mundo no qual a escola (tradicional) foi criada. A escola (tal como a conhecemos) e suas metodologias foram inventadas pelo final do século XVI, período em que, na Europa ocidental, estavam dadas as condições para o advento de uma época histórica chamada de Idade Moderna. Com a consolidação das sociedades industriais e a invenção das “fases da vida”, houve uma significativa separação entre crianças e adultos, o que resultou em novas práticas e sentimentos familiares, culminando no enclausuramento das crianças, processo que Ariès (1981) chama de escolarização. Portanto, a invenção de novas práticas educativas esteve associada à instituição de ambientes fechados para a educação e o recolhimento de crianças e jovens em locais (as escolas) caracterizados pela racionalização do tempo e do espaço. Essa lógica supunha, é claro, todo um conjunto de saberes e de discursos que acabaram por produzir uma série de formas de ensino, determinando os modos pelos quais o processo pedagógico deveria ser conduzido. Grande parte desses modos, por terem sido instituídos pelos jesuítas (cujos objetivos eram a catequização por meio da transmissão de conhecimentos e da modelação de comportamentos), acabou por assumir uma metodologia específica (conhecida como tradicional) que persiste até hoje. Doutoranda e mestre em Educação pela Universi dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Uni versidade Luterana do Brasil (ULBRA). 7Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br É certo que, ao longo dos tempos, as práticas escolares tradicionais foram alvo de inúmeras críticas e passaram por uma série de transformações. No entanto, ainda que se apresente sob novas configurações, a ideia de transmissão do conhecimento continua, em muitos casos, servindo de orientação ao processo educativo nas escolas. Para que a investigação seja um instrumento de reflexão e crítica por parte dos professores, é preciso que esses profissionais conheçam minimamente a história da Educação e da Pedagogia. Afinal, não se pode pensar o presente sem se pensar nas condições de possibilidade do tempo presente, ou seja, quais foram as condições que possibilitaram, que permitiram sermos o que somos hoje? Como a escola e suas práticas pedagógicas chegaram a ser o que hoje dizemos que elas são? Eis mais uma importância da pesquisa: problematizar as condições de possibilidade de uma série de situações cotidianas dos sujeitos envolvidos com a escola. Três modelos pedagógicos para as crianças É bastante interessante e útil ao campo da Educação o modo como Varela (2000) discute, organiza e apresenta o cruzamento entre espaço, tempo, poder, saberes e sujeitos no interior das instituições escolares, destacando três modelos pedagógicos, sob a forma de tendências educativas, produzidas em períodos históricos distintos. Para essa autora (VARELA, 2000), as três formas de pedagogia que histo- ricamente constituíram os processos de socialização escolar são: as pedagogias disciplinares, cujo cenário foi composto por humanistas, filósofos, reformadores e moralistas do século XVI e XVII1; as pedagogias corretivas, protagonizadas por Binet, Simon e pelos representantes do Movimento das Escolas Novas, como Montessori e Decroly2; e as pedagogias psicológicas, destacando-se em especial os nomes de Freud e Piaget. As pedagogias disciplinares foram configuradas na segunda metade do século XVI, a partir da preocupação dos reformadores e humanistas pelo governamento3 da infância. Desde as definições de infância assinaladas por católicos e protestantes até as modernas concepções dessa fase como sendo especial e inocente, dotada de características próprias, foram previstos programas de ensino que alteraram o uso dos espaços e dos tempos nas instituições educativas formais, tendo como efeitos a produção social do indivíduo e o disciplinamento dos saberes. Numerosos filantropos, economistas e reformadores sociais, ao aceitar a teoria segundo a qual a ontogênese recapitula a filogênese (Lei de Haeckel), vão estabelecer toda uma série de analogias entre a criança, o selvagem e o degenerado. Desse modo, se fará corresponder o estágio de selvageria com o da infância. As crianças, e especialmente as crianças das classes populares, se identificam com os selvagens. Civilizá-los e domesticá-los constitui o objetivo dessa escola pública obrigatória na qual seguirão reinando as pedagogias disciplinares. (VARELA, 2000, p. 88) A constituição da chamada infância anormal – possibilitada pelos casos de inadaptação às práticas do modelo das pedagogias disciplinares – e as novas técnicas e métodos de ensino criados pelos pioneiros do Movimento 1 Entre eles: Erasmo, Vives, Locke, Descartes, Rousseau, Kant, La Salle, Lutero. 2 E também Freinet, Dewey e os brasileiros Anísio Teixeira e Lourenço Filho. 3 O termo governamento refere-se à ação ou ao ato de governar, para diferenciá- -lo do termo governo, enten- dido aqui como a instituição do Estado: Governo da Repú- blica, Governo Municipal etc. Sobre o uso da expressão governamento – bem como governo e governamentali- dade – ver Veiga-Neto (2002). Conceito e relevância da pesquisa 8 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br da Escola Nova fizeram emergir o que Varela (2000) chama de pedagogias corretivas, direcionadas em especial para as crianças que apresentavam problemas de aprendizagem e de conduta. Nesse outro modelo, que surgiu à sombra das crianças ditas anormais, faz-se a crítica ao uso do tempo, do espaço e dos saberes nas formas tradicionais de ensino, defendendo a ideia de que a criança, com seus interesses e tendências naturais, deve estar no centro da ação educativa. É partindo desse princípio geral que Montessori e Decroly, por exemplo, apesar de divergirem em alguns aspectos, concordam em valer-se dos preceitos psicológicos para fundamentar cientificamente seus sistemas teóricos. Trabalhando inicialmente com as recém-constituídas crianças anormais e opondo-seao controle exercido pelo mestre no ensino tradicional (por meio da programação das atividades e dos exames), esses novos pedagogos, procedentes da área da saúde, propõem a autodisciplina, supondo “a possibilidade de uma socialização universal, individualizada, válida para qualquer sujeito, desligada das classes sociais e do contexto histórico e legitimada por códigos chamados experimentais” (VARELA, 2000, p. 94). As pedagogias corretivas estiveram intensamente envolvidas num deslocamento de exercício do poder: do poder disciplinar (sobre o qual se organizaram as instituições escolares que colocavam em prática as pedagogias disciplinares) para o psicopoder, que, no que se refere às práticas educativas, cria uma relação diferenciada entre crianças e adultos, posicionando de modos diferentes o aluno e o mestre. As novas concepções de uso do tempo, do espaço e dos saberes defendidas pelos representantes da Escola Nova abrem a possibilidade para a diversificação do campo da Psicologia escolar. Desse modo, são as próprias pedagogias corretivas que fazem emergir um terceiro modelo pedagógico implicado no governamento da infância: as pedagogias psicológicas, que têm Piaget e Freud como principais representantes. Apesar de piagetianos e psicanalistas apresentarem sistemas teóricos diferentes, ambos concordam entre si e com as pedagogias corretivas no que se refere a situar a criança no centro do processo educativo. O que difere as pedagogias psicológicas das corretivas é a forma de controle exercido sobre os alunos, que, num enfoque psicológico, se esforça cada vez mais em ser menos visível. Se as pedagogias corretivas priorizavam a autodisciplina em contraposição à disciplina rígida das pedagogias disciplinares, agora as pedagogias psicológicas preocupam-se, sobretudo, em fortalecer ainda mais o controle interior. Para tanto, colocam o enfoque das práticas escolares não tanto na organização do meio (como queriam os representantes da Escola Nova), mas na programação e vigilância do chamado desenvolvimento correto, com base nos estágios de desenvolvimento infantil. Poder-se-ia dizer sem dúvida que, como por ironia, esta criança foi vigiada e controlada muito mais do que nas “velhas pedagogias”, porque não apenas se requeriam dela as respostas corretas, mas também agora era necessário que mesmo seu verdadeiro mecanismo do desenvolvimento fosse controlado. Os alunos têm assim cada vez um menor controle sobre sua própria aprendizagem, já que apenas os mestres, e sobretudo os especialistas, podem conhecer os progressos ou retrocessos que realizam. [...] Sofrem, portanto, um processo de expropriação cada vez mais intenso que constitui a outra face da intensificação de um estatuto de minoria que, além dos cânticos à criatividade, à liberação e à autonomia, supõe dependência e subordinação cada vez maiores. (VARELA, 2000, p. 99) Conceito e relevância da pesquisa 9Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As críticas, vindas em especial da Psicanálise, ao controle exercido pelas práticas pedagógicas sobre a criança, com base nas leis de desenvolvimento, fazem emergir certos discursos sobre a ideia de cada aluno ter um ritmo próprio, que deve ser considerado pelo professor nas situações de aula que ele programa e coloca em funcionamento. A ideia de ritmo individual prioriza uma pedagogia centrada na atividade do aluno – para que ele se expresse “livremente” – em detrimento das normas de desenvolvimento infantil. Além do sujeito epistêmico de Piaget, dá-se visibilidade agora ao sujeito psíquico, que possui desejos, pulsões, sintomas e a quem se deve oferecer uma educação livre de coações. Dessa forma, há uma intensificação da ação pedagógica psicologizada, à medida que, reforçando-se a imagem de cada aluno, supostamente permite-se que ele exerça um trabalho sobre si mesmo, processo que Varela (2000) chamou de “personalização”. Recapitulando: na própria constituição dos espaços e tempos modernos, estão as pedagogias disciplinares; para os que não se adaptaram a elas, surgem as pedagogias corretivas, configurando o que se passou a chamar de infância anormal. Aos que não se adaptam ao controle excessivo do meio, característico da tendência corretiva, sugere-se um modelo pedagógico centrado na liberdade de expressão do aluno. A questão é que, ainda assim, exatamente por estarem envolvidos em relações de poder – que implicam necessariamente relações de resistência –, os modelos educativos apresentam brechas, fendas, fissuras, que fazem com que os inadaptados pareçam ser falhas do sistema pedagógico. Acontece que as falhas podem estar no próprio sistema, que talvez não corresponda aos sujeitos infantis contemporâneos. Será que isso poderia explicar o descompasso entre a escola e a sociedade atual? Pesquisa e a crise da escola Vários podem ser os motivos pelos quais a escola moderna parece não estar mais correspondendo às formas atuais de organização social. Vejamos três motivos, ligados entre si. Um dos motivos refere-se à típica afirmação de que a instituição escolar está em crise. Tratando-se do terreno educacional brasileiro, esta é uma constatação há tempos em voga em diferentes discursos sobre educação. Parece-me que quanto mais se aborda a chamada crise, tanto mais a repetência, a evasão e outros elementos considerados fracasso escolar aumentam em consideráveis proporções. Em tentativas de solução, são produzidas várias discussões sobre as possíveis causas desse fracasso: incansavelmente, o debate em torno das razões que levam à crise escolar continua acontecendo dentro e fora da escola. Como resposta a essa crise, num jogo quase circular, outros discursos modernos vão sendo produzidos, numa incansável tentativa de explicar como o mundo é e como ele deveria ser. O próprio termo crise é problemático. Momentos de crise são aqueles em que corpos e situações se manifestam com mais força. No sentido clássico grego, crise é o momento de mudança (para melhor), enquanto, no sentido moderno, crise é o momento de paralisia. No que se refere Conceito e relevância da pesquisa 10 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mais especificamente à crise educacional, enfraqueceu-se o poder que a escola, supostamente, tinha de proporcionar melhores condições de vida aos sujeitos e de inseri-los numa “sociedade de todos”. Nesse sentido, o fracasso escolar pode ser entendido como o pavor que a escola moderna criou e que ela própria prometeu, mas não conseguiu, extinguir. A permanência do fracasso escolar é o resultado de uma promessa não cumprida pela Modernidade. Outro motivo pelo qual a escola moderna parece não estar mais corres- pondendo às formas atuais de organização social refere-se ao fato de que as tentativas modernas de composição do indivíduo uno, coerente, integral fracassam à medida que os sujeitos deparam-se com a necessidade de assumir o desmantelamento e a construção incompleta de sua identidade individual. Ora, que lugar ocupa a escola frente a esse fato se ela se constituiu como uma instituição responsável por, entre muitas outras coisas, fabricar um sujeito cuja identidade deveria se encaixar a uma (preferencialmente única) moldagem cultural? Funcionando por meio da disciplinaridade – no que se refere tanto aos sa- beres quanto aos corpos –, a escola moderna, desde sua constituição, subordina sua função cognitiva e instrucional à principal de suas funções: governamento e regulação moral dos indivíduos e populações. É também por isso que a escolari- zação pode ser entendida como uma prática cultural para a produção de sujeitos cujos pensamentos, valores e condutas correspondam a um único e determinado padrão cultural. Dessa forma, a maioria das práticas escolares, ao mesmotempo em que fabrica identidades consideradas verdadeiras e, portanto, supostamente melhores, mais puras, mais reais do que outras, acaba por produzir a diferença como pejorativa, percebendo-a como um desvio da norma, como uma falha que precisa ser corrigida. O último motivo refere-se à valorização generalizada do sujeito, traduzida principalmente por um individualismo cada vez mais afastado dos grandes sistemas de sentido. A psicologização das relações humanas, que se desenvolveu paralelamente à revolução científico-tecnológica, torna possível certo tipo de hiperinvestimento do eu, seja como resposta à situação de vulnerabilidade com a qual os sujeitos vêm se deparando, seja como tentativa de seguir a “ordem” da privatização tão característica dos nossos tempos. Além dos três motivos aqui apresentados, é bem possível que os professores tenham novas respostas para o descompasso entre a escola e a sociedade atual. No entanto, como é que eles poderão chegar às respostas? Ou melhor, como é que poderão se fazer novas e diferentes perguntas, que sejam úteis ao seu trabalho e à sua pretensão de problematizar o próprio descompasso? Por meio da pesquisa. Investigando o seu cotidiano profissional e os sujeitos com os quais trabalham, os professores certamente estarão mais bem preparados para enfrentar os desafios que a contemporaneidade lhes impõe. Não é nada difícil perceber que o mundo contemporâneo vem passando por rápidas e intensas transformações na sua organização social, política, econômica e cultural. No entanto, o que as transformações do mundo de hoje têm a ver com a educação? De que maneira elas afetam as práticas educativas que são desenvolvidas Conceito e relevância da pesquisa 11Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br nas escolas? Bem, para tentar responder a essas questões, deve-se considerar que os alunos de hoje nascem num mundo cuja organização é radicalmente diferente da forma como o mundo era organizado anteriormente. A emergência de uma tecnologia eletrônica ampliou as possibilidades de interação entre pessoas e máquinas. Com isso, criam-se determinadas situações cotidianas que possibilitam o surgimento de outro discurso em relação à infância e à juventude, diferente daquele já conhecido entendimento de que a criança e o jovem são naturalmente dependentes e aprendizes em potencial dos adultos. O advento de alguns episódios tecnológicos recentes alterou os modos como crianças e jovens intervêm no mundo. Esse é apenas um dos fatores que explicam, até certo ponto, o enfraquecimento da ideia de que a escola é a instituição responsável por transmitir, desde cedo, os conhecimentos aos alunos. Os modos de vida contemporâneos demandam que o professor execute a função de problematizador das práticas em que os alunos e suas famílias encontram- -se enredados. Daí a necessidade de o professor assumir uma postura de pesquisador, orientando, promovendo e estimulando a discussão dos conteúdos, em vez de simplesmente apresentá-los aos alunos como verdades absolutas. Ao lidar com as informações a serem ensinadas, o professor faz recortes, seleciona, valoriza e reinterpreta a suposta objetividade do conteúdo. Essa operação influencia não apenas o posicionamento intelectual dos alunos, como também suas condutas diante da cultura escolar (regras de convivência, formas de ação, atitudes e comportamentos que vigoram na dinâmica das interações entre a comunidade escolar) e também diante da cultura social mais ampla. Portanto, o papel do professor é o de auxiliar na compreensão, utilização, aplicação e constante avaliação dos conteúdos e das informações escolares. A análise desses artefatos justifica-se, pois, em função de que conhecendo como eles se organizam e funcionam, pode-se melhor compreender as formas pelas quais crianças e adultos são subjetivados a assumir determinadas identidades (tanto individuais quanto coletivas). Por isso, no contexto de uma sociedade caracterizada como “digital”, o papel do professor amplia-se, em vez de empalidecer. A partilha e a problematização dos recursos materiais e informacionais de que professores e alunos dispõem possibilita o estabelecimento de uma ordem, ainda que efêmera, que encaminhe os processos educativos formais a partir de uma filtragem de informações disponíveis em dife- rentes lugares. Diante da velocidade com que as mudanças ocorrem, não é mais suficiente que os professores aprendam os saberes pedagógicos. É necessário e imprescindível que eles questionem os saberes já produzidos, verificando se tais saberes continuam a ser úteis aos sujeitos para os quais foram criados. Em tempos anteriores, era possível que houvesse uma metodologia de ensino pronta e acabada que, uma vez aprendida pelos profissionais da escola, garantiria o êxito das práticas escolares. No entanto, o maior desafio de todos os profissionais de Educação, atualmente, não é tão somente adaptar-se às mudanças, mas adaptar-se ao fato de que as pessoas mudam constantemente e com muita rapidez. Conceito e relevância da pesquisa 12 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Além disso, também será preciso manter uma constante ação de pesquisar, para que seja possível processar novos pensamentos e ideias que sejam compatí- veis aos modos de vida das crianças, dos jovens e dos adultos do século XXI. Que razão melhor poderia ser apresentada aos professores a engajarem-se na tarefa de pesquisar? O desafio está lançado. 1. A partir do que foi discutido no texto, escreva qual a relevância da pesquisa na formação de professores. 2. Sintetize, em uma frase, os três modelos pedagógicos estudados por Varela (2000), caracteri- zando brevemente cada um deles. 3. Na sua opinião, quais fatores evidenciam o descompasso entre escola moderna e sociedade atual? Discuta com dois ou três colegas e produzam um pequeno texto que apresente suas ideias. Conceito e relevância da pesquisa 13Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 4. Ainda em discussão com seu grupo, apontem como as transformações tecnológicas e culturais das sociedades contemporâneas invadem o cenário escolar. Existem muitas concepções de pesquisa na literatura pedagógica. Procure, em uma biblioteca pública, livros que tratem da pesquisa em educação e faça um levantamento de tais concepções. Frente à identificação do que se considera o professor reflexivo com o professor pesquisador, sugere-se a leitura de dois textos: Formar professores como profissionais reflexivos, de Donald Schön. In: NÓVOA, Antônio. Os Professores e sua Formação. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1995. Pesquisa, Formação e Prática Docente, de Marli André. In: ANDRÉ, Marli. O Papel da Pesquisa na Formação e na Prática dos Professores. Campinas: Papirus, 2002. Esses textos permitirão realizar um interessante confronto entre as duas perspectivas que hoje têm forte reflexo nas propostas de formação de professores. Conceito e relevância da pesquisa 14 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. 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No entanto, a infância, diferentemente dos corpos, é uma ideia, um sentimento, uma fase da vida que foi criada para esses seres chamados crianças. Portanto, esse sentimento de infância, essa fase da vida que se denomina infância nem sempre existiu. Então, como era a vida das criançasquando não existia a infância? Crianças medievais De acordo com o historiador francês Philippe Ariès (1981), as condições para que a infância fosse inventada começaram a acontecer no final da Idade Média, na Europa. Antes disso, as crianças eram vistas e tratadas, por elas mesmas e pelos adultos, como miniaturas de adultos (crianças traves- tidas de adultos: fazendo os mesmos gestos e usando o mesmo vestuário). Já que eram entendidas e tratadas assim, não havia nenhuma diferença fundamental entre crianças e adultos, a não ser a dife- rença de tamanho. Até os dois anos de idade, aproximadamente, a criança era vista como tal. Dos dois anos em diante, a partir do momento em que a criança começava a adquirir algum desembaraço físico (falar, andar), ela já era vista imediatamente como adulto jovem. Portanto, o sentimento de infância era muito passageiro e superficial, durava no máximo dois anos para cada criança que conseguia sobreviver em meio às precárias condições de vida da Idade Média. Até mesmo as famílias ricas presenciavam a morte de muitas crianças, pois as condições de saneamento eram inadequadas e as campanhas de saúde pública não existiam. Outro fenômeno importante com relação à frequência da morte entre as crianças era o infanticídio, por mais brutal que isso possa nos parecer. No prefácio da segunda edição do livro História Social da Criança e da Família, Ariès (1981, p. 17), referindo-se a dados relativos à Idade Média, diz: Eu chamaria a atenção para um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido: a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita [...]. O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las. Nesse contexto, em que não havia interesse pela vida infantil nem o consequente desejo de conservar os filhos, as crianças que morriam eram logo substituídas por outras; nessa repetida substituição não se percebiam sentimentos de afeição ou culpa por parte das famílias, já que os recém- -nascidos não eram considerados. Com a disseminação dos discursos de alguns reformadores, no sentido de informar às famílias sobre sua missão de proteger seus filhos, os pais e as mães (a exemplo das parteiras) passaram aos poucos a adquirir consciência da morte infantil e, paulatinamente, passaram a respeitar a vida das crianças e a se preocupar com elas. De acordo com Ariès (1981, p. 17), “a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por razões 15Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br médicas e higiênicas; simplesmente, as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar”. Percebe-se, pois, que, antes do século XVIII, as crianças não estavam dotadas de personalidade integral. Nasciam e desapareciam feito animais domésticos. Eram enterradas no quintal. No máximo serviam de distração nos primeiros anos, bichinhos engraçadinhos; depois, perdiam-se entre os adultos. Nesse sentido, também é importante referir que a infância individualizada esteve ausente da representação iconográfica – túmulos, pinturas religiosas – antes do século XVIII. Outro aspecto que merece destaque nos modos de vida das crianças da Idade Média refere-se à educação dos “miniadultos”: as crianças medievais aprendiam as coisas da vida diretamente com os adultos, ajudando-os a realizarem suas tarefas. Não havia uma instituição (como a escola, por exemplo), para onde todas as crianças deveriam ir para aprender. A aprendizagem acontecia no contato direto entre crianças e adultos, o que acabava por intensificar a indistinção entre eles. Além disso, antes do século XVII, não havia distinção de vestuário: meninos e meninas usavam as mesmas roupas, que tinham o mesmo modelo dos trajes para adultos. O lúdico tinha enorme relevância; crianças e adultos brincavam sem distinção. As atividades lúdicas propostas eram realizadas por todos, sem preocupação de idade ou sexo: brincar com bonecas, cata-ventos, pioras, jogos cantados. A dança e os jogos com bolas também faziam parte do cotidiano das pessoas. Em relação à vida em sociedade, as crianças participavam das festas de adultos, dos jogos de azar, das atividades profissionais da época. Tratava-se de um meio social muito intenso e difuso, do qual as crianças participavam sem distinção. A família – diferentemente do que veio a acontecer depois, com a chegada da Modernidade – não possuía um núcleo, composto de pai, mãe e filhos. A família medieval era composta de muitas pessoas que geralmente moravam numa mesma casa, e cujo espaço não era organizado de forma a permitir a privacidade das pessoas. Não havia necessariamente quartos separados para crianças, adultos e empregados: todos ocupavam o mesmo espaço, de modo que as crianças presenciavam até mesmo as práticas sexuais entre os adultos. Na visão moderna, as crianças devem ser protegidas e resguardadas de vários assuntos e questões, em especial àquelas relativas à sexualidade. No entanto, na Idade Média, de modo geral, tais práticas eram consideradas normais, tanto para os adultos quanto para as crianças. Essa ausência de reserva diante das crianças, esse hábito de associá-las a brincadeiras que giravam em torno de temas sexuais para nós é surpreendente: é fácil imaginar o que diria um psicanalista moderno sobre essa liberdade de linguagem, e mais ainda, essa audácia de gestos e esses contatos físicos. (ARIÈS, 1981, p. 129) As preocupações com a individualidade das crianças eram inexistentes e, portanto, ignorava-se a necessidade de respeito a elas. “Os adultos se permitiam tudo diante delas: linguagem grosseira, ações e situações escabrosas; elas ouviam e viam de tudo” (ARIÈS, 1981, p. 128). No entanto, como alerta Ariès, a atitude diante da sexualidade varia de acordo com o meio em que se vive em uma deter- minada época e a partir de uma determinada mentalidade. História da infância 16 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Dessa forma, não se trata de julgar a sociedade da Idade Média, culpando-a de não cuidar direito de suas crianças e de não reservá-las das práticas adultas. A questão está em entender que, naquela época, a maneira como as crianças deve- riam ser tratadas não era discutida pelos pais e pelos estudiosos, afinal, elas eram consideradas miniadultos. A lógica da sociedade medieval era outra e, por isso, não pode ser julgada pela sociedade atual. Na época, não havia discursos que sugerissem o que era certo. Não circulavam, entre as pessoas, estudos que apresentassem outros modos de vida, dizendo que eles seriam mais saudáveis ou melhores para as crianças. A sociedade medieval simplesmente desconhecia todos esses preceitos que funda- mentam atualmente a criação e a educação de uma criança. Só seria possível afirmar que a sociedade medieval estava errada se nela circulassem discursos e alertas que fossem capazes de ensinar as pessoas como é a maneira correta de tratar uma criança e, ainda assim, a sociedade continuasse com as mesmas práticas. Entretanto, esses discursos e esses alertas não existiam e, portanto, o modo como as crianças eram tratadas, criadas e educadas não era uma preocupação da época. Crianças modernas Discursos preocupados com as formas de vida das crianças começaram a aparecer pelo final do século XVII, período caracterizado por numerosas trans- formações sociais, na economia, na cultura, na política. Foi em meio a tais trans- formações que o conceito de infância aceito hoje (o que era apenas umamiragem antes do Renascimento) começou a ganhar forma e força, atingindo seu apogeu no século XX. Foi também no final do século XVII que as famílias passaram a se estruturar seguindo um novo modelo familiar: o modelo da família nuclear, composto por pai, mãe e filhos. Além disso, começou a haver uma especialização funcional do espaço privado: as casas do novo modelo familiar passaram a ser organizadas de modo a respeitar a individualidade dos pais e dos filhos. Houve, então, uma estruturação dos cômodos nas casas: a reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças. Excluem-se, agora, os criados, os amigos e os clientes. Com o modelo familiar moderno, que se estruturou conjuntamente ao surgimento da escola moderna, novas relações foram estabelecidas entre os membros das famílias. As novas práticas familiares resultaram, é claro, em novas formas de se entender e tratar as crianças. Estas passaram a aprender as coisas não mais por sua convivência cotidiana junto aos adultos, mas na escola. Todas essas transformações possibilitaram que surgisse um novo sentimento familiar. O afeto dispensado às crianças passou a ser medido em função da importância que os pais e as mães davam à educação de seus filhos. História da infância 17Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Não é nada difícil de imaginar o que resultou de todas essas transforma- ções: o reconhecimento de que as crianças são diferentes dos adultos, ou seja, o mundo infantil foi considerado único. Deu-se, assim, a separação entre crianças e adultos. Antes da Modernidade o modo de vida estava relacionado à sobrevivência dos sujeitos. Esse período foi chamado de Pré-Modernidade e era caracterizado pela ausência de problematização acerca dos conceitos de família, infância, crianças, entre outros. A Modernidade é compreendida, por Max Weber, como um processo de racionalização da vida social no término do século XVII, período em que se iniciou a formação do sujeito consumidor. O período atual é chamado de Pós-Moderno e suas condições foram se estabelecendo, segundo Lemos (2002, p. 67) a partir da “segunda metade do século XX, com o advento da sociedade de consumo e do mass media [mídia de massa], associados à queda das grandes ideologias modernas e de ideias centrais como história, razão e progresso”. Dessa forma, pode-se dizer que foi com o surgimento do período conhecido como Modernidade que as crianças passaram a ser separadas do imaginário adulto e a escola assumiu o papel preponderante de educá-las, em um processo de enclausuramento, de segregação. Para Ariès (1981), a imagem infantil relacionada à inocência foi forjada por razões morais, religiosas e higiênicas: preservar a criança da sujeira da vida e especialmente da sexualidade tolerada entre os adultos; fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão. Nesse sentido, de acordo com Ariès (1981), a noção de fragilidade da criança foi possível por inúmeras condições; mas tal noção foi discursada e sistematizada (o que ajudou a consolidá-la) por Rousseau. A partir daí, no século XX, essa noção foi difundida por pedagogos, psicólogos e psiquiatras: A família e a escola retiraram, juntas, a criança da sociedade dos adultos. A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que, nos séculos XVIII e XIX, resultou no enclausuramento total do internato. A solitude da família, da igreja, dos moralistas e dos administradores privou a criança da liberdade que ela gozava entre os adultos. Infligiu-lhe o chicote, a prisão, em suma, as correções reservadas aos condenados das condições mais baixas. Mas esse rigor traduzia um sentimento muito diferente da antiga indiferença: um amor obsessivo que deveria dominar a sociedade a partir do século XVIII. (ARIÈS, 1981, p. 172) A única função da família na Idade Média era assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes. Diferentemente disso, na Modernidade, a família passou a assumir uma função moral e espiritual responsável pela formação dos corpos e das almas: “O sentimento de família, o sentimento de classe e talvez em outra área, o sentimento de raça, surgem, portanto, como as manifestações de uma História da infância 18 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mesma preocupação, a uniformidade” (ARIÈS, 1981, p. 252). Dois sentimentos de infância fizeram-se presentes: idade da corrupção versus idade da inocência. Narodowski (1993, p. 51), referindo-se à história da infância, diz que “o corpo infantil não adquire suas características definitivas a não ser a partir da escolarização”. Esse autor salientou, também, que a infância seria um processo histórico, apesar de tentarmos associar o histórico ao biológico e ao psicológico: [...] durante muito tempo a escola permaneceu indiferente à repartição e à distinção das idades, pois seu objetivo essencial não era a educação da infância [...], ela acolhia da mes- ma forma e indiferentemente as crianças, os jovens e os adultos, precoces ou atrasados, ao pé das cátedras magisteriais. (NARODOWSKI, 1993, p. 187) A escola medieval que atendia meninos entre os seis e os vinte anos de idade, geralmente em um grande auditório e com um único mestre, começou a reconstruir-se ainda na Idade Média, também indiferente à idade dos alunos, mas atenta agora aos conteúdos transmitidos. Com tal preocupação, conectada a outras transformações sociais (inclusive, à invenção do conceito de infância), a disciplina de outrora existente na escola (disciplina humilhante, baseada em delação e castigos) passou a associar-se a uma disciplina relacionada à dignidade e à responsabilidade. Dessa forma, a disciplina passou a constituir a diferença essencial entre a escola da Idade Média e a escola da Idade Moderna. De acordo com Revel (apud ARIÈS; DUBY, 1991), em meio às transformações que alicerçaram a Modernidade, passaram a se intensificar os discursos sobre as normas de civilidade, especialmente os chamados Tratados de Civilidade, entre os quais se destaca a obra de Erasmo, cujo título é Civilidade Pueril. Essa obra, publicada em 1530, foi um dos tratados mais importantes devido à descrição de condutas prescritivas com finalidade pedagógica: a intenção era a de ensinar boas maneiras relacionadas à postura e a comportamentos sociais desejáveis: gestos, atitudes, moralidade. As boas maneiras propostas pelo autor foram reeditadas durante quase um século. Surgiu, assim, o que se chama hoje de aprisionamento do corpo, não somente do adulto, mas essencialmente da criança. Para os discursos relativos às normas de civilidade, a criança ainda não estava pervertida pela vida social. Entendida como símbolo da inocência, da simplicidade, ela deveria desde pequena ser disciplinada: interiorizar códigos, regras e normas sociais válidas para todos. Todos esses valores deveriam ser transmitidos pela escola. Este texto apenas apresentou uma breve e genérica “pincelada” sobre a história da infância, que se confunde e se mescla com a história da família nuclear e da escola moderna. De lá para cá, certamente muitos outros episódios aconteceram, de modo isolado e descontínuo, que foram colocando as condições para as infâncias de hoje. História da infância 19Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 1. Com base nas ideias de Ariès sobre a história da infância, liste três características que descrevam as crianças da Idade Média. 2. Pense nas características da sociedade medieval, referidas neste texto, e responda: de todas elas, qual mais te surpreende? Por quê? 3. Estabeleçaa relação entre os Tratados de Civilidade e a invenção da infância moderna. História da infância 20 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 4. Em grupos, discutam o que a Modernidade significou em termos de transformações nos modos de entender e tratar as crianças. Depois, façam breves registros do que foi discutido, em forma de frases curtas. Visite os álbuns de família: neles, você poderá encontrar fotografias de seus bisavós, avós, pai, mãe e tios. Repare nas roupas, nos brinquedos e na aparência deles. Em seguida, compare-as com as suas fotografias, de seus irmãos, primos, filhos, sobrinhos. Por último, passe os olhos nas revistas atuais, nos encartes de lojas especializadas em roupas de crianças e jovens. O que mudou? Pense sobre isso. História da infância 21Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br História da infância 22 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. Pontos de Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1995. BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1997. 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São Paulo: Cortez, 1999. 73Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Karyne Dias Coutinho D outoranda e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS). Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A infância hoje A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições capturaram: algo que podemos explicar e nomear. [...] ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Larrosa A fabricação da infância insere-se nas tramas que os sujeitos criam e que nelas mutuamente se envolvem, ou seja, ela está associada a um amplo conjunto de alterações dos modos como os sujeitos, ao longo dos tempos, percebem e organizam seus corpos e sua existência. A caracterização das chamadas fases da vida – primeira infância, segunda infância, meninice, puberdade, adolescência, adultez, meia idade, terceira idade, idade senil – está inserida numa lógica disciplinar que divide o tempo de vida dos seres humanos em etapas especificadas, buscando dife- renciá-las (quanto mais, melhor), para que cada uma delas tenha suas próprias particularidades e seu lugar devidamente demarcado. Mais do que isso, ao definir as idades de cada uma das etapas, também são definidas as próprias pessoas (de acordo com a fase da vida em que se encontram), acarretando em uma caracterização do que se considera como comportamento normal em determinada idade. As crianças foram e continuam sendo submetidas a determinadas caracterizações, com a finali- dade de garantir a delimitação da infância e, assim sendo, também garantir a delimitação das demais fases da vida. Delimitação que, antes da constituição dos chamados tempos e espaços modernos, praticamente não existia se levarmos em consideração as formas pelas quais os sujeitos de diferentes idades se relacionavam e organizavam o cotidiano de suas vidas. Em seu estudo sobre a história social da criança e da família, Ariès (1981) aponta que, antes do século XVII, o período da infância era reduzido e a passagem de criança (basicamente os recém- nascidos) a adulto jovem era operada de forma imediata, ou seja, não existiam outras fases pelas quais os seres passavam até atingirem a adultez. Os cuidados e afetos hoje dispensados às crianças (enquanto algo sublime e naturalmente aceito, se não por todas, pelo menos pela grande maioria das pessoas) não eram nem valorizados, muito menos necessários ao equilíbrio das relações familiares e em sociedade. Com a emergência das sociedades industriais e a invenção das chamadas fases da vida, há uma significativa separação entre crianças e adultos, o que resulta em novas práticas e sentimentos familiares, culminando no enclausuramento das crianças, processo que Ariès chama de escolarização. Utilizando-se do referencial foucaultiano, Bujes (2002) salienta que as transformações nos modos de ver e de tratar as crianças foram produzidas no interior de relações de poder típicas dos tempos e espaços modernos. A autora nos mostra que a alteração dos mecanismos de poder (que deixam de se exercer pela ameaça da morte e passam a exaltar a vida), associada ao funcionamento do biopoder e do poder disciplinar, colocam as “condições para que adulto e criança se diferenciem e se distanciem, numa operação que constitui a justificativa para a intervenção familiar e para a prática 23Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br da educação institucionalizada” (BUJES, 2002, p. 35). Nesse contexto, há um intenso investimento sobre a vida das crianças, que se tornam alvo de uma série de estudos que intentam conhecê-las em detalhes, observando e descrevendo seus comportamentos com a finalidade de descobrir sua natureza. É por esse viés que, imersa num emaranhado de invenções modernas, a criança tornou-se, cada vez mais, foco de estudo da Ciência. Tomando a infância como objeto de análise, os saberes científicos “dizem” as verdades sobre ela e estabelecem determinados tipos de cuidado e de educação que correspondam a esses discursos tidos como verdadeiros. Foi também nas práticas educacionais e nas relações que começaram a estabelecer-se cotidianamente com as crianças que novos saberes e novas verdades foram sendo produzidas. Tratava-se, sobretudo, de um duplo processo que consistia, por um lado, em extrair das crianças saberes constituídos por elas em suas recentes experiências infantis, readaptando esses saberes a novas normas e, por outro lado, em observar, classificar, comparar as crianças, registrando e analisando seus comportamentos. Portanto, um processo que permite, ao mesmo tempo, um saber da criança e um saber sobre a criança. Foi assim que “a pedagogia se formou a partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se, em seguida, leis de funcionamento das instituições e forma de poder exercido sobre a criança” (FOUCAULT, 1996, p. 122). Os sujeitos infantis que eram submetidos ao olhar científico passam a ter suas características, seus comportamentos e sua conduta esmiuçados, o que torna possível sua maior diferenciação. O caráter deficitário que é atribuído às crianças relativamente aos adultos faz com que elas sejam ainda mais envolvidas em minuciosos estudos e pesquisas, que permitem o estabelecimento de hierarquias, estágios, etapas pelas quais as crianças têm necessariamente que passar para que se “encaixem” em formas desejáveis de desenvolvimento infantil. Como resultado, dá-se a produção de vários discursos, de diferentes campos do conhecimento, que contribuem para a formação da ideia de um sujeito infantil idealizado e, mais do que isso, de um sujeito infantil naturalizado. Os estudos da criança Os estudos da criança emergiram e se intensificaram em meio às transfor- mações sociais, políticas e econômicas que estiveram envolvidas na constituição dos tempos e espaços modernos. Em sua análise sobre a maquinaria escolar, Varela e Álvarez-Uría (1992) atentam para o fato de que, mesmo antes de a infância ser delimitada como uma etapa cronologicamente precisa, foram atribuídas a essa parte da vida algumas características, que se constituíram em condições de possibilidade para o moderno sentimento de infância. Tais características foram definidas por católicos (Erasmo, Vives, Rabelais) e protestantes (Lutero, Calvino) que, apesar de divergirem quanto aos estágios da infância e quanto ao momento certo de ensino das letras aos pequenos, concordavam com a necessidade de que a aprendizagem da fé e dos bons costumes deveria iniciar desde muito cedo. A infância hoje 24 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Em geral, as características que vão conferir a essa etapa especial da vida são: maleabili- dade, de onde se deriva sua capacidade para ser modelada;fragilidade (mais tarde imatu- ridade) que justifica sua tutela; rudeza, sendo então necessária sua “civilização”; fraqueza de juízo, que exige desenvolver a razão, qualidade da alma que distingue o homem dos animais [...]. (VARELA; ÁLVAREZ-URÍA, 1992, p. 71) Apoiando-se nessas características e ao mesmo tempo fortalecendo-as, intensifica-se uma ação educativa institucional em colégios, albergues, casas de doutrina: espaços onde se iniciam as graduações por idade. Conectado a isso, tem-se a ação educativa da recém-estreada família cristã, para quem se dirigiram tratados que assinalam os papéis do homem e da mulher em relação aos seus filhos, de onde advêm as ideias de amor natural entre pais e filhos e de verdadeira mãe, agora reclusa ao lar. Uma terceira forma de ação educativa uniu-se às ações institucionais e familiares: as práticas de recristianização, de vigilância multiforme dos jovens no que se refere à sua direção espiritual, à linguagem que devem usar, ao que podem ou não ler, fazer, vestir. Desse modo, chega-se ao século XVIII, com uma infância inocente [...] E se Rousseau pode redefinir a infância como idade “psicológica”, com etapas às quais correspondem necessidades e interesses, e em consequências suscetíveis de uma educação diferenciada, deve-se, sem dúvida, a todas essas orientações e direções sofridas anteriormente pelos jovens. (VARELA; ÁLVAREZ-URÍA, 1992, p. 74) Portanto, ainda que as condições para o estudo da criança remontem a épocas anteriores, pode-se dizer que desde alguns pensadores do final do século XVIII, como Rousseau, Kant e outros, tem-se constituído um extenso acervo de estudos sobre o comportamento infantil. Ao destacar a obra Um Esboço Biográfico de um Infante, de Charles Darwin, como pioneira desse movimento, Walkerdine (1998, p. 167) salienta: Formaram-se Sociedades de Estudo da Criança e a prática de observar crianças se tornou bastante generalizada. Os corpos das crianças eram pesados e medidos. Estudavam-se os efeitos da fadiga, bem como seus interesses; imaginações; ideias religiosas; atitudes em relação às condições atmosféricas, aos adultos; desenhos; bonecas; mentiras; ideias e seus estágios de crescimento. [...] [Esses discursos] eram extraídos da Biologia, da Topografia e do senso comum da vida cotidiana. Para Narodowski (2001), é com Rousseau que a infância surge delineada em seus aspectos mais puros e claros. Em Émile, a criança é nomeada como um não adulto, ser carente de razão e de juízo; ser ingênuo e inconsciente; portanto, ser dependente, que necessita ser conduzido, amado, protegido pelos já completos: os adultos. “Com base nessa dependência, surge um incontrolável desejo epistemoló- gico: vontade de saber a respeito das zonas inexpugnáveis do corpo infantil. Como não conhecer o que vai se proteger?” (NARODOWSKI, 2001, p. 37). Descrevendo a criança como um ser sobre o qual é preciso exercer uma ação educativa adulta que considere as condições naturais da própria infância, Rousseau a nomeia de duas formas distintas, mas complementares: a criança é apresentada ao mesmo tempo como um ser inacabado e como um ser naturalmente capaz de aprender. As crianças de hoje podem continuar sendo representadas e entendidas tal como Rousseau as descreveu? Será que a sociedade continua a produzir o mesmo tipo de sujeito infantil, dependente e obediente, ingênuo e imaturo como antes? Será que os profissionais da educação sabem quem são as crianças e os jovens que vão para A infância hoje 25Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br a escola atualmente, ou seguem reproduzindo essa ideia de Rousseau ao trabalhar com os alunos? A escola do século XXI está preparada para receber os estudantes do século XXI? Infâncias atuais Vimos que a infância foi configurada em meio a intensas transformações sociais e que conectado a isso também foram configurados os modelos pedagógicos para a educação formal das crianças. Considerando todas as intensas e rápidas transformações tecnológicas, políticas, econômicas e culturais das sociedades ocidentais contemporâneas, como as crianças passam a ser representadas, entendidas e tratadas? Que modelos educativos estarão sendo pensados para as infâncias atuais? Nosso mundo contemporâneo tem sido edificado sob uma crescente valorização da autonomia individual. Não é à toa que os objetivos educacionais considerados imprescindíveis à formação infantil sejam a atuação da criança de forma cada vez mais independente e o oferecimento de atividades e situações que favoreçam e permitam o desenvolvimento da autoconfiança, da imagem positiva de si mesmo, do autogoverno, da capacidade de realização de escolhas e do exercício da autonomia (BRASIL, 1998). Tais objetivos se caracterizam por entender a criança como um ser naturalmente dependente que, ao passar pelo processo da educação, pode (ou deve) ir conquistando certa independência e autonomia na realização de suas próprias tarefas e de suas próprias ideias. No entanto, uma das preocupações constantes da maioria dos discursos pedagógicos em circulação tem sido a de formar crianças que sejam capazes de, progressivamente, ir aprendendo a solucionar os mais diversos problemas que possam surgir em sua vida cotidiana. No entrecruzamento de objetivos de tal natureza com alguns importantes acontecimentos tecnológicos desenvolvidos no e pelo mundo contemporâneo (e colocados em funcionamento de forma muito intensa na vida de praticamente todas as pessoas), os referidos objetivos acabam por se tornar não apenas uma pretensão para a formação infantil como, mais do que isso, acabam tornando-se efetivamente uma realização da infância. Essa infância que dependente do adulto parece estar desaparecendo para dar lugar a uma infância autônoma, crítica e com vontade própria. É nesse sentido que alguns autores falam no fim da infância moderna. Mariano Narodowski (1999), por exemplo, diz que estamos nos despedindo dos sentidos modernos de infância e que esses sentidos estão sendo reconduzidos a dois polos, que o autor chama de infância hiperrealizada e infância desrealizada. A infância hiperrealizada é aquela infância que é realizada exatamente na interação com todas as possibilidades tecnológicas que o mundo contemporâneo oferece. É por isso que a infância, ao contrário da concepção moderna, não espera e não se prepara para viver um mundo que seria legitimamente de adultos. Trata- se, agora, de uma “infância imediata”, ou seja, trata-se de crianças que vivem sua infância em contato com um mundo altamente digital e que “compreendem A infância hoje 26 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br mais sensivelmente do que seus pais os novos artefatos tecnológicos. [...] Crianças que não precisam ler o manual para aprender: interagem digitalmente com desenvoltura e surpreendem os adultos, descobrindo aquilo que para estes estava vedado” (NARODOWSKI, 1999, p. 48). Num outro polo, estaria aquilo que o autor chama de infância desrealizada: “trata-se da infância excluída fisicamente destas relações de saber, mas também excluída institucionalmente: assim como a invenção da imprensa produziu o analfabetismo, a internet está também criando uma nova geração de analfabetos virtuais” (NARODOWSKI, 1999, p. 52). É nas ruas e no mundo off-line que certas crianças vão, na contemporaneidade, (des) realizando sua infância. Na mesma direção, Neil Postman (1999) diz que a infância, tal como a enten- díamos, está desaparecendo, exatamente porque as crianças passaram novamente a ter acesso a todo tipo de informações que antes eram exclusivas dos adultos. Todas essas mudanças culturais, possibilitadas em especial pela combinação entre tecnologia e consumo, fazem emergir novas crianças no cenário social.Crianças que usam piercing, que fazem tatuagens, que estão muito mais habilitadas para manusear a aparelhagem tecnológica do que os adultos, que prestam atenção em várias coisas ao mesmo tempo. Crianças do self-service, do shopping center, do mundo fashion, crianças do consumo, em seu sentido mais amplo: consumo de bens, mercadorias, produtos e marcas, mas também consumo de afetos, ideias, imagens, slogans, estilos de vestir, de falar, de se comportar: estilos de ser. E não se trata apenas das crianças de condições socioeconômicas favorecidas, afinal, o mercado oferece inúmeras possibilidades para o consumo: as réplicas de Barbies, da Nike, enfim, imitações quase perfeitas de produtos e marcas altamente desejados, que estão acessíveis à população pobre. A intensificação do mercado informal chama a atenção para a expansão de um contingente de cidadãos de “segunda classe” – crianças, jovens e adultos pobres, trabalhadores eventuais, subempregados, desempregados, não empregáveis – que, segundo a lógica do capitalismo tardio, não podem ficar de fora do circuito do consumo. Mesmo que não estejam habilitados a adquirir mercadorias de primeira linha, inventam-se categorias a elas adaptadas – réplicas, versões baratas de objetos de consumo desejados, que circulam amplamente no fluxo contínuo dos mercados globais espetacularizados. (COSTA, 2006, p. 101) Portanto, crianças consumidoras, independente de sua situação socioeconô- mica. Crianças da rua, do sinal, das flanelas, que moram nos viadutos, nas pontes. Crianças que se transformam em estátuas humanas, vestidas e pintadas de bran- co, coordenando seus movimentos ao barulho das moedas. Crianças malabaristas em frente aos carros, que pedem esmolas, que vendem flores, panos de prato e quinquilharias pelas ruas da cidade, durante o dia e durante a noite: as acrobacias daquelas crianças que inventam suas próprias formas de sobrevivência. Sem falar, é claro, no apelo midiático à erotização precoce. Crianças da telefonia celular, da cultura cibernética, do dinheiro digital, da MTV (com estilo descontínuo de programação). Crianças do modem, da internet, da TV a cabo, de lan houses. Crianças dos Power Rangers, dos X-Men, dos skates, do surf, do hip-hop, das raves, do grafite. Crianças dos sistemas dinâmicos, A infância hoje 27Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br caracterizados como tão complexos a ponto de não serem previsíveis por métodos lineares. Crianças dos fliperamas, dos jogos eletrônicos. Essa nova infância pode parecer assustadora para os adultos. Com relação aos jogos eletrônicos, por exemplo, de forma geral a ideia é a de que é preciso afastar as crianças da frente da tela, não deixá-las muito tempo expostas aos con- teúdos dos jogos, enfim, evitar que as crianças passem muito tempo envolvidas com essa atividade, pois pode ser prejudicial à sua formação. Tais ideias estão associadas a um sentimento de inadaptação dos próprios adultos frente à imagem de um mundo virtual que não pode ser materialmente controlado. A maioria dos jogos eletrônicos atuais caracteriza-se por exibirem histórias geralmente não lineares e por apresentarem uma visão “confusa” e “descontrolada” de mundo. Os jogos eletrônicos são complicados, aos olhos adultos, exatamente porque apresentam uma mistura desordenada de diferentes elementos visuais e sonoros; muitas vezes, são barulhentos e com uma sequência desorganizada de situações, o que sugere certo tumulto exposto na tela da televisão. As crianças veem-se envolvidas em histórias colocadas pelos jogos que, aos adultos, apresentam uma total ou parcial falta de clareza: na maioria das situações, elas têm que enfrentar nos jogos obstáculos que são “arriscados”, obscuros, imprecisos e descontínuos. Os estágios e os níveis (muitas vezes irregulares) que as crianças têm que superar para passarem à fase seguinte dos jogos são, geralmente, imersos num contexto caótico; pois são de conteúdo turbulento, com símbolos sobrepostos e desencadeados que aparecem aleatoriamente na tela da TV. Por tudo isso, não é de admirar que os adultos se esforcem para impor certos limites a essa atividade infantil: eles não entendem a lógica dos jogos eletrônicos atuais. Para os adultos, que tentam, de todas as formas, ordenar a maioria das situ- ações do mundo no qual vivem, que almejam a ordem acima de tudo, o conteúdo proposto pelos jogos gera uma enorme sensação de desconforto. Os jogos eletrôni- cos atuais estão muito mais inseridos numa lógica de caos do que numa lógica de ordem. Uma lógica de caos com a qual os adultos não estão acostumados a lidar. No entanto, é importante referir que essa atividade é confusa e contraditó- ria aos olhos adultos. As crianças (que de forma geral têm tal atividade como a preferida delas), na maioria das vezes sabem bem o que e como fazer para vencer os obstáculos, – para elas, nem tão difíceis – para enfrentar assituações que se apresentam, para superar os níveis e passar às fases posteriores. Enfim, as crian- ças sabem como “navegar” pelo ondulatório conteúdo dos jogos. Rushkoff (1999), em seu livro Um Jogo Chamado Futuro, faz um interessante estudo acerca do surgimento e desenvolvimento dos videogames, relacionando-os a acontecimentos tecnológicos desenvolvidos no mundo contemporâneo. O avanço dos videogames ao longo das três últimas décadas se baseou no surgimento de novas tecnologias. Foi menos um desenvolvimento artístico conscientemente dirigido do que uma corrida para utilizar os novos chips, técnicas de criação de imagens e placas gráficas. Toda vez que surgia uma nova tecnologia, os criadores redefiniam a essência de seus jogos em função do novo hardware. [...] O estilo e conteúdo dos jogos se baseia nas qualidades específicas das novas máquinas à medida que são criadas. Dessa forma, a própria tecnologia impõe a direção da evolução do videogame. (RUSHKOFF, 1999, p. 167-168) A infância hoje 28 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O autor – ao traçar a evolução tecnológica dos jogos de duelo (Pong, Street Fighter, Mortal Kombat), dos jogos de busca ou de estratégia (Adventure, Zelda, Déjà Vu), e dos jogos do tipo apocalipse (Asteróides, Space Invaders, Ms Pacman, Mario, Super Mario, Mega Man, Doom) – salienta que os primeiros jogos que apareceram (independente do tipo) eram produzidos com processadores de formas muito simples, que permitiam apenas uma imagem bidimensional que pouco se movia. A partir do momento em que as máquinas de videogames ganharam capacidades gráficas reais, os personagens passaram a ser representados não mais por linhas simples, mas por figuras de desenho ou por fotografias digitalizadas que se moviam muito mais rapidamente. Em seu último estágio, os jogos apresentam figuras poligonais tridimensionais, permitindo que o campo de jogo seja circular e que os jogadores se movimentem livremente. “Os jogos evoluem de pontos de vista objetificados até os cada vez mais participativos. Passam de histórias contadas ou observadas a histórias vividas. O mundo é gerado pelos comandos à medida que andamos por ele. Em alguns jogos, pode-se ver o cenário sendo renderizado1 à medida que se aproxima” (RUSHKOFF, 1999, p. 173). Os jogos eletrônicos em seu último estágio, por toda a tecnologia com que são produzidos, permitem que o jogador esteja completamente dentro do ponto de vista do personagem e se caracterizam por colocarem histórias e cenários em que o mundo está em completa desordem. A relação dos jogos eletrônicos em seu último estágio com uma completa desordem do mundo não é muito difícil de ser feita. Os jogos atuais inserem-se num contexto tecnológico contemporâneo caracterizado exatamente pela escassez de regulamentos normativos: regulamentosesses que tratavam de ordenar as coisas do mundo. É por esse viés que podemos entender a resistência dos adultos a esses jogos. A criança de hoje, nascida numa cultura mediada pela televisão e pelo computador – criança que Rushkoff (1999) chama de screenager – vê aquilo que chamamos de “desordem” como um fato normal do seu tempo. As crianças não entendem essa desordem como uma ameaça e lidam muito melhor com ela do que os adultos. Talvez seja por isso que os jogos sejam, de forma geral, temidos pelos adultos e preferidos pelas crianças. Os jogos são apenas um exemplo. Pode-se pensar em várias outras situações cotidianas em que os adultos se esforçam para regular as atividades infantis que não correspondem às realidades e às lógicas adultas. A questão é pensarmos em que mundo vivem as crianças de hoje, que certamente não têm o mesmo tipo de infância que nós tivemos e, por isso, demandam outros tipos de educação. Simultaneamente à constituição dos tempos e espaços modernos, a escola – e basicamente ela – produzia os sujeitos para viverem de acordo com os códigos sociais modernos. Na contemporaneidade, começam a aparecer outros locais onde se “capturam” as crianças. Não é mais a escola quem detém todas as informações – elas estão no mundo, dispersas, difusas em várias instâncias sociais; em vários espaços, mesmo que simbólicos: inclusive nos jogos; nas ruas, viadutos e pontes ou nos shoppings e lan houses; nas músicas que as crianças escutam e dançam, na televisão, na internet; nos brinquedos e nas brincadeiras que as crianças realizam; nas roupas que elas usam; nas marcas, nos produtos, nos slogans e nos estilos 1 Paulo Cezar Castanheira, tradutor do livro em questão, explica (em nota de rodapé apresentada na página 168) que “em computação gráfica, renderização é o processo de dar o acabamento à figura criada, dando-lhe cor, sombra e textura”. A infância hoje 29Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br de vida que as crianças consomem. Quanto mais esses espaços se expandirem, maiores serão os efeitos normalizadores sobre a infância atual, relativamente às transformações operadas pelas sociedades contemporâneas. O mundo de hoje não é o mesmo mundo em que a escola foi criada. Isso não é novidade nenhuma para ninguém. A escola pode estar conseguindo perceber as diferenças, mas talvez não esteja conseguindo enfrentá-las. Pensar sobre isso já é um primeiro passo para tentarmos saber quem são, afinal, as crianças e os jovens do século XXI. 1. Traçando um breve histórico dos modos de vida das crianças, podemos entendê-los como característicos de três épocas: Idade Média, Idade Moderna e tempos atuais. Que palavras-chave você destacaria como representativas de cada uma dessas épocas no que se refere à infância? 2. Alguns autores, como Mariano Narodowski e Neil Postman, falam no possível fim da infância moderna. Você concorda com eles? Por quê? A infância hoje 30 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 3. Estabeleça as relações entre infância, tecnologia e consumo. 4. Em grupos, discutam as novas formas de vida das crianças de hoje e tentem responder às se- guintes questões: na opinião do grupo, quais são as práticas sociais que mais influenciam na construção de novas culturas infantis? A escola entende e trabalha com essas culturas? Como? Assista ao documentário A invenção da infância, dirigido por Liliana Susbach. Entreviste algumas crianças: seus alunos, filhos, sobrinhos, vizinhos. Pergunte a elas o que significa ser criança e ser adulto. Quais seus brinquedos, brincadeiras preferidas? Desenhos, filmes, músicas, jogos, livros? A infância hoje 31Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A infância hoje 32 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. Pontos de Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1995. BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1997. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. 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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo: A uva – sussurrou – é feita do vinho. Marcela Pérez Silva me contou isso, e eu pensei: Se a uva é feita do vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é. Eduardo Galeano O que Galeano escreve em A Uva e o Vinho nos faz pensar acerca da possibilidade de inversão de uma lógica que é posta no mundo e tida como certa e acabada. Ao contrário da ideia de que a realidade é naturalmente constituída e de que as palavras têm a função de simples- mente descobri-la e representá-la, podemos, inversamente, entendê-la como algo que é inventado também pelos discursos. Nesse sentido, talvez não exista um eu anterior às palavras; talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é. Essas palavras são ditas de várias formas e circulam por meio de vários meios, acabando por se constituírem, em alguns casos, em saberes considerados como verdadeiros. Operar com essa inversão supõe que nós utilizemos o nosso pensamento para questionar as estruturas a partir das quais nós temos pensado. Nesse sentido, este texto tem a modesta pretensão de se perguntar sobre as palavras que estão sendo ditas pela Psicologia, nas pesquisas que esse campo do conhecimento desenvolve sobre as crianças. Partindo da possibilidade de sermos aquilo que as palavras falam sobre nós, é também possível que as crianças sejam ou se tornem aquilo que a Psicologia diz que elas são? Algumas vertentes da Psicologia se encarregam em dizer as palavras sobre o desenvolvimento das crianças. Entretanto, se somos o que as palavras dizem sobre nós, seria possível que a Psicologia, em vez de descobrir o comportamento infantil, estivesse “inventando” modos determinados de as crianças se comportarem? Se assim for, abre-se a possibilidade de se questionar as palavras que a Psicologia diz em suas pesquisas sobre as crianças. Dessa forma, torna-se também possível olhar de modos diferentes para as crianças, entendendo que suas atitudes e suas condutas não são inerentes a uma natureza infantil suscetível de ser decifrada, mas foram e são construídas, fabricadas em meio a condições históricas, econômicas, políticas, sociais e culturais, das quais as próprias palavras da Psicologia fazem parte. Breve histórico da Psicologia Ao se falar em Psicologia, é preciso considerar que esta área não constitui uma unidade. Exa- tamente por ter tornado-se um campo tão extensamente disperso e valorizado, a Psicologia vem pro- gressivamente estendendo seus limites e propiciando uma ampliação dos estudos e das práticas (al- 33Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br gumas vezes bastante contraditórios) realizados sob a égide da psique. Elevada à categoria de disciplina independente, a Psicologia foi, aos poucos, se desligando das manifestações filosóficas e, sob as influências do evolucionismo de Darwin e do positivismo de Comte, passou a ser estruturada como uma ciência autônoma. Dessa maneira, começa-se a delimitar seu campo de atuação, a determinar seu objeto e seus objetivos, a enunciar os seus princípios e os seus problemas, a estabe- lecer seus métodos de estudo e, a partir desses, a formular suas próprias teorias1. O investimento nos estudos psicológicos possibilitou a ramificação da Psicologia em escolas, cada uma reunindo um grupo de tendências específicas e formando, assim, sistemas considerados fechados. No entanto, a diversificação dos conteúdos de pesquisa das escolas psicológicas tornou impossível a manutenção do conhecimento de cada uma dessas escolas em grandes sistemas fechados, o que acarretou a desagregação da área psi (campo que abrange as disciplinas que estudam o psiquismo: psicanálise, psicologia e psiquiatria), caracterizada, a partir daí,por sua abertura e tolerância aos diversos caminhos de pesquisa, levando às especializações e à formação de microssistemas. Há, portanto, diferentes abordagens psicológicas que disputam entre si a imposição de seus significados e que são responsáveis pela produção de métodos, teorias e práticas concorrentes e muitas vezes contraditórios. As lutas e compe- tições internas da Psicologia, em vez de enfraquecê-la, como inicialmente pode parecer, contribuem ainda mais para a fecundidade inventiva dessa disciplina. A rivalidade dos investimentos no campo psi acaba por torná-lo extremamente profícuo, permitindo, assim, que ele possa atuar em diferentes pontos de apli- cação. Nesse sentido, pode-se dizer que quanto mais facções existirem, quanto mais disputas internas acontecerem, quanto mais heterogeneidade houver, tantas mais serão as possibilidades de inserção e operação da Psicologia em diferentes contextos sociais. Com o reconhecimento profissional dos psicólogos, a Psicologia entra na era do profissionalismo e a formação de especialistas nessa área tem se desenvolvido muito rapidamente, em função principalmente da demanda pela atuação do psicólogo em vários cenários da sociedade, tais como escolas, indústrias, empresas, áreas do comércio, do desporto, entre muitos outros. Os representantes desses saberes reclamam para si o conhecimento do comportamento humano e, portanto, também, o poder de realizar intervenções junto aos sujeitos psicologizados, por supostamente deterem a verdade sobre eles. A Psicologia pode conhecer e descobrir o comportamento humano, mas novamente fica a questão: a Psicologia, quando descreve esses comportamentos que diz ter descoberto, não estaria criando formas de os sujeitos se comportarem, nas mais variadas instâncias sociais? Psicologia do Desenvolvimento Ainda que as condições para o estudo da criança remontem a épocas anteriores, pode-se dizer que desde alguns pensadores do final do século XVIII, como Rousseau, Kant e outros, têm-se constituído um extenso acervo de estudos 1O Funcionalismo de James, o Estruturalis mo de Titchner e o Associacio- nismo de Thorndike podem ser considerados como as primeiras abordagens psico- lógicas, seguidas princi- palmente do Behaviorismo, da Gestalt e da Psicanálise (BOCK, 1997; CARVALHO, 1996). Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 34 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br sobre o comportamento infantil. À medida que os campos do conhecimento foram se tornando mais elaborados, ou seja, foram sendo enquadrados numa normatividade que se chamou de positivista, aumentaram consideravelmente as preocupações com a definição de objetivos e métodos que supostamente sejam capazes de garantir o caráter de cientificidade das pesquisas. A Psicologia do Desenvolvimento nasce no interior dessa preocupação positivista expressa nos estudos sobre a maturação humana, com enfoque biológico-evolucionista, originário das ciências da natureza e da medicina. Um dos objetivos centrais da Psicologia, em especial da vertente conhecida como Psicologia do Desenvolvimento, é descrever as funções psicológicas das crianças em diferentes idades, para entender como tais funções mudam com a idade, ou seja, saber quando e como cada tipo de comportamento vai aparecendo. Com isso, ao longo do tempo, as pesquisas sobre a criança, realizadas a partir desse referencial, estabeleceram normas de desenvolvimento para vários compor- tamentos. Para essa parte da Psicologia, considera-se necessária a descrição das tendências etárias do desenvolvimento, de como este ocorre, antes de se atingir o outro de seus objetivos centrais, que é explicar o desenvolvimento, saber por que ele ocorre. Nessa tentativa, são utilizados métodos de observação e de experimen- tação comuns a todas as áreas da Psicologia e, mais especialmente, os métodos longitudinais e transversais, que são específicos das pesquisas realizadas sob a égide da Psicologia do Desenvolvimento. Os métodos longitudinais caracterizam-se por observações realizadas sobre um mesmo sujeito ao longo de sua infância e juventude, tomando-se um período de tempo bastante extenso. Os métodos transversais, que são os mais usados atu- almente, exigem um tempo menor, porque realizam as observações sobre vários sujeitos de diferentes idades (BARROS, 1995). Os métodos de pesquisa utilizados na Psicologia, de forma geral, foram denominados, ao longo das investigações, de descritivo, correlacional e experimental. Sua fase descritiva esteve baseada na Teoria da Maturação, a partir da qual se deu a construção de uma série de fichas, questionários e testes com a finalidade de facilitar o acompanhamento da maturação motora, adaptativa, linguística e social. Em sua fase correlacional, a Psicologia ainda não havia incorporado as contribuições de Freud e Piaget, por serem muito recentes. As pesquisas realizadas nessa fase utilizavam métodos comparativos, verificando a covariação entre dois comportamentos diferentes. No entanto, essas investigações não produziram uma teoria em especial e logo se passou à fase experimental, em que o sujeito é estudado inserindo-o em condições provocadas, manipuladas. Nessa fase, há uma grande explosão das pesquisas sobre o comportamento infantil, oriundas não somente da Psicologia do Desenvolvimento, mas da colaboração entre esta e outros ramos da Psicologia, como a Psicopatologia, a Psicomotricidade, a Psicofisiologia, a Psicologia da Aprendizagem e a da Personalidade (ENDERLE, 1987). A Psicologia do Desenvolvimento foi sendo construída inicialmente como uma tendência no campo da ciência psicológica; à medida que os estudos foram definindo uma estrutura e linha de pensamento, foi possível definir a Psicologia do Desenvolvimento como uma corrente teórico-prática relativamente independente. No entanto, há determinadas posições teóricas cujas contribuições norteiam Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 35Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br a construção de um ramo; no caso da Psicologia do Desenvolvimento, essas posições são a teoria behaviorista de Skinner, a teoria psicanalítica de Freud, a teoria gestáltica, a teoria humanista e, em especial, a teoria piagetiana sobre o desenvolvimento intelectual. Independente das especificidades das teorias pelas quais se baseia, a pesquisa realizada a partir desse referencial, “admitindo que seu principal objetivo é a explicação dos fatos do desenvolvimento humano, parte do pressuposto de que estas não são entidades produzidas socialmente, mas sim decorrências de fatos naturais” (SOUZA, 1997, p. 40). No que se refere à educação formal, é preciso reafirmar que todas essas teorias, apesar de não serem do campo pedagógico, servem como aportes teórico-práticos para o contexto escolar, o que será discutido a seguir. A conexão entre pesquisas psicológicas e práticas pedagógicas As pesquisas sobre a criança a partir de um referencial da Psicologia têm servido de suporte a uma série de intervenções pedagógicas que tomam como legítimas as teorias psicológicas. No início do século XIX, a partir da influência positivista, intensifica-se a discussão em torno da cientificidade da pedagogia. Se os propósitos da educação eram fornecidos especialmente pela ética, como filosofia prática, em algum lugar se deveria procurar, então, meios/métodos capazes de garantir o alcance de seus objetivos. É mais ou menos nessa direção que os saberes produzidos pela Psicologia invadem a cena pedagógica, outorgando-lhe as bases nas quais a educação viria a se assentar. “A pedagogia como ciência ver-se-á reforçada de modo inusitado, graças à entrada cada vezmais intensa da Psicologia no campo educativo, influência que tem servido, pelo menos, para dotá-la de uma ‘dupla cientificidade’, mais difícil de pôr em questão” (VARELA; ÁLVAREZ- -URÍA, 1992, p. 91). De certa forma, desde que se começou a discutir se a pedagogia deveria ser definida como a “ciência da educação” – com seus princípios próprios, suas regras determinadas, seus métodos particulares –, pode-se perceber o peso e o papel conferidos à Psicologia como fundamento científico. Sendo a educação considerada “o desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades” (WARDE, 1999, p. 297), a Psicologia passa a ser o instrumento fundamental de conhecimento dessas faculdades. “A pedagogia deve se desenvolver, então, como uma aplicação da ciência psicológica” (WARDE, 1999, p. 297). Percebe-se que as relações entre Educação e Psicologia sempre foram muito próximas, tornando tênue a fronteira entre essas duas instâncias. A proximidade delas tem historicamente possibilitado a legitimação das intervenções pedagógicas a partir do conhecimento produzido pelas teorias do desenvolvimento que, de forma geral, defendem a evolução progressiva de funções psicológicas. “A Psicologia do Desenvolvimento constitui-se a serviço da produção de um saber que deve fornecer critérios para o sistema educacional agrupar as crianças segundo a evolução de suas capacidades cognitivas e aptidões específicas” (SOUZA, 1997, p. 43). Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 36 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Dito de outra maneira: as formulações da Psicologia, em especial, na sua vertente desenvolvimentista, situam-se dentro de determinados enquadramentos e têm servido de apoio, justificativa e segurança às ações realizadas em ambientes educativos, especialmente os escolares, que se valem dos discursos produzidos pela Psicologia do Desenvolvimento para orientar sua organização e seu funcio- namento. A própria ideia de currículo escolar traz consigo a diferenciação das crianças por suas idades na medida em que classifica e seleciona saberes corres- pondentes à faixa etária e ao respectivo nível de desenvolvimento intelectual. Tomando as classes de educação infantil como exemplo, em muitos casos, as crianças são submetidas a treinamentos psicomotores e lógico-matemáticos em nome de uma suposta melhor aquisição de aprendizagens cognitivas, que são hierarquicamente consideradas mais importantes do que outras. Tais treinamentos, fundamentados especialmente na teoria piagetiana, pretendem proporcionar “iguais” condições de aprendizagem às diferentes crianças, na tentativa de encaixar a maioria – de preferência todas – numa curva normal estatisticamente preestabelecida. “Uma das aplicações mais frequentes da perspectiva construtivista de Piaget à educação tem sido a utilização de várias de suas tarefas de investigação como conteúdos escolares” (SOUZA, 1997, p. 43). Dessa forma, entende-se e trata-se a criança como seccionada em infinitos comportamentos, habilidades e destrezas. Grande parte da literatura que apresenta sugestões de atividades a serem desenvolvidas na educação infantil, embora enfatize que sua premissa básica é “entender a criança na sua totalidade, como um ser bio-psico-sócio-cultural” (FERREIRA; CALDAS, 2002, p. 3), utilizam como base teórica as fases do desenvolvimento infantil, estudadas por Piaget. De forma geral, antes de sugerirem as atividades, os livros apresentam uma caracterização dessas fases: sensório- -motora (zero a dois anos), pré-operatória (dois a sete anos), operatória-concreta (sete a onze anos) e operatória-formal (onze a quinze anos). A partir disso, seguem-se descrições de atividades para se trabalhar esquema corporal, lateralidade, coordenação visual e motora, relação espaço-temporal, percepção, conhecimento lógico-matemático, entre outros. Além disso, alguns desses conteúdos são subdivididos em áreas mais específicas, como é o caso do conteúdo “percepção”, dividido em: percepção visual, auditiva, tátil, gustativa e olfativa. É o caso também do conteúdo “coordenação visual e motora” que, de acordo com Ferreira e Caldas (2002), é dividido em: coordenação motora ampla: atividades locomotoras; atividades não locomotoras; atividades manipulativas. coordenação motora fina (recorte, colagem, bordado, pintura, grafismo, jogos de encaixe): movimentos com o braço, antebraço e pulso; movimentos com as mãos e os dedos. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 37Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br De forma geral, os livros também apresentam sugestões de atividades artís- ticas, musicais, físicas e de linguagem. No entanto, o que se percebe é que, mesmo nessas áreas do conhecimento, utiliza-se a base teórica desenvolvimentista, seja pela detalhada classificação que fazem das sugestões, seja pelo uso de conceitos psicológicos ao sugerirem as atividades, seja também (e principalmente) pelas intenções com que se sugerem as atividades. Embora sendo de outras áreas, justi- fica-se a realização das atividades por meio de teorizações da Psicologia. Entre os objetivos definidos para o trabalho com a expressão plástica, por exemplo, destacam-se os seguintes: “discriminar cor, forma, tamanho, dimensão, espaço, harmonia; treinar a coordenação visual e motora; e expressar vivências emocionais”. Ainda na área da Educação Artística, antes das sugestões de atividades de desenho, por exemplo, informa-se: “o desenho da criança sofre uma evolução [...]. Os desenhos iniciais não possuem nenhuma representação espacial. Pouco a pouco, vai além do simples traço para a reprodução de figuras. De início, é preferível evitar o trabalho com modelos. Com o amadurecimento, pode-se exibir um objeto” (FERREIRA; CALDAS, 2002, p. 96). Antes das sugestões de atividades de recorte, informa-se: “inicialmente, as crianças devem fazer recortes a dedo, usando a mão como tesoura. O recorte pode ser feito de forma espontânea, sem um contorno previamente definido. O importante é estimular os recortes que constituem um excelente treino motor. O recorte a dedo pode, depois, sofrer uma evolução. [...] Depois que as crianças estiverem bem treinadas no manuseio da tesoura [...]” (FERREIRA; CALDAS, 2002, p. 108). Nas sugestões de atividades de alinhavos, informa-se: “depois de treinar os picotados, as crianças estarão preparadas para fazer alinhavos. Para trabalhar com alinhavos, é interessante que os alunos realizem atividades de coordenação motora fina, enfiando em cordões botões, contas, macarrão, rodelas [...]” (FERREIRA; CALDAS, 2002, p. 113). Ou ainda: “o desenvolvimento da coordenação motora tem no alinhavo uma atividade recreativa das mais agradáveis. Dividida em fases de acordo com as dificuldades, poderão ser seguidas pela tapeçaria” (FERREIRA; CALDAS, 2002, p. 114). Também em outras áreas, como na Educação Musical, na Educação Física e na linguagem, utilizam-se elementos da Psicologia do Desenvolvimento para organizar o trabalho pedagógico com crianças pequenas. Poderíamos seguir des- tacando uma série de outros trechos que evidenciam o caráter psicologizante dos livros de atividades para a Educação Infantil, mas isso tornaria esta aula muito extensa. Fica o convite a quem se interessar em fazer suas próprias seleções e aná- lises. O que interessa, aqui, é atentar para o fato de que a fundamentação acaba sempre sendo os estágios de desenvolvimento da criança. O que se pretende salientar, ao fazer tais observações, é que o enfoque nos níveis de desenvolvimento infantil acaba por enquadrar as crianças em esquemas classificatórios que impedem a circulação de outros conhecimentos quenão aqueles baseados nos códigos evolutivos, cognitivos, maturacionais e desenvolvimentistas da Psicologia. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 38 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Nesse sentido, seria interessante que as pesquisas sobre a criança realizadas a partir do referencial da Psicologia fossem vistas com outras lentes, abrindo a possibilidade de se estabelecer novas e diferentes formas de relação com o saber, com a escola e, principalmente, com as crianças. 1. Liste alguns tópicos que sintetizem um breve histórico da Psicologia. 2. Escreva, em uma frase, quais são os objetivos e os métodos de pesquisa da Psicologia do Desen- volvimento. 3. Como profissional da Educação, como você analisa os discursos psicológicos que circulam no cotidiano de uma escola? 4. Converse com seus colegas e pensem em uma ou duas situações escolares em que o referencial da Psicologia é predominante. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 39Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Selecione, na biblioteca da sua escola, alguns livros didáticos da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Analise o conteúdo dos livros selecionados, com base nas discussões centrais desta aula, especialmente em sua última parte. Feito isso, converse com seus colegas sobre os efeitos das pesquisas psicológicas no campo pedagógico, pelo menos no que tange aos livros analisados. Acesse os seguintes sites: <www.msmidia.com/sbpd/socios.htm> Site da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (SBPD), no qual você pode encontrar uma série de informações sobre as pesquisas da área. A SBPD é uma entidade de âmbito nacional e de caráter científico, constituída sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos, com sede no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. <www.ced.usfc.br/~nee0a6/anped.html> Site de acesso aos textos dos trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho da Educação Infantil (GT7), na Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Edu- cação (ANPED), no ano de 1998. Entre os trabalhos que podem ser acessados nesse site, sugere-se a leitura do texto “Infância, conhecimento e contemporaneidade”, de Solange Jobim e Souza e Rita Marisa Pereira. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Psicologia 40 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. Pontos de Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1995. BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 1997. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. v. 1 e 2. . 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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia A escola, que muito fala e pouco ouve, consolidou suas práticas ao longo da história sem saber escutar as crianças. As práticas escolares não as percebem como indivíduos com opiniões próprias a dar, pouco valorizando as capacidades de criação e recriação de suas realidades, suas produções e culturas. Márcia Rosa da Costa D e que modo as sociedades contemporâneas tratam as crianças? Como elas são entendidas, representadas e respeitadas? De que maneira as crianças participam dos processos sociais? Que direitos elas possuem e como eles são garantidos? Como as culturas infantis determinam as formas de vida em sociedade? Que respostas poderiam ser dadas para tais questões, considerando as infâncias vividas no mundo de hoje? Para se pensar em possíveis respostas às questões aqui apresentadas é preciso, antes, discutir alguns conceitos mais gerais que estão subjacentes à relação entre crianças, infâncias e processos sociais – conceitos como Sociologia, sociedade, culturas infantis, entre outros. Sociologia, sociedade e culturas infantis A Sociologia é uma ciência que está preocupada com o estudo dos fenômenos sociais, a fim de explicá-los, por meio da análise das relações de interdependência estabelecidas pelos indivíduos, entendidos como seres que constroem e vivem essas relações. Considerando que as crianças são também indivíduos no interior de uma sociedade, então, a Sociologia mostra-se igualmente preocupada com as formas como este grupo social, que é organizado com base no critério etário, participa da construção das relações sociais. No entanto, nem sempre a Sociologia dirigiu seu interesse às crianças, entendendo-as como seres que participam ativamente da construção das formas de vida em sociedade. Essa discussão, assim apresentada, só foi possível com a emergência de uma área recente da Sociologia, que se chama Sociologia da Infância, conceito que será definido a seguir. Em relação ao conceito de sociedade, há uma série de definições e entendimentos, alguns bastante contraditórios quando comparados entre si. Para a discussão empreendida neste texto, serão tomados como base teórica os estudos do sociólogo alemão Norbert Elias, que escreveu o livro O Processo Civilizador: uma história dos costumes. 41Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Elias é apontado, por muitos estudiosos da área, como um pensador que se arriscou a abordar de forma inovadora e singular os fenômenos do âmbito da Sociologia. Esse reconhecimento se deve à forma como o sociólogo alemão trabalha com o conceito de sociedade. Para ele, a sociedade pode ser entendida como uma rede de interdependências, que é configurada por uma série infinita e invisível de cadeias de relacionamentos. Isso significa que indivíduo e sociedade são indissociáveis e, portanto, a sociedade não pode ser compreendida como composta por situações e elementos isolados uns dos outros: a definição de redes de interdependências sugere, ao contrário, que a formação social assemelha-se à formação de uma teia, na qual o espaço de cada integrante é muito bem localizado, embora haja um entrelaçamento necessário entre eles. A ideia central é a de que as pessoas estão conectadas umas às outras de infinitos modos, por meio de associações de diferentes tipos. De acordo com Elias (1993), a escola, a família e a cidade são algumas das muitas configurações sociais que são construídas e reconstruídas o tempo todo e, portanto, devem ser entendidas como configurações cujas formações são proces- suais: elas compõem a rede de interdependências. Entendendo esses pressupostos do sociólogo alemão, fica fácil perceber que as crianças já nascem imersas nas configurações sociais: nesse sentido, elas parti- cipam, desde o seu nascimento, das muitas cadeias de relações culturais – respon- sáveis também por influenciarem o processo de formação infantil. Somente ao crescer num grupo é que o pequeno ser humano aprende a fala articulada. Somente na companhia de outras pessoas mais velhas é que, pouco a pouco, desenvolve um tipo específico de sagacidade e controle dos instintos. E a língua que aprende, o padrão de controle instintivo e a composição adulta que nele se desenvolve, tudo isso depende da estrutura do grupo em que ela cresce e, por fim, de sua posição nesse grupo e do processo formador que ela acarreta. (ELIAS, 1994, p. 27) Como se sabe, Norbert Elias não produziu suas obras especialmente para a área da Educação, nem mesmo para o que hoje se chama de Sociologia da Infância. Entretanto, as ideias desse autor tornam-se muito úteis à Pedagogia, já que apresenta uma visão diferenciada sobre os processos de civilização de homens, mulheres e crianças ao longo do tempo, sobre os processos de socialização (inclusive o infantil), sobre sociedade, enfim, Elias permite uma série de análises e conexões necessárias aos estudos no campo da Educação. Daí a importância desse sociólogo, cujas ideias merecem ser conhecidas, problematizadas e utilizadas tanto no campo da Sociologia da Infância quanto por educadores. Vamos agora ao último conceito proposto no início deste texto: o conceito de culturas infantis.Se entendermos o termo cultura como o mesmo que formas de viver e estar no mundo, então, culturas infantis referem-se aos modos como as crianças vivem suas vidas, que têm a ver, necessariamente, com as atividades que elas realizam no seu dia a dia, as rotinas do seu cotidiano e tudo o mais que envolve as coisas que as crianças fazem: as brincadeiras e os brinquedos infantis, as músicas que elas escutam, os programas de televisão a que elas assistem, os lugares onde elas costumam ir. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 42 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Por exemplo, vejam as diferenças existentes entre as culturas de duas crianças, situadas em posições radicalmente diferentes: uma que mora numa cidade bastante pequena do interior do Brasil (cidade de no máximo dois mil habitantes) e outra que mora na capital paulista desde que nasceu. As atividades cotidianas dessas duas crianças, os lugares que frequentam, as pessoas com quem convivem, as verdades em que acreditam, os modelos sociais que entendem como corretos ou errados, os produtos culturais que consomem, tudo isso determina os modos como essas crianças vivem e determina, então, a cultura infantil delas. Além disso, se compararmos a vida da primeira criança (do interior) com a da segunda (da capital paulista), muitas coisas serão diferentes, desde a experiência de frequentar shopping centers, passando pelas diferenças nos hábitos alimentares e nos horários de dormir e acordar, em função dos ritmos cotidianos, até a construção das categorias de tempo e espaço, que acontece de forma diferenciada a depender das situações pelas quais se passa e dos estilos de vida que se leva. As culturas infantis, então, variam de acordo com o meio social e cultural em que se vive. É importante dizer também que as culturas infantis não existem independentemente das históricas relações estabelecidas entre adultos e crianças, ou seja, não existem de forma espontânea e isolada de outras culturas. As culturas infantis podem constituir, então, um conjunto de coisas que as crianças fazem de suas vidas, mas um conjunto de coisas que é estável e que, em função disso, pode se constituir em uma cultura. Ora, se as crianças possuem suas próprias culturas, então significa que as crianças não podem ser entendidas como produtos da sociedade, ou seja, como seres que são construídos pelas relações sociais, mas sim como sujeitos que vivem efetivamente os processos sociais e que, por isso mesmo, também produzem as formas sociais de viver, também dão sentido às coisas da vida. Em vez de simplesmente compreendermos a criança como alguém que é construída pelas relações em sociedade, o conceito de culturas infantis nos permite compreender a criança como alguém que, além de ser construída, também constrói suas próprias relações. Desse modo, pode-se pensar na possibilidade de que as crianças conferem significado às suas práticas culturais. Ao fazer isso, estão constituindo suas próprias identidades. Nesse ponto, é importante referir os estudos de Stuart Hall, no que se refere à centralidade da cultura em tempos de pós-modernidade. Ainda que esse autor não trabalhe diretamente com as culturas infantis, suas importantes contribuições teóricas nos ajudam a melhor entender que as identidades, inclusive as infantis, nascem das trocas entre, por um lado, os conceitos que são representados para nós, pelos discursos de uma cultura e, por outro lado, nosso desejo de assumirmos as posições de sujeito construídas para nós por esses discursos. Isso significa que, diferentemente do que se costuma discutir no campo da educação, as identidades infantis não emergem tanto de um centro interior, como se pudesse supostamente existir um eu verdadeiro e único. De acordo com Hall (1997, p. 26): Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 43Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O que denominamos “nossas identidades” poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experi- ências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente. Se considerarmos as ideias de Hall, em relação à centralidade da cultura na constituição das identidades, é possível entender toda a importância assumida pelas culturas infantis e a necessidade de os profissionais da educação conhecerem as culturas das crianças e dos jovens com quem trabalham, para saber que subjetividades estão sendo formadas e como a educação escolar poderá capacitar professores e alunos a problematizarem suas próprias formas culturais. Sociologia da Infância A Sociologia da Infância é uma área recente de estudos e pesquisas, que surgiu no interior do campo da Sociologia, como uma subdivisão, e que se interessa especialmente pela investigação das culturas e das relações sociais das crianças1. Foi a discussão sobre os direitos das crianças que impulsionou a emergência da Sociologia da Infância, a partir do reconhecimento de que a criança se insere na sociedade não como um ser estranho, que precisaria ser socializado pela escola ou pela família. Ao contrário desse entendimento, a Sociologia da Infância reconhece que as crianças são atores sociais e participam da edificação tanto das suas próprias formas de vida quanto das formas de vida das pessoas que as rodeiam. Os estudos sociológicos anteriores à Sociologia da Infância, de forma geral, entendiam e tratavam a criança a partir de uma referência adultocêntrica, ou seja, as definições de criança e as pesquisas realizadas sobre ela tomavam como ponto de partida a voz, os pensamentos do adulto. Era ele quem falava das necessidades infantis, das suas carências, das suas características, enfim, como se as falas das crianças não fossem suficientemente legítimas. Daí a condição de afasia das crianças nos estudos que eram realizados sobre elas antes da emergência da Sociologia da Infância. Se recorrermos ao dicionário, encontraremos os dois principais significados para o termo afasia. Para o ceticismo grego, afasia significa “silêncio filosófico, abstenção consciente de qualquer juízo originada pelo reconhecimento da ignorância a respeito de tudo que transcenda as possibilidades cognitivas do ser humano” (HOUAISS, 2001, p. 99). O outro significado refere-se ao termo afasia como “enfraquecimento ou perda quase total do poder de captação, manipulação e por vezes de expressão de palavras como símbolos de pensamentos [...]” (HOUAISS, 2001, p. 99). Uma rápida análise desses dois significados faz-nos perceber que, se as pesquisas anteriores à Sociologia da Infância posicionavam a criança num lugar de afasia, então, essas pesquisas não estavam preocupadas em ouvir as vozes das crianças, por entender que elas eram dotadas de uma razão ainda pouco desenvolvida e, portanto, as vozes infantis não deveriam ser consideradas até que as crianças passassem por um processo intenso de socialização, realizado nas instituições sociais. 1 Para uma discussão mais ampla sobre a emergên- cia da Socio logia da Infância, ver Sirota (2001). Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 44 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Sobre isso, é importante referir o que diz Bujes (2002, p. 23): Somente depois do século XVIII o termo “infância” deixou de referir-se apenas às crianças muito pequenas que aindanão falavam e passou a englobar as crianças maiores – estendendo-se do nascimento à puberdade. No entanto, esta condição de “afasia” tem permanecido como um dos seus traços mais característicos. A perspectiva adultocêntrica tem orientado os discursos que sobre ela se enunciam. Portanto, as identidades infantis descritas nas práticas, nos discursos, nas categorias que servem para circunscrevê-la, nascem entre os adultos e têm sempre uma referência que é neles centrada. Ainda que Bujes não se refira especificamente aos estudos sociológicos sobre as crianças, a sua ideia relativa à perspectiva adultocêntrica nos permite melhor entender de que modo as pesquisas anteriores à Sociologia da Infância viam as crianças. Com a emergência da Sociologia da Infância, passou-se a falar na possibilidade e na necessidade de escutar as vozes infantis. De acordo com Sarmento (2005), entender as crianças como atores sociais significa também romper com uma série de interpretações propostas por pesquisas científicas já estabelecidas, que posicionavam a criança em uma fase de transito- riedade e de dependência. Para esse sociólogo, as crianças não são objetos mani- puláveis: elas são capazes de fazer suas próprias interpretações da sociedade, dos outros e de si próprias; são capazes de fazer interpretações igualmente legítimas de pensamentos e de sentimentos. Elas fazem isso tudo e de forma diferente dos adultos. Por isso, as crianças são dotadas de um sentido próprio, que não deve ser visto como inferior ou em déficit, mas como um sentido próprio que é adequado e pertinente ao contexto de vida das crianças. Ainda na opinião do sociólogo, o desafio da Sociologia da Infância está em compreender as formas culturais das crianças, as formas como elas interpretam a si e aos outros. Nesse sentido, as falas das crianças são elementos fundamentais para a compreensão das culturas infantis. Em relação a esse desafio, Costa (2000, p. 12) salienta que “as crianças não são ouvidas. Não temos uma prática social e cultural que considere suas opiniões, o que acontece em suas vidas e o que pensam do que lhes rodeia. Da mesma forma, no mundo acadêmico, poucas são as pesquisas realizadas, considerando- -as sujeitos capazes de serem ouvidos”. No que se refere mais especificamente ao contexto escolar, Costa (2000, p. 14) alerta que não basta simplesmente dar voz para a criança, já que “sua voz e seu discurso já estão na escola; no pátio, no recreio, no refeitório, nos corredores, na sala de aula. A busca é pelo ato de escutar a criança, tentando mostrar o universo infantil, conhecer sua vida e suas opiniões”. Essas são algumas das preocupações e alguns dos desafios que estiveram envolvidos no surgimento da Sociologia da Infância. Foi com os estudos, as pesquisas e as discussões realizadas nessa área que começaram a surgir, também, novas interpretações acerca das múltiplas relações que se estabelecem entre as crianças e o mundo social, reconhecendo a criança como um sujeito ativo na sociedade, imersa nas muitas configurações sociais, integrante e produtora dos jogos de construção dos fatos sociais e, portanto, alguém que é capaz de se expressar e de ser ouvido, já que possui e produz suas próprias culturas. Enfim, passou-se a reconhecer a criança como alguém cujo universo de representações é legítimo e deve ser considerado. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 45Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Esse reconhecimento ainda vem sendo reivindicado pela Sociologia da Infância. Suas contribuições teóricas têm proliferado muito nos últimos anos e são de extrema relevância na formação de professores, pois oferecem elementos diferentes de análise que contribuem efetivamente na construção de novas e diferentes interpretações pedagógicas sobre a infância e sobre os fenômenos educativos voltados para ela. 1. Descreva o modo como Norbert Elias entende o conceito de sociedade. E quanto a você, como definiria esse conceito? 2. Pense nas crianças entendidas como atores sociais ativos. Com base no que foi discutido no texto, escreva um parágrafo sobre as relações estabelecidas entre infância e sociedade. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 46 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 3. Comente as novidades trazidas pela Sociologia da Infância no que se refere às formas de se entender e tratar as crianças nos estudos e nas pesquisas sociológicas. 4. Converse com seus colegas sobre os modos de vida das crianças que vocês conhecem. A partir do que foi discutido no grupo, descrevam algumas características das culturas infantis contem- porâneas. FARIA, Ana Goulart de; DEMARTINI, Zeila de Brito F.; PRADO, Patrícia Dias (Orgs.). Por uma Cultura da Infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas: Autores Associados, 2002. Esse livro é constituído de sete estudos realizados por pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diferenciação Sociocultural (Gepedisc), da Faculdade de Educação da Unicamp. Os estudos que compõem essa coletânea preocupam-se em discutir o protagonismo das crianças enquanto atores sociais. Para tanto, os sete textos tratam, de forma geral, das relações que são construídas entre as crianças no mundo adulto. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 47Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial da Sociologia 48 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 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Ele abarca uma série de preocupações voltadas à caracterização desse segmento etário, ao seu atendimento, à demanda por instituições educativas, à oferta e ao financiamento da educação, à formação de professores, entre outras coisas. É a partir desse referencial que são realizadas as pesquisas diagnósticas, de levantamento, de caracterização etc. Há um leque de possibilidades de pesquisas a partir desse referencial. De forma geral, elas examinam o lugar que determinadas políticas e programas (dirigidos a crianças) ocupam nas preocupações e nos investimentos estatais, num determinado período. Para tanto, geralmente traçam os caminhos percorridos pelas esferas administrativas do Estado em direção à proposição e efetivação de políticas sociais (em especial as públicas) para a infância; analisam os desafios impostos pela legislação da área; e apresentam sugestões para o enfrentamento e a superação dos problemas encontrados. Políticas sociais são expressas como “um conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos” (RUA, 1998, p. 731). Trata-se de ações que podem ser articuladas entre o Estado e a sociedade civil, mas, mesmo que ocorram parcerias, a presença do aparelho público-estatal é um traço definidor das políticas sociais. As políticas podem ser entendidas inserindo-as no seguinte contexto: em geral, de uma grande meta, proposta em âmbito federal, saem as diretrizes estratégicas, que preveem a criação de progra- mas que, por sua vez, estipulam ações a serem desenvolvidas. Nesse sentido, as metas mais amplas, propostas pela União, passam pelos Estados e vão descendo até os Municípios, que definem as ações a partir de determinadas demandas locais. As pesquisas realizadas a partir do referencial político- -demográfico justificam-se em função de determinadas falhas nesse trajeto que vai da União para os Municípios, ou seja, nãose nega que existam propostas interessantes vindas da esfera federal, mas, por uma série de motivos, elas se mostram ineficazes e insuficientes para garantir os direitos das crianças, assegurados por lei. Portanto, o objetivo comum às diferentes pesquisas realizadas a partir desse referencial é (além de propor a criação de novos programas) discutir o caráter deficitário dos programas existentes, entendendo os motivos pelos quais eles nem sempre dão conta de implementar as ações ou de efetivar satisfatoriamente as ações já implementadas. Embora identifiquem esforços para o atendimento das necessidades locais, as pesquisas eviden- ciam a participação das instâncias estatais, geralmente entendida como tímida ou ausente. Também discutem a fragmentação das ações destinadas a crianças e jovens, apontam aspectos que demandam maiores investimentos, enfim, problematizam os limites e entraves para a oferta de políticas sociais de qualidade à criança, desde sua mais tenra idade. 49Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Nesse sentido, a realização das pesquisas justifica-se pela “carência de dados sistematizados que permitam a formulação adequada de ações, bem como seu acompanhamento e avaliação” (BARRETO, 2003, p. 59). Os resultados das pesquisas criam e fortalecem o discurso da necessidade de atuação das instâncias do Estado, em seus níveis federal, estadual e municipal. Políticas públicas e legislação As ações governamentais relativas à infância e à adolescência têm sido propostas (e, em alguns casos, efetivadas) em duas direções: uma hierárquica (da União para os Estados e Municípios), já referida neste texto; e outra de comple- mentaridade, concatenando esforços conjuntos do Estado e sociedade civil orga- nizada (ONGs). Desses esforços, emergiram os Conselhos de Direito e Defesa da Infância e Adolescência. Importa enfatizar que os programas, as propostas e as ações são pensadas sempre tomando-se como referência a legislação que trata da infância. Sobre isso, destaca-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), que se insere numa trajetória brasileira de construção jurídica por meio da qual o Estado objetivou a normatização de uma política de assistência, proteção e educação à criança e ao jovem. Essa lei introduz mudanças significativas em relação à legislação anterior, datada de 1979 (o Código de Menores). Com o ECA, crianças e adolescentes passam a ser considerados cidadãos, com direitos pessoais e sociais garantidos, desafiando os governos municipais a implementarem políticas públicas especialmente dirigidas a esse segmento etário e social. É importante destacar que o documento é referência mundial em termos de legislação destinada à infância e à adolescência, sendo considerado um dos mais avançados conjuntos de leis de proteção à criança, fundamentado em convenções e tratados internacionais. Entre os tratados, destaca-se a Convenção sobre os Direitos das Crianças, composto por 54 artigos que colocam a criança em posição de absoluta prioridade no que se refere à formulação de políticas e sua respectiva destinação de recursos públicos (BRASIL, 2000). Percebe-se, pois, a importância significativa do ECA, que estabelece limites à ação do Estado, do juiz, da polícia, das empresas, das famílias e inaugura uma nova ordem jurídica e institucional referente às relações entre adultos e crianças. No entanto, em que pesem os avanços instaurados e as conquistas legais granjeadas com o ECA, não há nenhuma novidade em se afirmar a precária situação de existência de muitas crianças brasileiras. Se, por um lado, a promulgação dessa Lei deve ser comemorada, por outro, é preciso reconhecer as inúmeras dificuldades de sua efetivação no atual panorama social brasileiro, já que a realidade da criança e do adolescente não foi alterada significativamente. Alterou-se a nomenclatura a partir da qual as crianças e os jovens infratores eram nomeados, mas o fato de que eles continuam nas ruas ou em instituições de regeneração não só continua a existir, como tem se agravado nos últimos tempos. O aparente reconhecimento dessa legislação como sendo de qualidade não é suficiente para garantir transformações efetivas nas formas de entender e de tratar as crianças e os jovens. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 50 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Também se deve considerar o fato de que determinadas políticas públicas dirigidas às crianças, apesar de todos os eventuais benefícios prestados, são normalmente motivadas tanto pela necessidade de se atender formalmente às exigências das legislações, quanto por uma estratégia de marketing político, que intenta atribuir ao Estado uma imagem de prioridade à infância. Nesse sentido, as pesquisas realizadas a partir do referencial político-demo- gráfico exercem uma função fundamental: investigar os sistemas de garantia aos direitos da criança e do adolescente, propostos pelo Estado e pela sociedade civil, para que, entre outras coisas, os fundamentos do ECA possam ser efetivados. Como surgiram as pesquisas político-demográficas? As pesquisas cujo referencial é o político-demográfico têm, a princípio, uma condição fundamental: o conceito de população. Em épocas anteriores à constituição do Estado Nacional, em sociedades menos complexas do que as que temos hoje, não existia o conceito de população. Havia apenas o reconhecimento de duas instâncias sociais: o Estado, representado por um soberano, e a família. Não havia, entre essas duas instâncias, um vínculo necessário. O vínculo entre Estado e família só se tornou possível quando se inventou o conceito de população, entendido como um corpo múltiplo e numerável, que tem uma regularidade própria, com características, necessidades e problemas comuns (FOUCAULT, 1992). Antes disso, a palavra governo não estava predominantemente relacionada ao Estado. Reconheciam-se diferentes formas de governo: das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Esse termo tinha o significado de conduzir as pessoas, dirigir os seus comportamentos, mas não era vinculado preferencialmente às instituições do Estado, como o entendemos hoje, de modo geral. Da mesma forma, a palavra economia não se referia a um saber próprio do Estado. Atualmente, usa-se o termo para referir-se ao Curso de Economia, profissão de economista; também se fala em economia do país, em formas econômicas de uma determinada região (agricultura, indústria, comércio, entre outros). No entanto, em tempos pré-modernos, quando não existia o Estado Nacional, economia referia-se à arte do bom gerenciamento da casa, ou seja, às formas como a família se organizava para administrar seus bens e as relações entre seus membros (do grego óikonomia: óiko= casa; nomo= medida). A partir do século XVI, com o surgimento da ideia de população e conec- tadas a uma série de acontecimentos que vieram a culminar na organização dos Estados modernos, especialmente a partir do final do século XVIII, começaram a surgir preocupações acerca das possibilidades e dos limites de governar. A ques- tão que passou a ser central era: de que maneira pode-se utilizar a economia (que Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 51Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br era específica do gerenciamento da casa) para gerir um Estado? Essa pergunta só pôde ser feita quando se perceberam os problemas específicos da população, que puderam ser isolados, sistematizados e calculados (FOUCAULT, 1992). O Estado passa, então, a se preocupar com esse corpo múltiplo emergenteque é a população e se utiliza do saber da economia para governá-la. Foi assim que nasceu o termo economia política, concebido como a ciência do governo, ou seja, como uma forma racional e planejada de gerir uma população inteira nas suas relações com o território e a riqueza. A população passa a ser gerida “como uma grande família cujos negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca” (ARENDT, 2001, p. 37). O gerenciamento caseiro ascendeu para o domínio político e o Estado tomou para si parte das funções de manutenção da vida e sobrevivência da espécie, antes exclusivamente da família. Percebe-se, assim, que um Estado moderno governa sua população quase da mesma forma que a família, em épocas anteriores, governava seus integrantes. Entretanto, as proporções desse governo aumentaram significativamente, se considerarmos o número de indivíduos que a família tinha que administrar e o número de indivíduos que o Estado administra. Portanto, não bastou apenas utilizar o mesmo modelo de gestão (a economia); foi preciso refinar e incrementar esse saber para que ele atingisse seus objetivos governamentais. Uma das técnicas utilizadas para dar conta disso é a medição estatística. Por meio dela, o Estado passa a intervir nos processos populacionais de natalidade, mortalidade, longevidade e, assim, passa a normalizar a conduta social, prevendo e regulando os comportamentos tanto individuais quanto coletivos. Normalizar implica classificar, medir, avaliar e hierarquizar os sujeitos, seus comporta mentos e suas capacidades para garantir e melhorar a sua vida. Esse processo estabelece a noção de normalidade e, concomitantemente, ao definir o que é normal, determina também a anormalidade. Nessa lógica, todos os mínimos atos dos sujeitos estão constantemente sendo medidos – por outros e por si mesmos – em função de um modelo normal que permite diferenciar, atribuir juízo de valor e comparar os comportamentos de determinado indivíduo ou grupo. O instrumento que possibilita estabelecer uma norma é a estatística. Ao operar com fiscalizações, observações, medidas comparativas e desvios, a estatística permite o mapeamento dos fenômenos próprios da população: direitos, garantias, deveres, segurança, saúde, educação, velhice, enfermidades, anomalias, vida conjugal e familiar, propriedades, obrigações, atividades profissionais. Podemos perceber que, consideradas tanto no nível individual quanto no interior de certos grupos, nossas atividades diárias (acadêmicas, profissionais, pessoais) passam por questões governamentais. Dessa forma, nossas vidas são minuciosamente mapeadas, estudadas e reguladas: relações de trabalho (carteira assinada, remuneração, aviso prévio, FGTS, aposentadoria, seguro-desemprego, entre outros), relações de família (casamento, divórcio, adoção de filhos), além da aquisição de bens, da garantia dos direitos constitucionais, da obrigação de deveres tributários. A população (um agregado de indivíduos sobre o qual existem saberes e é visto e entendido como um corpo coletivo vivo) passa, então, a justificar todo e qualquer ato governamental, constituindo-se, assim, como principal objetivo do governo. É nesse cenário que se inserem as políticas públicas, enquanto ações estatais, dirigidas a diferentes segmentos populacionais. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 52 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As pesquisas político-demográficas sobre a infância O conceito de população permite quantificar as pessoas em grupos – destacando suas necessidades e problemas – e a infância é um desses grupos, com direitos próprios legalmente garantidos. Daí que um dos fundamentos de implementação de políticas sociais para a infância é o reconhecimento da criança como cidadã1. Além disso, as crianças são entendidas como um segmento populacional vulnerável pela condição de dependência econômica e social que elas mantêm com os adultos2. Já foi discutido que o Estado tomou para si parte das funções antes exclusivas das famílias, inclusive seu modelo de gestão. Na esteira disso, tomou para si a tutela de crianças e adolescentes. Todo esse movimento produziu uma série de discursos acerca dos fundamentos e das medidas para a proteção dessa parte da população. A instauração das primeiras experiências em políticas públicas para a infância foi gerada por esses discursos; mas, por outro lado, também gerou a necessidade de mais saberes que permitissem tanto o planejamento de novas ações, quanto a avaliação e o redirecionamento das ações vigentes. Isso justificaria a necessidade de realização das pesquisas que fazem o mapeamento, a caracterização, a quantificação, o diagnóstico; enfim, que levantam dados sobre as crianças, os contextos em que estão inseridas, suas necessidades, seus modos de vida. O conjunto de saberes produzido pelas pesquisas pode ser entendido em duas direções, aparentemente opostas, mas que se complementam: por um lado, esses saberes são extraídos da população infantil, vista como um objeto quantificável. A ideia é a de que as pesquisas estudam a situação social vivida pelas crianças e suas famílias, construindo uma gama de informações sobre os sujeitos infantis. Por outro lado, a análise e veiculação cultural desses saberes fabricam imagens sobre as próprias crianças, atribuem-lhes identidades, constituindo-as de determinados modos e não de outros. A ideia é a de que, além de descrever seus modos de vida, ao dar visibilidade às crianças como sujeitos de direitos, opera-se com a construção de formas de ser criança cidadã e de viver a infância de direitos. Postos em circulação, os saberes posicionam as crianças em determinados lugares e constroem para elas certas concepções que passam a ser reivindicadas por alguns grupos sociais. Os sujeitos infantis são “falados”, “discursados”; e todo esse movimento engendra discursos considerados politicamente corretos sobre como as crianças devem ser tratadas. Com base nesses discursos, as ações sociais passam a fazer sentido. No entanto, o reconhecimento da relevância das ações sociais voltadas às crianças não impede a diversidade de orientações e pressupostos que funda- mentam os projetos e programas. “É também preciso considerar que as decisões envolvendo a implementação de políticas são produto de conflitos em torno do destino de recursos e de bens públicos limitados, ocupando um espectro amplo de negociações e de formação de consenso, mesmo que provisórios” (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 18). 1 Percebe-se, aqui, que há diferentes modos de se entender as crianças, depen- dendo do referencial que orienta as pesquisas sobre a infância. A abordagem polí- tico-demográfica entende a criança como cidadã, sujeito de direitos, e suas pesquisas são realizadas tendo esse princípio fundamental. Nesse sentido, difere-se, por exem- plo, da abordagem psicoló- gica, que entende a criança basicamente como um ser em desenvolvimento. 2 Outros grupos conside-rados vulneráveis são os constituídos por adoles- centes, idosos e portadores de necessidades especiais. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 53Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Entre os vários programas de atendimento à criança, destacam-se algumas políticas sociais de assistência, de proteção, de garantia dos direitos e de atendimento nos municípios – que priorizam saúde, educação, cultura, lazer e proteção às crianças e jovens brasileiros. Contudo, as relações estabelecidas entre as diferentes áreas envolvidas (assistência, saúde, educação) tornam ainda mais complexa a formulação de políticas sociais, intensificando-sea defesa de determinados interesses em contraposição a outros. Talvez isso nos ajude a compreender o fato de que a proposição de políticas públicas que garantam a efetivação dos direitos das crianças está além de questões jurídicas, configurando-se num processo de cunho eminentemente político e, portanto, envolvido em relações de poder3. A partir daí, percebe-se que as pesquisas também se configuram em um campo de produção de significados, não apenas pelos discursos que fabricam e fazem circular, mas porque, a partir deles, diferentes instâncias sociais, situadas em posições diferenciadas de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. Portanto, estão em jogo, especialmente, interesses relativos ao financiamento dos programas sociais. Diferentes grupos populacionais exigem políticas públicas. Nesse sentido, abre-se a possibilidade de constantes embates entre as instâncias propositivas das políticas, que disputam reconhecimento e legitimidade, reforçando-se por meio de suas pesquisas. As lutas sociais em torno dos direitos da infância aparecem como pano de fundo às intervenções estatais e a questão de como governar torna-se cada vez mais central. Isso nos permite perceber o quanto essa vontade de saber sobre as crianças está intimamente imbricada a questões governamentais. De forma geral, as pesquisas enfocam os problemas sociais, apontando as políticas como uma de suas possíveis soluções – sempre para uma suposta melhoria da qualidade de vida das crianças. Desde a constituição da infância moderna, os discursos que envolvem crianças e adolescentes, entendendo-os como prioridade absoluta, mobilizam o campo dos afetos. A promoção de direitos e a aplicação da lei são, geralmente, entendidas como práticas libertadoras, capazes de oportunizar inclusão social e oferecer melhores condições de vida a todos os segmentos populacionais. No entanto, raramente se questionam os efeitos dessas práticas ao estipular normas que regulam a maneira como os diferentes grupos devem viver as suas vidas, os lugares que devem ocupar, as condutas que devem ter. Desse modo, enfatiza-se o caráter libertador dos programas e das ações públicas dirigidas à infância, em detrimento de uma análise que os entenda como mais uma das muitas tecnologias que regulam os processos de constituição de identidades pessoais e sociais. Sem esse movimento de problematização, é provável que as pesquisas continuem a subsidiar a construção jurídica para a infância e é bem possível que as leis continuem a ser reformuladas e representem gradativamente o melhor já produzido em termos jurídicos no que concerne ao entendimento de criança e à garantia de seus direitos. Ao mesmo tempo, em proporções semelhantes, é bem possível que grande parte das crianças brasileiras continue a ser ignorada, explorada, abandonada, violentada, negligenciada, vivendo de forma independente e autônoma nas ruas: crianças sem infância; ou melhor, crianças que vivem uma infância diferente daquela inventada pelos ideais 3 É por isso que este texto denomina o referencial de político-demográfico e não apenas de demográfico, na medida em que não há demografia isenta de questões políticas. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 54 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br iluministas modernos do início do século XX. Trata-se, agora, nesses casos, de uma infância que constrói suas próprias categorias morais em meio às acrobacias daquelas crianças que inventam suas formas de sobrevivência. Conhecendo como as pesquisas se organizam e funcionam, pode-se melhor compreender as formas pelas quais crianças e adultos são subjetivados a assumirem determinadas identidades conectadas ao conceito de cidadania. 1. Defina o seu entendimento do conceito de políticas sociais. 2. Cite as principais mudanças jurídicas instauradas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 3. Na sua opinião, por que o ECA, apesar de ser referência mundial em termos de legislação desti- nada à infância e à adolescência, não foi capaz de alterar significativamente a precária situação de existência de grande parte das crianças e dos jovens brasileiros? Discuta suas ideias com seus colegas. 4. Em grupos, apontem as condições de possibilidade para o surgimento das pesquisas político- -demográficas sobre a infância. Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 55Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 4 FUNDEF: Fundo de Manutenção e Desenvol- vimento do Ensino Funda- mental e de Valorização do Magistério. FNDE: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. PDDE: Programa Dinheiro Direto na Escola. PNAE: Programa Nacional de Alimentação Escolar. PNLD: Programa Nacional do Livro Didático. PNBE: Programa Nacional de Biblioteca na Escola. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) é um ór- gão do Ministério da Educação e da Cultura (MEC) que, entre outras funções, apresenta dados estatísticos da Educação Básica e Superior, apurados pelo Censo Escolar. O Censo Escolar consiste em um levantamento do número de matrículas e do quadro geral da situação de funcionamento e das condições de trabalho nas escolas públicas e privadas de todo o país. Esse Censo é realizado anualmente e serve de instrumento para o MEC analisar, formular e executar políticas educa- cionais, com a consequente destinação de recursos financeiros para a educação. Percebe-se a importância do Censo Escolar na medida em que os dados colhidos por ele servem de base para uma série de programas e ações nacionais, como o FUNDEF, FNDE, PDDE, PNAE, PNLD e PNBE4. Com base na informação anterior, sugerem-se as seguintes dicas de estudo: Conheça o documento Sinopse Estatística da Educação Básica, que é uma publicação do INEP, que apresenta os dados colhidos pelo Censo Escolar. Esse documento pode ser encontrado em bibliotecas ou na página virtual do INEP (www.inep.gov.br). Esteja certo de procurar pelo documento mais atualizado, visto que os dados são colhidos anualmente. Com o documento em mãos, observe a forma como o Censo é organizado e apresentado, por meio de tabelas construídas a partir de uma série de classificações que se entrecruzam. Perceba como os grupos populacionais infantis e jovens são divididos e categorizados seguindo diferentes critérios. Escolha algumas tabelas de seu interesse e informe-se sobre os dados apresentados, especialmente os de sua região, comparando-os com os dados de outras regiões do país. Discuta suas impressões com sua turma. Visite a página virtual do MEC (www.mec.gov.br) e conheça as principais ações e programas em vigência. Entre os muitos, escolha um e procure informações gerais sobre ele. Apresente à sua turma as informações coletadas e discuta com ela algumas questões, como a relevância e a eficácia do programa, apresentando suas impressões sobre ele. Procure saber se o seu município dispõe de dados sobre sua população infantil. Se possível, faça o registro desses dados e apresente-os à sua turma, comparando com os dados de outros municípios, trazidos pelos colegas. Leia e discuta com sua turma os artigos 53 a 59 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que se referem ao direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (Capítulo IV). Para ampliar a discussão, realize-a com base nos aspectos observados nas atividades precedentes. Em que medida as ações e os programas do MEC asseguram os direitos das crianças, estabelecidos pelo ECA? Perspectivas de pesquisa sobre crianças e educação: o referencial político-demográfico 56 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASILS.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. 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Nesse sentido, o projeto será o resultado de uma imersão teórica por parte do pesquisador, que irá apresentar o tema de seu interesse, os problemas que formulou em torno desse tema, as hipóteses a que chegou, os pressupostos teóricos que embasam suas ideias, o referencial analítico que será uti- lizado na investigação, as formas metodológicas, entre outros. Mas tudo isso não é simplesmente escolhido, ou seja, há muitas condições para que o pesquisador consiga construir um projeto, apresentando todos os elementos indispensáveis a esse documento; condições que se referem a estudos, leituras, anotações; participação em aulas, cursos, seminários e em outras atividades acadêmicas que possam oferecer ao pesquisador os subsídios necessários à formulação de um projeto de pesquisa consistente e bem construído. Portanto, o estudo, de forma geral, constitui-se numa exigência para a proposição de uma pesquisa e para a própria ação de pesquisar. No caso de os alunos do curso de Pedagogia, por exemplo, terem que apresentar um projeto de pesquisa, é o próprio curso, no seu desenvolvimento – com as discussões que são realizadas nas aulas, com a conclusão das disciplinas, com os questionamentos que delas resultam – que irá fornecer os instrumentos e as ferramentas analíticas para a formação do universo de problematização. De acordo com Severino (2000, p. 158), por um lado, o curso deverá oferecer aos estudantes um instrumental teórico e metodológico, “mediante um processo contínuo de problematização das temáticas, em interação permanente com os textos significativos de outros pensadores”. Por outro lado, “não há estrutura acadêmica que possa garantir a eficiência do processo, se os próprios [estudantes] não o assumirem com uma postura crítica e comprometida decorrente de uma opção prévia, de dimensão político-existencial, cientes de sua responsabilidade social”. É em meio a esse universo – de trabalho dedicado e persistente, de estudo sistemático, de enfrentamento das dificuldades estruturais e conjunturais, de busca incessante por informações – que surgem os temas e os problemas que serão posteriormente investigados. Nesse sentido, há dois momentos distintos, vividos pelos estudantes, mas que não podem estar desvinculados: um momento de estudos, leituras, discussões, dúvidas, escrita de pequenos textos, comentários, troca de ideias e um momento de elaboração do projeto de pesquisa. É preciso reafirmar a necessidade de vinculação entre esses dois momentos, para que se diminua o abismo entre eles: abismo que tem caracterizado os cursos de formação de professores. Faz-se imprescindível, então, desde já, enfatizar aos alunos desavisados que é interessante que todo o processo de sua formação esteja ancorado no levantamento de questões acerca de sua área de interesse, para que os alunos possam ir construindo pontes entre os conteúdos das disciplinas (e as discussões que delas resultam) e possíveis problemas a serem investigados pelos estudantes. Se assim for, certamente evitará uma série de dificuldades que grande número de alunos encontra para desencadear suas pesquisas. 57Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Para se propor um projeto de pesquisa, é preciso estar filiado (ou pelo menos estar próximo) a um determinado referencial teórico (da Sociologia, da Psicologia, da História, da Antropologia, dos Estudos Culturais, entre outros). Uma das principais dificuldades na proposição de um projeto de pesquisa refere-se exatamente a essa imersão que os alunos têm que fazer no referencial teórico do qual suas ideias e seus interesses mais se aproximam, especialmente quando o referencial teórico difere daqueles com os quais os alunos estão acostumados a trabalhar nos cursos de formação de professores, como, por exemplo, o referencial da Psicologia – que historicamente tem sido o mais utilizado para as discussões e análises realizadas em cursos de Pedagogia. Se os alunos desse curso optarem por utilizar outros referenciais – o que é bastante profícuo e desafiador, além de permitir novos e interessantes modos de olhar para o trabalho docente – terão de operar com uma “virada” nas formas como entendem as práticas pedagógicas, institucionalizadas ou não. Considerando o curto período de tempo de que os alunos dispõem para fazer essa “virada”, é bastante comum que a etapa ou o ponto específico em que preci- sam investir maior esforço e dedicação seja exatamente a construção do objeto de pesquisa, já que a etapa anterior de estudos e discussões foi feita com base num outro referencial. Sem dúvida, para os que se arriscam a passar pela “virada”, para os que enfrentam o desafio de enxergar de outros modos a sua área acadêmica e/ ou profissional, o maior investimento de esforço e dedicação está exatamente no momento de olhar para as coisas da educação de forma mais abrangente, ou seja, fora dos preceitos educacionais que se pretendem únicos, exclusivos e definitivos. Modos de olhar Há várias possibilidades de se abordar as temáticas que envolvem as práti- cas educacionais. Dependendo da vertente paradigmática sobre a qual se apoiam certos discursos, apresentam-se diferentes modos de olhar e de entender as situ- ações pedagógicas e os respectivos saberes que as produzem. Isto é, a depender das lentes teórico-metodológicas que nos são disponibilizadas, um mesmo objeto pode ser entendido de diferentes maneiras. Nesse sentido, podem-se realizar diferentes tipos de análises, entre as quais destaca-se: as do tipo internas, que são situadas no “lado de dentro” da própria ra- cionalidade de uma área do conhecimento, e as análises do tipo externas, situadas externamente em relação ao pensamento que analisam. Já que geralmente as discussões das disciplinas dos cursos de Pedagogia são, em sua maioria, realizadas a partir do referencial da Psicologia, vamos a esse exemplo, para que se possa melhor explicar os dois tipos de análises: as internas e as externas. Tomando como foco o uso que a Pedagogia faz das teorias psicológicas, percebe-se que, na maioria dos casos, opera-se com análises do tipo internas. Vejamos o porquê. Não raramente, o campo pedagógico se vale de uma série de preceitos da Psicologia. Esses preceitos são apresentados, de forma geral, como exclusivos, A construção do projeto de pesquisa 58 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br definitivos e suficientes: foram constituídos a partir de extensas investigações que, ao colocarem a criança como objeto de observação do adulto, afirmam descrever o comportamento infantil. De forma geral, a formação pedagógica é atravessada por uma vontade de entender a criança, explicá-la, capturá-la. Na trajetória acadêmica e profissional dos professores, projeta-se a busca de descrições que expliquem as crianças em sua profundidade, a fim de encontrar elementos que permitam às professoras descobrir a melhor forma de educar as crianças. Trata-se de uma tentativa de desvendar o sujeito infantil, como se este fosse dotado de uma essência suscetível de ser descoberta e descrita. Para tanto, lança-se mão de fundamentos teóricos produzidos em especial pela Psicologia, que servem como explicações e demonstrações capazes de guiar o trabalho das professoras e dos professores. Exatamente por se tratar de conhe- cimento científico, as formulações psicológicas carregam consigo certa legitimi- dade. O que se procura, ao recorrer às fundamentações, são justificativas para a prática pedagógica e não para as explicações, vistoque estas, por si só, se bastam. A ideia de que as “verdadeiras” convicções epistemológicas não necessitam ser justificadas perpassa boa parte da formação e da prática em Pedagogia. Daí que, ao tomar os conceitos da Psicologia como verdadeiros e indiscutíveis, o campo pedagógico se situa no lado de dentro dos estudos que servem de aporte teórico para as práticas escolares; opera, portanto, com análises do tipo interna. O outro tipo de análise (a externa) supõe um modo diferenciado de exercitar o pensamento, na medida em que pretende entender determinados conceitos e práticas (e suas sedimentações) para além de essencialismos, geralmente expressos em pares de oposições binárias e tão ao modo fundamentalmente metafísico do pensamento ocidental. Em outras palavras, o segundo modo de análise implica colocar em ques- tão determinados significados transcendentais que operam como princípio e que, exatamente por serem considerados transcendentais, são vistos como legítimos e servem de justificativa para várias categorizações que se encontram naturalizadas nos discursos sobre as crianças, seu desenvolvimento e sobre as formas adequadas de educação para elas. Situar-se do lado de fora do pensamento produzido pela Psicologia, por exemplo, significa perguntar-se como e em que condições essa área construiu suas teorias. Não é saber se determinado conhecimento da Psicologia é verdadeiro ou falso, mas saber como esse conhecimento foi considerado verdadeiro ou falso em uma determinada época e por determinados grupos de pessoas. Não é negar as verdades da Psicologia, mas entender que elas foram inventadas em algum momento histórico, em conexão com aspectos econômicos, políticos, sociais, enfim, em conexão com a cultura geral de uma determinada época. Significa entender que o conhecimento produzido pela Psicologia não é alguma coisa exclusivamente dela e não é independente de outros discursos valorizados na época de sua criação. O conhecimento da Psicologia é historicamente datado e geograficamente localizado; por isso, está situado em um tempo e em um espaço em que existem outros discursos, de outras áreas, que, combinados, constituem uma lógica que acaba por regular a vida das pessoas desse contexto. O conhecimento A construção do projeto de pesquisa 59Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br produzido pela Psicologia mantém, assim, uma complexa interação com esses outros discursos considerados verdadeiros e está conectado a eles de alguma maneira. As análises do tipo externa procuram examinar a Psicologia no interior de diferentes formações discursivas. Elementos de um projeto de pesquisa A discussão sobre as análises dos tipos interna e externa foi feita neste texto no sentido de ser uma provocação, a fim de chamar a atenção das professoras e dos professores de escolas para o fato de que existem inúmeras possibilidades de questionar, pensar, estudar, analisar, problematizar e investigar as situações coti- dianas no interior da instituição escolar. No entanto, independente de as análises serem do tipo interna ou do tipo externa, a construção de um projeto de pesquisa pressupõe que o tema e a maneira como será investigado tenha importância não apenas para o próprio pesquisador, mas para a área de estudos a qual a pesquisa está vinculada. Nesse sentido, “a escolha e a delimitação de um tema de pesquisa pressupõem sua relevância não só acadêmica, mas sobretudo social. Na sociedade brasileira, marcada por tantas e tão graves contradições, a questão da relevância social dos temas de pesquisa assume então um caráter de extrema gravidade” (SEVERINO, 2000, p. 159). Situando a elaboração de um projeto de pesquisa nesse contexto, também é preciso dizer que, além da relevância acadêmica e social, o texto do projeto deverá mencionar o foco de sua problematização, situar o domínio teórico-conceitual em que se inscreve e expressar consistência na argumentação. Em relação à escrita, deve-se tomar o cuidado com a redação correta, com a organização textual e com a adequação do texto ao gênero discursivo: nesse caso, trata-se de um projeto de pesquisa e não da pesquisa em si. Portanto, é preciso atentar para que a redação não aponte já resultados definitivos, considerando que a investigação ainda será realizada e poderá fazer com que o pesquisador chegue a conclusões diferentes das hipóteses iniciais apresentadas no projeto. Consideradas todas essas observações, vejamos agora o que Severino (2000, p. 160) destaca como elementos fundamentais que deverão compor um projeto de pesquisa: título do projeto; delimitação do tema e do problema; apresentação das hipóteses; explicitação do quadro teórico; indicação dos procedimentos metodológicos e técnicos; cronograma de desenvolvimento; referências bibliográficas básicas. A construção do projeto de pesquisa 60 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Sobre os itens desse roteiro para a construção do projeto, é preciso lem- brar que não há necessidade de eles serem apresentados exatamente nessa ordem. Além disso, os itens podem ser reduzidos ou ampliados, a depender da natureza da investigação que o pesquisador se propõe a realizar. Em relação à delimitação do tema e do problema, à apresentação das hipóteses e à explicitação do quadro teórico, valem as observações feitas no início deste texto: os temas e os problemas não existem por si só, os pesquisadores é que os inventam, no decorrer da sua trajetória de formação acadêmica e profissional. O importante a salientar é que tudo no campo da Educação – tanto o que acontece dentro da escola, quanto fora dela – pode virar objeto de pesquisa. Muitos questionamentos poderão invadir o cenário de professores, a depender de seus interesses e de suas realidades, provocando neles uma sensação de instabilidade frente às certezas que eram, e em muitos casos continuam a ser, construídas e inventadas sobre a educação de crianças e jovens, com seus problemas e todas as suas possíveis soluções. Novas maneiras de olhar para os velhos temas de pesquisa são não apenas úteis como principalmente necessárias no atual panorama social, em suas mais diversas instâncias: educacional, cultural, política, econômica. Sobre a indicação dos procedimentos metodológicos e técnicos, é preciso fazer algumas observações: tal indicação refere-se às formas pelas quais a pesqui- sadora ou o pesquisador se propõe a investigar o tema, o objeto, os problemas de pesquisa que elegeram. Isto é, refere-se como a pesquisa será realizada. É impor- tante lembrar que, atualmente, aceita-se o fato de que os procedimentos de pes- quisa podem estar entrelaçados a várias formas e, ao mesmo tempo, a nenhuma em especial. Apesar disso parecer um tanto desconfortável, levando-se em conta a típica exigência que a academia faz aos pesquisadores de um rigor metodológico, hoje em dia se aceita a ideia de que critérios, procedimentos, técnicas ou métodos formalizados específicos não servem necessariamente como garantia de validade ou relevância das pesquisas. Nesse sentido, vale lembrar o que diz Feyerabend (1977, p. 457): “não há método especial que assegure o êxito ou o torne provável”. Portanto, indicar e descrever no projeto uma metodologia específica não significa que ela por si só possa assegurar o sucesso da investigação a ser realizada ou um hipotético domínio que supostamente a pesquisadora ou o pesquisador têm de seu objeto de estudo. Como dizem Grün e Costa (1996, p. 91), “somos agressivos quando nos encontramos frente aos ‘nossos’ objetos de pesquisa e desenvolvemos um certo tipo sufocante de posse e de controle em relação a eles”. Nesse mesmo sentido, Costa (1996, p. 12) diz que: É preciso criticar o jogo dereprodução de modelos tão bem instaurados pela arquitetura epistemológica da “iluminação”, que instituiu a vigilância em todos os campos, fazendo- -nos súditos de seus ditames tanto temáticos quanto metodológicos. A fragilidade intelectual e emocional que nos acomete quando temos que enfrentar as “metodologias”, em nossas investigações, é fruto do endeusamento desse tipo de pensamento a que denominamos ciência e que está impregnado de parâmetros que enquadram todos, homogeneizam tudo, definindo o certo e o errado, o bom e o mau, o falso e o verdadeiro etc. Uma observação importante: dizer que não é necessário que o pesquisador fique preso aos ditames das metodologias não significa abandonar qualquer rigor metodológico. A questão é que os próprios procedimentos metodológicos vão sendo possibilitados pelas lentes teóricas e conceituais, pelas ferramentas analíticas utilizadas na pesquisa. A construção do projeto de pesquisa 61Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Para finalizar este texto, resta dizer que o objetivo de um projeto de pesquisa é esclarecer o caminho que será percorrido pelo pesquisador em seu trabalho de investigação, ou seja, apresentar as etapas que estão programadas para serem ven- cidas, bem como os instrumentos e as estratégias a serem utilizadas. No entanto, “o projeto, em seus vários pontos, pode ser alterado no decorrer da pesquisa. Isso é normal e até positivo, uma vez que revela eventuais descobertas de dados novos e aprofundamento das ideias pelo autor” (SEVERINO, 2000, p. 163). Portanto, deve-se levar em conta que é durante o processo de construção da investigação que uma pesquisa vai se delineando com maior clareza, o que abre a possibilidade para que haja uma redefinição das questões apresentadas no projeto. 1. Releia a primeira parte do texto e aponte as condições necessárias para que o pesquisador cons- trua um projeto de pesquisa. Feito isso, pense de que forma tais condições se apresentam para você, caso queira construir um projeto, ou seja: o que você tem feito para que seja possível a construção de um projeto de pesquisa seu? 2. No texto, são apontados dois diferentes tipos de análises a partir das quais se podem realizar pesquisas na área educacional: as análises internas e as análises externas. Caracterize cada uma delas. A construção do projeto de pesquisa 62 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 3. Liste os elementos fundamentais que deverão compor um projeto de pesquisa e faça considera- ções sobre os cuidados que se deve ter na indicação das formas metodológicas. 4. Discuta com seus colegas os possíveis temas que, na sua opinião, são relevantes atualmente na área da Educação, apresentando argumentos consistentes que justifiquem a escolha dos temas. Uma referência importante para a pesquisa em educação no Brasil é o site da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação – ANPED (www.anped.org.br). Nesse site, você poderá encontrar textos que abrangem trabalhos de pesquisa na área da Educação. Faça uma visita ao site e identifique no menu a opção reuniões, na qual os textos poderão ser acessados. Escolha um texto cujo tema seja de seu interesse e faça um resumo da pesquisa escolhida. A construção do projeto de pesquisa 63Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A construção do projeto de pesquisa 64 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Pensando em construir um projeto de pesquisa As professoras estão preparadas para educar a infância inventada no século XIX – ingênua, dependente dos adultos, imatura e necessitada de proteção – enquanto suas salas de aula estão repletas de crianças do século XXI – cada vez mais independentes, desconcertantes, erotizadas, acostumadas com a instabilidade, a incerteza e a insegurança. Marisa Vorraber Costa A frase da professora Marisa Vorraber Costa, que inicia este texto, nos alerta para a importância de os professores começarem a perceber melhor as crianças e os jovens com os quais convi-vem e trabalham nas escolas. As culturas infantis e juvenis da contemporaneidade demandam outras formas de educação que correspondem aos modos de ser, falar, vestir e viver nos dias de hoje. As formas de vida de crianças, jovens e adultos são produzidas por diferentes artefatos da cultura e se manifestam também de diferentes maneiras a depender dos contextos sociais, econômicos, políticos, tecnológicos em que vivem as pessoas. Nesse sentido, os professores, por meio das práticas pedagógicas que colocam em operação nas escolas, também estão envolvidos com a construção de determinadas identidades que passam a ser assumidas por crianças e jovens. A questão é saber quem são os alunos com os quais os professores trabalham e o que as práticas escolares estão fazendo com esses alunos. Considerando que as relações estabelecidas no interior das práticas escolares agem sobre as ações dos sujeitos, sobre os modos de eles se comportarem, é preciso, então, saber como estão sendo modelados pelas práticas escolares e que relações de poder e de saber estão envolvidas na constituição tanto das crianças e dos jovens dos dias de hoje quanto dos profissionais da escola. Como já dizia Nietzsche, é preciso saber o que estamos fazendo de nós mesmos. Para quem trabalha em escola, não é difícil perceber que as práticas escolares estão se reconfigurando em função das muitas e velozes transformações pelas quais o mundo contemporâneo ocidental vem passando. Transformações relacionadas ao uso de novas tecnologias, à globalização, que alteram as antigas formas racionais de ordenação da vida social e que fazem certamente com que os sujeitos estabeleçam outra relação com o espaços e o tempo. A escola, sendo uma instituição tipicamente moderna, tem que se ajustar às mudanças e está encontrando formas para isso. A prova disso é que, apesar de toda a crise que a escola permanente- mente atravessa, ela, ainda assim, continua forte e poderosa no imaginário social como uma prática educacional que carrega o estatuto de legitimidade, ou melhor, não se trata tão somente da escola estar se ajustando às transformações. A escola e as práticas educacionais modernas sempre estiveram envolvidas na construção de um determinado tipo de sociedade. Portanto, ao mesmo tempo em que a escola se ajusta às transformações, ela mesma contribui na própria produção de outras transformações sociais. Tudo se passa num movimento de hibridização, tão forte, intenso e constante que o importante atualmente, nas pesquisas educacionais, é tentar saber de que outras maneiras as práticas escolares 65Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br estão se apresentando, sob que outras formas elas estão acontecendo, mescladas com que outras coisas, o que certamente acaba produzindo outros modos de ser que correspondam com as formas atuais de organização do mundo. Daí a necessidade dos professores atentarem às novas configurações culturais sujeitos e da própria escola: configurações que se alimentam mutuamente. Diante dessa necessidade, é preciso que os profissionais da escola se perguntem antes sobre o que estão entendendo por cultura. Para esclarecer essa questão, seria interessante conhecer o que os Estudos Culturais – uma perspectiva de pesquisa que estuda as formas culturais da sociedade – têm a dizer sobre o conceito de cultura. Estudos Culturais O referencial dos Estudos Culturais tem como principal eixo de pesquisa os aspectos culturais da sociedade contemporânea em torno do qual se movimen- tam, circularmente, as mais variadas temáticas. O campo dos Estudos Culturais (de vertente pós-estruturalista) movimenta-se no entrecruzamentode diversas disciplinas. Mais do que interdisciplinar, é um campo antidisciplinar que rejeita qualquer tipo de definição que se pretenda fixa e/ou exata. Por tudo isso, talvez a instabilidade possa ser apontada como uma de suas principais características. De acordo com Costa (2000, p. 34), “os Estudos Culturais parecem ser intensamente permeáveis às mudanças históricas, à diversidade de ênfases problemáticas em diferentes momentos e geografias, e têm se caracterizado pelo debate amplo, pela divergência e pela intervenção”1. Para essa perspectiva de pesquisa, não há um modelo a priori de mundo, uma metanarrativa a nos guiar [...], para dar um “passo engajado”, o rumo não é determinado a partir de uma suposta estrutura de fundo ou de um final feliz a ser atingido; cada passo é decidido pelo exame das condições históricas e das condições de possibilidade, todas elas condições que são deste mundo. [...] Em ambos os casos, está presente uma clara inconformidade, uma atitude explícita contra as condições do presente ou, no mínimo, desconfiada dessas condições. (VEIGA-NETO, 2000, p. 48) Nesse sentido, o campo dos Estudos Culturais coloca o poder no centro das significações e identidades culturais: esse campo não parte de um entendimento de sujeito como aquele que simplesmente realiza e organiza as suas práticas; em vez disso, entende que essas práticas – culturais, sociais, econômicas, políticas – têm a ver com a construção dos sujeitos e com a formação de suas maneiras de ser. A partir desses pressupostos, os professores que adotam a perspectiva dos Estudos Culturais para realizarem suas pesquisas podem se envolver num processo de desnaturalização de determinadas verdades referentes às práticas escolares realizadas com crianças e jovens, procurando entender que jogos de poder estão envolvidos na instituição de determinados significados, capazes de forjar certos jeitos de ser e de agir. Os Estudos Culturais entendem os processos culturais como intimamente conectados às relações sociais e envolvidos com relações de poder, de forma que 1 Para saber mais sobre ori-gem, institucionalização, formas e contexto histórico dos Estudos Culturais, seus autores e obras pioneiras e suas contribuições, bem como os principais deslocamentos operados por esse abrangente e movediço campo, entre outras coisas, sugere-se con- sultar Costa (2000) e Silva (1999a). Pensando em construir um projeto de pesquisa 66 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br a cultura, sob esse ponto de vista, deixa de ser definida como uma categoria que traduz o binarismo alta cultura – baixa cultura e passa a ser entendida de forma bem mais ampla. Veja o que alguns autores dizem sobre o conceito de cultura sob o ponto de vista dos Estudos Culturais. Conceitos de cultura Para Nelson, Treichler e Grossberg (1995, p. 14), “nas tradições dos Estudos Culturais, a cultura é entendida tanto como uma forma de vida – compreendendo ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder – quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, merca- dorias produzidas em massa, e assim por diante”. Hall (1997, p. 22) enfatiza que a cultura “penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo”. Para esse autor, o que constitui a cultura são as formas como as pessoas vivem. Ela tem a ver com os significados que são partilhados pelos sujeitos, por meio da linguagem e das práticas sociais. Por isso, é na cultura que são produzidas as iden- tidades dos sujeitos; é na cultura também que se dá a legitimação de determinados estilos de vida em detrimento de outros. De acordo com Veiga-Neto (2003, p. 6), “a cultura é central não porque ocupe um centro, uma posição única e privilegiada, mas porque perpassa tudo o que acontece nas nossas vidas e todas as representações que fazemos desses acontecimentos”. Nesse sentido, a cultura pode ser entendida como “uma luta entre modos de vida diferentes” (ESCOSTEGUY, 1999, p. 141), como “um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciadas de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla, [...] um campo contestado de significação” (SILVA, 1999b, p. 133-134). Escola e produção cultural Considerando tais conceitos de cultura, logo percebe-se que a escola é uma instituição cultural, pois no interior dela se dão, diariamente, tentativas de sedução e imposição de determinados significados para, ao menos num primeiro momento, servir como garantia de sucesso das práticas escolares; ou, em outras palavras, para que os frequentadores da escola interiorizem certos modos de agir e passem a aceitar naturalmente determinadas formas de ser, de estar, de se comportar. Se assim for, a instituição escolar constitui um ambiente de produção e circulação de significados e um território de concretização das lutas, independente de elas acontecerem também em outros locais. Tais significados, quando observados fora da escola, podem ser tanto intensificados quanto distorcidos; podem ser tomados pelos sujeitos como bons ou como ruins; o importante é que eles circulam na cultura, mediada por relações de poder, fazendo com que os sujeitos possam, de um jeito ou de outro, dar sentido às coisas. Pensando em construir um projeto de pesquisa 67Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Dessa forma, a escola pode ser percebida como um local onde se dá a produção de saberes e, conjuntamente, de poderes; como um local “onde se dão violentos choques teóricos e práticos em torno de infinitas questões culturais” (VEIGA-NETO, 2003, p. 5). Trata-se de um local em que diferentes “tribos”, que frequentam esse mesmo espaço, concorrem, ainda que de uma forma um tanto naturalizada, à imposição de seus valores, suas certezas, suas crenças, suas normas, seus códigos, enfim, suas verdades2. Considerando-se isso, pode-se dizer que quase tudo dentro do espaço de uma escola é cultural, dado o contínuo movimento de luta intensa em torno dos mais diversos significados, produzidos por (ao mesmo tempo em que produzem) relações de poder. Referindo-se aos Estudos Culturais, Johnson (1999, p. 25) esclarece que eles “dizem respeito às formas históricas da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, [...] ao lado subjetivo das relações sociais”; e acrescenta que “a subjetividade não é dada, mas produzida, constituindo, portanto, o objeto da análise e não sua premissa ou seu ponto de partida” (JOHNSON, 1999, p. 27). Salienta, também, que “dada a definição de cultura [assumida pelos Estudos Culturais], todas as práticas sociais podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, podem ser examinadas pelo trabalho que elas fazem – subjetivamente” (JOHNSON, 1999, p. 29). Enfatiza, ainda, que os Estudos Culturais estão preocupados em “reconstituir, em estudos concretos, as formas por meio das quais os seres humanos ‘vivem’, tornam-se conscientes e se sustentam subjetivamente” (JOHNSON, 1999, p. 30) e que “estão interessados, em primeiro lugar, e acima de tudo, na produção e na organização social das formas culturais” (JOHNSON, 1999, p. 54). Continuando, o mesmo autor afirma: “é porque sabemos que não estamos no controle de nossas próprias subjetividades que precisamos identificar suas formas” (JOHNSON, 1999, p. 72). Nesse sentido, verifica-se a importância e a relevância da utilização desse referencial de pesquisa, à medida que os professores, ao pesquisarem seu cotidiano profissional, estão situados no interior da escola, que é por si só um ambiente cultural carregado de determinadas formas subjetivas de viver,de compartilhar experiências, de ensinar, de aprender; enfim, de “pedagogizar” alunos, professores, dirigentes e pessoas da comunidade escolar em geral. Essas formas subjetivas provavelmente estão coladas a uma série de combi- nações que fazem a vida cotidiana de uma escola ser extremamente “intertextual”; coladas a diferentes histórias, interesses, localizações sociais, enfim, ao entrelaça- mento de diferentes mundos privados, que acabam por operar determinadas tran- sações entre as formas subjetivas produzidas na escola, num jogo sutil de cruza- mentos, intersecções e intercâmbios entre essas formas e os vários elementos que as tornam possível. “Nenhuma forma subjetiva atua, jamais, por conta própria” (JOHNSON, 1999, p. 88). Estes dinâmicos e contínuos movimentos de trânsito dos grupos em uma e outra forma subjetiva, produzindo-as, ao mesmo tempo em que são por elas produzidos, constituem-se em um dos muitos mecanismos responsáveis por nos tornar aquilo que somos. A partir desses entendimentos, faz-se possível às professoras e aos profes- sores pesquisarem de que modo as crianças e os jovens de hoje que frequentam as 2 É claro que não se pode generalizar, ou seja, as verdades não são as mesmas para todas as pessoas, ainda que pertençam a um mesmo grupo. Valores, certezas, crenças, normas, códigos são circulantes, assim como também as pessoas circulam entre as “tribos”. Apenas salienta-se que, na luta em torno da significação, há uma aproximação das pessoas em função de uma identificação no que diz respeito, entre outras coisas, a interesses e necessidades comuns, for- mando determi nados agru- pamentos, ainda que eles não constituam uma unidade indissolúvel e fixa. Pensando em construir um projeto de pesquisa 68 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br suas escolas estão sendo subjetivados dentro desses espaços, quais os dispositivos que estão imbricados nessa subjetivação infantil, que efeitos têm esse processo de constituição de determinadas subjetividades. Essa constituição refere-se ao enquadramento das crianças e dos jovens – a partir principalmente do disciplina- mento de seus corpos – num determinado código de conduta e de comportamento considerado “normal” e “mais adequado” para que se possa partilhar das experi- ências oferecidas pela escola e também fora dela. Se os profissionais da escola começarem a pensar nas formas culturais da própria instituição e dos seus alunos, utilizando-se do referencial dos Estudos Culturais ou de algum outro referencial analítico que dê conta de problematizar a constituição das subjetividades contemporâneas, abre-se a possibilidade de as professoras e os professores passarem a revisitar algumas de suas verdades; a analisarem os detalhes, as sutilezas, as minúcias, as astúcias e os arranjos das diversas situações que envolvem a vida da escola e seus frequentadores; questio- narem, de outros modos, algumas de suas certezas para, assim quem sabe, dar vez ao impossível em suas formas de ver, pensar e agir no mundo. 1. Com base nas informações apresentadas no texto, faça considerações sobre o referencial dos Estudos Culturais em Educação. 2. Explique o entendimento que você tem do conceito de cultura. Pensando em construir um projeto de pesquisa 69Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 3. Vários autores afirmam que a escola é uma instituição cultural onde se dá a produção de subje- tividades. Você concorda com essa afirmação? Justifique. 4. Em grupos, discutam sobre a importância de os professores estarem atentos às novas configu- rações culturais dos alunos e das escolas. Escrevam um pequeno texto que apresente as ideias discutidas. COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Estudos Culturais em Educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre: UFRGS, 2000. Esse livro é constituído de dez estudos realizados por pesquisadores da Linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os textos que compõem o livro partem do entendimento comum de que os dispositivos e as práticas culturais – que constituem as concepções contemporâneas sobre o mundo e sobre as coisas – configuram uma política cultural com amplas e importantes implicações para a educação. Pensando em construir um projeto de pesquisa 70 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Referências ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. v. 1, 2 e 3. BARRETO, Ângela. A educação infantil no contexto das políticas públicas. Revista Brasileira de Educação, n. 24, set./dez, 2003, p. 53-65. BARROS, Célia. Pontos de Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: Ática, 1995. BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. 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