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Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 O Nepotismo no Brasil e alguns conceitos de Max Weber Ariella Silva Araujo* Resumo: O presente artigo tem como objetivo explorar, de forma muito breve, a problemática do nepotismo e sua prática, enfocando os cargos de livre nomeação. Escolheu-se esse tema porque, em 2007, a sociedade brasileira assistiu a inúmeros debates acerca da legalidade e da legitimidade das nomeações de parentes para cargos de confiança no Poder Judiciário. Procu- rou-se também relacionar esta questão com temáticas weberianas, como a burocratização e a racionalização. Palavras-chave: Max Weber, Nepotismo, Burocratização, Racionalização, Meritocracia. Abstract: This article aims to explore, very briefly, the issue of nepotism and its practice, fo- cusing on the roles of free entitlement. This issue was chosen because, in 2007, Brazilian soci- ety watched several discussions about legality and legitimacy of entitlement of relatives to trust positions in the Judiciary. We also try to relate this issue to weberian topics such as bu- reaucratization and racionalization. Key words: Max Weber, Nepotism, Bureaucratization, Racionalization, Meritocracy. . * Graduanda em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp) campus Araraquara Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 102 Introdução Diante do contexto de globalização e do avanço cada vez mais desenfreado do Ca- pitalismo, o conceito de racionalização e burocratização de Weber constitui-se como processo-chave para a compreensão da estrutura e do destino da sociedade moder- na. (KRAMER, 2000). A partir dessa idéia, podemos perceber o quanto é vigente o pensamento de Max Weber, principalmente quando o relacio- namos com questões contemporâneas. Com este intuito, empreenderemos, para este trabalho, um exercício, que se concen- trará no conceito weberiano de “burocraci- a” e sua relação com o nepotismo, prática corrente na administração pública brasilei- ra. Em primeiro lugar, faremos uma breve definição do termo burocracia, tantas vezes utilizado na linguagem corrente, o que a- caba por expressar o oposto do definido por Weber e pelos juristas alemães de sua época. Em seguida faremos uma breve elaboração do que seja nepotismo, prática histórica que teve sua importância e signi- ficado alterado ao longo do tempo. A relação possível entre os dois conceitos é de fácil percepção: o processo de burocra- tização engendra uma crescente racionali- zação dos órgãos públicos e privados, vi- sando à eficiência – marcada pela impes- soalidade e pela cultura meritocrática – e, no caso das empresas, visando também ao lucro. Destarte, a prática do nepotismo, sendo uma indicação de parentes ou co- nhecidos, freqüentemente por favoreci- mento, abalando o critério meritocrático e põe em risco um dos princípios fundamen- tais da burocracia, sua eficiência. Além disso, muitas vezes o nepotismo abre espa- ço a suspeitas de corrupção, ferindo o prin- cípio da impessoalidade e da distinção en- tre o público e o privado, outras duas mar- cas essenciais da administração burocráti- ca. Em vista disso, faz-se necessário discorrer sobre esses conceitos de Weber e procurar conferir atualidade a essas temáticas. Des- sa maneira, vamos explorar a burocratiza- ção do Estado e o caso do nepotismo em funções públicas, mais especificamente nos cargos de livre nomeação, pontuando al- guns casos da realidade brasileira recente, pelos quais a discussão a respeito do nepo- tismo na administração pública veio à tona, seja abordando o aspecto da moralidade, seja abordando a questão da eficiência. 1 A racionalização e burocratização em Weber O conceito de racionalização, para Weber, em linhas gerais, diz respeito à crescente submissão das mais diversas esferas da vida pública e privada, inclusive, das rela- ções sociais, a dominação racional. Estas esferas passariam a ser regidas por critérios como: calculabilidade, impessoalidade, estabilidade, uniformidade, que são carac- terísticas típicas do formalismo burocrático sob o regime de dominação que ele tipifi- cou como racional-legal. (WEBER, 1999) Foi extremamente importante para o de- senvolvimento do capitalismo esse proces- so de racionalização, porque pressupôs maior eficiência e maior lucratividade. Quanto mais avançado o Capitalismo, mais avança a racionalização da vida, e mais avança a burocracia. 1.1 A gênese da racionalização Weber identifica a gênese da racionaliza- ção ocidental nas religiões mundiais e de- dica um estudo sério a essa temática. Em A Ética protestante e o espírito do Capitalismo, emerge essa questão e aflora a figura do puritano, calvinista, como pre- cursor do racionalismo. Este, por possuir um estilo de vida metódico, racional, voca- cional — marca do ascetismo protestante — propiciou experiências ao Ocidente não intencionais. Na medida em que o empre- endedor puritano atingia um progresso material, que tinha por finalidade buscar em seu trabalho uma predestinação à bem- Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 103 aventurança eterna, acabou por se distanci- ar das motivações religiosas originais no momento em que “desmagificava” ou “de- sencantava a vida”, com base nas conquis- tas da ciência e da técnica. (KRAMER, 2000) Para Weber, a expressão máxima desse processo desencadeado pelo ascetismo que escapara do convento para aprisionar o mundo na prisão de ferro do utilitarismo foi a burocratização da sociedade moderna. ‘O desenvolvimento de uma administração governamental e de um sistema legal ra- cionalizados foi, juntamente como cresci- mento da empresa econômica capitalista, o foco maior da burocratização. (KRAMER, 2000, p.171) 1.2 A burocratização A burocracia — expressão formal do do- mínio racional, própria do Estado e da em- presa modernos — nas formulações dos tipos puros de dominação de Weber, domi- nação carismática, tradicional e racional- legal, é um tipo ideal de organização ad- ministrativa da dominação legal. Mas antes de adentrarmos rigorosamente nesse conceito, é preciso pontuar esses tipos puros de dominação descritos por Weber em sua obra Economia e Sociedade. Weber entende Dominação como uma forma de poder, que não se baseia na força, mas sim na legitimidade que possui o indi- víduo ou grupo dominante para exigir e obter obediência dos dominados. (WE- BER, 1999) A partir desse conceito de “dominação”, Weber define (já mencionados) a existên- cia de três tipos legítimos de dominação: a carismática, em que a legitimidade se funda no carisma do líder e nas qualidades excepcionais que lhe são atribuídas, e em que a administração se compõe de pessoas indicadas por ele mesmo, de sua confiança; a dominação tradicional, em que a influ- ência e obediência dos dominados se ba- seiam no princípio da tradição, e em que o aparelho administrativo pode apresentar fortes traços patrimoniais ou feudais; a dominação racional-legal, que tem como forma administrativa um aparelho burocrá- tico, hierarquizado e baseado em normas jurídicas bem definidas. Mas antes de tudo, é preciso dizer que a definição do termo burocracia difere muito do uso popular que se faz dele, e isso ocor- re historicamente. O termo é utilizado na Europa a partir do fim do século XVIII, se referindo ao poder dos funcionários públi- cos, e depoisseu sentido se modifica, po- rém ainda mantendo a conotação negativa. (BOBBIO, 1986) No século XIX, o vocábulo é utilizado [...] para atacar o formalismo, a altivez e o espírito corporativo da administra- ção pública nos regimes autoritários... Este uso do termo também é aquele mormente se institucionalizou na lin- guagem comum e chegou aos nossos dias para indicar criticamente a prolife- ração de normas e regulamentos, o ri- tualismo, a falta de iniciativa, o des- perdício de recursos, em suma, a inefi- ciência das grandes organizações pú- blicas e privadas. (BOBBIO, 1986, p. 124) Logo o sentido atribuído ao termo, em uma conceituação técnica, feita por juristas a- lemães no decorrer do século XIX, difere totalmente do sentido popular que ele pos- suía no início do referido século: ao lhe atribuir o sentido de uma organização jurí- dica e técnicamente racional, a burocracia como forma de gestão passa a ser entendi- da como o método mais eficiente de admi- nistração. Passa a ser caracterizada dessa forma, sobretudo, por possuir um amplo aspecto técnico, encerrando como instru- mento de superioridade o “saber profis- sional especializado”. Isto ocorre por con- ter mecanismos de ingresso e promoção aos cargos mais altos da escala hierárquica, o que se faz, entre outras coisas, através de uma “profissionalização”. (SAINT- PIERRE, 2004) Para ilustrar o quanto a burocracia foi a- pontada como uma forma superior de ad- Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 104 ministração, Weber discorre sobre os mo- tivos por que ela suplantou todas as outras formas de administração, fazendo, a partir disso, uma interessante analogia entre a produção mecânica e a administração pú- blica, o que vale ao Estado, até nos dias de hoje, o apelido de “máquina pública”: A razão decisiva do avanço da organi- zação burocrática sempre foi a sua su- perioridade puramente técnica sobre qualquer outra forma. A relação entre um mecanismo burocrático plenamente desenvolvido e as outras formas é aná- loga à relação entre uma máquina e os métodos não mecânicos de produção de bens. Precisão, rapidez, univocida- de, conhecimento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais al- cançam o ótimo numa administração rigorosamente burocrática (especial- mente monocrática) exercida por fun- cionários individuais treinados, em comparação a todas as formas colegi- ais ou exercidas como atividade hono- rária ou acessória. (WEBER, 1999, p.212) É nesta matriz de pensamento que Weber se apóia para construir seu conceito típico de dominação legal. Atribui à burocracia as seguintes características: • Autoridade administrativa circunscrita por leis e normas devidamente regulamentadas e fixas; • Hierarquia rigorosa com base no princípio da unidade de comando, com um dirigente colocado em seu vértice; • O funcionário é um servidor do Estado, e não do soberano; • “O cumprimento das obrigações é atribuído em dinheiro, com salários fixos regulados primeiramente em relação à hierarquia administrativa, depois conforme a responsabilidade do cargo e, em geral, segundo o princípio do ‘decoro estamental’.” (SAINT-PIERRE, 2004, p.121); • Distinção entre o público e o privado: os recursos e documentos do Estado não se confundem com os de seus funcionários; os documentos oficiais são dispostos em atas e armazenados. Os meios materiais para o trabalho burocrático (instalações, equipamentos, custos de serviços) são de responsabilidade do Estado. O funcionário participa na execução objetiva de sua função. A incorporação ao cargo público exige do funcionário uma formação específica, téc- nica, e sua “[...] seleção se realiza visando à classificação profissional que fundamen- ta sua nomeação. Pode ser feito por meio de provas de proficiência ou apresentando diplomas que certifiquem a capacitação do candidato para o cargo.” (Ibid, p.121); • O cargo exercido pelo funcionário é a sua profissão; • A burocracia possui como exigência crescente, à medida que se desenvolve, a necessidade do desenvolvimento de uma economia monetária, por várias razões, mas principalmente por questões que lhe propicie seu auto-financiamento; • A ação do Estado, através de seus funcionários, deve ser feita por meio de “regras calculáveis”. A impessoalidade deve marcar as relações dos burocratas entre si e com o público em geral. Depois da apresentação de algumas carac- terísticas da burocracia, vale ressaltar que as tipologias de Weber constituem-se como pontos de partida para se realizar análises de qualquer caso real, e, como modelo de análise, evidentemente, não se encaixam perfeitamente na realidade, quando trans- postos. Os tipos ideais misturam-se, com- binam-se entre si, sendo muito raro, salvo em alguns casos, encontrar exemplos reais que correspondam exatamente a uma des- sas tipologias. Dito isto, a burocracia encerra um processo que, quando instalado, torna-se imprescin- dível tanto para dominantes quanto para dominados. Citando Weber, novamente: Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 105 Onde quer que a burocratização da administração tenha sido levada con- seqüentemente a cabo, cria-se uma forma praticamente inquebrantável das relações de dominação. O funcionário individual não pode desprender-se do aparato do qual faz parte... está enca- deado à sua atividade com toda sua e- xistência material e ideal... E por tudo isto está, sobretudo aferrado à comuni- dade de interesses de todos os funcio- nários integrados neste mecanismo que querem a continuidade de seu funcio- namento e que persista a dominação exercida na forma de relação associati- vas. Os dominados, por sua vez, não podem nem prescindir de um aparato de dominação burocrático, uma vez e- xistente, nem substituí-lo, porque este se baseia numa síntese bem-planejada de instrução específica, especialização técnica com divisão do trabalho e fir- me preparo para exercer determinadas funções habituais e dominadas com destreza. Se este aparato suspende o trabalho ou é forçado a fazê-lo, a con- seqüência é um caos, sendo difícil a ta- refa de improvisar uma instituição substitutiva, a partir dos dominados, para vencê-lo. (WEBER, 1999, p.222) Para concluir esta seção, vale salientar que Weber, a partir de tudo isso, organiza uma importante idéia que é expressa através do conceito de nivelamento social. Este se torna muito importante para entendermos a questão do nepotismo. Para Weber, a buro- cracia conduziria à igualdade de condições, “[...] inclusive a ponto de garantir a seleção e a ascensão segundo critérios outros que não a ascendência aristocrática ou as prefe- rências pessoais dos governantes.” (KRA- MER, 2000, p.172) Outro ponto muito importante que pode- mos ressaltar de tudo isso, dá-se por duas conseqüências trágicas, do ponto de vista de Weber. A dominação burocrática acar- retaria, pois, de um lado, maior precisão nas provisões, garantido maior eficiência administrativa, por outro, haveria a perda da liberdade, tanto dos dominados, quanto dos próprios executores do quadro admi- nistrativo, ou seja, os ‘funcionários’. (SA- INT-PIERRE, 2004) 2 Tipos de Administração pública No século XIX, surge um tipo de adminis- tração pública baseada na burocracia, em substituição às formas patrimonialistas de administração do Estado. Patrimonialismo significa a incapacidade ou a relutância de o príncipe distinguir o patrimônio públicodos seus bens privados. A administração do Estado pré-capitalista, ou “politicamen- te orientado”, nas palavras de Faoro, era uma administração do tipo patrimonialista. Com o surgimento do Capitalismo e da Democracia, estabeleceu-se uma distinção clara entre res-pública e bens privados. Dessa forma, Weber, enfatiza a superiori- dade da autoridade racional-legal sobre o poder patrimonialista. (WEBER, 1999) O capitalismo dito moderno, racional e industrial, sucedeu o capitalismo político, em muitas nações. No caso do Brasil, isso não ocorre. Molda-se “[...] a realidade esta- tal, sobrevivendo e incorporando na sobre- vivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a proprie- dade sob garantia das instituições.” (FAO- RO, 1979, p.733) Em outras palavras, isso significa que o Brasil não migrou do capitalismo político —legitimado pelo tradicionalismo — para o capitalismo moderno, mas sim, incorpo- rou deste último a técnica, as máquinas, as empresas, mantendo “[...] junto ao foco superior de poder, do quadro administrati- vo, o estamento que, de aristocrático, se burocratiza progressivamente, em mu- dança de acomodação e não estrutural.” (Ibid., p.736, grifo nosso) Como o domínio tradicional se configurava na administração patrimonialista, quando aparece o estado-maior de comando do chefe, que se estende sobre o território ao qual pertence, este acaba por subordinar muitas unidades políticas. Sem um quadro Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 106 administrativo “[...] a chefia dispersa as- sume caráter patriarcal, identificável no mando do fazendeiro, do senhor de enge- nho e nos coronéis.” (FAORO, 1979, p.736) Logo esse tipo de domínio patrimonial, constituído pelo estamento — elite políti- ca, ou estrato social, com efetivo comando político, numa ordem aristocrática — a- propria-se de oportunidades econômicas para usufruir de bens, e de concessões de cargos públicos, não separando o setor público do setor privado. Isto muda de figura com o aperfeiçoamento da estrutura, baseado nas competências fixas, e com a divisão de poderes, o que possibilitou a separação do setor fiscal do setor pessoal. (Id.,1979). Dessa maneira, a administração burocrática passa a ser vista com um meio de combater a corrupção e nepotismo — dois traços inerentes à administração patrimonialista — por conter como instrumento os princí- pios de um serviço público profissional e de um sistema administrativo impessoal, formal e racional. Entretanto, com o passar do tempo, à me- dida que o Estado ampliava suas funções sociais e econômicas, as tarefas da admi- nistração pública tornavam-se cada vez mais complexas e, por sua vez, passaram a figurar uma burocracia rigidamente opera- da por especialistas profissionais. Logo esse tipo de estratégia adotada pela admi- nistração burocrática mostrou-se insufici- ente. “Considerava-se, porém, que a apli- cação incontrolada do principio burocráti- co punha em risco da capacidade dos go- vernos em responder aos desafios da mu- dança social, da concorrência econômica e da rivalidade político-militar entre os paí- ses” (KRAMER, 2000, p.180) Talvez esse tipo de administração fizesse mais sentido no Estado Liberal do século XIX, devido a sua menor complexidade, pois era um Estado pequeno, que se dedi- cava à proteção dos direitos de proprieda- de; necessitava apenas de um Parlamento para definir suas leis e de um sistema judi- ciário para cumprir-las. Assim, a adminis- tração burocrática talvez fosse eficiente na tentativa de evitar a corrupção e o nepo- tismo, contudo, para o Estado Moderno, era lenta, cara e, em muitos casos, inefici- ente. 3 O Nepotismo Nepotismo, em linhas gerais, significa “[...] todo favorecimento derivado dos vín- culos de parentesco. Favorecimento é um termo que se refere às decisões que não se baseiam exclusivamente em critérios meri- tocráticos.” (JUNIOR, 2006) A partir disso, pode-se perceber que o ne- potismo é uma prática que se encontra nas mais diversas manifestações culturais, des- de tribos africanas, castas indianas e clãs chineses e até na civilização cristã ociden- tal, que é a que mais nos interessa. (Id, 2006) Embora esse tipo de prática esteja presente em várias formas de cultura, no Ocidente apresenta-se distinta. Nos demais tipos, o indivíduo não existe separado do grupo de família e do grupo de parentesco, coisa que não acontece com o nepotismo ocidental. Este, “[...] apesar de emergir do mesmo complexo institucional, valores e práticas, foi muito mais individualista que seus pre- cursores antigos e clássicos." (BELLOW, 2003, p.158 apud JUNIOR, 2006) Essa diferenciação se deu, no Ocidente, por conta do fortalecimento da autonomia individual, em detrimento da coesão do grupo de parentesco. Isso foi conseqüência do desenvolvimento do Estado, Igreja e mercado — e também do capitalismo e sua necessidade de racionalização — que atua- ram de forma decisiva no enfraquecimento dos grupos tribais e dos vínculos primordi- ais. (JUNIOR, 2006) 3.1 Antecedentes do Nepotismo O substantivo nepotismo nasceu na Igreja Católica e teve como tempos áureos os Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 107 séculos XVI-XVII na Europa. Designava a autoridade que os sobrinhos dos papas e- xerciam na administração eclesiástica, mesmo sem a ela pertencerem. Com o tempo, o termo passou a representar favori- tismo na contratação de parentes dos che- fes de poder. Esse quadro mudou, especificamente, quando as relações sociais feudais estavam ruindo, principalmente por conta do desen- volvimento da burocracia dos Estados Mo- dernos. Neste cenário [...] a ambição dinástica prosperou e, com ela, o nepotismo irrestrito. Exa- tamente nesse período, o nepotismo começou a ganhar as conotações nega- tivas que se associam à prática, pois a distinção entre esfera pública e privada foi ganhando corpo. A história euro- péia, doravante, passa a ser o conflito permanente entre as forças da solidari- edade nepotista e sua tríade rival: o in- dividualismo, a eficiência de mercado e a ideologia meritocrática. (JUNIOR, 2006) Com o desenvolvimento da democracia moderna, a ideologia meritocrática tornou- se preponderante. As prerrogativas associ- adas à consangüinidade foram perdendo espaço dentro do sistema representativo. “Como o antigo nepotismo se caracteriza [...] por atribuir direitos independentes do mérito [...], o resultado foi a ampliação do estigma do nepotismo à medida que os valores meritocráticos se alastravam pelas sociedades.” (JUNIOR, 2006) Daí a negatividade associada à prática do nepotismo, principalmente por estar asso- ciado a não eficiência, pois muitos são designados para certas funções sem, no entanto, possuir qualificações pra exercê- las. Esse ponto é extremamente central nos escritos de Weber, que ao caracterizar a figura do burocrata, expressa que ele deva possuir um treinamento altamente especia- lizado e completo e deva ascender aos car- gos de acordo com seus méritos. Logo a ocupação de um cargo por um burocrata constitui a sua profissão. (WEBER, 1999) Porém, nos Estados Unidos, surge um tipo de nepotismo, o nepotismo meritocrático. O nepotismo do sistema social norte- americano concilia um impulso biológico – promover os seus descendentes, apoiando- se na teoria da sociobiologia, que adverte que o nepotismo é natural e que a prática existe porque está inscritaem nossos genes — e um valor moral que lhe é antagônico: o sistema de mérito. Diferente daqui, lá essa prática não assume uma conotação pejorativa, pois é um nepo- tismo que resulta do bom desempenho e mérito dos descendentes, e não está apenas embasada em relações de parentesco. (JU- NIOR, 2006) 3.2 O Nepotismo no Brasil Voltando a atenção, agora, para o Brasil, podemos perceber que a prática do nepo- tismo é algo tradicional, pois possui seus antecedentes na administração patrimonia- lista. Ao contrário do que preconiza We- ber, que o funcionário deve ascender ao cargo por conta de alguns princípios como o mérito e a especialização, no Brasil, o quadro administrativo do estado patrimo- nialista, composto por aristocrátas, apenas burocratiza-se, não atendendo a alguns critérios como calculabilidade, impessoali- dade, mérito, especialização. Isso se torna mais evidente quando nos deparamos com a problemática atual dos cargos ditos de “confiança” ou de livre-nomeação, que se constituem em práticas freqüentes, princi- palmente, nos setores públicos. Nesse âmbito, podemos perceber duas ten- dências: há aqueles que concebem essa prática como um atraso de uma adminis- tração com fortíssimos traços patrimoniais, burocráticos; e há aqueles que possuem uma visão alternativa, não fugindo dos argumentos do nepotismo meritocrático, segundo a qual não há problema em ter parentes empregados se eles estão traba- lhando como qualquer outro funcioná- rio. (JUNIOR, 2006) Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 108 Justifica-se ainda mais este último tipo de argumento quando se trata da contratação para cargos de confiança. Para eles, se são de confiança, quem mais, além de seus parentes, seria mais apto a exercer tal fun- ção? Este tipo de argumento fere o concei- to de impessoalidade dos funcionários bu- rocráticos em Weber. (WEBER, 1999) Essa questão, atualmente, foi alvo de deba- te, depois que O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, no final de 2005, a resolução nº 7 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que impede a contratação de paren- tes de magistrados até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça [...] é composto por representantes do Poder Judiciário, do Ministério Públi- co, da classe dos advogados e, por fim, de dois representantes da sociedade, escolhidos um pelo Senado Federal e outro pela Câmara dos Deputados, to- talizando quinze membros, os quais, pela pluralidade de origem, dão ao Conselho um ar amplamente democrá- tico. Compete-lhe, resumidamente, e- xercer o controle da atuação adminis- trativa e financeira do Poder Judiciário, adotando providências para que a lei seja cumprida, além de zelar para que os juízes cumpram com seus deveres funcionais, podendo inclusive receber e conhecer reclamações contra mem- bros do Judiciário, representar ao Mi- nistério Público nos casos de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade e rever os proces- sos disciplinares de magistrados [...] (OLIVEIRA JUNIOR, 2005) Apesar dessa resolução do CNJ, já havia um dispositivo constitucional a respeito do assunto. Na Constituição de 1988, em seu Capítulo VII, que trata da Administração Pública, já há indicações que, segundo interpretações de muitos juristas, definem a irregularidade deste tipo de prática. No entanto, por não haver lei específica que regulamente o assunto nos poderes Legis- lativo e Executivo (a resolução do CNJ só é válida para o Judiciário), muitos políticos se valem dessa brecha jurídica para indicar parentes e/ou pessoas para assumir os car- gos de livre nomeação, sendo que muitos casos não possuem qualificação para de- sempenhar tal função. Eis abaixo o artigo 37, em que podemos ver grande semelhança com os escritos de Weber, ao encontrarmos critérios como “impessoalidade”, “eficiência”, além da expressão “moralidade”, que sugere ser prática imoral o uso do Estado para fins pessoais: Art. 37. A administração pública di- reta e indireta de qualquer dos Pode- res da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impes- soalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...] (Constituição da Re- pública Federativa do Brasil de 1988) Os ministros entenderam que a vedação deveria ser estendida ao Executivo e ao Legislativo. Assim, parentes até terceiro grau, consangüíneos ou afins, de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores estão vetados para cargos de confiança, atingindo cunha- dos, sobrinhos, bisnetos e até bisavós. Mesmo diante de tudo isso, em 2005, Se- verino Cavalcanti (PP-PE), quando partici- pou da posse de seu filho, José Maurício Valladão Cavalcanti, na Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abaste- cimento em Pernambuco, não poupou es- forços em defender a prática do nepotismo, ao afirmar: "Essa história de nepotismo é coisa para fracassados e derrotados que não souberam criar seus filhos. Eu criei bem os meus filhos, que têm universidade, e agora estou indicando José Maurício" (MOREIRA, 2005) Em um acontecimento ainda mais recente, temos o caso da Agência Nacional de Avi- ação Civil (Anac). Instaurada uma comis- são parlamentar de inquérito, sob o título de apagão aéreo, a agência é acusada de conceder linhas em excesso às companhias aéreas para operação no Aeroporto de Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178 109 Congonhas, em São Paulo. Diante da crise, críticas foram endereçadas ao até então presidente da Anac, o Sr. Milton Zuanazzi. Este fora interpelado por um dos parlamen- tares na CPI do apagão aéreo — transmiti- da pela TV Senado, em 25 de julho de 2007 — sobre se ele possuía qualificações para exercer o cargo. Depois de muito al- voroço, chega a responder que fora nome- ado para exercer a função de presidente da Anac sem, no entanto, possuir a especiali- zação necessária para tal fim. Logo, em discursos como este, podemos perceber que a prática do nepotismo, agora sob nova justificativa, a do mérito, ainda é prepon- derante em nossa sociedade. Conclusão De uma forma muito breve, procuramos explorar a questão do nepotismo e sua prá- tica, principalmente no momento em que a sociedade brasileira assiste às disputas em torno da legalidade e da legitimidade das nomeações de parentes para cargos de con- fiança no Poder Judiciário, em que algu- mas Assembléias Legislativas aprovam projetos proibindo a contratação de paren- tes na administração pública (Rio de Janei- ro e Paraná foram os primeiros), em que a discussão em torno do tema vai ganhando dimensões mais públicas que em qualquer outro período de nossa história. Procura- mos também relacionar esta questão com temáticas weberianas, como a burocratiza- ção. Fica evidente, em Weber, a diferenciação social crescente das sociedades modernas, ao apresentarem uma clara tendência de separar e reduzir vínculos de parentesco em todas as esferas sociais, como a políti- ca, a economia e a religião. Contudo, atu- almente, esta prática ainda não assume proporções significativas. Há uma discussão de que este tipo de prá- tica, tão em voga, não é compatível com um Estado Moderno, cuja manutenção exigiria funcionários de carreiras, estrita- mente comprometidos com o princípio da impessoalidade. Contudo o problema não se apresenta tão simplista assim, pois há uma tendência em se opor àquele que foi indicado, e não tanto ao nepotismo ou ao nepotista (JUNIOR, 2006). A oposição ao indicado acirra-sequando este não possui qualificações para desempenhar tal função. Logo, quando não se verifica isso, parece que há uma tendên- cia em aceitar a prática. Mesmo assim, essa aceitação por parte da sociedade parece estar com os dias contatos. Referências BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, e Gianfrances- co Pasquino. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2a edição, 1986. BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitu- cional nº 19, de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao /Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 3 dez.2007 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. Ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1979, p.733-750. JUNIOR, Felix Garcia Lopez. A meritocracia pos- sível. Sociedade e Estado, Brasília, n.3, set./dez.2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0102- 69922006000300011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acessado em: 11 nov.2007 KRAMER, Paulo. Alexis de Tocqueville e Max Weber: respostas políticas ao individualismo e ao desencantamento na sociedade moderna. In: SOU- ZA, Jessé (Org). 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