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José William Vesentini O ensino da Geografia e as mudanças recentes no espaço geográfico mundial 2a edição ampliada e atualizada Com encarte a cores: três mapas atualizados da ex-URSS, da Europa e do mundo. EDITORA ÁTICA, 1992 José William Vesentini Professor doutor do Depar tamento de Geografia da U S P - F F L C H Vár ios anos de experiência c o m o professor do ensino público e particular de I °. e 2° grau A u t o r dos livros: A Capital da Geopolítica, Sociedade e Espaço, firasil - Sociedade e Espaço e Geografia Crítica (4 vo lumes, em co-autoria c o m Vânia Vlach) C o o r d e n a d o r da série paradidática "Viagem pela Geografia", da Editora Ática 2a. edição ampliada e atualizada, 1992 editora atica I. Introdução Questões que surgem Objetivo deste folheto Vivemos num período revolucionário I I . A crise do "mundo socialista" A perestroika: seus objetivos e dilemas O fim da perestroika e da União Soviética O golpe de agosto O problema das repúblicas A economia planificada e seus problemas O problema da burocratização O "modelo soviético" e seu ocaso III. A nova divisão internacional do trabalho IV. A nova ordem geopolítica mundial A ascensão e queda das grandes potências O novo papel da O N U V. A redescoberta da complexidade do mundo V I . Sugestões de leitura e de atividades didáticas No início de 1991, elaboramos um fo- lheto que destacava as transformações re- centes e importantes no espaço geográfico mundial. Ele resultou de um pedido de pro- fessores de Geografia por ocasião de um curso de reciclagem que havíamos ministrado. De fato, a velocidade das mudanças no cenário internacional ocorridas nos últimos anos foi enorme, fato que desatualizou prati- camente todos os manuais e atlas geográficos elaborados até aquela data. Nos útimos anos, especialmente em 1989, em 1990 e também em 1991, enormes trans- formações ocorreram no espaço mundial. A perestroika na (ex-) União Sovié t ica - e o seu final em agosto de 1991, com todas as suas conseqüências, ainda não completamente de- finidas - mudou a face desse enorme país, que se desagregou. A progressiva - ou, em alguns casos, acelerada - implementação de meca- nismos de mercado nas economias planifi- cadas acabou gerando dúvidas sobre a viabili- dade ou continuidade nos anos 90 deste últi- mo tipo de vida econômica. A área de influência geopolítica da (ex -) União Soviética em grande parte ruiu. O Pacto de Varsóvia foi extinto em meados de 1991, e os europeus ocidentais já começam a se sentir incomodados pela presença em seu continente das tropas norte-americanas da OTAN. Levanta-se inclusive a idéia de um novo tratado, que começa embrionariamen- te com a coordenação das tropas militares da França e da Alemanha, para com o tempo substituir ou redefinir a OTAN, no sentido de ampliar o poderio europeu. A Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental se uniram em 1990, formando um único país, fato que até há alguns anos pare- cia impossível ou extremamente improvável para este século. A rapidez desse processo surpreendeu a todos: a partir da crise do "mundo socialista", especialmente da Europa Oriental, no final dos anos 80, tudo indicava que a reunifica- ção alemã pudesse ocorrer. Só que os analis- tas políticos, os jornais e demais meios de co- municação, inclusive os germânicos, divul- gavam uma data mais longínqua, possivel- mente 1997. A velocidade das mudanças nestes dois últimos anos foi realmente impressionante, o que entre outras conseqüências acabou de- satualizando atlas e livros de Geografia de todos os recantos do planeta. Por um lado, isso gerou angústias em alguns, pelo fato de não haver respostas seguras e pelas freqüentes cobranças feitas pelos alunos ou pelo público em geral. Por outro lado, contudo, isso tem sido extremamente gratificante pelo renova- do interesse que a Geografia vem suscitando, pela crescente busca de subsídios ou opiniões de geógrafos por parte da imprensa em geral. Nunca houve tanta procura pelos conhe- cimentos ou procedimentos geográficos, por parte dos principais jornais, das principais revistas e pelas principais redes de televisão, como nestes três últimos anos; e isso em todo o mundo. Noções ou temas que antes eram quase que restritos aos meios educacionais ou acadêmicos, tais como fronteiras e suas rede- finições, mapas-múndi, geopolítica, nações e territórios, Estados-nações e t c , hoje come- çam de alguma forma a ser usados na vida co- tidiana pelas pessoas e pela mídia. Questões que surgem Nestas condições, é comum que os pro- fessores de Geografia coloquem aos espe- cialistas em Geografia Política, em Geogra- fia Regional e até em Cartografia, aos profes- sores universitários e pesquisadores, dúvidas e indagações sobre a atual estruturação do es- paço mundial: • Existe ainda uma Europa Oriental? • Como ensinar o tema Europa para os alunos? • Pode-se falar ainda num Segundo Mun- do ou conjunto de países "socialistas" ? • Como é ou será a geopolítica interna- cional neste momento de enfraquecimento ou final da Guerra Fria? • Com o final, ou pelo menos com o visível enfraquecimento da oposição Leste x Oeste, quais as novas contradições que emergem com vigor em seu lugar? Essas e outras questões semelhantes de fato fazem sentido neste momento de in- definições, de rápidas e radicais transforma- ções na ordem mundial gerada pela Segunda Guerra Mundial, ordem essa que se manteve de forma mais ou menos estável durante cerca de 45 anos. Os anos 90 parecem ser de transição entre uma ordem que envelhece e começa a se transformar rapidamente e uma nova ordem internacional que ainda não está plenamente constituída, mas que pode ser vislumbrada através de alguns fatos que descreveremos a seguir. Objetivo deste folheto O objetivo deste folheto é o de auxiliar os professores de Geografia na tarefa de en- tender o mundo de hoje. E claro que ele seria desnecessário se os livros em geral, especial- mente os didáticos ou paradidáticos, estives- sem completamente atualizados, contendo estas considerações ou análises que faremos aqui. Isso, contudo, é impossível em face da rapidez das mudanças e da necessidade de um tempo mínimo (alguns meses ou até cerca de um ano) para a reelaboração de uma obra já pronta e estruturada nos textos e nas ilustra- ções, especialmente os mapas. Além disso, existe a demora da reflexão, pois mesmo tendo os dados à disposição, o intelectual ou cientista sempre precisa de um tempo mínimo para repensar a ordem das coisas, as teorias e as interpretações. Como afirmou Hegel ainda no início do século pas- sado, a coruja da minerva (isto é, a sabedoria) só levanta vôo ao anoitecer, o que significa que existe a necessidade de um lapso de tempo entre o acontecimento e a interpretação, as- sim como é preciso que a poeira assente para se enxergar mais claramente. No momento em que elaboramos a pri- meira versão deste fascículo (primeiros me- ses de 1991), ainda não havia nenhum livro perfeitamente atualizado em relação a esses fatos relevantes dos últimos anos. Alguns poucos conseguiram se atualizar desde então, mas já neste início de 1992 percebe-se que novas transformações ou fatos importantíssi- mos ocorreram desde o final do ano passado, e que não puderam ser incorporados nessas obras. Afinal, para ser adotado no início de um ano letivo, todo manual costuma ser im- presso já em agosto/setembro do ano ante- rior, para fins de distribuição aos professores que o irão analisar. Só que vivemos numa época excepcio- nal, em que poucos meses fazem uma grande diferença a respeito da nova ordem internacio- nal e do novomapa-múndi. Mesmo que os li- vros fossem impressos em fevereiro ou março, por exemplo, também haveria em agosto ou setembro uma defasagem face às mudanças ocorridas desde então. Há alguns momentos da História em que um livro ou atlas pode passar anos ou até décadas sem grandes ou pro- fundas atualizações; são momentos de trans- formações lentas ou quase imperceptíveis. Mas existem momentos nos quais as mu- danças históricas se aceleram, com rápidas redefinições de fronteiras e nas relações eco- nômicas e geopolíticas. Vivemos num período revolucionário Desde 1989 vivemos num desses perío- dos revolucionários, no qual pode-se dizer que oconem transformações sem dúvida nenhu- ma comparáveis àquelas resultantes da Se- gunda Guerra Mundial (1939-1945). Na- quele momento, em meados do nosso século, uma velha ordem internacional conheceu seu fim, com o declínio da Inglaterra e demais potências européias (Alemanha e França) e a ascensão de novas potências hegemônicas (Estados Unidos e União Soviética), as quais, durante mais de quatro décadas, lideraram seus respectivos campos ou "blocos" (o "mun- do" capitalista e o mundo do socialismo real). Neste e nos três últimos anos, estamos as- sistindo à desagregação dessa ordem bipolar gerada pela guerra. No seu lugar vemos a construção paulati- na, já estruturada em vários aspectos e ainda indefinida em alguns outros, de uma nova ordem internacional multipolar, com o final da oposição capitalismo versus socialismo e a ascensão de novos "blocos" ou potências eco- nômicas, tecnológicas e, possivelmente, polí- tico-diplomáticas e militares (em especial o Japão e a nova Europa unificada). Consideramos nossa obra Sociedade e es- paço em sua nova edição reformulada, de 1992 (mas impressa em setembro de 1991), como o que existe hoje de mais recente e mo- derno, assim como a coleção Geografia críti- ca, 4 volumes ( I a edição de agosto de 1990 e 3 3 edição atualizada em setembro de 1991), de nossa autoria em conjunto com Vânia R. F. Vlach. Todavia, mesmo nestes casos de rápi- da atualização de textos, mapas e informa- ções, também permanece uma pequena defa- sagem oriunda do fato de haver um inevitável lapso de tempo entre a impressão e os meses seguintes, quando novos acontecimentos al- teraram mais uma vez o mapa político mundial. Este folheto, dessa forma, também em nova edição ampliada, visa mais uma vez suprir uma lacuna aberta pela História atual, por recentíssimos e relevantes fatos que nos levam a repensar diversos aspectos da ordem econômica e geopolítica internacional. Julgamos assim ser necessário ainda este ano oferecer novos subsídios aos professores, tanto sob a forma de texto como de orien- tação bibliográfica e de atividades didáticas, no sentido de que não se perca o papel da Geografia escolar, que é o de ajudar o edu- cando a compreender criticamente o mundo em que vive. [Foto ilegível] Festa de comemoração da união politica e econômica das duas Alemanhas, no dia 3 de outubro de 1990. Nasce daí a nova Alemanha, com 357 042 km2 e 78 milhões de habitantes, que se constitui hoje no terceiro PNB do mundo, após os Estados Unidos e o Japão, e o verdadeiro líder econômico e tecnológico da nova Europa unificada. V ivemos hoje um momento histórico em que a experiência auto-intitulada "socia- lista" parece estar se esgotando. Talvez nem seja mais possível falar-se num Segundo Mundo, ou "mundo socialista", no século XXI, que já se avizinha. A propriedade priva- da dos meios de produção - inclusive da terra - foi novamente admitida na ex-União Sovié- tica, na China e em quase todos os países da Europa Oriental. Conseqüentemente, as bol- sas de valores desses países, que foram fechadas durante inúmeras décadas, encon- tram-se agora reabertas. Mecanismos de mercado - tais como maior liberdade para as empresas tomarem suas decisões, indepen- dentemente do plano qüinqüenal em vigor, os preços oscilando novamente de acordo com a lei da oferta e da procura; o final de inú- meros subsídios estatais para atividades ou setores econômicos; o final do pleno empre- go para os trabalhadores, com a volta do mer- cado de trabalho; a falência ou fechamento de empresas constantemente deficitárias, que só eram mantidas por recursos públicos etc. - passam a ser introduzidos nesses países, o que diminui o rigor e a centralização da pla- nificação da economia. Apesar de essas mudanças terem se acele- rado a partir de 1989, não é essa a data inicial desse processo. A Hungria, desde o início dos anos 70, já havia pioneiramente ingressado numa paulatina introdução de mecanismos de mercado em sua economia planificada. E a China, desde a morte de Mao Tse-tung e a ascensão de Deng Xiaoping, em 1976, tam- bém já vinha abrindo sua economia para o capitalismo (com um avanço notável em suas exportações e importações, com a rea- bertura da bolsa de valores de Xangai, com a busca de tecnologia ocidental e t c ) . Nos anos 70 foram inúmeros os acordos entre os países "socialistas", especialmente a URSS e algumas nações da Europa Oriental, com empresas multinacionais capitalistas, que instalaram filiais nessas áreas: para as empresas tratava-se de buscar mão-de-obra barata e "disciplinada" (pois o direito de greve nesses países só foi conquistado após 1989), para essas nações tratava-se de adquirir tec- nologia e tentar ampliar um pouco o padrão de consumo de suas populações, um padrão baixo quando comparado com o Primeiro Mundo. Somente no ano de 1985, por exem- plo, já existiam cerca de 140 filiais de empre- sas multinacionais na URSS e na Europa Oriental. Mas em 1989 ocorreu uma aceleração nessas mudanças. Com os ventos liberali- zantes trazidos pela política da perestroika na União Soviética, algumas repúblicas re- solveram proclamar sua independência, a começar pela Lituânia. Em muitas dessas repúblicas soviéticas, começou novamente a ser valorizada a cultura nacional tradicional, sendo inclusive abolido o idioma russo como obrigatório nas escolas. Na Europa Oriental, milhões de pessoas saíram às ruas exigindo democracia, eleições livres, o fim do monopólio de um só partido político no poder. Governos foram derruba- dos e houve de fato a introdução de radicais mudanças econômicas e políticas nesses países. Quais foram os motivos desses protestos que geraram mudanças? Foi a economia planificada um fracasso? O que significou a perestroika e qual foi a sua importância nessas transformações? Vamos examinar essas questões nas li- nhas a seguir, mas temos que enfatizar o fato de que essas radicais mudanças no "mundo socialista" não ocorreram isoladamente; elas constituem na verdade uma parte de trans- formações globais no espaço mundial. A perestroika: seus objetivos e dilemas Mikhail Gorbatchev, secretário geral do Partido Comunista e presidente da ex-União Soviética, propôs em 1986 a política da peres- troika, palavra russa que significa reestruturação. Em que constituiu a política da perestroika1. Resumidamente, pode-se dizer que ela tinha como objetivo dinamizar a economia sovié- tica, especialmente o setor civil, constituin- do-se num projeto geopolítico destinado a manter o país entre as grandes potências do século XXI. Para compreendermos essa política, te- mos que recordar que o mundo sofreu impor- tantes mudanças nas últimas décadas e a própria posição soviética como grande potên- cia econômica já nos anos 80 encontrava-se ameaçada pelo crescimento japonês e pelo avanço da unificação européia. Do ponto de vista econômico, de fato, a União Soviética já era nos anos 80 uma potência em crise. O próprio ProdutoNacional Bruto do país, tido durante décadas como o segundo do mundo, atrás somente do norte-americano, era às vés- peras da desintegração (final de 1991) no máximo o quarto, atrás do produto japonês e do alemão. E lógico que esses dados variam de acordo com a fonte de informações. Afinal, calcular a produção anual de cada nação não é tarefa fácil. Há, em primeiro lugar, o problema da confiabilidade dos dados, algo gravíssimo em especial numa economia centralmente pla- nificada, onde os burocratas decidem em seus gabinetes o que "foi produzido" oficialmente, mesmo que esse oficial não corresponda à rea- lidade. Como não há competição nem falên- cias de empresas nessas economias cujos meios de produção foram estatizados, tal proce- dimento de colocar nos relatórios produções exageradas ou fictícias não ocasiona proble- mas às empresas. Apenas os consumidores, os menos aten- didos numa economia desse tipo, é que serão prejudicados pela carência de bens e pelas in- termináveis filas. Além desse fato, há ainda o problema de expressar essa produção numa moeda interna- cional comum, para se poder comparar os PNBs. Durante muitas décadas, por exemplo, o PNB do Japão foi subvalorizado devido ao 8 fato de o iene estar com uma cotação muito baixa frente ao dólar. E o contrário ocorreu com o PNB soviético, que durante muito tempo foi supervalorizado em face da co- tação do rublo, artificialmente exagerada frente ao dólar. Outro elemento a ser ressaltado é que a economia soviética - e, nos dias atuais, a economia russa - é claramente dividida em duas partes: uma militar, dinâmica e compe- titiva, que concorre com o setor armamen- tista norte-americano em condições de igual- dade; e a outra civil, que sempre recebeu me- nos recursos humanos e financeiros que a mi- litar e que acabou dominada por normas burocráticas; esta última é um tipo de econo- mia que não precisa concorrer com nenhu- ma outra e que se encontra visivelmente atrasada em relação ao setor militar. Como afirmou Gorbatchev no seu livro Perestroika - novas idéias para meu país e o mundo, a União Soviética conseguiu, por um lado, enviar astronautas e sondas de pesqui- sas para a Lua e para Marte, mas, por outro lado, não conseguiu fabricar televisores, gravadores ou mesmo simples liqüidifica- dores com qualidade e em quantidade com- paráveis à indústria francesa ou italiana (isso para não falar da norte-americana, alemã ou japonesa). De um lado, no setor militar, uma econo- mia dinâmica e competitiva, que utilizou e ainda utiliza em.parte a melhor tecnologia, que dispõe dos melhores cérebros do país. E do outro lado, no setor civil, uma economia esclerosada, burocratizada, que se caracteriza até hoje pela carência de bens e pela predo- minância de objetos alheios aos gostos e inte- resses dos consumidores (roupas pouco varia- das, cores simples, padrões comuns e únicos e t c ) . A famosa "prioridade aos bens de pro- dução", tão divulgada pela União Soviética desde os anos 1930, na realidade escondeu uma valorização do setor armamentista. E isso fez em detrimento do setor civil da economia, ou seja, do consumo da população. E por isso que a perestroika foi tanto uma política interna como externa: para ampliar o consumo da população, incentivando mais a economia civil, era necessário enfraquecer ou eliminar a guerra fria com os Estados Uni- dos, a constante competição pela renovação de armamentos e por "áreas de influência" (ou de dominação político-militar e às vezes até econômica). Os acordos com os Estados Unidos e com países europeus ocidentais da OTAN foram necessários para aplacar os militares, a chama- da "linha dura". Diminuir os gastos militares foi uma condição indispensável para ampliar os recursos à disposição da economia civil. E como agilizar a economia civil? Aqui a opção consistiu na introdução gradual de uma economia de mercado, com empresas estatais ou particulares sendo regi- das pela competição, com possibilidade de falências ou de elevados lucros. No tocante à política interna, outro importante aspecto da perestroika foi aglasnost, palavra russa que sig- nifica transparência, abertura, e que impli- cou na liberalização política (isto é, maior li- berdade para a imprensa, para as pessoas ex- pressarem suas opiniões, mesmo contrárias às do governo etc.). Esta foi uma grande diferen- ça da abertura soviética frente à chinesa, que por sinal é anterior: enquanto nesta última só houve descentralização econômica e não po- lítica (com os protestos e a oposição sendo reprimidos pelo poder centralizado e autori- tário que busca permanecer a todo custo), na perestroika as duas vieram ao mesmo tempo e acabaram se influenciando mutuamente. O grande "calcanhar de Aquiles" da peres- troika, que levou ao seu final, foi a diversida- de étnico-nacional dentro da União Sovié- tica. A União Soviética, nome criado em 1922 após um domínio russo sobre inúmeras outras repúblicas, sempre foi um país de frágil unidade do ponto de vista da nacionalidade. E muito mais uma continuidade do império czarista russo, no qual havia uma dominação russa sobre outras etnias e nacionalidades. 9 As décadas de "socialismo" não esconderam o fato de que os russos sempre tiveram privi- légios na União Soviética: na cúpula do par- tido oficial e dominante, o PC soviético, nos altos escalões das Forças Armadas, na locali- zação das mais importantes indútrias etc. A liberalização no país, mesmo sem o preten- der, deu espaços para o ressurgimento de sen- timentos nacionais que durante muito tem- po foram reprimidos e abafados. Manter a unidade do país por meio da implantação de um sistema federativo foi um duro desafio para o futuro da perestroika, que afinal ela não conseguiu vencer. Mikhail Gorbatchev, último presidente da ex-URSS e idealizador da perestroika, que desempenhou um papel histórico fundamental nas transformações mundiais dos últimos anos. A partir de agosto de 1991, Gorbatchev pas- sou a ter pouca importância nos acontecimentos da Rússia e das demais repúblicas da ex-URSS. Bóris leltsin, primeiro presidente da Federação Russa eleito por voto direto em toda a história dessa nação e per- sonagem histórico de primeiro plano após agosto de 1991. O fim da perestroika e da União Soviética Pode-se dizer que a perestroika acabou em agosto de 1991, por ocasião de um frustrado golpe militar. Essa política liberalizante na realidade enfrentava três tipos principais de oposição ou pressão. De um lado havia a chamada "linha dura" ou stalinista, representada pelas camadas do- minantes que se sentiam atingidas pela aber- tura econômica e política: alguns militares de alta patente e importantes membros do Partido Comunista, único a monopolizar o poder político e até o poder econômico du- rante quase oitenta anos; essas camadas no fundo desejavam manter a situação vigente nas últimas décadas. De outro lado havia os chamados "pro- gressistas", entre os quais o nome de Bóris leltsin sempre era mencionado; os progres- sistas pressionavam Gorbatchev no sentido de apressar a política da perestroika e, conse- qüentemente, as reformas que ela acarreta- va; criticavam o ritmo tido como demasia- damente lento da abertura para a economia de mercado e da vida política. Havia ainda os interesses de maior au- tonomia (ou, em alguns casos, até de inde- pendência total) das diversas repúblicas que compunham a União Soviética. O setor tido como mais forte era a "linha dura", pelo menos até agosto de 1991. Tanto que freqüentemente se aventava a possibili- dade de um golpe militar comandado por esse setor,o que realmente acabou aconte- cendo. Muitos ministros do governo de Gorbatchev eram desse setor conservador, o que é um fato bem conhecido, e foram man- tidos no poder exatamente porque inspi- ravam um certo temor e respeito. Foi em es- pecial por esse motivo que o ritmo da abertu- ra de fato não era muito intenso até 1991. Havia mais retórica e discursos da perestroika e da glasnost do que mudanças reais, profun- das e irreversíveis. 10 As transformações do final do anos 80 até 1991 indubitavelmente foram mais intensas na Europa Oriental que na própria União So- viética. Basta lembrar que até meados de 1991 grande parte dos recursos financeiros do Estado soviético ainda era destinada ao setor militar e o Partido Comunista continuava na prática a monopolizar o poder político. Até agosto de 1991 esse setor da "linha dura" ainda dominava grande parte dos principais cargos políticos e militares no país, mesmo convivendo arduamente com a perestroika. Naquele momento discutia-se um trata- do da União que concedesse mais autonomia (mas não a independência) às diversas re- públicas; no fundo o tratado objetivava man- ter a integridade do país, com algumas con- cessões aos interesses das repúblicas, e que estava em vias de ser assinado. O golpe de agosto A tentativa de um golpe militar depondo Gorbatchev e criando uma junta para substi- tuí-lo, implementada em agosto de 1991, visava exatamente impedir a assinatura des- se tratado e a continuidade da política de aber- tura da perestroika. Se fosse bem sucedido, esse golpe poderia talvez reavivar a guerra fria e o papel da superpotência "socialista" da União Soviética, algo de futuro duvidoso num momento de ascensão de novas potên- cias e de declínio econômico e tecnológico desse imenso país. Ocorreu todavia algo que ninguém es- perava: uma rápida e maciça reação do povo nas ruas se opondo aos tanques. Ao pren- derem Gorbatchev e anunciarem pelos meios de comunicação que havia um novo governo no país, ao enviarem tanques para controlar os edifícios públicos, os golpistas não espera- vam a manifestação popular, que foi acom- panhada pela reação de políticos progressis- tas e de outros políticos ligados aos interesses nacionais de suas repúblicas (por exemplo, na Lituânia), fato que paralisou as tropas. Houve um momento em que os soldados não sabiam se obedeciam aos golpistas, entre os quais estava o próprio ministro do exérci- to, ou aos políticos que se opunham ao golpe e contavam com amplo apoio popular. Estes últimos acabaram vencendo e o resultado do golpe malogrado foi o contrário do que pre- tendiam os golpistas: ao invés de manter a integridade da União Soviética e impedir novas aberturas na vida política, consolidan- do o poder nas mãos do Partido Comunista, o golpe acabou acelerando a desagregação do país, gerando novas aberturas e provocando o fim do próprio Partido Comunista da União Soviética. Com o fracasso do golpe, que contou com o apoio ou a cumplicidade da imensa maioria dos burocratas do Partido Comunista, as au- toridades das diversas repúblicas ganharam mais força. Esses governos sempre foram subor- dinados aos interesses do governo central, o soviético, mas a reação ao golpe praticamen- te esvaziou esse poder centralizado e fortale- ceu as diversas autoridades regionais das re- públicas. Após a rendição dos golpistas e a liber- tação de Gorbatchev, percebeu-se que este já não tinha mais autoridade nem poder. O po- der de fato estava com o governo da Rússia, em primeiro lugar, e com o governo das ou- tras repúblicas. Gorbatchev teve um impor- tante papel histórico, mas acabou o governo com pouca representatividade popular. Ape- sar de seu gênio reformista, na realidade ele foi o último governante eleito por via indire- ta pelos parceiros do Comitê do Partido Co- munista. Já os presidentes das repúblicas de uma forma geral, como leltsin da Rússia e al- guns outros, foram eleitos por via direta, em eleições populares. E o Partido Comunista da URSS saiu ar- rasado com o fracasso do golpe: edifícios fo- ram depredados, membros eminentes perde- ram seus cargos e elementos de menor prestí- gio se apressaram em repudiar suas antigas 11 idéias e adotar novas posições. Daí se afimar que a perestroika foi liquidada com o resulta- do do golpe: ela consistia antes de mais nada numa política de reformas que pressupunha a liderança desse partido. Era uma política de abertura "de cima para baixo", conduzida de forma controlada, buscando manter a inte- gridade da União Soviética e a hegemonia des- se partido que tomou o poder em outubro de 1917. Como as radicais transformações no país a partir de agosto de 1991 fugiram do con- trole desse partido, que praticamente deixou de existir, pode-se dizer que a perestroika morreu. A partir do golpe começou a era pós- perestroika. Foi também o fim da URSS, tal como ela existiu desde 1922. Logo em setembro de 1991, as três repú- blicas bálticas - Lituânia, Letônia e Estônia - conseguiram a sua independência, fato ime- diatamente reconhecido pela ONU e pela maioria dos países, inclusive a Rússia. As de- mais repúblicas encontram-se num impasse: ou ficam juntas, numa comunidade federa- tiva, ou se fragmentam de vez. Desde o final de 91, estão associadas na Comunidade de Estados Independentes (CEI), organização su- pranacional inspirada no Mercado Comum Europeu. Deixaram de participar da CEI as três repúblicas bálticas e a Geórgia. Esta, desde de- zembro de 1991, vive num impasse entre um governo eleito pelo voto e adepto à total in- dependência de país (contrário portanto à participação na CEI) e revoltosos com amplo apoio nas Forças Armadas, que tomaram o poder em janeiro de 1992 mas enfrentam fre- qüentes protestos populares e cuja posição é favorável a uma aproximação da Geórgia com as demais onze repúblicas. Nos primeiro meses de 1992, a CEI já era uma realidade, só que problemática: para uns ela deveria constituir somente uma comuni- dade econômica, um mercado comum; para outros, deveria ser também uma organização político-militar, com a função de coordenar a defesa e as Forças Armadas. Os governantes da Rússia, a maior e mais populosa república da ex-URSS, evidente- mente desejam recriar esse imenso país sob um novo rótulo. Daí apregoarem a coorde- nação centralizada das Forças Armadas, que na prática significaria a continuidade do domínio russo sobre as demais repúblicas. Outras repúblicas, especialmente a Ucrânia, insistem em ter seu próprio exército, inde- pendente da CEI. O problema das repúblicas As repúblicas meridionais (Casaquistão, Turquemenistão, Uzbequistão, .Azerbaijão, Ta- diquistão e Quirguízia), vizinhas do Oriente Médio, nas quais grande parte da população segue a religião muçulmana, começam a se aproximar do mundo islâmico, em especial do Irã. A crescente expansão do fundamen- talismo religioso nessa região poderá afastar algumas dessas repúblicas das demais da CEI. E a "política do liqüidificador" implementa- da pelo ditador soviético Joseph Stálin nos anos 1930 e 40, que consistia na migração forçada de povos de uma etnia para repúbli- cas com outras nacionalidades, visando em- baralhar as inúmeras etnias desse imenso país, hoje cobra o seu preço ao jogar algumas nações contra outra>. A autonomia das inúmeras repúblicas não é um processo tranqüilo, em especial pelo fato de normalmente existirem popula- ções de outras nacionalidades no território de cada uma delas. Veja-se o exemplo da Armê- nia e do Azerbaijão, duas repúblicas com conflitos de fronteiras: há um território rei- vindicado pela Armênia, Nagorno-Kara- bakh, no qual hoje existe uma mistura de povosprincipalmente dessas duas nacionali- dades, que pertencia à Armênia e foi en- tregue por Stálin em 1923 ao Azerbaijão. Veja-se ainda a própria Rússia, com seu imen- so território: existe aí um predomínio da 12 etnia russa (83 % ) , mas também há a forte pre- sença, especialmente em determinadas re- giões, de outras etnias que almejam maior autonomia frente aos russos (tais como tár- taros, ucranianos, tchuvachos e outros). Os conflitos étnico-nacionais, dessa forma, ain- da persistem na ex-URSS e deverão se agra- var nos próximos meses ou anos. Não se pode esquecer que a "linha dura" foi derrotada em agosto de 1991 mas ainda sobrevive, esperando a melhor ocasião para tentar novamente ganhar mais espaço. Se persistir a atual situação de declínio econô- mico e do padrão de vida da população, so- bretudo com a carência de alimentos, é bas- tante provável que muitos dos que repudia- ram o malogrado do golpe conservador de agos- to do ano passado revejam suas posições, ilu- didos pela propaganda da antiga superpotên- cia "socialista". Afinal, bem antes da peres- troika os problemas econômicos e sociais so- viéticos já se agravavam (com o declínio eco- nômico e tecnológico frente ao Primeiro Mun- do, com um déficit de 25 milhões de mora- dias em meados dos anos 80, com a queda da produtividade na agricultura, com o progres- sivo aumento nas taxas de mortalidade geral e infantil, daí advindo uma diminuição na expectativa média de vida etc.). Acontece que esses problemas eram escondidos ou censura- dos, o que criava em muitas pessoas a ilusão de que tudo ia bem. Com a perestroika e a glas- nost esses problemas vieram a público, sendo divulgados nos meios de comunicação. Na verdade, alguns deles até se aprofundaram a partir da desestruturação da planificação eco- nômica e a introdução meio atabalhoada de mecanismos de mercado, o que acabou provo- cando a falência de empresas, o aumento do desemprego, inflação etc. O prolongamento dessa crise poderá for- talecer a "linha dura" e suscitar novas inves- tidas desse setor, mesmo que ele dificilmente consiga uma volta completa a um passado em grande parte já superado e não mais repro- duzível. A ex -União Soviética Com a desintegração da União Soviética, em fins de 1991, as repúblicas que a constituíam associaram-se na Comunidade de Estados Independentes - CEI. A Geórgia não aderiu à CEI. Letônia, Estônia e Lituânia se haviam desmembrado em setembro de 1991. As 1 5 Repúblicas da ex-URSS (1990) República Área (km2) População Etnias dominantes Renda per-capita (em rublos!) Li tuânia 65 200 3,7 l i tuanos (80%), r u s s o s (8,5%) e p o l o n e s e s (7,7%) 2 147 L e t ô n i a 64 589 2,7 letões (54%), r u s s o s (32%) e b ie lorussos(5%) 2 647 E s t ô n i a 45 100 1,6 es ton ianos(65%) , russos(83%) e ucran ianos(3%) 2 522 R ú s s i a 17 045 400 147,0 r u s s o s (83%), tár taros(4%) e ucran ianos(2 ,8%) 2 397 U c r â n i a 603 700 51,7 ucran ianos (74%), russos (20%), b ie lo russos ( l%) e judeus (1%) 1 896 B ie iorúss ia 207 600 10,2 bielorussos (80%), russos (11 %) e poloneses (4,3%) 2 355 U z b e q u i s t ã o 447 400 20,0 u z b e q u e s (69%), r u s s o s (11 %) e t á r t a r o s (4,2%) 1 209 C a s a q u i s t ã o 2 717 300 16,5 r u s s o s (41 %), c a s a q u e s (36%) e u c r a n i a n o s (6%) 1 605 G e ó r g i a 69 700 5,4 g e o r g i a n o s (69%), a r m ê n i o s (9%) e russos (7,5%) 2 063 Azerba i j ão 86 600 7,0 azerbai janos (78%), a r m ê n i o s (8%) e russos (8%) 1 730 M o l d á v i a 33 700 4,3 m o l d a v o s (15%), ucran ianos (64%) e russos( 12%) 1 709 Qu i rgu i z ia 198 500 4,3 qu i rguizes (41 %), r u s s o s (22%) e uzbeques (11%) 1 209 T a d i q u i s t ã o 143 100 5,2 tadz iques (59%), u z b e q u e s (23%) e r u s s o s (10%) 1 042 A r m ê n i a 29 800 3,3 a r m ê n i o s (90%), azerba i janos (5,3%) e r u s s o s (2,5%) 1 938 T u r q u e m e n i s t ã o 488 100 3,5 t u r c o m e n o s (13%), r u s s o s (65%) e u z b e q u e s (8,5%) 1 375 * O valor do rublo em 1990, na ocasião da coleta desses dados, era de 1,6 dólar no câmbio oficial. No câmbio negro, todavia, que é mais realista, o valor do rublo era somente 15 centavos de dólar. Constituída até 1991 por 15 repúblicas e 126 nacionalidades, a União Soviética deixou de existir no final desse ano, num processo ainda não completamente definido de autonomia de algu- mas repúblicas e tentativas de definir as normas de uma confederação, a CEI - Comunidade de Estados Independentes. Como se percebe pelo mapa e pela tabela, a Rússia é a verdadeira sucessora da ex-URSS, uma imensa república com mais de 17 milhões de km2 e cerca de 147 milhões de habitantes (por volta de 76% da área e 55% da população da ex-URSS). A Rússia na realidade não é uma república unitária e sim uma federação onde há várias regiões e repúbli- cas relativamente autônomas. As demais repúbli- cas via de regra são mais pobres que a Rússia, com renda per capita bem rríõ/s baixa. As duas exceções a esse respeito são as repúblicas bálti- cas da lituânia e da Estônia, que juntamente com a Letônia (que também possui uma renda per capita acima da média da ex-URSS, embora abaixo da Rússia), alcançaram sua independên- cia em setembro de 1991. Essas três repúblicas banhadas pelo mar Báltico foram ainda as últimas a serem incorpo- radas à União Soviética, somente em 1940, e conviveram portanto menos tempo com a expe- riência da planificação centralizada da vida eco- nômica, algo que tornou mais fácil a sua sepa- ração das demais repúblicas. Já as repúblicas meridionais, onde há uma forte presença de muçulmanos, são as mais po- bres, com mais baixa renda per capita A Ucrâ- nia possui uma renda per capita relativamente baixa, mas é uma república com um território duas vezes maior que a nova Alemanha ou que o Japão, com uma população significativa (mais de 50 milhões) e com alguns dos melhores solos do mundo, sendo considerada um "celeiro agrícola" para as demais repúblicas. . Tanques em agosto de 1991 cercados por populares em Moscou. O golpe da "linha dura' fracassou exatamente porque multidões cercaram os tanques e impediram que as tropas controlassem os edifícios - sede do poder. A economia planificada e seus problemas É difícil hoje saber se a experiência da planificação centralizada da economia vai se repetir em algum outro país do globo. Por en- quanto, essa parece ser uma experiência pra- ticamente esgotada, ao menos na forma em que foi adotada e que teve na União Sovié- tica o seu grande exemplo. É evidente que as coisas não mudam de um dia para o outro, e nem o que foi construído durante inúmeras décadas desaparece em alguns poucos anos. A economia planificada deixou profun- das marcas ou heranças na organização social e espacial desses países e por esse motivo eles ainda formam, mesmo que provisoriamente, um grupo à parte, um Segundo Mundo que se industrializou, total ou parcialmente, através de uma planificação da economia e que não pode ainda ser incluído sem problemas no Primeiro Mundo nem no mundo subdesen- volvido. A quase totalidade desses países, to- davia, há alguns anos está abolindo a planifi- cação centralizada, que vai sendo substituída por mecanismos de mercado e por formas de planejamento capitalistas. A planificação da economia deu certo ou errado? É difícil responder à essa pergunta. Pro- vavelmente nem mesmo os economistas e planificadores desses países têm respostas conclusivas. Não existem certezas seguras neste caso, mas somente respostas provisó- rias que certamente irão se alterando com o tempo, com novas experiências e reavalia- ções. E provável inclusive que a resposta seja sim e não: a planificação da economia deucerto por um lado e fracassou por outro. Ela foi melhor para implantar um setor pesado de indústrias de bens de consumo. Ela foi mais apropriada para desenvolver a atividade in- dustrial do que para a agricultura. Ela fun- cionou melhor numa época de predominân- cia das indústrias consideradas avançadas nos anos 50 ou 60 (petroquímica, de cimen- to, metalúrgica e t c ) , mas parece ter fracassa- do totalmente no momento de crescimento de novos setores avançados da atualidade (informática, telecomunicações, química fi- na, robotização, biotecnologia e t c ) . A União Soviética, por exemplo, conhe- ceu um notável arranque industrial nas déca- das de 3 0 , 4 0 , 5 0 e parte da década de 60, mas já a partir dos anos 70 esse país passou a per- der terreno frente ao maior dinamismo das economias do Japão, da Alemanha e outros, em especial no campo da tecnologia moder- na. Em meados do anos 80, como já vimos, a 15 União Soviética era um país que lutava para se manter no "grupo dos grandes" nos anos 90 e especialmente no século XXI. Daí ter surgi- do a política da perestroika, uma tentativa da facção mais esclarecida da elite dominante soviética de corrigir os problemas econômi- cos e sociais e reforçar a posição desse país no grupo das grandes potências. O problema da burocratização Um dos principais problemas encontra- dos em toda economia planificada é a burocra- tização: como todas as normas vêm de cima, isto é, órgãos de planificação, as pessoas com cargos de decisão (diretores de empresas, por exemplo) acabam perdendo a capacidade de iniciativa e a criatividade, pois se acostu- mam a fazer apenas aquilo que está previsto no plano em vigor. A centralização da eco- nomia não prevê os problemas que podem surgir durante a execução do plano, em fun- ção das características de cada lugar e de cada momento. E como, para enfrentar esses pro- blemas específicos, são exigidas flexibilidade e capacidade de adequação, o plano emperra porque está baseado no centralismo e não na descentralização. Os planos qüinqüenais estabelecem de an- temão o quê e quanto produzir, de quem e on- de comprar, a que preços vender e t c , e a grande preocupação do burocrata nomeado como diretor de uma empresa é cumprir essas determinações, para continuar no cargo ou subir na carreira. Esse burocrata não vai se preocupar com o fato de que poderia eventual- mente comprar mais barato as matérias-pri- mas que utiliza, ou que os produtos que fabri- ca não agradam aos consumidores. Sua única preocupação é "cumprir as metas" estabeleci- das para sua empresa, mesmo que para isso tenha que recorrer à ficção estatística (re- latórios falsos). Como numa economia desse tipo todas as empresas são estatais, não havendo concor- rência entre elas nem falências, podia-se pro- duzir realmente bem menos que o registrado oficialmente, pois o único prejudicado seria o consumidor comum (os "consumidores es- peciais" , a elite privilegiada da burocracia, dis- punha de lojas exclusivas, onde nada faltava). A ausência de iniciativa e de criatividade propagou-se mesmo entre os trabalhadores, também funcionários públicos e com empre- go normalmente garantido, sem nenhum in- teresse pelo desempenho da empresa. Caso uma máquina quebrasse, por exemplo, mes- mo se os operários soubessem consertá-la em poucos minutos, eles preferiam enviar um re- latório ao setor competente, que podia levar semanas para providenciar o conserto. Como não existia a necessidade de lucros para ga- rantir os salários, atitudes desse tipo não al- teravam os ganhos dos trabalhadores. Também a inovação tecnológica (e a in- trodução de novos modelos de bens) era de- sestimulada nesse tipo de economia, pois como não há concorrência entre empresas nem necessidade de agradar aos consumido- res, as inovações tornam-se desnecessárias. Para que introduzir um novo tipo ou modelo de sapato, ou de calças, por exemplo, se o im- portante é apenas a quantidade (o plano es- tabelece que tal fábrica irá fazer x pares de sapatos em 5 anos, não dizendo nada sobre modelos, cores etc) e nunca a qualidade ou o gosto do consumidor? Funcionando dessa forma durante dé- cadas, o sistema de planificação da economia mostrou-se incapaz de oferecer à população a variedade e qualidade de produtos que as in- dústrias do Primeiro Mundo jogam continua- mente nas lojas de todas as cidades. Para tentar dinamizar suas economias, os países que adotavam a planificação centrali- zada passaram a substituí-la há alguns anos por mecanismos de mercado, oferecendo in- clusive incentivos aos trabalhadores mais produtivos, o que passou a ampliar as diferen- ças salariais. Concorrência entre empresas, descentralização das decisões, propriedade 16 privada em inúmeros setores: estas são algu- mas outras modificações que foram sendo in- troduzidas nesses países nos últimos anos. O "modelo soviético" e seu ocaso O modelo seguido pelos países do "socialis- mo real" não se limitou "a planificação cen- tralizada da economia. Ele implicava tam- bém uma vida política dominada por um par- tido único e oficial, que dizia representar os trabalhadores e que nunca deixava o poder. Não havia liberdade para outros partidos e menos ainda para eleições periódicas com rotatividade nos cargos. O partido oficial, geralmente denominado comunista, se con- fundia com o estado e com o governo. E como ele apregoava representar os trabalhadores, as greves eram proibidas por lei. Afinal, como se justificariam greves de operários con- tra um governo (as empresas eram todas es- tatais) que seria deles próprios? Foi exatamente este o singelo argumento utilizado em 1921 por Lênin, o fundador do Estado soviético: o direito de greve só deve- ria existir no capitalismo, onde há a proprie- dade privada dos meios de produção; com a socialização ou estatização dos meios de produ- ção, tal direito passaria a ser um crime pas- sível de prisão e até fuzilamento, uma "trai- ção à nação socialista". Esse "modelo soviético", como era cha- mado por ter sido introduzido inicialmente na União Soviética e posteriormente nos de- mais países "socialistas", começou a mudar em 1989. Na maior parte desse países, a começar pela União Soviética e pelas nações da Europa Oriental, o monopólio de um par- tido único praticamente já cedeu lugar ao pluripartidarismo, o direito de greve é plena- mente admitido e eleições livres para cargos políticos importantes foram realizadas. A imensa maioria dos antigos partidos comu- nistas ou dos trabalhadores mudou de nome e de objetivos, passando a encaminhar-se na direção da social-democracia. E interessante registrar que tanto o "mo- delo soviético" ou leninista como a social- democracia tiveram origens comuns, oriun- das do movimento trabalhista do final do sé- culo passado e dos primórdios deste. Ambos buscaram, em grande parte, mesmo que tenham deixado isso de lado a partir de um certo momento, inspiração nos teóricos so- cialistas do século passado, em especial Karl Marx. A separação e até oposição radical entre essas duas correntes de esquerda ocor- reu por ocasião da Primeira Guerra Mundial, devido a diferentes estratégias dos movimen- tos trabalhistas na Europa Ocidental e na Rússia. Em resumo, podemos dizer que a social- democracia apregoa mudanças paulatinas dentro do capitalismo, um avanço da democra- cia e da justiça social sem "revolução violen- ta" para estatizar os meios de produção. E o leninismo, que gerou o "modelo soviético", apregoa uma "revolução", dirigida por um partido político que pretende ser o único re- presentante dos trabalhadores ou do prole- tariado, que significaria o finaldo capitalis- mo e a sua substituição por um novo modelo de economia e de sociedade, o socialismo. No primeiro caso temos conquistas gra- duais, com uma progressiva melhoria do padrão de vida (salários, condições e tempo de trabalho, moradia , participação na vida política e nas decisões das empresas, melho- rias no meio ambiente e t c ) . No segundo caso temos um tudo ou nada, uma ilusão de mudanças repentinas e radicais: sai o capita- lismo (o mal) e entra o socialismo (o bem), como se as relações cotidianas entre as pes- soas dependesse de "modelos" sócio-econô- micos, de sistemas que estariam acima dos indivíduos. A social-democracia ganhou terreno na Suécia, na Alemanha, na Dinamarca, na Inglaterra (com o trabalhismo) etc. Ela pro- duziu, durante várias décadas, um "Estado do bem-estar social" - no qual há seguro-desem- prego, moradia subsidiada para as famílias de baixa renda, excelente serviço médico-hospi- talar e previdenciário gratuitos, boa escolari- zação etc. - que hoje serve de inspiração para grande parte do mundo, inclusive para os países que adotaram até há pouco tempo o so- cialismo real. Existem evidentemente pro- blemas na social-democracia, em especial na Suécia, mas eles são incomparavelmente me- nos graves que a profunda crise pela qual pas- sou o "mundo socialista" desde meados dos anos 80. E por esse motivo que tantas estátuas de Lênin, o grande inspirador do modelo sovié- tico e do socialismo real, foram derrubadas em Moscou, em São Petersburgo (ex-Lenin- grado), em Praga, em Bucareste e t c , onde no lugar do leninismo entram novas propostas, talvez até ilusórias a longo prazo, em geral oriundas dos regimes social-democratas. Estátua de Lénin no chão. Lênin, o criador do Partido Bolchevique (depois Comunista), que tomou o poder em outubro de 1917 na Rússia, é considerado o inspirador do "modelo soviético", tão repudiado apartir de 1989 na Europa Oriental e na ex-URSS. Várias estátuas de Lênin foram derrubadas por manifestações populares, tanto em São Petersburgo (ex-Leningrado) como em outras cidades soviéticas e européias. 18 A t é por volta dos anos 70 o mundo era bipolar tanto do ponto de vista político-mili- tar como no aspecto econômico. Havia de um lado a área ocidental ou capitalista, lide- rada pelos Estados Unidos e, de outro lado, a área "socialista", liderada em grande parte pela União Soviética. Existiam na prática dois mercados internacionais: a divisão in- ternacional capitalista do trabalho, onde havia um centro (Estados Unidos, principal- mente, mas também Europa Ocidental è Japão, embora secundariamente) e inúmeras periferias (América Latina, África, Ásia em geral); e o pequeno comércio entre os países do Segundo mundo, representado em espe- cial pelo Comecom. Mais de 90% do comér- cio mundial era realizado por países capital- istas, sendo que os países de economia plani- ficada eram quase auto-suficientes. Hoje a situação é completamente diferen- te. Sob o ponto de vista econômico - e tam- bém, em parte, político - , o mundo de hoje não é bipolar e sim multipolar. Os Estados Uni- dos continuam sendo um importante pólo econômico, mas há outros talvez mais impor- tantes: o Mercado Comum Europeu, onde se destaca a Alemanha, e o Japão com sua perife- ria imediata ou países por ele liderados (os "ti- gres asiáticos", Austrália, Nova Zelândia etc.). Não há mais um mercado socialista. O próprio Comecom foi extinto. A Comuni- dade de Estados Independentes, sucessora da ex-URSS, procura desesperadamente se in- tegrar na Europa e os países europeus orien- tais começam a ter mais relações com a Europa Ocidental que com a Rússia, que era o seu parceiro comercial privilegiado até o iní- cio dos anos 80. A antiga Alemanha Oriental, o mais in- dustrializado dos países "socialistas" da Eu- ropa, acabou sendo anexada v a Alemanha O- cidental. No lugar de uma união ou integra- ção em bases igualitárias, o que ocorreu de fato foi uma incorporação de uma parte pela outra. Praticamente todas as leis da parte ocidental passaram a vigorar na parte orien- tal; o marco alemão ocidental tornou-se a úni- ca moeda alemã: e as normas econômicas do lado ocidental foram ou não introduzidas no lado oriental, inclusive com desmanches de fábricas que não se encaixavam nos padrões (de combate"a poluição, de tecnologia etc.) do lado ocidental. Pouco sobrou do mercado socialista, que existiu com seus parceiros e até preços diferen- ciados até o final dos anos 80. Há ainda al- guns resquícios, como é o caso do Camboja, do Vietnã, da Albânia ou de Cuba, que mes- mo tentando atrair capitais estrangeiros, ainda não se adaptaram muito bem va nova ordem internacional multipolar. Cuba, por exemplo, até agosto do ano pas- sado recebia petróleo a baixos preços da URSS e vendia açúcar aos países do Come- com por valores até cinco vezes superiores àqueles vigentes no mercado internacional capitalista. Só que hoje isso não é mais pos- sível, fato que vem provocando uma imensa crise de abastecimento nessa ilha. Cuba na realidade foi um modelo explicável pelo contexto da guerra fria e do mundo bipolar, ou seja, uma forma de economia que perdeu a sua razão de existir. Outra modificação ocorrida na divisão internacional do trabalho foi com os países subdesenvolvidos. Eles exportam cada vez 19 mais bens industrializados e comerciam bas- tante entre si. Inúmeros países doTerceiro Mundo são hoje grandes exportadores de produtos manufaturados, que vão desde sapa- tos até automóveis, passando por aço, produ- tos eletrônicos (inclusive microcomputa- dores), tecidos e roupas etc. Entre esses paí- ses encontram-se principalmente a Coréia do Sul, Hong Kong, Malásia, Taiwan e Cingapura, embora também possam ser in- cluídos o México, o Brasil, a África do Sul e outros. E as trocas entre países periféricos ampliou-se enormemente nas últimas dé- cadas. Há uns 30 anos, por exemplo, menos de 20% das exportações brasileiras iam para a África, o Oriente Médio ou o restante da América Latina. Hoje essa proporção já atinge quase 50%. O mesmo se pode dizer de outros impor- tantes países do Terceiro Mundo, que progres- sivamente passam a exportar cada vez mais para outros países subdesenvolvidos, de onde também estão importando mais produtos. Outra forte tendência do mercado mun- dial é a criação de "blocos econômicos" ou mercados supranacionais, cujo grande exem- plo é o MCE - Mercado Comum Europeu. Este conta atualmente com 12 países-mem- bros, mas poderá contar daqui a alguns anos com 19 e possivelmente até com 23 ou 25: há vários países europeus na fila de espera para ingressarem nesse mercado bem sucedido (pri- meiramente a Suécia, a Suíça, a Finlândia e outros países da Europa Ocidental, depois as nações da Europa Oriental com maior afi- nidade com a economia de mercado, tais como a Hungria e a Polônia; há também as três repúblicas bálticas da ex-URSS, por fim a Eslovénia e a Croácia, as duas repúblicas mais ricas da ex-Iugoslávia e t c ) . Mas há outros mercados supranacionais importantes: Estados Unidos, Canadá e Mé- xico já possuem economias bastante inte- gradas e discutem os pontos de um novo mer- cado comum da América do Norte. E na Ásia se aventa a possibilidade de criação de um mercado comum com a participação destacada do Japão e dos "tigres asiáticos". Esses são hoje os grandes centros econô- micos, tecnológicos e comerciais do espaço mundial: o Mercado Comum Europeu, no qual se destaca a Alemanha, o Mercado da América do Norte, com forte presença dos Estados Unidos, e a área ao redor do Japão. A Rússia e as demais repúblicas da ex- U R S S não compõem esse grupo dos três principais centros ou pólos da economia mundial nem têm chances de acompanhar esse grupoainda nesta década. 20 A ordem geopolítica internacional que prevaleceu desde 1945 está ruindo. A guerra fria acabou, ao que parece definitivamente. A partir de 1989, a União Soviética dei- xou de garantir com suas tropas os regimes políticos da Europa Oriental, deixou de cri- ticar violentamente o capitalismo e a econo- mia de mercado, deixou, enfim, de assumir os papéis que vinha desempenhando desde pelo menos o final da Segunda Guerra Mundial. A área de influência geopolítica desse país desagregou-se vísivel e rapidamente a partir de 1989. O Pacto de Varsóvia, poderoso instrumento de domínio soviético sobre a Europa Oriental, foi extinto em 1991. Parece que a própria posição de superpotência mili- tar da ex-URSS - e das repúblicas dela re- manescentes que possuem ainda hoje um forte arsenal de armamentos nucleares, em especial a Rússia - encontra-se em crise, de- vendo desaparecer definitivamente. A própria unidade da Rússia, bem como da CEI, é frágil e pode dar margem a novos separatismos e mesmo a conflitos sangrentos. Todavia, não podemos esquecer que quatro repúblicas da ex-URSS - Ucrânia, Casa- quistão, Bielorússia e principalmente a Rús- sia - possuem armamentos nucleares estoca- dos, os quais provavelmente tem um poderio suficiente para acabar com a vida humana no planeta. O final da guerra fria, dessa forma, não encerrou com a possibilidade de uma guer- ra nuclear, ou de uma terceira guerra mundial. Os Estados Unidos, por sua vez, pros- seguem desempenhando seu papel político- militar com igual ou talvez com até maior desenvoltura do que antes. E como se atual- mente houvesse apenas uma superpotência militar. Em 1989, por exemplo, os Estados Unidos invadiram o Panamá, destituindo o dirigente desse país, general Noriega, a pre- texto de combater o tráfico de drogas (cocaí- na). E bastante provável que antes da peres- troika e da política de abertura da União Soviética e dos países da Europa Oriental, os Estados Unidos não tivessem coragem de tomar uma atitude desse tipo, que ocasionaria uma resposta semelhante por parte da super- potência rival. Com a crise do "mundo socialista", os Es- tados Unidos parece que se sentiram mais "livres" para continuar desempenhando seu papel de superpotência militar. Em 1990, por exemplo, lideraram um cerco econômico e militar ao Iraque, que tinha invadido o Kuait em julho daquele ano. Cinco meses depois, em j aneiro de 1991, o governo de Washington liderou também a ação militar das "forças aliadas" contra o Iraque, da qual resultou a li- bertação do Kuait. Este cerco e a subseqüente "guerra do golfo" teriam sem dúvida fracassa- do se realizados antes de 1989, pois a União Soviética iria fornecer armamentos e outros bens ao Iraque. No entanto, em 1990 e 1991 os soviéticos não tomaram essa atitude típica da Guerra Fria porque estavam mais interes- sados, nesta sua nova fase de abertura para a economia de mercado, nas trocas comerciais e tecnológicas com os países do Primeiro Mundo. Com o término da Guerra Fria, inúmeras perguntas são colocadas: • Novas superpotências militares sur- girão? • Cessarão ou diminuirão os conflitos ar- mados no globo? • A nova ordem geopolítica mundial é 21 monopolar (isto é, com uma só superpotên- cia), como apregoam vários autores, ou se encaminha também para a multipolaridade? A ascensão e queda das grandes potências Durante os últimos séculos, ou até milê- nios, a regra geral é de ascensão e declínio de grandes potências econômicas e militares, mesmo que suas hegemonias perdurem du- rante séculos. Tal foi o caso do Império Ro- mano, na Antiguidade, ou, a partir do desen- volvimento do capitalismo, das inúmeras po- tências que tiveram durante algum tempo uma supremacia internacional: Portugal e Holanda, nos séculos XV e parte do XVI; Espanha no século XVII; Inglaterra nos sécu- lc - XVIII e XIX; e Estados Unidos a partir da Segunda Guerra Mundial. Normalmente uma potência inaugura sua hegemonia pelo poderio econômico, se- guido pelo militar. Segundo essa norma, o Ja- pão e a Alemanha deveriam começar a inves- tir no seu poderio militar nos dias atuais, pois desde os anos 80 superaram a (ex-) União i ética e estão quase alcançando os Esta- do? Unidos em poderio econômico e tecnoló- gico. Contudo, há dois elementos complica- dores a esse respeito. Primeiro, vivemos nu- ma época em que a humanidade pode se auto- destruir. Segundo, ficou já evidente que os gast - militares reduzem o dinamismo da economia. Até por volta de meados deste século, o declínio de uma potência e a ascensão de outra era fato relativamente banal, que provocava guerras e mortes, porém nunca colocava em risco o futuro da humanidade. A Inglaterra, por exemplo, que era pratica- mente a dona do mundo no século XIX, começou - ainda nas últimas décadas daque- le século - a perder sua supremacia para outras economias em ascensão, como a nor- te-americana e a alemã. A Primeira e, em es- pecial, a Segunda Guerra Mundial, vieram somente confirmar o declínio britânico, colo- cando os Estados Unidos como a nova gran- de potência capitalista internacional. Fo- ram, contudo, necessárias duas guerras mun- diais para substituir uma grande potência por outra. Hoje isso não é mais possível: uma guerra mundial poderia exterminar a humanidade. E convém não esquecer que nas últimas dé- cadas as elevadíssimas taxas de crescimento econômico do Japão e da Alemanha decor- reram em parte do fato de eles não terem grandes gastos militares. Suas economias po- deriam passar por problemas crescentes caso eles investissem bastante no setor militar. Para se tornar uma superpotência com ar- mamentos nucleares no atual nível dos Es- tados Unidos e da ex-União Soviética, um país deveria investir dezenas de trilhões de dólares, uma quantia gigantesca, que, se des- viada para o setor militar, certamente acarre- taria um grande sacrifício da economia civil. Os gastos militares são improdutivos mas até certo ponto necessários para uma grande potência econômica. Isso porque há um custo e um risco nos investimentos no exterior; além disso, o fornecimento de matérias-pri- mas ou de combustíveis deve ser garantido a qualquer preço. Veja-se a crise recente no Oriente Mé- dio, deflagrada pela invasão do Kuait pelo Iraque. Os preços do petróleo poderiam ter disparado e essa fonte de energia é básica para a economia moderna. Uma potência eco- nômica deve ter - e costuma ter, dentro da lógica dominante há séculos - meios políti- co-militares para contornar ou resolver tais crises. Os Estados Unidos foram o país que enviou mais tropas e instrumentos bélicos ao Oriente Médio - e não se pode esquecer no que tudo isso implica em termos de gastos econômicos. Sabemos contudo que uma ele- vação excessiva do preço do petróleo preju- dica mais as economias japonesa e alemã do que a norte-americana. 2 2 Até quando os Estados Unidos vão con- tinuar atuando como o cão de guarda do "mundo ocidental ou capitalista", numa épo- ca em que não há outro mundo e o poderio econômico dessa superpotência não mais cor- responde ao excessivo papel político-militar? Já faz alguns anos que as autoridades norte-americanas pressionam o Japão no sen- tido de que esse país amplie seus gastos mili- tares e passe a cuidar de sua própria segu- rança e talvez até das áreas vizinhas no oceano Pacífico. E os países europeus da OTAN, com a nova conjuntura internacio- nal e com o final do Pacto de Varsóvia, já começam a se sentir incomodados com as tropas norte-americanas em seu continente. Eles já começaram a falarnum novo tratado militar europeu, que excluiria os países de fora (isto é, os Estados Unidos). Enfim, este é um momento de mudanças e de indefinições a esse respeito. O mais pro- vável para os próximos anos, entretanto, é que o atual poderio político-militar e diplo- mático norte-americano acabe sendo repar- tido com uma crescente influência da nova Europa e do Japão. Há uma ordem econômica multipolar, embora aparentemente a ordem geopolítica seja monopolar, mas isso é um fato provisó- rio, gerado pela rapidez da decadência sovié- tica. A Europa e o Japão, acostumados du- rante mais de quatro décadas a seguir a lide- rança dos Estados Unidos em face do "perigo socialista", vivem neste momento uma fase de redefinição de sua política externa e de busca de maior influência para contrabalan- çar a liderança norte-americana, que já não tem mais fundamento. Afinal, com o fim da Segunda Guena Mundial e o advento do mun- do bipolar, os Estados Unidos sozinhos pos- suíam um volume de produção econômica maior que toda a Europa Ocidental e o Japão somados. Hoje isso mudou substancialmen- te, com um enorme declínio relativo dos Es- tados Unidos frente ao fortalecimento do Ja- pão e dos países europeus ocidentais em geral. Normalmente a influência político-mili- tar de uma nação corresponde mais ou menos ao seu poderio econômico e tecnológico, que implica no fato de que o enorme e despropor- cional papel dos Estados Unidos na defini- ção da nova ordem internacional deverá ser disputado ou repartido com uma maior pre- sença da Europa e do Japão. O novo papel da O N U Outro aspecto a assinalar com o final da guerra fria e da bipolaridade é o reforço da ONU e do grupo dos países mais industriali- zados do Primeiro Mundo, os chamados "sete ricos" (EUA, Alemanha, Japão, Grã-Bre- tanha, França, Itália e Canadá). A ONU nunca desempenhou um papel muito ativo nos conflitos internacionais porque o poder de veto no Conselho de Segurança dos Es- tados Unidos e da União Soviética (além da China, da Inglaterra e da França) sempre fez com que nenhuma decisão realmente dura ou importante pudesse ser sancionada. Com o final da oposição Leste x Oeste, que deu origem a tantos impedimentos da ONU desde sua criação até 1989, percebe-se que há um novo e mais ativo papel para essa or- ganização internacional. Pela primeira vez desde que foi criada, a ONU em 1990-1991 autorizou uma ação de natureza militar ofensiva: a libertação do Kuait por um conjunto de forças liderado pelos Estados Unidos e integrado também por tropas italianas, inglesas, sauditas, egípcias etc. O grupo dos "sete ricos", por sua vez, vem ampliando a sua importância econômica e até política no cenário internacional devido ao enorme poder de investimentos que pos- sui (grande parte do PNB mundial localiza- se nesses sete países) e devido também à crise dos países "socialistas" e dos países endivida- dos do Terceiro Mundo. O final da oposição Leste x Oeste, dessa forma, vem reforçar 23 ainda mais as disparidades entre o Norte rico, especialmente esse grupo de sete países, e o Sul pobre e menos industrializado. Quanto aos conflitos armados, o que se vem notando desde 1989 é que a paralisação da Guerra Fria não os diminuiu. Talvez até mesmo os tenha aumentado. Com o apogeu da Guerra Fria e a divisão do mundo em "áreas de influência" dos Estados Unidos e da União Soviética, ocorriam guerras, mas não de maneira tão intensa. Isso porque as duas su- perpotências sempre procuravam evitar con- flitos que pudessem gerar uma crise mundial. Afinal, a Guerra Fria não era somente uma competição ou oposição, mas também uma forma implícita de cooperação ou coni- vência, uma política de tentar controlar os demais países e as oposições internas. Nos últimos anos o que se nota é que no- vos atores entraram em cena, aproveitando o vazio deixado pelo congelamento da Guerca Fria. Houve, por exemplo, casos de governantes de países do Terceiro Mundo que invadiram territórios vizinhos ou ainda que procuraram ou procuram desenvolver armamentos nu- cleares, visando possivelmente uma situação futura de potências regionais. E provável aindaqueo "clube atômico", isto é, o conjun- to de países que possuem bombas nucleares, se amplie consideravelmente nas próximas décadas. Tudo isso vem produzindo um mundo mais instável e menos previsível. Por um lado, isto é positivo, pois surgem novas possibilidades e opções, que eram obstaculanzadas pela Guer- ra Fria. Mas, por outro lado, essa situação encerra perigos de violentas guerras ou con- flitos armados internos. [Foto ilegível] Reunião dos sete grandes e ou sete ricos (Itália, Alemanha, França, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Japão). A nova ordem interna- cional em grande parte vai sendo definida pelas politicas - de ajudas, renegociações de dívidas, reconhecimentos de novas nações etc - desses países mais industrializados. 24 O M U N D O B I P O L A R DE I 945 ATÉ OS A N O S 80 M U N D O C A P I T A L I S T A M U N D O S O C I A L I S T A Areas satelizadas pela superpotência "socialista" O M U N D O MULTIPOLAR DOS A N O S 90 ÁREAS AINDA INDEFINIDAS / . C E I - Comunidade de Estados Independentes (ex -URSS) . Por um fado, pode vir a tomar-se uma periferia da Europa; por outro lado, pode ocorrer a incorporação das Repúblicas meridionais c islâmicas ao Oriente Médio. Pode também vir a ser um mercado comum efetivo, menos importante que os três principais. 2. C h i n a Pode ser periferizada pelo Japão ou toma-se uma nova potência. 3. Oriente Médio. Área de disputa entre os três pólos ou centros importantes, com vantagem momentânea para os Estados Unidos; pode também vir a ser uma região original pela união dos povos e Estados islâmicos, com tendência a não se alinhar preferenúalmente em nenhum dos três centros. redescoberta da complexidade do mundo A Guerra Fria possuía uma ideologia, que consistia na supervalorização da opo- sição entre capitalismo (para uns sinônimo de opressão, para outros de liberdade) e socia- lismo ou comunismo (para uns sinônimo de paraíso na Terra, para outros de totalitaris- mo). E como se não houvesse outras opções ou vias, mas somente duas: uma simbolizada pelos Estados Unidos e outra pela União So- viética. Como se o século XX pudesse ser in- terpretado como a luta ou oposição entre es- ses dois sistemas sócio-econômicos ou "mo- dos de produção". Essa ideologia, felizmente, já se encontra superada. Podemos até encontrá-la, sob diver- sas roupagens, em inúmeras obras dogmáti- cas; mas essa interpretação simplificadora e falsa já não faz mais adeptos nem tem base de sustentação na realidade empírica; não tem futuro, afinal. Do lado dos que defendiam o modo de vi- da norte-americano ou do capitalismo já não há mais o "inimigo", o "outro lado" a ser com- batido. O que começa a surgir com clareza é o fato de que "capitalismo" não explica tudo, que esse sistema sócio-econômico existetan- to na Suécia como na índia, realidades ex- tremamente diferenciadas. Redescobre-se a importância das lutas so- ciais (não confundir com "lutas pelo socialis- mo", como faziam alguns até há pouco tem- po), das culturas ou civilizações, das especifi- cidades nacionais e até regionais. E do lado dos que defendiam o "modelo so- viético" (mesmo que tenham em Cuba seu grande exemplo), já não há mais um "paraí- so" a ser apontado como exemplo para o fu- turo sob o capitalismo. A economia planifi- cada e o partido político de inspiração leni- nista (o partido que sepretende único, guar- dião dos dogmas marxistas-leninistas, ex- tremamente centralizado e burocratizado, mas que diz representar os trabalhadores) fra- cassaram em todas as partes onde vigoraram. Nessas condições, há uma redescoberta da complexidade do mundo. A questão das cul- turas - vide a importância do islamismo no Oriente Médio, por exemplo, ou do hinduís- mo na índia e do confucionismo na China - passa a ser revalorizada. Os projetos políticos que muitas vezes redefinem as condições econômicas - como o da unificação européia - voltam a ser também valorizados. Enfim, redescobre-se a pluralidade de ca- minhos e opções que existem ou que podem ser criados. O dogmatismo do "caminho úni- co" está em baixa e a nqueza cultural da plu- ralidade e da diversidade ganha espaços nas teorias e explicações do mundo. Isso, a nosso ver, é enriquecedor para o ensino da Geo- grafia. E enfrentando desafios e refletindo sobre as mudanças que se desenvolvem o raciocínio e a criticidade. Uma das variantes da ideologia da Guer- ra Fria, que chegou a ter alguma importância na Geografia humana, foi a filosofia deter- minista da história baseada na sucessão de etapas ou" modos de produção": comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalis- mo e socialismo. Trata-se de uma vulgariza- ção do marxismo operada em especial pelo stalinismo e que dá ênfase à economia, e à produção. E como se houvesse "leis da his- tória" que levassem necessariamente a está- gios e, no seu final, ao socialismo e ao comu- nismo (com etapa posterior do socialismo). 27 Mesmo essa variante hoje se encontra em crise. Até os grandes teóricos-historiadores, filósofos ou sociólogos russos, tchecos, polo- neses etc. - que procuravam fundamentar esse esquema evolucionista estão revendo suas idéias e reelaborando suas obras e suas inter- pretações sobre o mundo com uma crítica des- se economicismo de inspiração stalinista (e que era tabu nesses países até alguns anos; era uma espécie de "teoria científica oficial"). Não precisamos nomear o futuro. Sabe- mos que as conquistas sociais - quaisquer que sejam: reforma agrária, redistribuição mais igualitária da renda nacional, normas de de- fesa dos consumidores, menor poluição nos rios ou na atmosfera, moradia para os sem te- to, seguro-desemprego etc. - sempre resul- tam de lutas sociais, de reivindicações popu- lares que se tornam vitoriosas. E isso é válido em qualquer parte do mundo: também nos países do Primeiro Mundo o elevado padrão de vida para os trabalhadores resultou de conquistas populares. Não é portanto necessário nenhum rótu- lo-seja "socialismo", seja "comunismo", seja modelo cubano" ou seja "modelo norte- americano" - para se nomear uma sociedade mais justa e igualitária. Somente as mentes autoritárias é que precisam de certezas pré- vias, de definições já prontas quanto ao fu- turo, de perspectivas bem delineadas e es- quematizadas. E por isso que o "modelo so- viético" foi extremamente autoritário e repres- sor: mesmo carregando boas intenções (a so- ciedade igualitária), a atitude de pretender representar as" leis da história", a dialética ou "verdade do social" acaba conduzindo à in- transigência em relação a todos os que pen- sam de forma diferente. A atitude mais democrática é sempre a de aprender continuamente, de se abrir para novas experiências, de aceitar a pluralidade e a complexidade do mundo. Não precisamos de nenhum esquema teórico que nos dê (e aos alunos) certezas quanto ao futuro, mas ape- nas de abertura para os novos acontecimen- tos e as novas idéias. O final da bipolaridade e da oposição Les- te x Oeste cede lugar a novas contradições e tensões. Em primeiro lugar, a disparidade Norte x Sul, com o agravamento do abismo entre os países líderes da economia e da tecnologia modernas e o pelotão de retardatários da Africa em geral, do sul e sudeste da Ásia e da América Central. O Terceiro Mundo apare- ce cada vez mais como complexo e heterogê- neo, com situações bem diferenciadas. A idéia de periferia hoje se diversifica, podendo se reconhecer pelo menos três situações principais. Em primeiro lugar temos a periferia ime- diata ou privilegiada de um centro ou pólo econômico e tecnológico importante, países que são incorporados em mercados comuns e conhecem uma grande melhoria nos padrões de vida. Neste caso temos o México na Amé- rica do Norte, Portugal e Grécia na Europa (e talvez até futuramente a Europa Oriental e repúblicas da ex-URSS), os "tigres asiáticos" no Extremo Oriente. Em segundo lugar temos a periferia inter- mediária, os países que se industrializaram e exportam bens manufaturados mas que estão à margem dos principais mercados suprana- cionais. Aqui entram o Brasil, a Argentina, o Uruguai, a Venezuela e inúmeras outras na- ções, que são dependentes tecnológica e fi- nanceiramente dos centros internacionais da economia mas nunca meros fornecedores de matérias-primas. Em muitos casos eles tentam criar mercados regionais, como por exemplo o Mercosul. Por fim, temos a periferia mais pobre e dependente, constituída pelos países que não ingressaram no processo de modernização e só dispõem de minérios, produtos agrícolas pou- co variados e valorizados e mão-de-obra ba- rata (e cada vez menos necessária na econo- mia informatizada e robotizada). Este é o cha- mado "quarto mundo", o mundo dos países africanos, centro-americanos e de partes (sul 28 e sudeste) da Ásia, inclusive muitos dos oriun- dos da dissolução do "mundo socialista" (como Vietnã, Camboja, Moçambique, Laos e t c ) . As contradições ou tensões políticas (em especial a oposição democracia e autoritaris- mo), étnico-nacionais, culturais-religiosas e até ambientais se reforçam e ganham uma renovada importância nos destinos do mun- do. A luta pelos direitos humanos - e, em muitos casos, pela sua extensão ou ampliação no sentido ambiental, das crianças, das mi- norias etc. - está mais do que nunca na or- dem do dia. As nacionalidades oprimidas no interior de Estados-nações dominados por outras etnias (veja-se o caso representativo da ex-Iugoslávia, dos curdos no Iraque, dos tibetanos na China, dos chechenos na Rús- sia etc.) cada vez mais se organizam e reivin*- dicam, às vezes até pela luta armada, a sua au- tonomia. E a importância das culturas ou civiliza- ções, que em muitos casos possuem um forte componente religioso (especialmente no caso do mundo islâmico), novamente vem se opor ao processo incompleto de ocidentalização do planeta. E a questão ecológica ou ambiental no sen- tido amplo ganha a cada ano mais evidência, constituindo seguramente uma das mais im- portantes frentes de lutas dos anos 90 e do início do século XXI. Daí se discutir tanto sobre o papel da ecologia na nova ordem in- ternacional, sobre a Amazônia, a Antártida, o efeito-estufa, a biodiversidade etc. A questão ambiental deixou de ser um elemento secundário, como foi no mínimo até os anos 60, e passou a representar um dos temas mais candentes e polemizados na im- prensa em geral e até na vida política. E que a humanidade - e países do Primeiro Mundo em especial, sempre na vanguarda do conhe- cimento científico - percebeu desde os anos 70 que a vida moderna e seus efeitos (po- luição, armamentos nucleares, destruição da paisagem natural etc.) pode destruir a vida humana no planeta e também que a biodi- versidade é positiva e necessária para o avan- ço da qualidade de vida. A preservação de patrimônios ecológicos (e também culturais) e o controle da polui- ção passam assim a ser condições sine qua non para manter ou até elevar os benefícios do progresso,
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