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Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 1 Aula 3 Números reais Metas Esta aula é sobre a noção de números reais, conjunto numérico criado para a representação matemática de grandezas contínua, e que amplia o conjunto dos números racionais. Objetivos Ao final desta aula você deve: • conhecer os números reais, assim como a sua representação em notação decimal e geométrica; • conhecer a noção de ordem dos números reais; • conhecer a noção de módulo; • conhecer as duas operações básicas entre números reais; • saber resolver inequações. Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 2 Um pouquinho de história A escola pitagórica acreditava que tudo que há no universo poderia ser descrito pela Matemática. Mais precisamente, os pitagóricos pregavam que os números formavam a base de todas as representações das ideias humanas, isto é, que os números governavam o mundo. A noção de número, na época (século VI a.C.), representava as quantidades inteiras positivas, e até as quantidades fracionárias. Na base do conhecimento matemático desenvolvido pelos pitagóricos, havia uma premissa que admitia que dois segmentos quaisquer são sempre comensuráveis, ou seja, a e b são segmentos comensuráveis se existe um segmento u e números inteiros p e q tais que a = pu e b = uq, ou seja, se a e b são múltiplos de uma mesma unidade fixada. Contudo, a descoberta, feita pelos próprios pitagóricos, de que a diagonal de um quadrado e seu lado não são comensuráveis (o que é equivalente ao fato de que 2 não é racional) gerou a primeira crise matemática da história, pois invalidava todas as demonstrações que haviam sido feitas usando essa premissa. Esta dificuldade foi superada somente com um grande esforço por parte dos gregos, quando Eudoxo (408-355 a.C.) apresentou sua teoria geométrica do contínuo. Euclides, por volta de 300 a.C., apresentou uma compilação dos resultados da Matemática conhecidos até então em seus Elementos. Para fugir das deficiências dos números (para a época), Euclides passou a trabalhar questões numéricas a partir de representações geométricas, ou seja, a partir do enfoque geométrico. A necessidade de ampliar o conjunto dos números racionais Este episódio da história da Matemática deixou marcas fortíssimas que são percebidas até hoje em dia (passados mais de 2 mil anos). Reflexos desta crise matemática e de como os gregos lidaram com ela influenciaram diretamente, por exemplo, o ensino da Matemática até algumas poucas décadas atrás. Não é nosso objetivo discutir este episódio, nem suas consequências, mas é interessante que o leitor entenda melhor como ocorreu esta crise. Nós já falamos sobre a questão de associar grandezas a números, chamado de processo de quantificação. As grandezas que podem ser quantificadas são chamadas de grandezas escalares. Em física, é comum fazer referência a grandezas discretas e Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 3 contínuas. (você sabia que existem outros tipos de grandezas?) Por exemplo, tempo, velocidade e comprimento são exemplos de grandezas escalares contínuas. Já população e moléculas de um gás são exemplos de grandezas escalares discretas. É claro que estes exemplos podem variar. Se quisermos medir o tempo em termos de dias decorridos, podemos quantificar a grandeza tempo associando-a aos números inteiros; o que a tornaria uma grandeza discreta neste caso. Vamos, agora, nos preocupar com as grandezas contínuas. Só para fixar idéia, vamos considerar a grandeza comprimento. Vimos, na aula 2, que podemos obter um bom processo de quantificação desta grandeza fazendo uma associação com os números racionais. É uma boa quantificação porque os números racionais permitem considerar submúltiplos da unidade. Em particular, permite medir comprimentos com uma precisão tão grande quanto se queira. Para isto, basta escolher um submúltiplo da unidade suficientemente pequeno. Por exemplo, você pode usar a unidade metro para fazer medições. Se necessitar de mais precisão na medida, pode usar o centímetro, unidade que é um centésimo do metro. Se quiser mais precisão na medida, pode, então, escolher o milímetro, que é um milésimo do metro. Se ainda for necessário trabalhar com maior precisão de medida, existem instrumentos capazes de medidas ainda mais precisas, permitindo trabalhar com submúltiplos da unidade ainda menores. Em resumo, os números racionais parecem formar um bom conjunto numérico para ser usado na quantificação de grandezas contínuas. Na prática, num processo de medição real, não teórico, não é fácil determinar o número racional exato que corresponde a um segmento dado. Por exemplo, podemos medir um segmento com uma régua que tem marcação de centímetros e milímetros e obter o valor 3,2 cm. Contudo, este valor pode não ser muito preciso, o avaliador pode ficar na dúvida se a medida é mesmo 3,2 ou se não pode ser 3,3. Neste caso, pode-se recorrer a instrumentos auxiliares. Por exemplo, com o auxílio de uma lupa, ou de um microscópio, pode-se tranquilamente tirar esta dúvida, digamos que o valor seja 3,2 mesmo. Ainda assim, com a melhoria do instrumento de medição, pode aparecer outra dúvida, será que a medida mais precisa é 3,26 ou 3,27? Ainda do ponto de vista prático, a evolução da forma de avaliação do tamanho de um segmento não garantirá uma avaliação definitiva, pois sempre é possível ampliar a graduação da reta, com novos submúltiplos obtidos a partir do novo instrumento de medição, o que causa o aparecimento de uma nova casa decimal na representação numérica que mede o segmento. Assim, sempre é possível encontrar um número racional que se aproxime Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 4 tanto quanto se queira da medida real. Mas, por outro lado, sempre fica a dúvida se esta medida corresponde exatamente ao segmento avaliado. Nesta nossa história, uma questão sobre a associação de grandezas a números continua incompleta. Vimos que grandezas de natureza contínua não ficam completamente determinadas por números inteiros. Por exemplo, nem todo segmento pode ser representado por um número inteiro. Depois, vimos que grandezas contínuas podem ser associadas a números racionais, pois, do ponto de vista prático, todo processo de medição possui limitações de precisão, enquanto que sempre podemos encontrar números racionais tão próximos quanto se queira. Contudo, não sabemos realmente se qualquer estado de uma grandeza contínua pode ser sempre associado a exatamente um número racional, ou melhor, se cada número racional corresponde a um único estado da grandeza. Por exemplo, será que todo segmento pode ser associado a um número racional e vice-versa? A história sobre esta pergunta é bastante conhecida e foi ela que deu origem a primeira crise matemática. Este problema foi abordado pela escola pitagórica (século VI a.C.) quando se perguntou sobre a medida da diagonal de um quadrado de lado 1. Na época, eles perceberam que a diagonal de um quadrado de lado 1 não pode ser representada por um número racional. De fato, se a é um número então, pelo teorema de Pitágoras para triângulo retângulo, vale que a2 = 12 + 12, donde a2 = 2. Contudo, é um fato bem conhecido que não existe um número da forma q p que satisfaça tal equação. Ou seja, não existe um número racional que represente o segmento a. Assim, instalou-se uma crise, pois a utilidade da matemática neste processo de quantificação era limitada. Observe que se a diagonal do quadrado de lado 1 fosse um número, ele representariao 2 , pois satisfaz a equação a2 = 2. 1 1 a a 0 1 Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 5 Atividade 1 Em um papel milimetrado, utilize um segmento grande como unidade (utilize como unidade um segmento que seja 100 vezes o menor quadrado da folha). Reproduza o desenho acima e meça o segmento que representa a diagonal do quadrado. Você achará um número com duas casas decimais. Veja se esta aproximação coincide com o valor obtido de uma calculadora para 2 . De outro modo, calcule o quadrado do número que você obteve e eleve ao quadrado. Veja se o resultado faz sentido. O conjunto dos números reais Apesar da necessidade de um conjunto numérico que ampliasse os números racionais ter sido percebida desde a verificação de que a medida da diagonal de um quadrado de lado 1 não é um número racional, em torno do século VI a.C., foi necessário cerca 2500 anos para que os matemáticos criassem um novo conjunto numérico. Só em 1872, com a publicação de um ensaio sobre o assunto, por Richard Dedekind, o conjunto conhecido como o conjunto dos números reais foi finalmente formalizado. Enfim, completou-se a história da criação de uma extensão numérica do conjunto dos racionais que pudesse oferecer uma associação completa às grandezas contínuas. O conjunto dos números reais, denotado por �, é o conjunto criado pelos matemáticos que estende o conjunto dos números racionais (� ⊂ �) e está em completa correspondência com as grandezas escalares contínuas. Uma definição precisa deste conceito é assunto de estudo de uma disciplina mais avançada. Para o estudante iniciante, basta conhecer bem as representações de �, assim como as representações de suas operações. O conjunto dos números reais tem uma peculiaridade no que diz respeito às suas possíveis representações, nem todo número real possui uma representação numérica que possa ser obtida a partir dos números racionais e que seja finita. Por exemplo, temos 0,5 como uma representação do número que representa a metade da unidade. Esta é uma representação decimal finita. O número que representa um terço da unidade pode ser representado como 0,3333... . Esta é uma representação decimal infinita. Contudo, a mesma quantidade pode ser representada por 3 1 , agora, sim, uma representação finita. Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 6 Para o conjunto dos números reais, existem elementos que só podem ser representados finitamente se for através de símbolos não numéricos. Um exemplo disso é o número π, que representa metade do comprimento de um círculo de raio 1. Outro exemplo é o número e que está associado a várias aplicações importantes do nosso cotidiano, como medição de resfriamento de um corpo, datação de objetos antigos através de medição de desintegração radioativa e cálculo de juros contínuos. Como exemplo, não podemos esquecer do número 2 . Só por curiosidade, a sua representação decimal é parcialmente dada pela expressão 1,41421356237309504880116887242097... . Este é um dos problemas da representação decimal para números reais que não são racionais. Só podemos fazer referência a eles de forma parcial. Por exemplo, na sequência de casas decimais do número 2 , não tem como saber, de imediato, qual será a próxima casa decimal. Não é difícil entender que todo número real possui uma representação decimal. Lembre, leitor, que o conjunto dos números reais foi criado par ser o conjunto matemático que pode ser associado a grandezas escalares contínuas. Um exemplo deste tipo de grandeza é o comprimento. Se o tamanho de um segmento não é múltiplo da unidade, podemos encontrar uma medida inteira que aproxima do segmento, digamos a. Mas, podemos melhorar, com a escolha de um submúltiplo da unidade, a medição do segmento. Para isto, dividimos a reta graduada em dez partes e podemos, então, avaliar melhor o segmento, digamos que a + 10 1a seja a melhor aproximação, mas não seja a medida exata. Assim, é preciso dividir o submúltiplo da unidade em dez partes para obter uma medição melhor, digamos a + 10 1a + 100 2a . Se esta representação numérica não for a medida exata, é preciso dividir novamente em dez partes a fim de buscar uma medida mais aproximada, digamos, a + 10 1a + 100 2a + 1000 3a . Note que esta forma de escrever um número é equivalente a notação decimal, a,a1a2a3. Se o segmento medido não está associado a um número racional (e já vimos que isto é possível), o processo de subdivisão da unidade terá que ser repetido sempre, indefinidamente, o que irá gerar uma representação decimal infinita, a,a1a2a3...an... . Assim, todo número real pode ser representado através de uma notação decimal infinita. Atividade 2 Determine se o número real dado é racional ou não. Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 7 a) 2,124 b) −0,1111111 c) 1,04237237237237... d) 4,01001000100001... e) 9,1423684579454445677777732355654... Assim como os números racionais, os números reais possuem uma representação geométrica que funciona da seguinte maneira. Considere uma reta r e fixe uma unidade de medida, OU. O conjunto dos números reais, denotado por �, é o conjunto dos segmentos da reta r da forma OA, isto é, � = {a = OA : A∈r}. Nesta representação geométrica, todo segmento representa um número real. O conjunto dos números reais diferentes de 0 e contidos na semi-reta OU é chamado conjunto dos números reais positivos e denotado por � +. O conjunto dos números reais diferentes de 0 e contidos na semi-reta oposta a OU é chamado conjunto dos números reais negativos e denotado por � −. Em linguagem simbólica, �+ = {a ∈ � : a ⊂ OU e a ≠ 0} e �−−−− = {a ∈ � : a ⊄ OU e a ≠ 0}. Observação: Com estas últimas notações, temos � = �+ ∪ �− ∪ {0}. Observação: Parece que as notações �+ e �− não são utilizadas no ensino básico. Neste caso, pode-se escrever ��� e �−� , respectivamente. Atividade 3 Podemos facilmente obter outros segmentos que não podem representar nenhum número racional. Veja o desenho a seguir. r O U A A = AO ∈ � Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 8 a) Verifique, via teorema de Pitágoras, que os segmentos obtidos representam a raiz da equação x2 = 3 e x2 = 4, respectivamente. Repita o processo ilustrado na figura para obter segmentos que representem 5 e 6 . b) Reproduza o desenho anterior numa folha, sobre uma reta graduada pela unidade dada pelo centímetro. Utilize uma régua com milímetros para medir os segmentos obtidos. Utilize uma calculadora para obter valores aproximados de 2 , 3 , 5 e 6 . Verifique se estes valores coincidem com as medidas obtidas no seu desenho. (Utilize régua, compasso e esquadro para construir os desenhos.) Com a ampliação dos números racionais para os números reais, a reta graduada passa a ter novas possíveis marcas. Veja um exemplo. Leitor, é possível que você esteja incomodado com este novo conjunto numérico. Realmente, no nosso cotidiano é muito difícil se deparar com um número real que não é racional. Contudo, por mais incrível que pareça, existem muito mais números reais que não são racionais do que os que são racionais. Podemos enumerar alguns explicitamente, como π, e, 2 , 3 , 5 e 6 , ou toda raiz n , onde n ∈ � e n não é o quadrado de um número. Na próxima seção você verá como produzir mais números reais e, assim, verá que o conjunto destes números é maior do que o conjunto dos números racionais. Inclusive, existe um nome para os números reais que não são racionais, são os números irracionais.As operações soma e produto de � �� 0 1 �� 2 Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 9 Provavelmente, o maior problema de se considerar as representações decimais para os números reais seja na hora de definir as operações soma e produto. Neste momento a representação geométrica se mostra muito útil. Veja, através de desenhos, como as operações soma e produto de números reais podem ser entendidas. Representação geométrica da soma de dois segmentos. Representação geométrica do produto de dois segmentos. Veja como fica o desenho do produto 2 × 2 . O resultado é o esperado, 2. Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 10 Apesar do que se costuma divulgar, o conjunto dos números irracionais é muito maior do que conjunto dos números racionais. Para entender isto melhor, basta ver que se a é racional e x é irracional então a + x é irracional. De fato, se a + x = b é racional então temos x = b − a como racional, pois a diferença de racionais é racional. Mas, isto é um absurdo, pois um número não pode ser racional e irracional. Assim, todos os números da forma a + 2 , onde a ∈ �, é irracional. Só por curiosidade, se fossemos representar geometricamente só os números racionais e depois só os números irracionais, teríamos algo parecido com os seguintes desenhos. Propriedades operacionais No caso dos números reais, �, não é muito adequado utilizar representações numéricas ou geométricas nos cálculos operacionais. Nesta caso, a melhor opção é fazer uso da Álgebra elementar. Isto significa que, para um estudo inicial, a melhor maneira de se trabalhar com as operações é usar e abusar das propriedades operacionais dadas a seguir. a) (x + y) + z = x + (y + z); b) 0 + x = x + 0 = x; c) x + (–x) = (–x) + x = 0; d) x + y = y + x; e) x + a = b ⇒ x = b + (−a); f) a + x = a + y ⇒ x = y; g) (xy)z = x(yz); h) 1.x = x.1 = x; i) se x ≠ 0, xx−1 = x−1x = 1; Reta com todos os reais marcados Reta só com os racionais marcados Reta só com os irracionais marcados Matemática Básica Aula 3 Cristiane Argento Ion Moutinho 11 j) xy = yx; l) se a ≠ 0, ax = b ⇒ x = a−1b; m) se a ≠ 0, ax = ay ⇒ x = y; n) x(y + z) = xy + xz; o) (x + y)z = xz + yz; p) xy = 0 ⇒ x = 0 ou y = 0; q) (−a)b = a(−b) = −ab. Atividade 4 a) Estude o seguinte desenvolvimento de contas. Identifique as propriedades utilizadas ao longo das contas. −3( 7 5 − 2π) + 7 5 = −3 7 5 + 6π + 7 5 = −3 7 5 + 7 5 + 6π = −3. 7 5 + 1. 7 5 + 6π = = (−3 + 1). 7 5 + 6π = −2 7 5 + 6π. b) Desenvolva as contas dadas a seguir realizando o máximo de transformações possível. i) π +π−− 2/32)32(2 ii) − 35 + 5.34 − 2.33 + 12.32. c) Encontre a média aritmética de 21, 21, 10, 28, 33, 33, 28, 10, 10, 28, 21 e 21 (soma dos valores dividida por 12), mas evitando ao máximo de fazer contas grandes. d) Resolva a equação 7 5 x + 2 = x − π. e) Resolva o sistema de equações, =+ =− 5 323 2 yx yx π .