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1 CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CURSO: Tecnólogo em Segurança Pública DISCIPLINA: Modelos e Instituições de Segurança Pública em Perspectiva Comparada CONTEUDISTA: Vívian Paes. Aula 1 – Culturas jurídicas: a common law e a civil law. Nesta aula serão apresentadas nesta aula as semelhanças e diferenças entre duas principais culturas jurídicas ocidentais e a importância da abordagem comparativa para compreendermos não só outros contextos como também para entendermos melhor a nós mesmos.Dirige-se ao estudo de como o Estado, suas instituições e seus agentes se organizam para reconhecer, propor uma leitura e administrar institucionalmente os conflitos. Descreve ainda as diferentes relações que as instituições e o Estado têm com a sociedade e a linguagem com as quais são feitos os processos para restituição dos fatos e punição das pessoas. Meta Apresentar a abordagem em termos de cultura jurídica e especificar algumas das principais características das culturas jurídicas presentes no mundo ocidental: a civil law e a common law. 2 Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: 1. entender os principais contrastes entre as culturas jurídicas apresentadas; 2. observar como a cultura jurídica informa como em diferentes contextos é produzido conhecimento sobre os fatos sociais; 3. observar as formas como o Estado e os indivíduos podem influenciar as práticas de suas instituições; Introdução Vivemos em um mundo cada vez mais globalizado. As nossas relações pessoais e mesmo as relações entre diversos estados ultrapassam os antigos vínculos que nos uniam em uma mesma dimensão de tempo, espaço e território. As nossas ações estão vinculadas e têm consequênciaspara ações de outros, mesmo que não estejamos mais juntos em uma interação face a face. O fenômeno da internet, por exemplo, contribuiu para facilitar o fluxo de informação,ampliarmos o nosso espaço de interação e nos inserirmos em um mercado de dimensão global. Apesar das potencialidades, estamos lidando com novos desafios e novos problemas onde entender os nossos conflitos e direitos em relação ao dos outros é de grande importância. Eis alguns exemplos: 1) As cortes penais internacionais fazem esforços em criar procedimentos penais comuns, mas seria este fruto da combinação de diferentes modelos jurídicos ou deveria se apoiar em apenas um desses modelos? Esse tipo de esforço aponta para a importância de conhecermos não apenas uma, mas várias formas de pensaro direito, a partir da observação das instituições, 3 dos procedimentos e do corpo legislativo existente em diferentes estados nacionais (Breyer, IN: Garapon, 2008, p. xiv). Figura 1.1. Símbolo do Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Haya) Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tribunal_Internacional_de_Justicia_- _International_Court_of_Justice.svg?uselang=pt-br 2) Além disso, vemos operações policiais promovidas em conjunto entre instituições localizadas em distintos países afim de identificar suspeitos de crimes e a circulação de mercadorias e pessoas. Para tanto devemos também estar atentos para os distintos procedimentos e normativas que organizam outras experiências nacionais. Figura 1.2. Mapa dos países membros da Organização Internacional de Polícia Criminal, Interpol 4 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Interpol?uselang=pt- br#/media/File:Map_of_the_member_states_of_Interpol.svg 3) Por último, gostaria de chamar a atenção para as empresas multinacionais que estão em um mercado global e a importância de reconhecimento das distintas normativas nacionais que afetam a forma de contrato de trabalho e das normas regulatórias para a produção e circulação de mercadorias. Também destacar a importância da função desempenhada por alguns organismos para a promoção dos direitos dos trabalhadores a partir da reunião de governos, empregadores e trabalhadores oriundos de diversos países. Figura 1.3. Símbolo da Organização Internacional do Trabalho, OIT 5 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Flag_OIT.svg?uselang=pt-br Nesta aula será abordada a importância da comparação de diferentes culturas jurídicas. Fala-se em culturas, pois entende-se que existem traços referentes aos valores, sistemas de crenças e formas de organização social que podem aproximar ou distanciar asexperiênciasde algumas de nossas instituições jurídicas e políticas nacionais. Esta aula irá discutir estes pontos, tomando como base duas culturas jurídicas ocidentais e como estas se comportam em diferentes contextos. Equívocos e possibilidades da comparação A partir de agora apresentaremos a vocês as principais características de diferentes culturas jurídicas aos quais se associam diversos países ocidentais. Com isso, esperamos que nessas e nas aulas seguintes vocês sejam capazes de compreender aquelas características que nos assemelham, que apontam continuidades e que nos distanciam de outras experiências. É preciso ficarmos muito atento ainda para o fato de que nomes de instituições e institutos semelhantes podem ter significados muito diferentes dependendo do contexto político, cultural e normativo que organiza as nossas experiências na sociedade. 6 Isso aponta para a dificuldade, mas não para a impossibilidade de comparação entre instituições que se localizam em distintos países no mundo. Equívocos Alguns autores apresentaram que alguns equívocos que devem ser evitados nesse empreendimento comparativo: a) deve-se evitar o risco de fazer generalizações errôneas ao falar que há continuidades entre instituições que sofreram descontinuidades ao longo do tempo; b) deve-se evitar ver apenas semelhanças, tentando identificar que os mesmos significados se encontram por trás das mesmas palavras, sem compreender que elas procedem de representações coletivas muito diferentes (Garapon e Papapoulos, 2008, pp.1-2); assim, os institutos não são equivalentes só porque tem nomes semelhantes (Kant de Lima. In: Garapon e Papapoulos, 2008); c) deve-se evitar fazer muitas comparações sem muito conhecimento contextual de fundo (Schulteis apud Paes, 2013) d) por ultimo, chamo a atenção para evitarmosa transposição de experiências estrangeiras para a compreensão e resolução de problemas locais. Possibilidades Quanto às possibilidades proporcionadas pela comparação, vemos que: a) é importante que a gente contextualize as várias realidades investigando o significado que existe por trás das práticas e normativas políticas e jurídicas (Amorim, Kant de Lima e Teixeira Mendes, 2005, p. XII-XV apud Lima, IN: Garapon, 2008. p. ix); b) ter diferentes modelos em perspectiva, compreendendo o outro em suas aproximações e divergências com relação a nossa própria experiência, possibilita que possamos entender melhor a nós mesmos; c) o estudo de outros modelos também ajuda a compreender as possibilidades de transformação, de entender como é, como deve ser e em que se pode converter.” (Breyer, IN: Garapon, 2008 p. xiii); d) a comparação pode servir como uma unidade de controle dos casos, categorias, teorias, modelos e tipologias, impondo 7 que o significado destas seja inserido nos contextos em que são produzidos (Paes, 2013). Também refere-se ao fato de que a comparação deve levar em consideração a natureza dos conflitos apresentados em cada contexto, além disso, também deve dar atenção a diferença dos procedimentos edos distintos significados que nomes parecidos possam ter. Justiça e Cultura A cultura jurídica não é uma amarra que dita, que constrange, paralisa e que seja um “monumento a ser celebrado”. Para Garapon, (2008, pp. 9-10)“a cultura estabelece a tela de fundo conceitual sobre a qual os debates passam a ter sentido. A cultura permite pôr a nu um fundo conceitual, descobrir um vocabulário para o qual ainda não existe dicionário, uma gramática que não julga prematuramente os enunciados, mas que possibilita o retraçar de sua gênese”. Esse mesmo autor propõe que possamos ver a cultura jurídica como uma forma de configuração do politico e como forma de produção de verdade. Quer dizer, a cultura jurídica pode ser percebida como forma de gestão das expectativas e dos conflitos dos que vivem e partilham experiências em uma comunidade e ao mesmo tempo a partir da forma como cada sociedade estabelece seus procedimentos de verdade, ditando não só os comportamentos interditos, mas prevendo os institutos e instituições encarregadas da administração dos mesmos. Um exemplo pode ser antecipado: Se para os franceses a República significa agir juntos, para os americanos a Constituição é o que permite que cada um aja por sua conta e que possa usufruir de sua liberdade” (Garapon, 2008, p. 13) Vemos assim que algumas culturas jurídicas que enfatizam o bem comum, o viver juntos enquanto outras culturas jurídicas que privilegiam a liberdade usufruída por cada individuo. 8 Países que pertençam a cada uma dessas culturas jurídicas têm diferentes regras, procedimentos e instituições legais e cada diferença nesses sistemas legais refletem sobre a influência secular sobre as condições intelectuais que enfatizaram a importância da soberania do estado ou encorajou ênfases nacionalistas nas características e tradições nacionais. Uma tradição legal não é um conjunto de regras e leis sobre contratos, corporações e crimes, embora cada regra reflita a essas tradições (Merryman, 1969, pp. 1-2). Por cultura jurídica entendemos, portanto, as atitudes, as crenças, as percepções e os valores comuns a um grupo de profissionais e instituições de direito. Atividade 1 1) Discuta a relevância do estudo da cultura para a compreensão da configuração política e institucional em diferentes países. __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ 2) Com base na discussão apresentada, você acha que é possível importarmos experiências bem sucedidas de administração de conflitos que foram adotadas em alguns países para outros contextos? __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ 3) Como se diferencia a abordagem que parte da referência de traços culturais daquela que enfatiza a análise pela doutrinação? 9 __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ Resposta comentada: Para responder a essas questões, você deverá levar em consideração alguns elementos indicados nessa aula, como: a importância do direito comparado tendo em vista as nossas sociabilidades contemporâneas, os equívocos e possibilidades proporcionadas pelo recurso metodológico da comparação e o conceito de cultura jurídica. Culturas Jurídicas Nesta seção, serão apresentadas as principais culturas jurídicas ocidentais. Vou me ater detalhadamente à descrição de características de apenas duas delas. A primeiratem origem anglo-saxã, mas outros países como a Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, África do Sul, India, e outras ex-colônias inglesas, partilham dessa cultura jurídica conhecida como commom law. A segunda surge no continente europeu em países como a França, Italia, Espanha, Portugal, entre outros, e hoje encontra-se disseminada na maior parte do ocidente em países que foram influenciados pelas tradições de direito de países do continente europeu, como exemplo, quase toda a América Latina partilha dessa cultura jurídica, a civil law. Figura 1.4.Mapa Mundi dos Sistemas Legais 10 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:LegalSystemsOfTheWorldMap.png?usela ng=pt-br Busca-se, a seguir, descrever algumas das principais características das culturas jurídicas de common law e civil law. Serão apresentados aqui alguns elementos que nos permitam identificar essas culturas jurídicas que serão descritas com mais detalhes nas próximas aulas. Para realizar essa descrição, me apoiarei principalmente nos estudos desenvolvidos por Kant de Lima e Garapon e Papapoulos, que realizaram uma análise das culturas jurídicas existentes em uma perspectiva comparativa entre Brasil e Estados Unidos e entre Estados Unidos e França. Vejamos as principais características dessas culturas jurídicas, conforme esses autores: Common law Conforme Kant de Lima (2009), essa cultura jurídica conhecida como common law, parte da perspectiva de que o direito é um saber local, quem faz a lei é a sociedade e não o Estado. 11 Essa cultura produz um mínimo legislativo e dá ênfase aos antecedentes, quer dizer, às decisões práticas que já foram tomadas sobre casos semelhantes. Não é a lei o veículo do direito nos países que comungam da cultura jurídica da common law, mas são os processos de tomada de decisão sobre os casos concretos que produzem precedentes e vinculam as outras decisões de justiça. Para tanto, uma condição necessária para a produção dessa anterioridade do direito reside em colocar centralidade na importância da condução do processo com equidade. No centro do jogo está a ação coletiva do povo, constituída em ator por meio de seus representantes (Garapon e Papapoulos, 2008, pp. 23-25). Essa cultura jurídica predomina em países de tradição protestante, que concentra-se em observar a conduta cotidiana dos indivíduos. Mas a tradição politica que também organiza a cultura jurídica da common law apoia-se no desenvolvimento de um desenvolvimento de democratização das estruturas politicas locais, da construção de jurisdições locais e do avanço do poder real a partir da liberação do feudalismo na Inglaterra. Neste mesmo país, acompanhado do desenvolvimento da moral individualista, houve o desenvolvimento crescente do liberalismo que pode ser verificado a partir do estímulo à concorrência, à inovação técnica e ao dinamismo commercial. A Magna Carta Inglesa de 1215 vincula o direito a participação à contribuição no enriquecimento coletivo. O direito, nessa cultura, visa estabilizar as relações em uma sociedade civil independente e mercantil (Garapon e Papapoulos, 2008, pp. 25-26). No modelo inglês do século XIX, as cortes reais tinham competência limitada e foram consideradas como tribunais de exceção. Assim, esse modelo da common law não estimula a centralização. A descentralização da justiça, promovida pela cultura jurídica da common law produz umdireito específico e aplicável a todos. Submeter uma questão às cortes reais não era considerado um direito e sim um privilégio que os indivíduos poderiam reclamar ao demandar que seu litigio deveria ser aceito para ser julgado (Garapon e Papapoulos, 2008, pp.27-28). 12 É nesse contexto em que surge a importância do direito costumeiro valorizado pelos parlamentares ingleses em relação às pretensões absolutistas da monarquia. A common law representa, portanto, uma garantia política que ao assegurar liberdades fundamentais, protege os cidadãos da arbitrariedade do poder (Garapon e Papapoulos, 2008 p. 29). A common law assume contornos parecidos nos Estados Unidos. Nesse país, também produz-se uma legislação mínima, sendo a Constituição como o grande texto jurídico americano. Como não há um quadro legislativo de Direito que pretenda amarrar previamente todas as decisões, há uma grande abertura e flexibilidade do judiciário para com os contenciosos, o que faz com que a evolução da sociedade seja acompanhada de perto pelas decisões de justiça. Nessa cultura juridical é dada muita importância à argumentação produzida e aos elementos processuais dos julgamentos, é a partir dos julgamentos realizados com procedimentos que se consideram justos que se produz uma comunidade política de interpretação (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 31). Estamos aqui lidando com o seguinte repertório dos direitos: no modelo da common law, as pessoas percebem que tem direitos e que acionam o direito, elas não pensam que devem obediencia ou assumem uma forma passiva ao pensar que o direito deva ser outorgado pelo Estado. Nesse modelo, a verdadeira fonte do direito está no povo e não no Estado (Garapon e Papapoulos, 2008, pp. 31-32). Assim, observamos que na common law a jurisprudência produzida pelos tribunais é a primeira fonte do direito. A cultura jurídica da common law fundamenta-se a partir da regra do precedente que é produzido não a partir de disposições legislativas, mas a partir de práticas. Isso quer dizer que existe uma flexibilidade no processo de tomada de decisões, mas que estas não são feitas tão livremente assim. Uma vez que uma decisão foi tomada, ela cria um catálogo de referências que podem ser repetidas em todos os casos com característicassimilares, em todas as jurisdições. Apesar da common law dar importância ao caráter historico do direito buscando dar atenção à decisões passadas, as regras podem ser continuamente precisadas na medida em que 13 novos casos se apresentam. O papel da jusrisprudência seria não o de aplicar, mas de extrair regras do direito a partir dos casos que são apresentados à justiça. Nesse modelo, o direito corresponde à assimilação de uma técnica e de uma competência prática. O que importa é a administração da justiça e a forma como são definidas as regras do jogo a partir de uma referência comum compartilhada por todos os interessados, mas que possa ser suscetível de ser questionada pelos jogadores (Garapon e Papapoulos, 2008, pp. 37-40). Para esse mesmo autor, o judiciário nessa cultura funda a sua legitimidade na razoabilidade que as decisões detenham para todos os implicados. Segundo Garapon e Papapoulos, a forma como se ritualiza o processo em países de common law assemelha-se mais a um parlamento, pois a oralidade dos procedimentos e a importância do debate para a construção das versões sobre os fatos é promovida nesse sistema de direito. O procedimento criminal na tradição da common law é acusatorial (ou adversarial). Isso significa que a partir de uma acusação, os casos começarão a ser investigados publicamente e de forma transparente, com a participação da defesa do acusado que deve zelar pelos seus interesses. O desenvolvimento de uma força policial profissionalizada e do Ministério Público, para investigar o cometimento de crimes, reunir evidências, ter autoridade para julgar e conduzir o procedimento criminal em nome do Estado são desenvolvimentos relativamente recentes na common law (Merryman, 1969, p. 138), onde o processo era concebido como sendo exclusivamente de iniciativa privada. Mesmo assim, é dada a oportunidade na fase pré-processual para que os indivíduos tomem parte e sejam sujeitos ativos dos processos. A abertura e o desenrolar dos processos estão nas mãos das próprias partes. No processo judicial da common law, a confissão é pouco útil enquanto evidencia e prova. A confissão representa apenas uma concordância explicita dos acusados com a acusação, tendo os fatos sido previamente negociados entre as partes. O reconhecimento da culpa pelo acusado é considerado apenas na fase pré-processual, pois faz com que o processo seja extinto e seja de imediato 14 proposta uma medida negociada entre as partes. Se o acusado não admite a culpa e responsabilidade pelo que lhe imputam, ele exige o processo. Desse modo, o processo é percebido nessa cultura jurídica como um direito das pessoas provarem que são inocentes. Nesse modo de conceber o processo, também é dada a possibilidade de negociação do tipo penal pelo qual as pessoas vão ser acusadas, mediante uma declaração de culpa correspondente no qual as pessoas vão se responsabilizar apenas pelo ato categorizado no tipo penal que foi objeto anterior de negociação. Desse modo, os acusados declaram-se culpados ou não culpados. Declarando-se como não culpados, é realizado o processo com vistas a provar a inocência. Declarando-se como culpados é extinto o processo e proposta uma negociação tanto do “tipo penal” quanto da pena a ser aplicada. A justificativa é que, com isso, evitam-se muitos processos custosos e demorados (Kant de Lima, 2009). A escolha determina a continuação do processo(Garapon e Papapoulos, 2008, p. 50). Não é a verdade que se busca com tais práticas, pois o direito é objeto de uma negociação dos fatos e das penas a serem aplicadas. Garapon e Papapoulos (2008) informam que existem práticas de negociação entre a acusação e defesa para que essa aceite uma declaração de culpa em troca de algumas concessões do procurador. Estes autores apontam que o reconhecimento de culpa pode ser objeto de um acordo negociado entre o procurador e um acusado, com o acusado declarando-se culpado por uma infração menor, ou por uma das acusações, em troca de uma concessão, como uma pena menos severa ou do abandono das demais acusações. A partir das estatísticas disponibilizadas pelo Departamento de Justiça americano, Garapone Papadopulos apontam que 95% das questões em nível federal e 94% em nível estadual terminam com uma declaração de culpa seguido diretamente por uma pena (2008, pp. 52-53).Percebemos que o processo, nesse contexto, é excepcional e não sistemático. O domínio penal é profundamente marcado pelo modelo do contrato regulado administrativamente, pois as partes entram em uma transação com 15 vistas a melhorar a situação de pelo menos uma das partes, sem agravar a situação da outra (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 56). Havendo processo, porém, tanto acusados quanto testemunhas devem ser questionadas afim de produzir evidências sólidas, verificar sua credibilidade e verificar a veracidade das teses ao esgotar todas as hipóteses de entendimento do conflito. Trata-se de veracidade e não verdade, porque a ênfase é na ideia de uma coerência, de uma argumentação que “se comporta bem” (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 81) e que relativiza a verdade (op. cit., p. 93). Em common law o princípio do contraditório que exige que as partes tenham um acesso legal e concomitante a toda informação pertinente para o processo se aplica a todos os estágios do processo, o acusado precisasaber da acusação para fazer a contradita. Revela-se para o acusado o conteúdo da acusação para que ele reconheça ou não os fatos e realize a contradita (apresentação demonstrativa que apresenta com evidências e testemunhas outras versões sobre os fatos) de forma plena. A partir dessa lógica demonstrativa, as pessoas lembram que existem outras versões e vão concordando sobre os fatos, o que limita as decisões dos juízes. Assim, “o que caracteriza a cultura adversativa de common law, o que ilumina o princípio do contraditório é que o controle do processo, que cabe ao Ministério Publico e ao Juiz nas culturas continentais, é aqui confiado quase integralmente às partes e a seus advogados” (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 94). A estas é concedida a possibilidade de negociação da culpa com vistas a acelerar as respostas, diminuir os custos da justiça e diminuir os processos. Civil law A cultura jurídica da civil law é construída na confluência de outras muitas tradições. Entre as principais, destaca-se o direito romano e a lei canônica. O direito civil romano era a lei universal do Império, diretamente associado com a autoridade do imperador.No século XIX, vários estados da Europa ocidental adotaram códigos civis (e outros códigos), criando codificações centralizadas no 16 poder central. A Igreja Católica Romana construiu um corpo legal e processo com vistas a seu próprio governo e para regular os direitos e as obrigações dos seus comungantes, criando uma lei universal do domínio espiritual, diretamente associada com a autoridade do papa (Merryman, 1969, pp. 11-12). Assim, a ênfase neste modelo consiste menos nas liberdades individuais do que na ideia de universalidade, centralização, hierarquização, autoridade doutrinal, verdade doutrinal (Garapon e Papadopulos, 2008, pp.101-102). O nacionalismo é um outro aspecto da glorificação do Estado por essa cultura jurídica. O objetivo é que um sistema legal nacional que poderia expressar ideais nacionais e a unidade da cultura nacional (Merryman, 1969, p. 19). O judiciário, nessa cultura jurídica, funda sua legitimidade em uma racionalidade abstrata. Na civil law, a lei é a primeira fonte do direito. A lei é o edifício legislativo que constitui o direito. Trata-se de um modelo fortemente codificado, que organiza as suas disposições e as reagrupa em um conjunto exaustivo que se pretende racional. O código, ao tentar prever todas as decisões e conflitos possíveis, assume a forma de espelho de uma pólis harmoniosa. Para os cidadãos, é um material ao qual ele possa referir-se, para o juiz, é um guia para conceber através da legislação e seus princípios, a intenção legisladora. Em geral, na civil law há uma ocultação dos juízes, já que esses são percebidos apenas como porta-vozes das leis (Garapon e Papapoulos, 2008). No modelo da civil law, a aprendizagem do direito reside na assimilação de uma teoria, de um conjunto de princípios ou de regras de fundo. Há um desprezo em relação aos procedimentos – esses,tão valorizados no modelo da common law – e os profissionais que são valorizados não são aqueles que operam o direito no cotidiano dos tribunais, mas aqueles profissionais que são considerados como os verdadeiros juristas, gozando de grande prestígio são os professores universitários e doutrinadores (Garapon e Papapoulos, 2008). Além disto, não é dado neste modelo possibilidade de negociação do conteúdo dos conflitos aos agentes privados, a justiça é do Estado e deve ser administrada exclusivamente por seus funcionários.Há uma desconfiança com 17 relação aos atores privados e o reconhecimento do monopólio de verdade ao Estado (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 41). O Estado de direito surge da administração e o funcionário é quem detém a autoridade (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 27).Os atores dos processos são mais os especialistas do que os indivíduos envolvidos nos conflitos. Entende que “os julgamentos técnicos, efetuados por magistrados, sejam melhores do que julgamentos realizados por pessoas comuns, que não tem acesso a um saber jurídico especializado e que, portanto, seriam dotadas de uma razoabilidade subalterna” (Kant de Lima, 2009) Vemos, assim, que algumas das características principais da cultura juridical da civil law consiste em tratar a lei como sagrada. Essa lei é eminentemente política, pois a sociedade deve ser organizada do exterior, de cima, por uma vontade política que lhe dê forma. Nesse modelo, a atividade legisladora é dissociada da função judiciária, um dá a lei e outro diz a lei. Há uma distância entre a criação e a aplicação das normas, entre o direito anunciado e as práticas vivenciadas, mas o direito reserva-se ao papel de dizer o ideal. A lei tem um caráter simbólico e abstrato. O projeto do direito é fazer corresponder o real com um mundo ideal definido por regras coerentes (Garapon e Papapoulos, 2008, pp. 37-40). Nessa cultura, não há nenhum crime ou pena sem uma legislacao correspondente (Merryman, 1969, p. 133). Em países de civil law há um divórcio possível entre legislação e direito, criando uma cisão entre a elaboração legislativa e a aplicação do direito (Kant de Lima, 2009). Há uma separação dos poderes e é considerado de fundamental importância para o governo democrático estabelecer e manter uma separação dos poderes, em especial, mantendo o legislativo e o executivo separado do poder judiciário (Merryman, 1969, p. 16) A investigação é de competência da polícia e a chave da evidência e da exatidão dos processos concentra-se mais na produção de documentos do que no processo de investigação (Goldstein e Marcus, 1978). O procedimento criminal na cultura jurídica da civil law é inquisitorial. A tradição inquisitorial representa uma evolução quanto ao sistema baseado nas 18 vinganças privadas. Busca eliminar ou atenuar afigura do acusador privado e atribui esse papel a funcionários públicos. O juiz é convertido deum árbitro imparcial para um inquisidor ativo que é livre para buscar provas e controlar a natureza e os objetivos do inquérito. Agora, o litígio é entre os acusado e o Estado. O individuo infringe as leis estatais e não entra em conflito apenas com outro indivíduo. Historicamente, os processos inquisitoriais tendem a ser secretos e escritos ao invés de serem públicos e orais. O desequilíbrio resultado do poder, combinado com o sigilo do procedimento escrito cria o perigo de um sistema opressivo, em que os direitos do acusado podem ser facilmente abusados (Merryman, 1969, p. 135). Na civil law, a ação penal é uma ação do Estado contra o indivíduo acusado. Os procedimentos devem ser escritos e secretos. Na fase inquisitorial, os acusados ainda não tem direito a um advogado. O juiz não limita-se ao papel de um árbitro imparcial, mas desempenha um papel ativo no processo, determina seu escopo e sua natureza (Merryman, 1969, p. 136). O procedimento penal típico no mundo da civil law pode ser caracterizado por três fases: a fase de inquérito, a fase de instrução e a fase de julgamento. A fase de investigação é desenvolvida pela polícia, e, em muitos países que partilham da cultura jurídica da civil law, a investigação policial é realizada muitas vezes com a direção do Ministério Público, quando não pelos juízes de instrução. A fase de instrução é predominantemente escrita e não pública, nesta, verifica-se a observância dos procedimentos. Se, nessa fase de instrução conclui-se de que houve crime e de que o acusado é o autor do crime, o caso, em seguida, é encaminhado para julgamento. Se o juiz nessa fase de instrução se convencer de que nenhum crime foi cometido ou que o crime não foicometido pelo acusado, o caso não vai a julgamento. (Merryman, 1969, p. 137). Assim, na fase de instrução há um trabalho de pré-construção da causa e que constituirá durante toda a duração do processo a referência dos debates. Os debates só podem ser feitos sobre os elementos que estão escritos no processo. Os juízes que presidem a fase de instrução acolhe as observações dos advogados 19 e integra os dados que vão eventualmente contra a sua visão dos fatos, mas estes são situados em uma trama principal à qual eles vêm se articular (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 92). O processo, nessa cultura jurídica, não busca consensualizar os fatos. Há uma primeira fase inquisitorial em que se visa provar que o suspeito é o culpado. Em seguida, quando os procedimentos são encaminhados à justiça, é garantido o acesso das partes aos autos e iniciado o contraditório. Mesmo assim, as partes não tem chances iguais para a construção da sua argumentação, são privilegiados nesse modelo os discursos de acusação. Através da lógica do contraditório, as partes envolvidas no processo produzem dissensos infinitos a fim de que os fatos e as provas sejam determinados pela autoridade interpretativa do juiz, que vai escolher entre os vários indícios apresentados quais os convencem e quais não(Kant de Lima, 2009). O contraditório só aparece na cultura jurídica de civil law como uma etapa do processo. O momento público das audiências de julgamento parecem secundáriasse levarmos em consideração a fase preparatória amplamente controlada pelo juiz (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 87). Como inicialmente o que se tem é uma etapa inquisitorial (os indivíduos não sabem do que estão sendo acusados) sem revelar o conteúdo da acusação, os acusados tem que adivinhar do que estão sendo acusados. No Brasil, frequentemente, isto faz com que se busque promover nas audiências a desqualificação da pessoa e do argumento da pessoa que o acusou. Produzem-se teses diferentes e nunca convergentes sore os conflitos e confere-se a uma autoridade o papel de determinar o fato. Mesmo que as pessoas concordem com o crime, os juízes podem continuar e buscar a “verdade real” dos fatos. Segundo Garapon e Papapoulos (2008, p. 89) o princípio contraditórioassume formas atenuadas na cultura continental. Na França, o sistema francês sente a necessidade do contraditório para a qualidade da justiça, masinternaliza amplamente essa dimensão acusatória. A atitude da defesa neste 20 contexto, limita-se a“apresentar um discurso de oposição radical, ironizar, lançar confusão sobre a versão da instrução e raramente propor desde o início uma outra versão dos fatos, uma outra forma de relatar, já que não dispõe de meios processuais” (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 92) para a produção da verdade. Com o processo, pretende-se na cultura jurídica da civil law estabelecer a verdade dos fatos, o juiz controla a elucidação dos fatos e a aplicação do direito, acumulando a parte decisória e o aspecto técnico dos procedimentos, dispondo de um domínio total sobre o relato do crime. Daí a importância capital de que se reveste o tema da consciência do juiz no âmbito dos países que partilham da tradição jurídica da civil law (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 126). No que concerne ao papel concedido aos juízes, observa-se que os juízes no modelo da civil law são apenas os porta-vozes das leis, “o juiz é tão-somente o instrumento, o servidor de uma infinidade de textos e de regulamentações” (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 35). “Na cultura de civil law julgar não é um ato criativo, a interpretação de uma regra, mas uma estrita aplicação da lei (...). Supõe-se que toda causa julgada pela justiça já tenha sido julgada pelo código, de que o juiz não é senão o porta-voz” (Garapon e Papapoulos, 2008, p. 136). “O poder do juiz francês vem, entre outras coisas, da distância inevitável que separa o universo das leis e o mundo vivenciado. (...) também oferece uma ampla margem de manobra ao juiz: o poder de aplicar ou não a lei, o poder de escolher a norma”(Garapon e Papapoulos, 2008, p. 140). Ao finalizar essa aula, gostaria de chamar a atenção que esse tema não encontra-se esgotado. Retomaremos a uma maior descrição dessas culturas jurídicas associando-as a diferentes contextos nacionais nas aulas seguintes. Nestas, veremos ainda que uma mesma cultura jurídica pode ser interpretada e apropriada de distintas maneiras. Atividade Final 1) Ao analisar as principais culturas jurídicas do ocidente, observamos que a forma como os países que partilham da cultura jurídica da civil law e da common 21 law lidam com o sigilo e a publicidade das acusações para o interessado é distinta. Descreva estes aspectos. __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ 2) Avalie criticamente a forma como são estabelecidos os fatos jurídicos na cultura jurídica da civil law e da common law. __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ Resposta comentada Para responder a essa questão, o aluno deverá estar atento ao conteúdo tratado ao longo da aula e destacar como sigilo e publicidade informam diferentes maneiras de produção da verdade sobre os fatos. 22 Conclusão A conclusão a que chegamos nesta aula é que a forma como é concebida a justiça, suas instituições e procedimentos varia de acordo com diferentes contextos. Além disso, que duas são as principais culturas jurídicas existentes no ocidente. A descrição das características dessas culturas informam alguns pontos de contato e contraste, mas devemos estar atentos à forma como essas se traduzem em diferentes experiências nacionais. Resumo A decorrer desta aula, foi apresentada a importância da comparação entre diferentes culturas jurídicas, tendo em vista em que vivemos em um mundo no qual nos é demandada cada vez mais uma interação não local, mas internacional. A partir disso, foram abordadas as possibilidades e desafios da comparação bem como o conceito de cultura jurídica. O último tópico apresentou as principais características de duas principais culturas jurídicas ocidentais: a common law e a civil law. Entre outras características, esquematizarei algumas delas na tabela abaixo: CIVIL LAW COMMON LAW Justiça como serviço público Justiça aberta à ação das partes Escrito Oralidade Segredo Publicidade Primazia das leis Jurisprudência produzida na pratica Lei é a fonte primeira do direito Jurisprudênciaé a primeira fonte do direito Direito estatal. O Código é espelho de uma pólis harmoniosa. Regra do precedente. O direito é uma prática Concentração Descentralização Inquisitório Acusatório 23 Formas contraditór ias de busca pela verdade real é prevista apenas em uma etapa. Apoia-se no dissenso Princípio do contraditório. Aderem a formas adversariais de busca da veracidade, promovendo consensos Aprendizagem do direito reside na assimilação de uma teoria Aprendizagem do direito reside na assimilação de uma técnica, de uma competência prática Grande figura do jurista: professor universitário e doutrinadores. Grande figura do jurista: o juiz profissional Ênfase na visão clerical da norma Ênfase nas regras do Jogo A sociedade deve ser organizada do exterior, de cima, por uma vontade política que lhe dê forma. A regra não é a expressão do soberano, mas uma referência comum. O direito deve dizer o ideal. A lei informa possibilidades, não é objeto de deferência . Direito beneficia mais os especialistas que os atores Caminha junto com a sociedade de iniciativa privada O projeto do direito é fazer corresponder o real com um mundo ideal definido por regras coerentes Direito é feito para os atores sociais para os quais é mais importante oferecer pontos de referência do que regras precisas Direito proibitivo Direito facilitador 24 Referências Bibliográficas GARAPON, Antoine e PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e a common law em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. GOLDSTEIN, Abraham S. e MARCUS, Martin. Comment on Continental Criminal Procedure. In: The Yale Law Journal, Vol. 87, No. 8 (Jul., 1978), pp. 1570- 1577. KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada. IN: Anuário Antropológico/2009 - 2, 2010: 25-5 MERRYMAN, John Henry. The Civil Law Tradition: an introduction to the legal systems of Western Europe and Latin America. Stanford, California: Stanford University Press, 1969. PAES, Vivian. Crimes, Procedimentos e Números: estudo sociológico sobre a gestão dos crimes na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. Informações sobre a próxima aula A polícia e as técnicas de policiamento tem um papel central no debate sobre a possibilidade de desenvolvimento de políticas de segurança pública visando o controle social e a manutenção da ordem nas sociedades democráticas. As próximas aulas irão revisar a literatura recente sobre a instituição policial e as técnicas de policiamento em perspectiva comparada. Serão apresentados os estudos brasileiros sobre o tema bem como trabalhos versando sobre instituições policiais em outros países ocidentais. Especial destaque será dado aos temas do papel da polícia, da arbitrariedade e discricionariedade policial, da efetividade das práticas policiais com relação ao discurso que informam suas atividades, de aspectos que informam a sua organização. CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Aula 1 – Culturas jurídicas: a common law e a civil law. Meta
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