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O Campo das Psicoterapias, Reflexões Atuais

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Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 1
Adriano Furtado Holanda (Organizador)2
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 3
O CAMPO DAS PSICOTERAPIAS
REFLEXÕES ATUAIS
Adriano Furtado Holanda (Organizador)4
ISBN: 978-85-362-
Brasil – Av. Munhoz da Rocha, 143 – Juvevê – Fone: (41) 4009-3900
Fax: (41) 3252-1311 – CEP: 80.030-475 – Curitiba – Paraná – Brasil
Europa – Escritório: Av. da República, 47 – 9º Dtº – 1050-188 – Lisboa – Portugal
Loja: Rua General Torres, 1.220 – Lojas 15 e 16 – Centro Comercial
D’Ouro – 4400-096 – Vila Nova de Gaia/Porto – Portugal
Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco
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Curitiba: Juruá, 2012.
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Visite nossos sites na internet: www.juruapsicologia.com.br e www.editorialjurua.com
e-mail: psicologia@jurua.com.br
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 5
Adriano Furtado Holanda
Organizador
O CAMPO DAS PSICOTERAPIAS
REFLEXÕES ATUAIS
Autores
Adriano Furtado Holanda (Org.)
Adelma Pimentel
Bárbara de Souza Conte
Fernando Luis González Rey
Francisco Martins
Marcelo M. Nicaretta
Maria Adélia Minghelli Pieta
Maurício da S. Neubern
Thiago Gomes de Castro
Valeska Zanello
William Barbosa Gomes
Curitiba
Juruá Editora
2012
Adriano Furtado Holanda (Organizador)6
CONSELHO EDITORIAL
¾ Benno Becker Junior
• Doutorado em Psicologia – Universidad de Barcelona,
U.B., Espanha. • Mestrado em Pedagogia – PUCRS.
• Especialização em Métodos e Técnicas de Ensino
– PUCRS. • Graduação em Psicologia – PUCRS. • Gra-
duação em Educação Física – UFRGS.
¾ Cristina Maria Carvalho Delou
• Doutorado em Educação: História, Política, Socieda-
de – PUCSP. • Mestrado em Educação – UERJ. • Es-
pecialização em Educação – UERJ. • Graduação em
Psicologia – PUCRJ. • Graduação em Licenciatura
em Psicologia – PUCRJ.
¾ Djalma Lobo Jr.
• Psicólogo e Parapsicólogo. • Coordena grupos psico-
terapêuticos focados na autoestima e no autoco-
nhecimento. • Desenvolveu projetos com pacientes
portadores do vírus HIV, com parceria do Ministério
da Saúde, e trabalha na área de prevenção de DST e
AIDS. • Desenvolve trabalhos de Cuidando do Cui-
dador para Psicólogos, Assistentes Sociais, Agentes
de Saúde, Enfermeiros, Médicos e Professores.
• Atua na área de Saúde Mental com o trabalho de
desenvolvimento do psicoeducacional para pacien-
tes com depressão e transtorno bipolar. • Colunista
da revista FREEX, com a coluna comportamento e
sexualidade. • Palestrante. • Atua em Curitiba, São
Paulo, Campinas, Indaiatuba e Rio de Janeiro.
¾ Gabriel José Chittó Gauer
• Graduado em Medicina (1984). • Especialização em
Psiquiatria pela PUCRS (1988). • Doutorado em Me-
dicina e Ciências da Saúde pela PUCRS (1995). •
Pós-doutorado no Departamento de Psicologia da
Universidade de Maryland (2001), na área de Cons-
trução e Validade de Testes, Escalas e outras Medi-
das Psicológicas e abordagem Cognitiva dos Trans-
tornos de Ansiedade. • Professor titular da PUCRS.
• Tem experiência na área de Avaliação e Interven-
ção em Psicologia e Psiquiatria, Validação e Aplica-
ção de Instrumentos e Psicologia da Saúde, atuando
principalmente nos seguintes temas: violência, psi-
copatia, ansiedade social, depressão, adesão ao tra-
tamento e psiconeuroimunologia.
¾ Gilberto Gaertner
• Mestrado em Engenharia de Produção – UFSC. • Es-
pecialização em Formação em Psicologia Somática
Biossíntese – Instituto Brasileiro de Biossíntese. •
Especialização em Formação em Integração Estru-
tural Método Rolf – Sociedade Brasileira de Integra-
ção Estrutural. • Especialização em Formação em
Bioenergia Raízes – Centro de Estudos do Homem. •
Especialização em Psicologia Corporal – Orgone Psi-
cologia Clínica. • Especialização em Orientação em
Terapia Sexual – Clínica do Sistema Nervoso. • Es-
pecialização em Capacitação em Técnicas Corporais
– Clínica do Sistema Nervoso. • Graduação em Psi-
cologia – PUCPR.
¾ Luiz Antonio Penteado de Carvalho
• Médico Especialista em Ortopedia e Traumatologia.
• Membro titular da Sociedade Brasileira de Ortope-
dia e Traumatologia, SBOT. • Mestre pela UFPR.
• Professor efetivo na Unicentro.
¾ Julimar Luiz Pereira
• Mestrado em Educação Física – UFPR. • Especializa-
ção em Treinamento Desportivo – UFPR. • Gradua-
ção em Licenciatura em Educação Física – UFPR.
• Professor da UFPR.
¾ Salvador Antonio Mireles Sandoval
• Mestrado em Ciência Política – University of Texas
at El Paso. • Mestrado e Doutorado em Ciência Po-
lítica – The University of Michigan. • Atualmente é
Professor titular da PUCSP, e Professor assistente
Doutor-ms3 da Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Educação. • Pós-doutorado no Center
for the Study of Social Change, New School for So-
cial Research. • Pesquisador convidado no David
Rockefeller Center for Latin American Studies, Har-
vard University como J. P. Lemann Visiting Scholar.
• Graduação em Latin American Studies – University
of Texas at El Paso. • Foi sócio-fundador e Presiden-
te da Associação Brasileira de Psicologia Política –
ABPP. • Fundador da Revista Psicologia Política
sendo um dos primeiros coeditores dessa revista. •
Professor visitante, Concordia University, Montreal
Canadá em 2008.
¾ Editora da Juruá Psicologia: Ana Carolina de Carvalho Pacheco Bittencourt
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 7
APRESENTAÇÃO
“Psicoterapias, para além da técnica”. Este poderia ser outro tí-
tulo para a proposta deste livro. Isto porque a intenção deste projeto, que
ora apresentamos ao leitor, é exatamente debater questões que ficam aquém
e além da técnica psicoterápica. Não se trata de simplesmente questionar o
instrumental do psicoterapeuta ou de apontar como se deve trabalhar com
esta ou aquela patologia, ou nesta ou naquela abordagem. Mas de questio-
nar o lugar e o próprio fazer do psicoterapeuta.
Qual o fazer do clínico? Qual o lugar da psicoterapia? Quais os
diversos sentidos que podem coexistir no campo das psicoterapias? Todas
estas são questões importantes, pois fundamentam não somente a prática
que será posteriormente exercida por um profissional, como também sedi-
menta leituras diversas para um fenômeno eminentemente contemporâneo,
como é a psicoterapia. Além disso, num momento em que se discute o cuida-
do ou a atenção integral à saúde (com promoção, proteção e recuperação
da saúde); num momento em que se procura sedimentar novos olhares para
a saúde mental; num momento em que se fala reiteradamente de parcerias e
de mobilização em todos os contextos da sociedade, este debate ganha con-
tornos ainda mais relevantes.
O campo das psicoterapias aponta para um conjunto complexo de
modos de compreensão e de atuação, para um campo onde coexistem ele-
mentos das mais diversas áreas do saber e, na atualidade, para um repertó-
rio que transcende profissões. Esta complexidade se expressa pelo próprio
modo de constituição desse campo ao longo da história e mesmo em nosso
país.
Podemos associar a prática psicoterapêutica ao fazer médico,
desde os tempos dos Antigos – não nos esqueçamos dos clássicos escritos de
Adriano Furtado Holanda (Organizador)8
Fílon de Alexandria e sua famosa escolas dos “terapeutas” – e, mesmo que
consideremos a gênese da clínica na contemporaneidade, a estaremos asso-
ciando a diversos nomes da área médica. Ocorre que, paulatinamente esta
prática foi sendo legada a outras profissões e, talvez possamos pensar assim –
a título de uma “concessão” da própria medicina, como veremos nos textos
que tocam questões históricas da psicoterapia neste livro – seja pela parti-
cularização (ou “subjetivação” ou “interiorização”) do sofrimento ou mesmo
pelo “deslocamento” desse sofrimento, de um corpo físico, concreto,objetivo
e palpável, para um “outro lugar”, o “lugar” de um psíquico, de um subjeti-
vo, ou do simplesmente humano, que as ciências da fisiologia, da patologia
médica, da biologia ou da anatomia não davam conta de reconhecer.
Ocorre que toda essa preocupação fora antes da ordem da Filoso-
fia. Afinal, como não reconhecer como referido ao que se compreende mo-
dernamente como psicoterapia, ou simplesmente como “terapêutica” a pro-
posta do gnothi seauton socrático – o famoso dito do Oráculo de Delfos, o
“conhece-te a ti mesmo” – ao que Foucault acrescenta com a expressão
grega epiméleia heautoû, ou à “cura de si”, na concepção latina. Tudo isso
tem seu ponto de encontro na proposta do médico-filósofo Fílon.
Com isto já apontamos o leitor para uma das muitas teses contidas
nos textos que compõem este livro: a de que a suposta dissociação – ou di-
cotomia, separação, distanciamento, oposição – entre sujeito e objeto, entre
subjetivo e objetivo, entre individual e social, é falsa, limitada e errônea, e
não dá conta da necessidade de um olhar complexo para o fenômeno huma-
no. E talvez tenha sido o reconhecimento – mesmo que irrefletido – desta
questão, que fez com que o campo das psicoterapias tenha transcendido o da
medicina.
Mas esta transcendência não foi e ainda não é tranqüila, nem dis-
pensa debates acalorados ou reações que passam ao largo do debate técnico
ou científico, ou filosófico ou teórico. Muitas das vezes resume-se a compo-
nentes ideológicos. Muitas das vezes, resume-se a questões de “mercado”.
E é por tudo isto, pelo reconhecimento de que um debate acerca do
campo das psicoterapias se faz necessário; que este debate não pode ficar
ao largo da complexidade do tema; que o diálogo interdisciplinar e multi-
profissional é igualmente fundamental; que este debate não pode ser prima-
zia ou monopólio desta ou daquela área do saber ou profissão, que nos pro-
pusemos a debater aqui e agora o tema das “psicoterapias”.
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 9
Todos os temas foram aqui abordados por profissionais que tem
em comum três características: a) o conhecimento prático e profissional,
que lhes dá a competência no “fazer”, por suas formações, caminhos desen-
volvidos na área – vale a pena ressaltar que aqui convivem perspectivas
teóricas distintas – e experiência no campo a que se propõem estudar (em
outras palavras, todos aqui são “psicoterapeutas”); b) a intenção de unir
esta prática com a reflexão epistemológica e com a pesquisa empírica,
assumindo a missão não apenas de pesquisadores mas de produtores de
conhecimento, e; c) a preocupação com os rumos e com o “lugar” das
psicoterapias no cenário contemporâneo.
Este livro foi pensado e é dirigido a todos aqueles que se interes-
sam, verdadeiramente, pelo campo das psicoterapias; e não faz diferencia-
ção entre os iniciantes e os iniciados, entre os experientes e os curiosos,
entre profissionais desta ou daquela área, por entendermos que nenhuma
práxis subsiste sem um questionamento sobre suas bases, direções, entendi-
mentos e relações.
Esperamos que este livro sirva de reflexão e de base para novos
trabalhos, e que o campo das psicoterapias se torne “figura” no cenário
contemporâneo.
Adriano Furtado Holanda
Organizador
Adriano Furtado Holanda (Organizador)10
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 11
SUMÁRIO
Ensaio sobre a cegueira de Édipo: sobre psicoterapia, política e
conhecimento
Maurício da S. Neubern............................................................................................ 13
Sentidos subjetivos, linguagem e sujeito: implicações epistemológicas de
uma perspectiva pós-racionalista em psicoterapia
Fernando Luis González Rey.................................................................................... 47
Reflexões sobre o campo das psicoterapias: do esquecimento aos desafios
contemporâneos
Adriano Holanda ...................................................................................................... 71
Desnaturalizando o fim social da psicologia clínica
Marcelo M. Nicaretta ............................................................................................. 101
Psicoterapia e pesquisa: desafios para os próximos 10 anos no Brasil
Maria Adélia Minghelli Pieta / Thiago Gomes de Castro / William Barbosa Gomes...121
Psicoterapia: o percurso histórico nos desafios por uma formação sem
regulamentação
Bárbara de Souza Conte ......................................................................................... 143
Psicoterapias: valoração e avaliação
Francisco Martins / Valeska Zanello...................................................................... 155
Psicoterapia e clínica ampliada: diferenciando horizontes interventivos
Adelma Pimentel..................................................................................................... 165
Índice Alfabético ................................................................................................... 179
Adriano Furtado Holanda (Organizador)12
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 13
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE ÉDIPO:
SOBRE PSICOTERAPIA, POLÍTICA E
CONHECIMENTO
Maurício da S. Neubern
Sumário: Édipo Rei: cegueira & reinado. Édipo em Colono: da miséria
à emancipação. Maturidade espiritual. Referências.
No mito de Édipo, o herói se torna cego após descobrir as terríveis
tragédias em que havia se enredado em sua vida. Elas o chocam de uma tal
forma que, como modo de expiação ou talvez de punição, Édipo se fere nos
olhos tornando-se cego, passando a vagar pelo mundo. Ele abandona a ri-
queza, o poder e a opulência de seu reinado em Tebas e, na companhia de
sua filha e de seu profundo sofrimento, perambula pelo mundo na desespe-
rada e dolorosa tentativa de encontrar a si mesmo, tal como rezava a célebre
assertiva do oráculo de Delphos.
Esse mito, tantas vezes apreciado e discutido na formação dos psi-
coterapeutas, inspira a prática de muitos para que seus clientes ou usuários
assumam a dura e corajosa tarefa de se deparar com os próprios dramas mas-
carados pelo inconsciente que os fazem sofrer sem que o percebam e que
necessitam ser decifrados a fim de que algum nível de resolução se torne
possível em suas vidas. No entanto, ele guarda em si uma contradição fatal
tipicamente moderna1 (Santos, 2000), pois a psicoterapia, no geral, encontra
 
1 O termo modernidade é aqui tirado de Santos (2000) e implica o paradigma dominante da ciência
que preconizava um conhecimento privilegiado da realidade. Afastam-se as aparências por meio do
método científico para se chegar a leis universais, de modo a se obter explicação, predição e controle
da natureza.
Maurício da S. Neubern14
enormes dificuldades, quando não possui uma proverbial indisposição, para
levar a cabo e de forma sincera a proposta do conhece-te a ti mesmo. Seja
como propostas teórico-epistemológicas, seja como movimentos sociopolíti-
cos, a psicoterapia ainda parece permanecer nas ilusões vividas por Édipo,
sentada num trono que lhe conferisse poder sobre seu campo, mas num rei-
nado de legitimidade suspeita, principalmente por ser marcado pela cegueira
sistemática a respeito de sua história e das condições de nascimento de seus
próprios saberes.
Nessa perspectiva, o psicoterapeuta acaba por refletir, no exercício
de seu métier, o drama de semelhante contradição. Assim, ao mesmo tempo
em que lhe é exigido que esteja presente na relação terapêutica, atento ao
que se passa consigo e seu cliente, ele deve pensar por meio de uma teoria
que não é sua, posto que elaborada por um grande nome, geralmente em
outro país e até em outra época. Desprovido de sua condição de sujeito, ele
pode trabalhar ativamente para que seu cliente desenvolva alguma forma de
autonomia, apesar de ele mesmo terque se conformar com um papel obedi-
ente quanto a seu marco teórico e, principalmente, quanto aos olhos atentos
de sua comunidade de pertencimento. Numa perspectiva mais ampla ele
pode se filiar a grupos profissionais, integrar movimentos, participar de
campanhas que defendam a legitimidade de seus métodos de maneira a dife-
renciá-lo de tudo que seja místico ou alternativo, de tudo aquilo que possa
ser alvo de desconfiança ou charlatanismo, em suma, de tudo o que se dis-
tancie da promessa moderna de certeza (Stengers, 1995).
É sob a bandeira da ciência que ele espera, explicitamente ou não,
um reconhecimento social que lhe permita ocupar importantes espaços numa
sociedade, como as universidades, a mídia, os serviços públicos de saúde,
justiça e assistência social. Essa mesma cientificidade pode levá-lo a dispu-
tas intermináveis com colegas de profissão que se tornam adversários por
pertencerem a outras abordagens, sendo que esses embates variam de piadas,
debates e disputa de adeptos a verdadeiras sabotagens na peleja por espaços
institucionais. No entanto, toda essa devoção que assume, por vezes, um
caráter fundamentalista, desemboca numa profunda ironia, pois que, na
grande maioria das vezes, ele mesmo parece não saber explicar o que seja
ciência e como sua práxis é legitimada por este saber. A tais indagações, ele
tende a responder com uma expressão que mistura a surpresa e a vergonha e
alguns discursos prontos proferidos por um outro, geralmente algum nome
proeminente de sua comunidade psicoterápica.
Consideramos, aqui, que um quadro com tais nuances apresenta
diversos sintomas, mas é perpassado por uma viga mestra que parece acom-
panhar a formação e a prática do psicoterapeuta em diferentes níveis: a força
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 15
institucional (Stengers, 2001). Ela alimenta e precede as práticas sociais do
“fazer” psicoterapia, ao mesmo tempo em que parece contribuir para a ma-
nutenção das relações de poder nas instituições que promovem a psicotera-
pia, como as universidades, as clínicas, os conselhos profissionais e os cen-
tros de formação. A força não se apresenta enquanto tal, pois sempre está
travestida de alguma coisa aceitável que confirme a autoridade da certeza
moderna que, no entanto, ela mesma não é capaz de sustentar. Logo, diante
das indagações de algum aluno mais inquieto e questionador, é comum que
surjam mecanismos de silenciamento e pacificação que apelam para alguma
autoridade que, em última instância é questionável, mas que aparece ali
como uma espécie de palavra final. “Isto é assim”, respondem ao incômodo
aluno, “porque foi a ciência quem disse!” ou ainda “porque foi o Mestre
quem afirmou!”.
Em termos mais amplos, a ação dessa força de caráter autoritário
abrange desde um processo de domesticação de adeptos e membros, que
podem, inclusive, ser acompanhados por rigorosos mecanismos de policia-
mento, a uma verticalização institucional em que as decisões de caráter polí-
tico acabam tomadas por poucos, em processos que não valorizam o diálogo
e a compreensão das distintas perspectivas envolvidas, incluindo-se aqui
psicoterapeutas, outros profissionais, alunos e usuários. Em suma, enquanto
impõe o silêncio, suas fragilidades ficam pretensamente escondidas e longe
de ameaças o que leva tais instituições a viverem numa espécie de ilusão de
aparências e poder como, em certa medida, vivia Édipo em seu reinado. Não
é sem razões que a reflexão, o questionamento e a valorização do sujeito
costumam encontrar muitas resistências no seio das instituições e práticas
sociais de psicoterapia, sendo, por vezes, alvo de mecanismos de repressão e
imposição de silêncio os mais diversos.
Desse modo, o objetivo deste trabalho é o de ampliar a reflexão
sobre o métier da psicoterapia, destacando as dificuldades implicadas quanto
a voltar seus olhares para suas próprias condições de surgimento e manuten-
ção, aqui caracterizadas como “cegueira”, e ressaltando ainda algumas pos-
sibilidades de crescimento a partir das reflexões que antecedem e emergem
de suas práticas. Tomando-se como analogia o mito de Édipo, no primeiro
momento, semelhante a seu reinado em Tebas, serão discutidas dimensões
epistemológicas, institucionais, sociais e históricas que influenciam direta-
mente as ações e pensamentos em psicoterapia, mas nem sempre são consi-
deradas. Daí a noção de cegueira. Enquanto no segundo momento, similar à
sua trajetória em Colono, serão destacadas um conjunto de possibilidades de
pensar e refletir a partir das relações com essas dimensões.
Maurício da S. Neubern16
ÉDIPO REI: CEGUEIRA & REINADO
Um reinado da antiguidade, tal como concebido no imaginário po-
pular, conferia uma condição única entre os seres humanos: o rei era alguém
favorecido pelos deuses, alguém que poderia ter a última palavra nas diver-
sas questões referentes a guerras, riquezas, vida, morte, liberdade e destino
de homens e mulheres que poderiam, por bem ou por mal, entregar até mes-
mo seus corpos caso o soberano assim desejasse. Cargo almejado por mui-
tos, a disputa pelo trono envolvia, com frequência, tramas e assassinatos,
posto que muitos se candidatavam a assumi-lo a fim de exercerem o poder
fascinante que lhe era próprio.
O caso de Édipo é, de certa forma, particular, pois embora tivesse
assassinado um homem numa disputa, ele desconhecia o fato de que o rival
inesperado fosse seu pai e rei do país para onde se dirigia. Esse aconteci-
mento mórbido marca a história do mito, pois é a partir dele que o destino de
Édipo e dos demais envolvidos se desenrola logo que se rompe o véu da
ignorância que o cobria e se torna conhecido de todos. Porém, enquanto isso
não ocorre, Édipo realiza o feito de um grande herói ao salvar a cidade de
Tebas da esfinge e é agraciado de tal forma que se casa com a rainha, Jocas-
ta, que ele nem desconfiava ser sua própria mãe. Como todos esses dramas
permaneceram em oculto, ele pôde, durante um bom tempo, exercer a condi-
ção de rei despreocupadamente, tendo filhos com a rainha, e um poder sobe-
rano sobre suas terras e súditos, que o reverenciavam por sua bravura, sabe-
doria e heroísmo.
A psicoterapia, por sua vez, acompanhando, quando possível, ciên-
cias irmãs como a psicologia e a psiquiatria, também pode viver uma sensa-
ção semelhante. Seu espaço começa a se delinear no final do século XIX,
quando Tuke a define pela primeira vez, espalha-se pelo continente europeu
por meio de divulgadores prestigiosos, tais como Bernheim e Barres, e acaba
por ganhar notoriedade a partir da obra de Freud, seus sucessores e dissi-
dentes (Carroy, 2000). Nesse ponto destacamos uma contradição um tanto
curiosa presente nas propostas dessa rainha tão complexa. Se, por um lado, a
psicoterapia ocupou um lugar muito importante, ao oferecer uma proposta
emancipatória ao sujeito, uma proposta de reconhecimento e liberdade,
muito ao gosto do individualismo ocidental, por outro, ela não deixou de
exercer um papel colonizador e tirânico típico das ciências modernas (Neu-
bern, 2004). Assim, enquanto ganhou popularidade e importantes espaços
sociais, com uma eficácia capaz de aliviar o sofrimento das pessoas e auxi-
liá-las a produzir novos sentidos para a vida, ela também reproduziu as es-
truturas de poder comuns das práticas modernas, muitas vezes impondo suas
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 17
perspectivas às narrativas próprias dos sujeitos e isolando-os de suas inser-
ções sociais, o que implicou em sofrimento para muitos daqueles que a bus-
caram como forma de ajuda (Gergen & Kaye, 1998). Sua pretensão científi-
ca, presente em diferentes formatos, moveu-a a uma cruzada de desqualifi-
cações contra movimentos ditos alternativos e místicos em atitudes que
variavam das estratégias de diferenciação às ameaças a quaisquer de seus
súditos que ousassem se aproximar de tais saberes.
Em meio a umuso ora rigoroso, ora acolhedor do próprio cetro, a
psicoterapia ganhou seus espaços, fazendo do psicoterapeuta uma figura
visível e desejada aos olhos das sociedades ocidentais. Além de podermos
notar a busca frequente por seus serviços, sobretudo nos consultórios priva-
dos, a psicoterapia tornou-se um lugar social almejado e disputado por al-
gumas profissões que se articulam em diferentes níveis para dominá-la, ao
mesmo tempo em que ainda se tornou um chamariz para profissionais saídos
da academia que desembocam no mercado e se dizem satisfeitos com a pro-
fissão (Bastos & Gondim, 2010).
A figura do psicoterapeuta movimenta um mercado nada desprezí-
vel em termos de livros, cursos, congressos e formações, como de planos de
saúde e tratamentos cada vez mais especializados e também aparece hoje na
mídia em novelas, cinemas e seriados geralmente ocupando uma posição
importante e ligada ao bem, de onde costuma alimentar as ideias de uma
cultura psi cada vez mais forte em tais sociedades. Não é sem razões que
alguns governos, na atualidade, discutem amplamente sua regularização
como profissão, definindo critérios sobre quem poderia exercê-la e em quais
condições seu exercício seria adequado (Roudinesco, 2007). Tamanha é a
importância social, econômica e política desse espaço que tais processos de
regularização geralmente recebem intensa influência monopolista de podero-
sos grupos econômicos, como os laboratórios farmacêuticos e instituições de
psicoterapia, de modo a impedir um debate mais amplo e democrático entre
os diferentes setores que se interessam e praticam a psicoterapia2.
No entanto, à semelhança de um drama shakespeareano, o reinado
da psicoterapia parece se fundar sobre muitos pontos obscuros e movediços,
marcantes por suas contradições que poderiam ameaçar sua coerência, so-
bretudo no que se refere a suas pretensões modernas de ciência (Neubern,
 
2 No caso do Brasil, há uma coincidência curiosa entre a proposta do Ato Médico, segundo a qual
qualquer tratamento, incluída aí a psicoterapia, deveria ser prescrita por um médico, e a criação da
Associação Brasileira de Psicoterapia (ABRAP). Esta associação, criada em conjunto com o próprio
CFP (Conselho Federal de Psicologia), é fonte de polêmicas entre os psicólogos, pois além de in-
cluir uma grande participação de psiquiatras em sua cúpula, é frequentemente acusada de terceirizar
a psicoterapia para um outro órgão, tirando do próprio conselho profissional a discussão aprofunda-
da de um campo tão central para a prática profissional de muitos psicólogos.
Maurício da S. Neubern18
2009). Repetindo o ímpeto moderno de estudar e dissecar o mundo, sem
refletir sobre as próprias origens, a psicoterapia parece se esquecer de sua
própria história, como se esta viesse de um progresso cumulativo até o ponto
em que, pela ação de algum gênio iluminado, tivesse atingido uma racionali-
dade enfim científica. Mais que isso, criam-se mestres fundadores e marcos
históricos específicos, deixando-se no esquecimento autores, acontecimentos
e obras que foram de grande valor para as propostas que hoje vigoram nas
práticas contemporâneas.
É assim que, enquanto Mesmer é por vezes visto como um sujeito
excêntrico, ou mesmo um charlatão, Puységur, Eisdale e Bertrand raramente
aparecem nos livros de história, apesar da grande importância que tiveram
para o movimento do magnetismo animal europeu e das significativas con-
tribuições que propuseram para a prática psicoterápica. Tal cegueira siste-
mática também se estendeu a determinados acontecimentos de grande im-
pacto social e científico que acabaram por ser jogados ao esquecimento, tais
como os julgamentos de Mesmer e dos magnetizadores pelas academias de
ciência da França e a própria relação de Freud com a hipnose. Apenas re-
centemente esses pontos têm sido revisitados e aprofundados de forma críti-
ca por alguns autores (Carroy, 1991, Chertok & Stengers, 1989, Méheust,
1999, Neubern, 2009, & Stengers, 2001), cujos trabalhos lançam novas pers-
pectivas de compreensão da história e das práticas institucionais da psicote-
rapia. Tal esforço, porém, continua distante das universidades e dos grandes
centros de formação de psicoterapeutas que, sobretudo no Brasil, ainda se
mantêm ligados às versões dominantes da história de uma vitória pretensa-
mente triunfante da razão.
Logo, malgrado as propostas inovadoras de releitura histórica, os
percursos em que os psicoterapeutas haurem sua formação encontram-se, em
larga medida, impermeáveis a novas perspectivas de compreensão, o que
contribui para que as reflexões sobre as origens da psicoterapia continuem
distanciadas de autores e acontecimentos importantes. É assim que os livros
de história situam os magnetizadores, ora como pessoas bem-intencionadas,
mas mal fundamentadas, ora como charlatões que não possuiriam mais que
um valor histórico para o nascimento das ciências psi, já que seus métodos
não teriam resistido às exigências da avaliação científica. Entretanto, poucos
se referem às graves inconsistências metodológicas, tal como ocorrido com a
avaliação da proposta de Mesmer em 1784 (Chertok & Stengers, 1989), nem
às estratégias de franca sabotagem com que se forjou a ilegitimidade dos
mesmerismo francês na primeira metade do século XIX (Méheust, 1999).
Tampouco se aprofundam numa reflexão sociológica e epistemológica que
provavelmente incitou posturas tão contraditórias entre os cientistas da épo-
ca, como a dimensão subversiva do mesmerismo, seus questionamentos
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 19
contra a acentuada estratificação social, seu acolhimento nas classes operá-
rias, entre desempregados e imigrantes, a visibilidade social que conferia à
mulher no espaço público e sua aliança a movimentos espiritualistas que
desagradavam à Igreja (Neubern, 2009). Em suma, as versões contemporâ-
neas de história da psicoterapia, às quais geralmente temos acesso no Brasil,
parecem recalcar uma série de processos que trariam importantes reflexões
para os psicoterapeutas atuais tanto de suas práticas quanto a respeito de suas
instituições de pertencimento.
Esse mesmo processo de cegueira com que nos deparamos na
atualidade também teve suas raízes na obra de Freud que, movido pelo de-
sejo intenso de fazer ciência nos moldes modernos, tudo fez para distanciar a
psicanálise da hipnose, filha direta do mesmerismo (Stengers, 1999). É assim
que ele as comparou respectivamente a uma cirurgia e a um procedimento
cosmético, sendo que a primeira – a psicanálise – seria mais eficiente por
abordar a causa subjacente dos conflitos, enquanto a segunda ficaria restrita
a um tratamento superficial focado em sintomas (Freud, 1905/1996a). Essa
precisão cirúrgica seria a causa do sucesso e da superioridade da psicanálise,
que ofereceria curas mais convincentes e duradouras com relação à hipnose,
prática superficial e ineficaz. Essa ideia perpassou a maior parte de sua obra,
sendo colocada como uma espécie de bandeira no movimento psicanalítico
nascente, até que, ao final de sua carreira, Freud (1937/1996b), numa postura
corajosa, finalmente assumiu que os mesmos problemas encontrados na
hipnose, como o retorno e a substituição dos sintomas e a inconsistência
das curas, também poderia ser encontrado na psicanálise. Ele chegou mesmo
a acrescentar que “ainda não se encontrou substituto algum para a sugestão”
(pp. 245-246) e a lamentar que o esforço de Ferenczi em retomar a sugestão
e resolver essas questões não tivesse dado frutos nesse sentido. É curioso
observar como tais reflexões raramente são levantadas por psicanalistas e
psicoterapeutas, e como a mensagem inicial e heroica de Freud, que trazia
uma proposta “superior” de terapia unindo cura e ciência moderna, ainda
parece se manter dominante para grande parte de seus seguidores e sim-
patizantes.
Esses exemplos ilustram como aforça, em suas ações institucio-
nais, pode contribuir para a cegueira à qual nos referimos, pois, ao mesmo
tempo em que ofusca e esconde importantes personagens e acontecimentos
históricos, acusa os pensamentos rivais de não científicos, condenando-os a
um exílio sem fim. A história passa a ser contada por aqueles que vencem a
guerra e ocupam os espaços de produção desse conhecimento que passam a
reproduzir essa mesma história e, curiosamente ou não, a dar continuidade
aos mesmos mecanismos institucionais e políticos de exclusão quanto a
perspectivas alternativas. É assim que o reinado se mantém, não por uma
Maurício da S. Neubern20
postura democrática, mas pelo policiamento das ideias, pelo silêncio imposto
e pela exclusão de qualquer ideia tida como subversiva. Logo, torna-se pos-
sível conceber que o ímpeto reprodutivo de ideias e procedimentos técnicos
com os quais o psicoterapeuta se forma e se mantém em sua prática seja
muito mais valorizado do que a possibilidade de pensar e refletir por si
mesmo. Não é, portanto, por acaso que a psicoterapia acabe repetindo um
problema geral das próprias instituições científicas, nas quais o preconceito
se torna, de um só golpe, tão pertinaz e sutil que pode barrar a capacidade de
reflexão dos sujeitos pensantes, utilizando-se, para tanto, dos mais diversos
mecanismos de policiamento, coação e punição (Morin, 1991, Meyer, 2010).
O que comumente ocorre na formação do pensamento de muitos
psicoterapeutas, sejam neófitos ou veteranos, é um processo devocional,
quase religioso que deve assumir o status de condição para que uma psicote-
rapia seja considerada confiável. Aqui, o mestre fundador, mesmo que nas-
cido em outra época e cultura, torna-se uma espécie de divindade a quem se
deve recorrer insistentemente para que o processo terapêutico possa receber
a chancela de um determinado nome que caracteriza seu pertencimento,
como “psicanalista”, “humanista”, “behaviorista”, “sistêmico”. Pensar pelas
próprias ideias, sentir o próprio corpo, estar ali diante do outro na própria
pele pode se constituir em algo perigoso, principalmente se o processo fugir
do que é esperado pela teoria, ou seja, dos padrões para os quais ela possui
sensibilidade, dos processos que ela pode fazer visíveis e reconhecidos aos
olhos do psicoterapeuta. Pouco importa que o psicoterapeuta não saiba ex-
plicar o que é ciência, que jamais tenha tomado conhecimento das questões
epistemológicas que perpassam sua prática, que sua cultura acadêmica seja
pobre, que suas leituras estejam distantes no passado e que muitas de suas
perguntas sejam silenciadas: importa que ele evoque o mestre e peça que o
mestre assuma seu assento, conduzindo a sessão para que ele, pobre mortal,
não cometa qualquer pecado. A capacidade de criação, portanto, torna-se
muito restrita, de maneira que ele pode se ver obrigado a criar e permanecer
em silêncio, para não ser classificado como herético em sua comunidade, ou
permanecer um adepto fiel, em paz com seus colegas e dono de um pensar
empobrecido em sua rigidez e automatismo.
O que, todavia, parece fugir a seu conhecimento é que o mestre não
tem como ressuscitar, conduzir seu trabalho e tomar posse de seu espírito. O
máximo que pode acontecer, o que consideramos salutar, é que os mestres se
tornem vozes que possam soprar, vez por outra, no espírito do psicoterapeu-
ta, mas que cabem a este as decisões que o processo exige diante de um cli-
ente, pois é ele, o psicoterapeuta, quem está engajado neste processo em sua
corporalidade e em sua subjetividade (Roustang, 2006). Caso não consiga,
porém, adquirir semelhante consciência, seu conhecimento pode, facilmente,
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 21
adoecer e enrijecer sua prática de diferentes formas (Morin, 1990). Pode se
tornar um conhecimento doutrinário, no qual não existe espaço para um
diálogo com a realidade, para que a teoria seja questionada e venha a se re-
formular a fim de atender exigências que não contemplou corretamente. Na
doutrina, existe um ímpeto de confirmação de seus pressupostos indepen-
dente do que ocorra no mundo empírico, de maneira que aquilo que a con-
tradisser pode ser tido como inexistente ou algo indigno do conhecimento
científico. É assim que o psicoterapeuta tende a enxergar suas categorias
mestras em quaisquer fenômenos empíricos, sem atentar para as contradi-
ções próprias destes, como se pudessem ser transportados linearmente para
seu corpo de conceitos.
O pensamento do psicoterapeuta também pode degenerar sob a
forma de um afã tecnicista, onde existe um menosprezo pela reflexão e uma
supervalorização da possível eficácia das técnicas. “O que importa”, dizem
tais psicoterapeutas, “é que essa técnica funcione!”, sem perceber que a bus-
ca pelo resultado o afasta da capacidade de pensar, de modo a desconectá-lo
de uma compreensão ampla do processo, do contexto e da pessoa que está à
sua frente. Além de uma degeneração da prática, essa patologia pode impli-
car riscos para as pessoas, uma vez que o psicoterapeuta só se torna capaz de
enxergar a técnica e não como as pessoas se constituem subjetivamente e se
expressam diante dele. E, por fim, as práticas psicoterápicas também podem
degenerar por meio das pop-teorizações, ou seja, teorias que se tornam ve-
detes da moda, ocupam espaços de mídia ou encontros acadêmicos de forma
superficial e simplista.
As contradições, os conflitos, os obstáculos que fazem parte de
qualquer investigação empírica se desfazem diante de conceitos e técnicas
mágicas, sem jamais aprofundar o problema e discuti-lo em suas nuances e
variações e sem implicar na responsabilidade e protagonismo que um proces-
so terapêutico exige. Seus poderes não vêm apenas da eficácia que possuem,
mas de todo um aparato de mercado alimentado por indústrias de imagens,
fármacos, livros de autoajuda, workshops e cursos que são acessíveis ao
bolso e, por se tornarem objetos de consumo, não envolvem um engajamento
emocional profundo e responsável do sujeito a favor de si mesmo. Técnicas
terapêuticas, como as constelações familiares e a PNL, e diagnósticas, como
TDAH, transtorno bipolar e transtorno do pânico, comumente caem nas ar-
madilhas típicas das pop-teorizações em nosso país.
Face a quadro tão sombrio, Édipo parece vacilar. Ele goza de um
belo reino, com riquezas e poderes, mas já começa a intuir que algo está erra-
do, que seu poderio está ameaçado e que sua sorte pode mudar de uma hora
para a outra, como se inimigos saídos das sombras o surpreendessem e o depu-
Maurício da S. Neubern22
sessem. Mas, face a tal ameaça ele ainda conta, no reino da psicoterapia, com
uma importante arma que pode ser um tiro certeiro nesses inimigos obscuros
que tanto o ameaçam – a eficácia, de preferência, amparada pela ideia de cien-
tificidade. Não importa que essa ideia seja frágil, que o psicoterapeuta nunca
tenha participado de um curso de epistemologia, que a natureza do campo
dessa disciplina seja bem distinta daquela do laboratório: importa apenas a
segurança que essa ideia proporciona, mesmo que ilusória. Assim, as diferen-
tes escolas de psicoterapia se apropriam do espírito moderno e põem-se a justi-
ficar suas propostas em termos de uma verdadeira eficácia, amparada (assumi-
damente ou não) pela cientificidade, e atuando de modo desqualificatório
quanto às propostas rivais: enquanto umas sustentam que a eficácia deve
implicar a resolução de conflitos subjacentes a sintomas, outras respondem
que são os esquemas de reforço de comportamento ou padrão cognitivo que
devem ser modificados; se umas atentam para a emancipação do indivíduo,
outras rebatem que uma psicoterapia sem envolver o relacional não cumpre
seu papel; se umas atestam uma arqueologia do passado histórico, outras afir-
mam convictas que é o “aqui-e-agora” que realmente importa.
Desse modo, numa batalha cruel e feroz apontam as fragilidades uns
dos outros,destacam seus insucessos e imposturas e, numa busca incessante de
espaço e adeptos, ressaltam os valores de suas próprias propostas, a inteireza de
seus pressupostos filosóficos (estes, no geral, pouco pensados), os feitos heroi-
cos de seus expoentes, a ideologia de vida de suas ideias, os sucessos terapêuti-
cos e, de uma forma ou outra, a consistência – e consistência em termos de ciên-
cia moderna – de suas abordagens com relação às outras. “Ufa”, Édipo suspira
aliviado. Enquanto seus súditos se engalfinham numa luta sem precedentes entre
si, aqueles problemas que intuía, realmente ameaçadores, permanecem escondi-
dos e seu reinado, ao menos por enquanto, permanece dourado, risonho e salvo.
Pouco importa o que esteja recalcado, como a proposta moderna de um conhe-
cimento único da realidade (Stengers, 1995); pouco importa que as psicoterapias
jamais tenham conseguido um fiel da balança (como o laboratório) capaz de
manter essa unidade, como o fez a Física; pouco importa que existam mais de
500 abordagens (Roudinesco, 2007) e que, de um modo ou outro, todas possam
efetivar curas. Importa apenas que o reinado esteja salvo, sem que seja necessá-
rio se preocupar com o amanhã.
É por isso que a ideia de eficácia também é muito útil para que o
psicoterapeuta se concentre em suas técnicas e simplesmente ignore toda
uma série de influências sociológicas, institucionais e políticas que precedem
seu métier3. Seja por desinteresse, seja por ignorância, ele desconhece o fato
 
3 Não pretendemos afirmar com isso que a ideia de eficácia seja uma ilusão e não mereça estudos e
pesquisas que busquem compreendê-la. Apenas ressaltamos que ela é perpassada por influências
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 23
de que, quando uma nova abordagem surge, em nome da eficácia, ela des-
qualifica as rivais arvorando-se a uma condição superior, demonstrando,
inclusive, por meio de pesquisas e estudos que seu trabalho é melhor e mais
convincente quanto aos demais, como já alertava Wolberg (1967) há mais de
40 anos. No entanto, o psicoterapeuta também desconhece que essas pesqui-
sas, comumente, são produzidas por pessoas e instituições que definem os
critérios do que seja ou não eficaz, apesar de se esconderem sob a capa da
pretensa neutralidade do pensamento moderno. Assim, em nome desse co-
nhecimento privilegiado e confiável esconde-se toda uma dimensão política
que perpassa os discursos de eficácia, as relações entre abordagens e certos
grupos, como laboratórios, conselhos profissionais e universidades, que atuam
intensamente sobre as práticas sociais ligadas à avaliação de eficácia.
Nesse sentido, é possível identificarmos dois grandes grupos de psi-
coterapias que se diferenciam em termos da definição dos critérios de eficácia.
Por um lado, encontra-se a grande maioria das escolas de psicoterapia, que se
organizam sob o nome de um mestre fundador, tal como se deu com a psica-
nálise de Freud (Stengers, 1999). Apesar de não se sentir a vontade com a
lógica dos laboratórios, seus procedimentos e lógicas, a psicanálise desenvol-
veu uma perspectiva autorreferente de determinação de suas práticas e ideias,
de modo a definir o que seria ou não eficaz, como o que seria uma análise bem
conduzida, uma possível resolução de conflitos ou as possíveis condições para
que um paciente recebesse ou não alta do tratamento. O que determinaria,
portanto, o que seria ou não uma boa análise, malgrado as contradições e difi-
culdades dessa questão, não seria dado pela prática em si, como uma espécie
de revelação que o divã viesse a fornecer, mas pelos “núcleos de inteligibili-
dade”4 (Gergen, 1996) estabelecidos pelas instituições, inspiradas inicialmente
por Freud, mas que encontraram posteriormente outros mestres fundadores,
como Winnicott, Klein e Lacan, sendo ainda amparadas e reforçadas por ins-
tituições e práticas que veiculam e preservam suas ideias, como escritos, for-
mações, supervisões e espaços nas universidades. Entretanto, por algumas das
razões já aqui listadas, o analista, como o psicoterapeuta em relação a suas
próprias teorias, em geral não pensa nas vicissitudes das instituições de psica-
nálise, que esses critérios implicam em negociações no seio de processos rela-
cionais complexos, uma vez que o que ele precisa é ter uma confiança e um
sentir-se à vontade semelhante ao do físico em seu laboratório. E qual não é
seu gozo e sua alegria ao perceber que os conceitos, definidos sob a teoria-mãe
que adota, parecem se confirmar, revelando uma realidade oculta do psiquis-
 
políticas e institucionais e que tais influências também a forjam na mente dos psicoterapeutas, como
dos pesquisadores que definem os critérios do que é ou não eficaz.
4 Segundo Gergen (1996), “núcleos de inteligibilidade” referem-se a grupos que exercem certas
práticas sociais geradoras de sentido.
Maurício da S. Neubern24
mo de seus pacientes, oferecendo-lhe a possibilidade de explicação diante de
um mundo que por vezes o apavora e confunde! E nesse jogo de sedução
extática e erótica com uma teoria que tudo explica que ele se imbui de uma
sensação de supremacia e se põe a hostilizar os colegas de outras teorias, que
são convertidos em adversários por adotarem uma visão tão distorcida do que
é o ser humano. Curiosamente ele não se dá conta de que o pretenso adversário
também pensa o mesmo sobre ele.
Já o outro grupo de terapias é muito bem ilustrado pelo que ocorre
hoje com as terapias cognitivas. Estas possuem uma chancela assumida do
pensamento moderno – via laboratório – sendo amparadas por poderosos
núcleos de inteligibilidade que remetem a instituições de considerável pode-
rio político e econômico no mundo acadêmico e social. Assim, o impactante
posicionamento do MIT (Michigan Institute of Technology) em privilegiar a
expressão “ciências cognitivas” em detrimento do termo “psicologia” é bas-
tante revelador no esclarecimento de como as terapias cognitivas foram e são
amparadas por tais núcleos, o que justifica em grande medida sua vertiginosa
difusão em diferentes países. Nos esquemas abaixo, é possível notar como
existe aqui uma poderosa retomada de aproximação com a classe médica em
termos de práticas sociais e instituições nutridas por núcleos de inteligibili-
dade muito ligados às ciências cognitivas e às neurociências.
Fig. 1. Práticas sociais de inteligibilidade e significação das Terapias Cogni-
tivas (TC).
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 25
No tocante às práticas sociais (fig. 1), as terapias cognitivas apre-
sentam-se irmanadas com práticas muito comuns na atualidade, a começar
pelo diagnóstico altamente influenciado pelo DSM e sua lógica de transtor-
nos. Como os padrões cognitivos (Beck, 1997) apresentam grande afinidade
com a sintomatologia destacada nos transtornos, a terapia cognitiva é veicu-
lada como uma opção eficaz, principalmente quando aliada à prescrição de
psicofármacos, prática cada vez mais comum no cotidiano, que é influencia-
da pela mídia e por profissionais, e ocupa um lugar central em importância
para o tratamento de transtornos mentais e seus sintomas. Não é raro, em tais
práticas, que as contradições referentes a um processo psicoterápico, como a
inconsistência de certas mudanças, passe desapercebida devido ao afã do
psicoterapeuta em comprovar a eficácia de suas técnicas. Toda essa lógica,
que tem na eficiência sua palavra de ordem, já possui uma entrada vigorosa
nas universidades, principalmente com disciplinas de neurociências, filosofia
da mente, psicofarmacologia e psicologia cognitiva, e nos cursos de forma-
ção de terapeutas que proliferaram rapidamente nos últimos anos, o que
compõe o importante eixo das práticas sociais de ensino e formação, princi-
palmentede psiquiatras e psicólogos, mas que, vez por outra, tem atingido e
influenciado outras profissões como educação, serviço social e enfermagem.
Fig. 2. Instituições à sustentação das Terapias Cognitivas (TC).
Maurício da S. Neubern26
Já a dimensão institucional (fig. 2) compõe-se de instituições e
grupos profissionais que alimentam essas práticas e divulgam suas ideias
pela sociedade, principalmente com o intuito de ganhar espaço e visibilida-
de. As universidades e escolas de formação possuem um laço estreito entre
si, uma vez que os interessados em psicoterapia comumente se integram a
essas últimas sem ter ainda concluído o curso universitário, movidos em
grande parte pela sua proposta de cientificidade e eficácia sustentada por
disciplinas como as acima mencionadas, como também por congressos, gru-
pos de pesquisa e workshops. No entanto, os centros de pesquisa, em parti-
cular os laboratórios farmacêuticos, possuem um papel de grande relevância
nessa divulgação, uma vez que financiam profissionais de saúde, congressos
e eventos e parecem possuir também um apelo muito significativo junto à
mídia e aos conselhos e associações profissionais. É curioso notar mesmo
como essa conquista de espaço do cognitivo coincide com a proliferação de
cursos de formação, com a polêmica discussão sobre o projeto de lei do “Ato
Médico”, com a aproximação entre o Conselho Federal de Psicologia e a
classe médica – como no caso da fundação da Associação Brasileira de
Psicoterapia (ABRAP) –, e da mudança de linhas de publicação de certas
editoras, tanto na produção do livro técnico, como dos livros de autoajuda.
Numa perspectiva como essa, a postura de muitos médicos, ao reco-
mendarem a terapia cognitiva e desqualificarem as demais, torna-se compreen-
siva. Atuam aqui como porta-vozes de um Édipo que goza seu reinado de tran-
quilidade aparente, uma vez que não precisam pensar no que antecede e ali-
menta suas práticas (nem em suas implicações sociais), mas apenas nos critérios
de eficiência, ponto este muito bem-vindo numa sociedade de consumo que
privilegia a performance e a velocidade, em diferentes formas de produtividade
ou excelência, e o individualismo, em detrimento dos vínculos sociais e afetivos
(Bauman, 2004). Ele pode dormir sossegado à semelhança do homem europeu
do século XIX que acreditava que a ciência a tudo responderia, mas com a dife-
rença significativa de que, agora, para dormir, existem medicamentos mais
avançados. No entanto, esse sono não possui nada de tranquilo. Ele é habitado
por pesadelos que atormentam seu espírito, justamente porque sua noção de
eficácia, algo capaz de resolver problemas, talvez não tenha sido a mais perti-
nente para as demandas de seus clientes, que ele nem sempre soube reconhecer,
por estar demasiado preso a suas próprias ideias.
Sua proposta de resolução – pragmática e assertiva – seria uma
forma de adaptação da pessoa ao mundo competitivo e de desempenho num
mundo pós-industrial em detrimento de uma proposta emancipatória? Tornar
a pessoa mais competente e resolutiva implicaria em torná-la mais realizada,
com novos sentidos de vida? Esse ímpeto de competência promovida pela
terapia a colocaria numa possibilidade de vinculação e consideração com as
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 27
outras pessoas ou numa postura mais competitiva e individualista com rela-
ção às mesmas? Como ficaria, então, a apropriação do sujeito, a autonomia
que caracteriza tantas terapias (Binswanger, 1935/2008), se o critério de
eficácia, como os meios de atingi-la, vêm de fora, de um outro especializado
no saber moderno, e não do próprio sujeito? E, no caso específico dos psi-
cólogos, essa obsessão pela eficiência estaria em consonância com sua pro-
posta de um olhar diferenciado sobre a pessoa, que tem justificado inclusive
sua inserção nas propostas políticas importantes, como a humanização no
SUS (Ceccim & Merhy, 2009), ou seria uma reprodução do tão criticado
modelo médico? É assim que seu sono se perturba e o incomoda, mas talvez
seja muito difícil poder acordar, uma vez que a tentação da supremacia o
acomoda numa posição em que é melhor manter os olhos fechados.
Semelhante discussão não consiste numa crítica particular à terapia
cognitiva, enquanto proposta técnica e terapêutica, que consideramos ter
evoluído muito nos últimos anos (Beck, 1997; Greenberg, Rice & Elliot,
1993) e que entendemos possuir, em termos clínicos, a mais alta relevância.
A crítica aqui desenvolvida, que poderia ser perfeitamente aplicável ao
behaviorismo nos anos 50 e 60 (Wolberg, 1967), incide não sobre o que a
eficácia dessa terapia pode proporcionar, mas à cegueira que a noção de
eficácia apregoada por seus protagonistas favorece, por tudo o que esconde
em termos políticos e sociais. Refere-se muito mais à forma degenerada do
uso de uma proposta, uma forma que, como tantas outras, associa o ideal de
hegemonia à conquista de espaços institucionais, imaginários e econômicos
e que se torna respaldada pela alienação do psicoterapeuta, que oscila entre a
fascinação e a devoção pela noção de eficácia e sua distância do compromis-
so com reflexão sobre a sua prática em sua sociedade, com a percepção das
relações que existem entre aquilo que faz e o mundo em que ele, seus pares e
clientes vivem. Trata-se, em suma, de sua recusa em tomar o rumo de Del-
fos, onde poderia repensar suas origens, e simplesmente permanecer no con-
forto ilusório e tentador do reino de Édipo que, no entanto, já intui suas pró-
prias fragilidades e, cedo ou tarde, tomará consciência de que tudo o que
construiu pode ruir5 a qualquer momento.
 
5 Tal como se deu com a hegemonia behaviorista nos EUA. Até os anos 70, o behaviorismo se cons-
tituía como força hegemônica da psicologia norte-americana, dominando universidades e centros de
pesquisa e colocando-se como uma terapia mais científica e eficaz que as outras. Tal supremacia ce-
deu lugar, a partir de duros ataques (Gergen, 1996), à psicologia cognitiva que, hoje, tornou-se o
pensamento dominante neste país. É curioso observar ainda como que grande número de behavio-
ristas buscaram o que antes pareceria heresia em muitos grupos dessa escola: uma associação com o
cognitivismo ascendente. Daí surgiram as “terapias cognitivo-comportamentais”, algo impensável
para muitos nos anos áureos do behaviorismo.
Maurício da S. Neubern28
ÉDIPO EM COLONO: DA MISÉRIA À EMANCIPAÇÃO
Uma das questões que mais chamam à atenção no mito de Édipo é
sua entrega para um processo expiatório, onde pôde encontrar suas misérias
e, a partir delas, atingir uma verdadeira maturidade espiritual. Sua autopuni-
ção com uma cegueira que concretizava no corpo a verdadeira cegueira que
vivia como rei e seu exílio voluntário e errante em Colono parecem levá-lo a
uma espécie de destilação do próprio sofrer, a um encontro terrível, mas
aberto com sua própria história, a enxergar com os olhos da alma, de modo a
conquistar uma verdadeira e iluminada sabedoria. Sem qualquer dúvida,
trata-se de uma trajetória heroica, uma vez que tal empreitada demanda uma
parcela rara de coragem e determinação, como de bom-senso e esperteza
para lidar com obstáculos tão assustadores, num processo em que qualquer
mortal pode sucumbir pela depressão e pelo esgotamento de seus recursos
vitais. Daí porque consideramos o mito de Édipo não como um complexo
universal e estruturante da psique, como rezam os psicanalistas, mas como
uma história cuja exemplaridade pode tocar muitas pessoas, dentre elas os
psicoterapeutas, de modo a servir significativamente em seus processos de
crescimento e reconciliação consigo mesmo.
Parece-nos, por outro lado, sintomático que poucos psicoterapeutas
conheçam essa segunda parte do mito – a de Colono – pois a grande maioria
estudou apenas a primeira, que termina com a trágica descoberta dos terrí-
veis segredosque permeavam a história do herói e sua consequente expia-
ção. Uma coincidência estranha paira sobre a relação entre os movimentos
de psicoterapia e o mito de Édipo: ao mesmo tempo em que ele é contado
pela metade, os movimentos de psicoterapia se sentem seduzidos pelas bele-
zas de seu reinado, representadas em grande parte pelos ideais modernos de
ciência, e cultivam a mesma cegueira quanto a suas origens históricas e suas
condições socioculturais de nascimento e vida. Então, talvez seja o momento
de indagarmos se as psicoterapias teriam condições, enquanto movimentos
sociais e institucionais, de seguir o caminho de Édipo, deixando as comodi-
dades de um reino ilusório para a vida árdua, mas autêntica, do caminho de
Colono, que permitiu uma verdadeira mudança em sua trajetória.
Desse modo, uma das primeiras feridas com que os psicoterapeutas
podem se deparar é com a dimensão histórica de sua disciplina, amparada
pelas disciplinas irmãs que a sustentam. Nem a psicoterapia, nem suas irmãs
psi possuem uma história progressiva, cumulativa e linear que sai da obscuri-
dade e da ignorância rumo à razão triunfante e iluminada pela ação sem má-
culas de algum gênio do pensamento moderno. Da mesma forma, o estudo da
história não consiste numa revelação de uma natureza do mundo social, por-
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 29
que a história da ciência é um produto humano, contado por seus protagonistas
num determinado período e contexto e que possui uma heterogeneidade de
vozes e possibilidades de compreensão. Tal estudo deve incidir, portanto, não
apenas sobre o que se disse, mas também sobre quem o disse, como foi dito e
em quais condições tais afirmativas ganharam sentido nas comunidades. As-
sim, torna-se possível conceber a contribuição de grandes ícones do pensa-
mento moderno psi, como Wundt e Freud, a que se propuseram a estudar e
sustentaram de pertinente para a psicoterapia e as possíveis razões que fizeram
de suas propostas algo importante para tal disciplina. Mas, concebendo-se que
este seria apenas um feixe de uma história altamente complexa, o mergulho
histórico poderia ser ainda direcionado a outras raízes, como as do magnetis-
mo animal (mesmerismo) e da hipnose, que antecederam as versões oficiais e,
malgrado sua grande importância para o surgimento das ciências psi, foram
marginalizadas e, em larga medida, excluídas em seus méritos histórico e ci-
entífico (Méheuts, 1999; Neubern, 2009).
Nessa perspectiva, a história perde o vício de possuir uma versão
oficial, respaldada pelo pensar moderno mais estreito e exclusivista, para se
tornar um conjunto de possibilidades, em que raízes e feixes distintos podem
participar da integração de novas visões, concorrendo entre si de modo a
oferecer uma perspectiva mais ampla para o psicoterapeuta. Mas, mais que
isso, o psicoterapeuta encontra aqui a oportunidade de refletir, não apenas
sobre a dimensão de realidade que estudaram, em termos de campos, objetos
e métodos, como dos jogos institucionais que foram decisivos para a consa-
gração de alguns heróis, fossem eles autores ou formas de pensar, e alguns
vilões que foram condenados a um ostracismo que parece não vislumbrar
fim. No primeiro caso, pode aprofundar o estudo sobre como os autores do
século XIX, por exemplo, entendiam a psique, os fenômenos de cura, que
métodos utilizavam para a abordagem de seus objetos de estudo e que ques-
tões ocupavam o cenário da discussão nas comunidades científicas.
Valeria mesmo a pena indagar porque, no caso dos magnetizadores
dos séculos XVIII e XIX, os fenômenos magnéticos e mediúnicos, hoje pra-
ticamente excluídos da academia, ocuparam tamanha importância em suas
primeiras cogitações e no posterior nascimento da relação entre ciência e
cura6 (Bergé, 1995; Ellenberger, 1971; Méheust, 1999). Já no segundo caso,
deve focar suas atenções sobre as vicissitudes humanas e institucionais que
marcaram a apreciação das comunidades científicas sobre momentos que
foram decisivos, tirando-se o foco sobre uma questão puramente metodoló-
 
6 Vale destacar como os pesquisadores que buscam estudar tais tipos de fenômenos encontram ainda
hoje uma considerável resistência no meio psi, mesmo no Brasil, onde tais fenômenos são ricos, co-
muns e possuem especial importância na subjetividade do povo.
Maurício da S. Neubern30
gica para o de uma compreensão dos jogos de poder e política envolvidos
nos processos e tomadas de decisão. Logo, ao invés de se conceber o traba-
lho de Mesmer como simples quimera ou charlatanismo, seria importante
buscar uma compreensão sobre como as falhas metodológicas grotescas das
comissões científicas no julgamento de suas ideias passaram desapercebidas
das comissões científicas formadas por homens tão eminentes; por quais
motivos se impôs uma lei de silêncio tão avassaladora, capaz de impedir a
continuidade sobre o trabalho incompleto das comissões, de ignorar o pare-
cer favorável de Laurent de Jussieu, grande naturalista dissidente das comis-
sões, em continuar as pesquisas e mesmo de punir com exclusão os membros
da Faculté de Médecine que se colocassem favoráveis ao mesmerismo e o
utilizassem como instrumento médico (Bertrand, 1826/2004).
A partir de semelhantes reflexões, o psicoterapeuta pode se indagar
sobre a forma como sua instituição de pertencimento veicula a história de seu
métier. Mais que isso, ele pode fugir às velhas explicações de efeito tiradas do
baú do mestre fundador para perceber como as relações acontecem, como as
negociações e produções de sentido ganham espaço no seio dessas instituições
e até que ponto repetem os mesmos mecanismos que caracterizaram processos
históricos tão ilustrativos como os dos magnetizadores na França ou da psica-
nálise nos tempos de Freud. E sem que tenha que, com isso, mover-se num
espírito de caça às bruxas e punição de vilões, refletir sobre as diversas possi-
bilidades que permeiam o contar da história, tal como ocorre em muitas práti-
cas clínicas contemporâneas (White, 2007). Assim, de uma postura cristaliza-
da na passividade de um ensino dogmático, ele se coloca na posição de quem
reflete e pensa, percebendo que uma história pode possuir versões distintas e
conflitantes de acordo com os protagonistas que as narram.
Há aqui uma observação importante, um paralelo que deve ser feito
com relação à aventura de Édipo em Colono: sua trajetória heroica só se
torna possível porque ele busca uma reconciliação com sua própria humani-
dade. Não é a ação dos deuses ou a promessa mentirosa de um reino que lhe
proporciona um movimento de superação tão impressionante, mas o reco-
nhecimento de suas próprias misérias e fragilidades, que são colocadas em
pauta, assumidas e trabalhadas para que ele se supere e ascenda a uma con-
dição de iluminação. É desse modo que a práxis do psicoterapeuta, em suas
dimensões reflexivas e clínicas, precisa incluir o sujeito como condição es-
sencial, apesar de toda a fragilidade e desconfiança que essa categoria de-
sempenha em termos modernos (Gonzalez Rey, 2007; Morin, 2001).
Tal condição implica dois caminhos articulados de forma inevitável.
Em primeiro lugar, uma vez que ele se encontra diante do cliente é importante
que ele escute as vozes internas que vêm de si mesmo (seja de seu corpo, de
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 31
sua intuição, de suas leituras) porque é ele e não o mestre fundador quem está
ali numa relação concreta com esse cliente, relação da qual o processo tera-
pêutico depende por total (Morin, 1990; Neubern, 2004). Daí porque a teoria,
ao invés de consistir numa entidade tirânica que escraviza seu pensamento,
precisa se transformar num pano de fundo, num conjunto de referências que
ganhe vida em seu espírito, que o auxilie no diálogo com o mundo empírico,
mas que possa também ser questionado, aprimorado e até mesmodestruído.
Ela não pode ser vista como um conjunto de respostas, mas como a possibili-
dade de tratar um problema, de dialogar com a realidade do outro, de pensar a
complexidade de seu mundo, de se transformar, em suma, num legítimo e
precioso auxiliar para a pesquisa. Não pode, portanto, ser o ponto final onde se
encaixam as expressões do sujeito, um túmulo onde termina a vida da refle-
xão, mas um arcabouço articulado e flexível de conceitos que permita o nascer
dessa reflexão. Daí porque é impossível pensar a teoria sem o sujeito7, por que
ela, por si mesma, não é capaz de pensar e precisa dele para exercer qualquer
uma das operações cognitivas que pode efetivar.
Em segundo lugar, a condição de sujeito implica num resgate de
sua própria subjetividade, da condição humana da relação e que permite,
como diria Binswanger (1935/2008) ou Milton Erickson (Erickson & Rossi,
1980), o fundamento de um solo mãe e afetivo que nos liga e irmana como
seres humanos. Tal condição se torna possível à medida que o psicoterapeuta
passa a se escutar, a sentir seu próprio corpo, a perceber os apelos de sua
intuição, a se interessar pelas emoções que sopram em seu íntimo e a se co-
nectar com o manancial heterogêneo de sua trajetória de vida, com relacio-
namentos e experiências diversas, e daí tirar as referências para se relacionar
com aqueles que o interpelam. Essa abertura a si mesmo é o que permite que
traga sua singularidade para a terapia, que ele mesmo entre em relação com
o cliente não só como alguém portador de um saber técnico, mas, sobretudo,
como uma pessoa que reconhece sua própria subjetividade e dela extrai a
matéria-prima para que a terapia possa acontecer. Uma vez que ele se reco-
nhece e se legitima, tanto pelo que estuda e desenvolve em termos cogniti-
vos, como pelo que vive enquanto ser humano, sua relação com a teoria ten-
de a ocupar um plano secundário, porque é a relação com a pessoa do clien-
te, que está além de qualquer teoria, quem prevalece e permite que o proces-
so aconteça. O psicoterapeuta, portanto, se torna ele mesmo responsável por
suas ações no processo, sem o imperativo de transferir essa responsabilidade
 
7 É importante destacarmos que a condição de sujeito remete a uma conquista do psicoterapeuta, após
um largo processo de crescimento e aprendizado. É necessário, a princípio, que ele aprenda a repro-
duzir o que lhe é passado, compreendendo as nuances da tradição que recebe, para, em seu percurso,
aprender a pensar e criar sobre essa herança. Do contrário, corremos o risco de instaurar um anar-
quismo improdutivo.
Maurício da S. Neubern32
a um mestre qualquer que, por mais brilhante que seja, nada pode fazer
quanto àquele seu cliente em particular.
Semelhante aventura implica num conjunto de mudanças nas co-
munidades de psicoterapeutas em termos de uma maior horizontalidade das
relações. Enquanto a teoria deixa o papel de um mausoléu que encerra, pre-
tensiosamente, os restos do pensamento de seu criador, para se tornar um
corpo orgânico, acessível à crítica e flexível ao diálogo com o mundo, as
relações com o mestre fundador se modificam substancialmente. Ele pode
continuar na posição de um daimon (Morin, 1991), um ser-ideia que se
mantém vivo por ser constantemente evocado e alimentado pelas reflexões
daqueles que são seduzidos e atraídos por suas ideias, um ser que mantém
ideais e utopias que envolveram as pessoas e formaram comunidades. Mas,
por outro lado, ele sai da posição de uma divindade porque o questionamento
a seu pensar se torna possível e, mais que isso, necessário, pela comunidade
de sujeitos que dialogam com sua obra. Esse questionamento se coaduna
perfeitamente com a assertiva de Bachelard (1938/1996) segundo a qual no
espírito científico é possível venerar o mestre criticando-o, colocando ques-
tões a seu pensamento, em suma, dando-lhe possibilidade de evoluir por
submetê-lo ao rigor e ao calor do debate.
É assim que, mais do que sobre o que o mestre disse, a reflexão se
volta sobre como disse e como pensou para poder tecer tais afirmações,
como articulou ideias e abordou problemas concretos para concluir seus
pensamentos, de que premissas partiu e como lidou com elas e ainda, com
que vozes dialogava ao conceber sua teoria. Malgrado a ferocidade que tais
processos podem envolver no seio das instituições, essa é uma forma de
transportar o pensamento do mestre para o hoje, contextualizando-o no mun-
do atual de maneira a colocá-lo sob a dolorosa prova de se transformar para
poder evoluir, o que pode, inclusive colocá-lo sob o risco de aniquilação. É
assim que, mesmo em instituições tidas por seu conservadorismo, como
ocorre na psicanálise, alguns psicanalistas (Meyer, 2010; Nathan, 2006,
2007) têm trazido questionamentos incisivos sobre os pilares do universa-
lismo, tais como do Édipo, do desenvolvimento infantil e da eficácia tera-
pêutica, demonstrando a inconsistência de tais pressupostos, seja pela incoe-
rência de suas afirmações, seja pelo avanço de disciplinas como a etologia e
as neurociências. Semelhantes reflexões coincidem com algumas tendências
tipicamente contemporâneas como as de considerar o sujeito em sua singula-
ridade, sobretudo na produção de sentidos e significados, e numa relação
estreita com o sociocultural, com sua corporalidade, como em termos de um
questionamento incisivo sobre as noções modernas de teoria (Neubern,
2004; Roustang, 2006; White, 2007).
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 33
Nessa perspectiva, a comunidade se aproximaria de uma noção de
pólis – um conjunto de cidadãos num jogo democrático de negociações, ou
seja, um conjunto de sujeitos que pode se inserir num processo de debates e
discussões a respeito de temas pertinentes para a práxis em torno do qual tal
comunidade estaria engajada. Isto é, enquanto cidadão dessa pólis, ele possui
a condição de voz, decisão e reflexão, patrimônios não mais restritos a mes-
tres fundadores e escolhidos; a diversidade dos sujeitos, nesse sentido, pode
contribuir para a construção de corpos teóricos mais heterogêneos de modo a
se romper com a tendência monolítica das escolas modernas8. Todavia, con-
cebemos que semelhante noção ainda pode parecer utópica, uma vez que a
figura divina dos mestres fundadores se constitui como o pilar central de
grande parte dos movimentos de psicoterapia, que talvez se colocassem em
derrocada se aceitassem, em si mesmos, uma comunidade tão próxima ao
sentido da pólis grega. No entanto, seguindo-se mudanças importantes que
ocorreram na ciência e na discussão epistemológica do século XX, torna-se
possível ao psicoterapeuta repensar a condição dessa viga mestra, particu-
larmente no que se refere ao fracasso moderno de um conhecimento linear e
direto da realidade, o que não o permite se situar em qualquer posição privi-
legiada quanto a seus rivais (Gergen, 1996; Gonzalez Rey, 1997). Isto por-
que em mais de cem anos de disciplina, sem contarmos os tumultuados anos
anteriores da época mesmerista, a psicoterapia – como as ciências humanas e
sociais – não conseguiu cumprir um ou talvez o principal requisito da ciência
moderna (Neubern, 2004; Stengers, 1995): desenvolver uma abordagem que
silenciasse as demais, que se impusesse, tal como o exige o espírito moder-
no, como única e que contasse com dispositivos, como o laboratório das
ciências duras, que fizesse cessar as polêmicas e os espíritos de partido.
Com que triste realidade se deparou, então, o psicoterapeuta! Mais
os anos se passaram, mais surgiram promessas de movimentos e mestres,
arvorando-se a exclusividade moderna, mais o número de escolas proliferou,
mais as batalhas continuaram e ninguém conseguiu concretizar essa tão al-
mejada unidade na forma de uma hegemonia que desse ao psicoterapeuta o
mesmo status que tem o físico. “E por que, então,” pergunta-se ele surpre-
endido, “tantos embatescom os rivais, tantas querelas e disputas acirradas
se o ideal de uma exclusividade científica permaneceu e permanece ainda
hoje livre do espírito de domínio dos movimentos de psicoterapia?”. Sua
surpresa se acentua ainda mais à medida que se dá conta de que chegou atra-
sado nas discussões epistemológicas do século XX, onde a ciência passou a
se constituir, não como um ato simplista de revelação de realidade, mas
como um processo que envolve também uma série de construções e negocia-
 
8 Como ocorreu com os movimentos sistêmicos e narrativos entre os anos 90 e a virada do século.
Maurício da S. Neubern34
ções de seus protagonistas, negociações que permitem que o empírico, em
sua dimensão ontológica, ganhe visibilidade e sentido (Hacking, 1999).
Assim, não faz mais sentido pensar, como o fazia o psicoterapeuta
assombrado com a modernidade, que aquilo que o cliente lhe diz seja tido na
conta de uma expressão linear da realidade (que só ele enxerga), uma ex-
pressão de um objeto de estudo apenas por ele conhecido e que o setting
psicoterápico seja uma espécie de laboratório, um espaço confiável em ter-
mos de uma legitimidade capaz de tirar o véu da opinião para permitir uma
autêntica revelação sobre a psique do sujeito. Mais ainda, parece não mais
fazer sentido se entregar a tantas batalhas, fundadas numa paixão que não
permite a compreensão epistemológica de que os princípios modernos já
faliram na psicoterapia e não parecem dar sinais de ressurreição, apesar de
continuarem a influenciar dissensões, a transformar colegas em rivais, a de-
formar a formação do estudante e impedir o intercâmbio enriquecedor entre
pensamentos distintos.
No entanto, a lucidez que pode advir dessa dura realidade pode fa-
zer a diferença em termos de uma nova forma de entendimento da psicotera-
pia, uma forma que deixe de se restringir ao conteúdo do que se afirma, para
refletir sobre o que antecede e precede as afirmações em diferentes pontos.
Um primeiro ponto possível, já levantado por alguns autores (Erickson &
Rossi, 1980; Gonzalez Rey, 2007; Hanns, 2004), refere-se à própria natureza
do campo da psicoterapia, o que parece não se constituir como novidade à
primeira vista, por ser um dos primeiros tópicos discutidos desde a época de
Freud. No entanto, o que parece ser novo aqui é a busca de novas racionali-
dades e metáforas da subjetividade humana, que não parece se sentir muito à
vontade com as metáforas oriundas da matéria e da tecnologia trazida por
grande número de escolas, como a máquina para os cognitivistas, o laborató-
rio para os behavioristas e a mecânica dos fluidos para os psicanalistas (Go-
olishian & Anderson, 1996). Assim, se as diferentes abordagens utilizam
metáforas distintas e não parecem diferir muito em seus resultados, temos
aqui um indicador significativo de que o campo da subjetividade é muito
distinto do campo material onde se inspirou a ciência moderna e que, por
isso, os conceitos precisam ser reinventados de modo a se estabelecer novas
formas de diálogo com esse novo mundo empírico. Malgrado existam neces-
sidades de um aprofundamento nesse sentido quanto à própria noção de ci-
ência que se passa a buscar, existe aqui o retorno daquilo que ficou de fora
na fundação da ciência moderna, particularmente ligado ao reino da subjeti-
vidade, como o sujeito, a cultura e a geração de sentidos em seu mundo par-
ticular e social, as emoções, a irregularidade e a singularidade (Neubern,
2004), como também a construção de noções muito mais voltadas para o
Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 35
lado humano que para o da matéria (Santos, 2000): o jogo, violência, histó-
ria, retórica, escolha, drama, dentre outros.
É assim que, num tema complexo como a experiência religiosa, o
psicoterapeuta deve fugir da tentação de colonizar o pensamento de seu clien-
te, para buscar compreendê-lo nos sentidos que lhe são próprios, em termos
subjetivos e socioculturais (Nathan, 2004; Neubern, 2010a): um espírito, com
quem o paciente diz se comunicar, não pode ser tido na conta de uma alucina-
ção, produto imaginário ou arquetípico. É importante que o psicoterapeuta o
compreenda nas narrativas que o sujeito traz (o espírito e seu mundo espiritual)
e se pergunte o que esse ser gera, que sentimentos desperta nele e nos outros
de suas relações, que redes de interação e produção simbólica promove e que
práticas sociais e ações exige para que se possa negociar com ele. Desse modo,
embora o psicoterapeuta não precise renunciar à sua formação, em termos de
clínica e psicopatologia9, é preciso que se recuse a uma tradução perversa que
imponha narrativas totalmente estranhas ao mundo de seu cliente, que patolo-
gize o sujeito, transformando-o em mero indivíduo, destituído de qualquer
participação em seu rumo, de seu nicho de produções simbólicas e de seu per-
tencimento a diferentes redes, com todo o seu potencial terapêutico e emocio-
nal. Não se trata, em absoluto, de procurar entender e ser empático com suas
crenças, como se o psicoterapeuta as visse de fora, descritas num manual mi-
nucioso e preciso, onde fosse possível classificá-las ou talvez mensurá-las; ao
contrário, trata-se de uma disposição para entrar em seu mundo, com as metá-
foras que lhe são próprias, e conceber que os sentidos gerados a partir de sua
experiência com os espíritos são constituintes de sua realidade, o que envolve
pessoas, seres, sistemas culturais de significados, objetos, lugares, procedi-
mentos, outros tipos de terapia (Nathan, 2004) e práticas sociais implicadas no
drama das relações humanas (Turner, 1982).
Um segundo ponto a ser destacado é a importância de um olhar
complexo (Delourne & Marc, 2001; Morin, 2001; Neubern, 2004) para a
realidade das pessoas, um olhar que possa contemplar e dialogar com as
múltiplas interseções que perpassam a fabricação de suas subjetividades. O
encontro na psicoterapia não se reduz ao campo de uma única disciplina,
pois é perpassado por registros históricos, culturais, biológicos, sociais, fa-
miliares, econômicos, religiosos que encontram eco na subjetividade dos
protagonistas e reproduzem, de forma particular, todo o cosmos de uma so-
ciedade (Nathan, 2004). Isso força, de certa forma, a um diálogo com outras
 
9 A ideia aqui é muito mais a de que os saberes respaldados pela ciência moderna sejam narrativas
possíveis para o auxílio a uma demanda terapêutica e não os únicos. Assim, psiquiatria e psicopato-
logia podem conviver com outras narrativas de compreensão do mundo cultural do sujeito, tal como
descrito por Tobie Nathan (2006).
Maurício da S. Neubern36
disciplinas, uma vez que o psicoterapeuta mais lúcido se dá conta de que por
mais completa que sua teoria possa lhe parecer, ela ainda se mostra muito
insuficiente e tacanha diante de um mundo com tantas zonas de sentido,
interações e processos que talvez ele nem imaginasse existir. Funcionando
como uma espécie de antídoto ao dogmatismo doutrinário, semelhante
abertura à influência de novos saberes pode favorecer que o psicoterapeuta
assuma seu métier como uma práxis de pesquisa, porque, desse modo, ele
possui uma condição possível de dialogar com um conjunto numeroso de
interações que atravessam as situações clínicas em que se engaja. É assim
que, diante de uma cliente que demanda ajuda devido a intensas dores crôni-
cas, ele não pode se permitir à tentação de se manter nos conceitos já acaba-
dos, onde a explicação já está dada; o conhecimento sobre essa dor, ele ain-
da não o possui, pois está por se construir. O psicoterapeuta não pode mesmo
afirmar que já sabe algo, uma vez que esse saber origina-se de um processo
de relação com a cliente que nem ainda começou. Essa dor pode dizer de
questões de gênero, de relações conjugais, de missões familiares, de questões
econômicas no seio de suas

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