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Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 1 Adriano Furtado Holanda (Organizador)2 Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 3 O CAMPO DAS PSICOTERAPIAS REFLEXÕES ATUAIS Adriano Furtado Holanda (Organizador)4 ISBN: 978-85-362- Brasil – Av. Munhoz da Rocha, 143 – Juvevê – Fone: (41) 4009-3900 Fax: (41) 3252-1311 – CEP: 80.030-475 – Curitiba – Paraná – Brasil Europa – Escritório: Av. da República, 47 – 9º Dtº – 1050-188 – Lisboa – Portugal Loja: Rua General Torres, 1.220 – Lojas 15 e 16 – Centro Comercial D’Ouro – 4400-096 – Vila Nova de Gaia/Porto – Portugal Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco ??????, ?????????????????. ????? ?????????????????????./ ????????????????????? Curitiba: Juruá, 2012. ??? p. 1. ?????. 2. ?????. I. Título. CDD ???.??? CDU ??? Visite nossos sites na internet: www.juruapsicologia.com.br e www.editorialjurua.com e-mail: psicologia@jurua.com.br Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 5 Adriano Furtado Holanda Organizador O CAMPO DAS PSICOTERAPIAS REFLEXÕES ATUAIS Autores Adriano Furtado Holanda (Org.) Adelma Pimentel Bárbara de Souza Conte Fernando Luis González Rey Francisco Martins Marcelo M. Nicaretta Maria Adélia Minghelli Pieta Maurício da S. Neubern Thiago Gomes de Castro Valeska Zanello William Barbosa Gomes Curitiba Juruá Editora 2012 Adriano Furtado Holanda (Organizador)6 CONSELHO EDITORIAL ¾ Benno Becker Junior • Doutorado em Psicologia – Universidad de Barcelona, U.B., Espanha. • Mestrado em Pedagogia – PUCRS. • Especialização em Métodos e Técnicas de Ensino – PUCRS. • Graduação em Psicologia – PUCRS. • Gra- duação em Educação Física – UFRGS. ¾ Cristina Maria Carvalho Delou • Doutorado em Educação: História, Política, Socieda- de – PUCSP. • Mestrado em Educação – UERJ. • Es- pecialização em Educação – UERJ. • Graduação em Psicologia – PUCRJ. • Graduação em Licenciatura em Psicologia – PUCRJ. ¾ Djalma Lobo Jr. • Psicólogo e Parapsicólogo. • Coordena grupos psico- terapêuticos focados na autoestima e no autoco- nhecimento. • Desenvolveu projetos com pacientes portadores do vírus HIV, com parceria do Ministério da Saúde, e trabalha na área de prevenção de DST e AIDS. • Desenvolve trabalhos de Cuidando do Cui- dador para Psicólogos, Assistentes Sociais, Agentes de Saúde, Enfermeiros, Médicos e Professores. • Atua na área de Saúde Mental com o trabalho de desenvolvimento do psicoeducacional para pacien- tes com depressão e transtorno bipolar. • Colunista da revista FREEX, com a coluna comportamento e sexualidade. • Palestrante. • Atua em Curitiba, São Paulo, Campinas, Indaiatuba e Rio de Janeiro. ¾ Gabriel José Chittó Gauer • Graduado em Medicina (1984). • Especialização em Psiquiatria pela PUCRS (1988). • Doutorado em Me- dicina e Ciências da Saúde pela PUCRS (1995). • Pós-doutorado no Departamento de Psicologia da Universidade de Maryland (2001), na área de Cons- trução e Validade de Testes, Escalas e outras Medi- das Psicológicas e abordagem Cognitiva dos Trans- tornos de Ansiedade. • Professor titular da PUCRS. • Tem experiência na área de Avaliação e Interven- ção em Psicologia e Psiquiatria, Validação e Aplica- ção de Instrumentos e Psicologia da Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: violência, psi- copatia, ansiedade social, depressão, adesão ao tra- tamento e psiconeuroimunologia. ¾ Gilberto Gaertner • Mestrado em Engenharia de Produção – UFSC. • Es- pecialização em Formação em Psicologia Somática Biossíntese – Instituto Brasileiro de Biossíntese. • Especialização em Formação em Integração Estru- tural Método Rolf – Sociedade Brasileira de Integra- ção Estrutural. • Especialização em Formação em Bioenergia Raízes – Centro de Estudos do Homem. • Especialização em Psicologia Corporal – Orgone Psi- cologia Clínica. • Especialização em Orientação em Terapia Sexual – Clínica do Sistema Nervoso. • Es- pecialização em Capacitação em Técnicas Corporais – Clínica do Sistema Nervoso. • Graduação em Psi- cologia – PUCPR. ¾ Luiz Antonio Penteado de Carvalho • Médico Especialista em Ortopedia e Traumatologia. • Membro titular da Sociedade Brasileira de Ortope- dia e Traumatologia, SBOT. • Mestre pela UFPR. • Professor efetivo na Unicentro. ¾ Julimar Luiz Pereira • Mestrado em Educação Física – UFPR. • Especializa- ção em Treinamento Desportivo – UFPR. • Gradua- ção em Licenciatura em Educação Física – UFPR. • Professor da UFPR. ¾ Salvador Antonio Mireles Sandoval • Mestrado em Ciência Política – University of Texas at El Paso. • Mestrado e Doutorado em Ciência Po- lítica – The University of Michigan. • Atualmente é Professor titular da PUCSP, e Professor assistente Doutor-ms3 da Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. • Pós-doutorado no Center for the Study of Social Change, New School for So- cial Research. • Pesquisador convidado no David Rockefeller Center for Latin American Studies, Har- vard University como J. P. Lemann Visiting Scholar. • Graduação em Latin American Studies – University of Texas at El Paso. • Foi sócio-fundador e Presiden- te da Associação Brasileira de Psicologia Política – ABPP. • Fundador da Revista Psicologia Política sendo um dos primeiros coeditores dessa revista. • Professor visitante, Concordia University, Montreal Canadá em 2008. ¾ Editora da Juruá Psicologia: Ana Carolina de Carvalho Pacheco Bittencourt Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 7 APRESENTAÇÃO “Psicoterapias, para além da técnica”. Este poderia ser outro tí- tulo para a proposta deste livro. Isto porque a intenção deste projeto, que ora apresentamos ao leitor, é exatamente debater questões que ficam aquém e além da técnica psicoterápica. Não se trata de simplesmente questionar o instrumental do psicoterapeuta ou de apontar como se deve trabalhar com esta ou aquela patologia, ou nesta ou naquela abordagem. Mas de questio- nar o lugar e o próprio fazer do psicoterapeuta. Qual o fazer do clínico? Qual o lugar da psicoterapia? Quais os diversos sentidos que podem coexistir no campo das psicoterapias? Todas estas são questões importantes, pois fundamentam não somente a prática que será posteriormente exercida por um profissional, como também sedi- menta leituras diversas para um fenômeno eminentemente contemporâneo, como é a psicoterapia. Além disso, num momento em que se discute o cuida- do ou a atenção integral à saúde (com promoção, proteção e recuperação da saúde); num momento em que se procura sedimentar novos olhares para a saúde mental; num momento em que se fala reiteradamente de parcerias e de mobilização em todos os contextos da sociedade, este debate ganha con- tornos ainda mais relevantes. O campo das psicoterapias aponta para um conjunto complexo de modos de compreensão e de atuação, para um campo onde coexistem ele- mentos das mais diversas áreas do saber e, na atualidade, para um repertó- rio que transcende profissões. Esta complexidade se expressa pelo próprio modo de constituição desse campo ao longo da história e mesmo em nosso país. Podemos associar a prática psicoterapêutica ao fazer médico, desde os tempos dos Antigos – não nos esqueçamos dos clássicos escritos de Adriano Furtado Holanda (Organizador)8 Fílon de Alexandria e sua famosa escolas dos “terapeutas” – e, mesmo que consideremos a gênese da clínica na contemporaneidade, a estaremos asso- ciando a diversos nomes da área médica. Ocorre que, paulatinamente esta prática foi sendo legada a outras profissões e, talvez possamos pensar assim – a título de uma “concessão” da própria medicina, como veremos nos textos que tocam questões históricas da psicoterapia neste livro – seja pela parti- cularização (ou “subjetivação” ou “interiorização”) do sofrimento ou mesmo pelo “deslocamento” desse sofrimento, de um corpo físico, concreto,objetivo e palpável, para um “outro lugar”, o “lugar” de um psíquico, de um subjeti- vo, ou do simplesmente humano, que as ciências da fisiologia, da patologia médica, da biologia ou da anatomia não davam conta de reconhecer. Ocorre que toda essa preocupação fora antes da ordem da Filoso- fia. Afinal, como não reconhecer como referido ao que se compreende mo- dernamente como psicoterapia, ou simplesmente como “terapêutica” a pro- posta do gnothi seauton socrático – o famoso dito do Oráculo de Delfos, o “conhece-te a ti mesmo” – ao que Foucault acrescenta com a expressão grega epiméleia heautoû, ou à “cura de si”, na concepção latina. Tudo isso tem seu ponto de encontro na proposta do médico-filósofo Fílon. Com isto já apontamos o leitor para uma das muitas teses contidas nos textos que compõem este livro: a de que a suposta dissociação – ou di- cotomia, separação, distanciamento, oposição – entre sujeito e objeto, entre subjetivo e objetivo, entre individual e social, é falsa, limitada e errônea, e não dá conta da necessidade de um olhar complexo para o fenômeno huma- no. E talvez tenha sido o reconhecimento – mesmo que irrefletido – desta questão, que fez com que o campo das psicoterapias tenha transcendido o da medicina. Mas esta transcendência não foi e ainda não é tranqüila, nem dis- pensa debates acalorados ou reações que passam ao largo do debate técnico ou científico, ou filosófico ou teórico. Muitas das vezes resume-se a compo- nentes ideológicos. Muitas das vezes, resume-se a questões de “mercado”. E é por tudo isto, pelo reconhecimento de que um debate acerca do campo das psicoterapias se faz necessário; que este debate não pode ficar ao largo da complexidade do tema; que o diálogo interdisciplinar e multi- profissional é igualmente fundamental; que este debate não pode ser prima- zia ou monopólio desta ou daquela área do saber ou profissão, que nos pro- pusemos a debater aqui e agora o tema das “psicoterapias”. Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 9 Todos os temas foram aqui abordados por profissionais que tem em comum três características: a) o conhecimento prático e profissional, que lhes dá a competência no “fazer”, por suas formações, caminhos desen- volvidos na área – vale a pena ressaltar que aqui convivem perspectivas teóricas distintas – e experiência no campo a que se propõem estudar (em outras palavras, todos aqui são “psicoterapeutas”); b) a intenção de unir esta prática com a reflexão epistemológica e com a pesquisa empírica, assumindo a missão não apenas de pesquisadores mas de produtores de conhecimento, e; c) a preocupação com os rumos e com o “lugar” das psicoterapias no cenário contemporâneo. Este livro foi pensado e é dirigido a todos aqueles que se interes- sam, verdadeiramente, pelo campo das psicoterapias; e não faz diferencia- ção entre os iniciantes e os iniciados, entre os experientes e os curiosos, entre profissionais desta ou daquela área, por entendermos que nenhuma práxis subsiste sem um questionamento sobre suas bases, direções, entendi- mentos e relações. Esperamos que este livro sirva de reflexão e de base para novos trabalhos, e que o campo das psicoterapias se torne “figura” no cenário contemporâneo. Adriano Furtado Holanda Organizador Adriano Furtado Holanda (Organizador)10 Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 11 SUMÁRIO Ensaio sobre a cegueira de Édipo: sobre psicoterapia, política e conhecimento Maurício da S. Neubern............................................................................................ 13 Sentidos subjetivos, linguagem e sujeito: implicações epistemológicas de uma perspectiva pós-racionalista em psicoterapia Fernando Luis González Rey.................................................................................... 47 Reflexões sobre o campo das psicoterapias: do esquecimento aos desafios contemporâneos Adriano Holanda ...................................................................................................... 71 Desnaturalizando o fim social da psicologia clínica Marcelo M. Nicaretta ............................................................................................. 101 Psicoterapia e pesquisa: desafios para os próximos 10 anos no Brasil Maria Adélia Minghelli Pieta / Thiago Gomes de Castro / William Barbosa Gomes...121 Psicoterapia: o percurso histórico nos desafios por uma formação sem regulamentação Bárbara de Souza Conte ......................................................................................... 143 Psicoterapias: valoração e avaliação Francisco Martins / Valeska Zanello...................................................................... 155 Psicoterapia e clínica ampliada: diferenciando horizontes interventivos Adelma Pimentel..................................................................................................... 165 Índice Alfabético ................................................................................................... 179 Adriano Furtado Holanda (Organizador)12 Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 13 ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE ÉDIPO: SOBRE PSICOTERAPIA, POLÍTICA E CONHECIMENTO Maurício da S. Neubern Sumário: Édipo Rei: cegueira & reinado. Édipo em Colono: da miséria à emancipação. Maturidade espiritual. Referências. No mito de Édipo, o herói se torna cego após descobrir as terríveis tragédias em que havia se enredado em sua vida. Elas o chocam de uma tal forma que, como modo de expiação ou talvez de punição, Édipo se fere nos olhos tornando-se cego, passando a vagar pelo mundo. Ele abandona a ri- queza, o poder e a opulência de seu reinado em Tebas e, na companhia de sua filha e de seu profundo sofrimento, perambula pelo mundo na desespe- rada e dolorosa tentativa de encontrar a si mesmo, tal como rezava a célebre assertiva do oráculo de Delphos. Esse mito, tantas vezes apreciado e discutido na formação dos psi- coterapeutas, inspira a prática de muitos para que seus clientes ou usuários assumam a dura e corajosa tarefa de se deparar com os próprios dramas mas- carados pelo inconsciente que os fazem sofrer sem que o percebam e que necessitam ser decifrados a fim de que algum nível de resolução se torne possível em suas vidas. No entanto, ele guarda em si uma contradição fatal tipicamente moderna1 (Santos, 2000), pois a psicoterapia, no geral, encontra 1 O termo modernidade é aqui tirado de Santos (2000) e implica o paradigma dominante da ciência que preconizava um conhecimento privilegiado da realidade. Afastam-se as aparências por meio do método científico para se chegar a leis universais, de modo a se obter explicação, predição e controle da natureza. Maurício da S. Neubern14 enormes dificuldades, quando não possui uma proverbial indisposição, para levar a cabo e de forma sincera a proposta do conhece-te a ti mesmo. Seja como propostas teórico-epistemológicas, seja como movimentos sociopolíti- cos, a psicoterapia ainda parece permanecer nas ilusões vividas por Édipo, sentada num trono que lhe conferisse poder sobre seu campo, mas num rei- nado de legitimidade suspeita, principalmente por ser marcado pela cegueira sistemática a respeito de sua história e das condições de nascimento de seus próprios saberes. Nessa perspectiva, o psicoterapeuta acaba por refletir, no exercício de seu métier, o drama de semelhante contradição. Assim, ao mesmo tempo em que lhe é exigido que esteja presente na relação terapêutica, atento ao que se passa consigo e seu cliente, ele deve pensar por meio de uma teoria que não é sua, posto que elaborada por um grande nome, geralmente em outro país e até em outra época. Desprovido de sua condição de sujeito, ele pode trabalhar ativamente para que seu cliente desenvolva alguma forma de autonomia, apesar de ele mesmo terque se conformar com um papel obedi- ente quanto a seu marco teórico e, principalmente, quanto aos olhos atentos de sua comunidade de pertencimento. Numa perspectiva mais ampla ele pode se filiar a grupos profissionais, integrar movimentos, participar de campanhas que defendam a legitimidade de seus métodos de maneira a dife- renciá-lo de tudo que seja místico ou alternativo, de tudo aquilo que possa ser alvo de desconfiança ou charlatanismo, em suma, de tudo o que se dis- tancie da promessa moderna de certeza (Stengers, 1995). É sob a bandeira da ciência que ele espera, explicitamente ou não, um reconhecimento social que lhe permita ocupar importantes espaços numa sociedade, como as universidades, a mídia, os serviços públicos de saúde, justiça e assistência social. Essa mesma cientificidade pode levá-lo a dispu- tas intermináveis com colegas de profissão que se tornam adversários por pertencerem a outras abordagens, sendo que esses embates variam de piadas, debates e disputa de adeptos a verdadeiras sabotagens na peleja por espaços institucionais. No entanto, toda essa devoção que assume, por vezes, um caráter fundamentalista, desemboca numa profunda ironia, pois que, na grande maioria das vezes, ele mesmo parece não saber explicar o que seja ciência e como sua práxis é legitimada por este saber. A tais indagações, ele tende a responder com uma expressão que mistura a surpresa e a vergonha e alguns discursos prontos proferidos por um outro, geralmente algum nome proeminente de sua comunidade psicoterápica. Consideramos, aqui, que um quadro com tais nuances apresenta diversos sintomas, mas é perpassado por uma viga mestra que parece acom- panhar a formação e a prática do psicoterapeuta em diferentes níveis: a força Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 15 institucional (Stengers, 2001). Ela alimenta e precede as práticas sociais do “fazer” psicoterapia, ao mesmo tempo em que parece contribuir para a ma- nutenção das relações de poder nas instituições que promovem a psicotera- pia, como as universidades, as clínicas, os conselhos profissionais e os cen- tros de formação. A força não se apresenta enquanto tal, pois sempre está travestida de alguma coisa aceitável que confirme a autoridade da certeza moderna que, no entanto, ela mesma não é capaz de sustentar. Logo, diante das indagações de algum aluno mais inquieto e questionador, é comum que surjam mecanismos de silenciamento e pacificação que apelam para alguma autoridade que, em última instância é questionável, mas que aparece ali como uma espécie de palavra final. “Isto é assim”, respondem ao incômodo aluno, “porque foi a ciência quem disse!” ou ainda “porque foi o Mestre quem afirmou!”. Em termos mais amplos, a ação dessa força de caráter autoritário abrange desde um processo de domesticação de adeptos e membros, que podem, inclusive, ser acompanhados por rigorosos mecanismos de policia- mento, a uma verticalização institucional em que as decisões de caráter polí- tico acabam tomadas por poucos, em processos que não valorizam o diálogo e a compreensão das distintas perspectivas envolvidas, incluindo-se aqui psicoterapeutas, outros profissionais, alunos e usuários. Em suma, enquanto impõe o silêncio, suas fragilidades ficam pretensamente escondidas e longe de ameaças o que leva tais instituições a viverem numa espécie de ilusão de aparências e poder como, em certa medida, vivia Édipo em seu reinado. Não é sem razões que a reflexão, o questionamento e a valorização do sujeito costumam encontrar muitas resistências no seio das instituições e práticas sociais de psicoterapia, sendo, por vezes, alvo de mecanismos de repressão e imposição de silêncio os mais diversos. Desse modo, o objetivo deste trabalho é o de ampliar a reflexão sobre o métier da psicoterapia, destacando as dificuldades implicadas quanto a voltar seus olhares para suas próprias condições de surgimento e manuten- ção, aqui caracterizadas como “cegueira”, e ressaltando ainda algumas pos- sibilidades de crescimento a partir das reflexões que antecedem e emergem de suas práticas. Tomando-se como analogia o mito de Édipo, no primeiro momento, semelhante a seu reinado em Tebas, serão discutidas dimensões epistemológicas, institucionais, sociais e históricas que influenciam direta- mente as ações e pensamentos em psicoterapia, mas nem sempre são consi- deradas. Daí a noção de cegueira. Enquanto no segundo momento, similar à sua trajetória em Colono, serão destacadas um conjunto de possibilidades de pensar e refletir a partir das relações com essas dimensões. Maurício da S. Neubern16 ÉDIPO REI: CEGUEIRA & REINADO Um reinado da antiguidade, tal como concebido no imaginário po- pular, conferia uma condição única entre os seres humanos: o rei era alguém favorecido pelos deuses, alguém que poderia ter a última palavra nas diver- sas questões referentes a guerras, riquezas, vida, morte, liberdade e destino de homens e mulheres que poderiam, por bem ou por mal, entregar até mes- mo seus corpos caso o soberano assim desejasse. Cargo almejado por mui- tos, a disputa pelo trono envolvia, com frequência, tramas e assassinatos, posto que muitos se candidatavam a assumi-lo a fim de exercerem o poder fascinante que lhe era próprio. O caso de Édipo é, de certa forma, particular, pois embora tivesse assassinado um homem numa disputa, ele desconhecia o fato de que o rival inesperado fosse seu pai e rei do país para onde se dirigia. Esse aconteci- mento mórbido marca a história do mito, pois é a partir dele que o destino de Édipo e dos demais envolvidos se desenrola logo que se rompe o véu da ignorância que o cobria e se torna conhecido de todos. Porém, enquanto isso não ocorre, Édipo realiza o feito de um grande herói ao salvar a cidade de Tebas da esfinge e é agraciado de tal forma que se casa com a rainha, Jocas- ta, que ele nem desconfiava ser sua própria mãe. Como todos esses dramas permaneceram em oculto, ele pôde, durante um bom tempo, exercer a condi- ção de rei despreocupadamente, tendo filhos com a rainha, e um poder sobe- rano sobre suas terras e súditos, que o reverenciavam por sua bravura, sabe- doria e heroísmo. A psicoterapia, por sua vez, acompanhando, quando possível, ciên- cias irmãs como a psicologia e a psiquiatria, também pode viver uma sensa- ção semelhante. Seu espaço começa a se delinear no final do século XIX, quando Tuke a define pela primeira vez, espalha-se pelo continente europeu por meio de divulgadores prestigiosos, tais como Bernheim e Barres, e acaba por ganhar notoriedade a partir da obra de Freud, seus sucessores e dissi- dentes (Carroy, 2000). Nesse ponto destacamos uma contradição um tanto curiosa presente nas propostas dessa rainha tão complexa. Se, por um lado, a psicoterapia ocupou um lugar muito importante, ao oferecer uma proposta emancipatória ao sujeito, uma proposta de reconhecimento e liberdade, muito ao gosto do individualismo ocidental, por outro, ela não deixou de exercer um papel colonizador e tirânico típico das ciências modernas (Neu- bern, 2004). Assim, enquanto ganhou popularidade e importantes espaços sociais, com uma eficácia capaz de aliviar o sofrimento das pessoas e auxi- liá-las a produzir novos sentidos para a vida, ela também reproduziu as es- truturas de poder comuns das práticas modernas, muitas vezes impondo suas Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 17 perspectivas às narrativas próprias dos sujeitos e isolando-os de suas inser- ções sociais, o que implicou em sofrimento para muitos daqueles que a bus- caram como forma de ajuda (Gergen & Kaye, 1998). Sua pretensão científi- ca, presente em diferentes formatos, moveu-a a uma cruzada de desqualifi- cações contra movimentos ditos alternativos e místicos em atitudes que variavam das estratégias de diferenciação às ameaças a quaisquer de seus súditos que ousassem se aproximar de tais saberes. Em meio a umuso ora rigoroso, ora acolhedor do próprio cetro, a psicoterapia ganhou seus espaços, fazendo do psicoterapeuta uma figura visível e desejada aos olhos das sociedades ocidentais. Além de podermos notar a busca frequente por seus serviços, sobretudo nos consultórios priva- dos, a psicoterapia tornou-se um lugar social almejado e disputado por al- gumas profissões que se articulam em diferentes níveis para dominá-la, ao mesmo tempo em que ainda se tornou um chamariz para profissionais saídos da academia que desembocam no mercado e se dizem satisfeitos com a pro- fissão (Bastos & Gondim, 2010). A figura do psicoterapeuta movimenta um mercado nada desprezí- vel em termos de livros, cursos, congressos e formações, como de planos de saúde e tratamentos cada vez mais especializados e também aparece hoje na mídia em novelas, cinemas e seriados geralmente ocupando uma posição importante e ligada ao bem, de onde costuma alimentar as ideias de uma cultura psi cada vez mais forte em tais sociedades. Não é sem razões que alguns governos, na atualidade, discutem amplamente sua regularização como profissão, definindo critérios sobre quem poderia exercê-la e em quais condições seu exercício seria adequado (Roudinesco, 2007). Tamanha é a importância social, econômica e política desse espaço que tais processos de regularização geralmente recebem intensa influência monopolista de podero- sos grupos econômicos, como os laboratórios farmacêuticos e instituições de psicoterapia, de modo a impedir um debate mais amplo e democrático entre os diferentes setores que se interessam e praticam a psicoterapia2. No entanto, à semelhança de um drama shakespeareano, o reinado da psicoterapia parece se fundar sobre muitos pontos obscuros e movediços, marcantes por suas contradições que poderiam ameaçar sua coerência, so- bretudo no que se refere a suas pretensões modernas de ciência (Neubern, 2 No caso do Brasil, há uma coincidência curiosa entre a proposta do Ato Médico, segundo a qual qualquer tratamento, incluída aí a psicoterapia, deveria ser prescrita por um médico, e a criação da Associação Brasileira de Psicoterapia (ABRAP). Esta associação, criada em conjunto com o próprio CFP (Conselho Federal de Psicologia), é fonte de polêmicas entre os psicólogos, pois além de in- cluir uma grande participação de psiquiatras em sua cúpula, é frequentemente acusada de terceirizar a psicoterapia para um outro órgão, tirando do próprio conselho profissional a discussão aprofunda- da de um campo tão central para a prática profissional de muitos psicólogos. Maurício da S. Neubern18 2009). Repetindo o ímpeto moderno de estudar e dissecar o mundo, sem refletir sobre as próprias origens, a psicoterapia parece se esquecer de sua própria história, como se esta viesse de um progresso cumulativo até o ponto em que, pela ação de algum gênio iluminado, tivesse atingido uma racionali- dade enfim científica. Mais que isso, criam-se mestres fundadores e marcos históricos específicos, deixando-se no esquecimento autores, acontecimentos e obras que foram de grande valor para as propostas que hoje vigoram nas práticas contemporâneas. É assim que, enquanto Mesmer é por vezes visto como um sujeito excêntrico, ou mesmo um charlatão, Puységur, Eisdale e Bertrand raramente aparecem nos livros de história, apesar da grande importância que tiveram para o movimento do magnetismo animal europeu e das significativas con- tribuições que propuseram para a prática psicoterápica. Tal cegueira siste- mática também se estendeu a determinados acontecimentos de grande im- pacto social e científico que acabaram por ser jogados ao esquecimento, tais como os julgamentos de Mesmer e dos magnetizadores pelas academias de ciência da França e a própria relação de Freud com a hipnose. Apenas re- centemente esses pontos têm sido revisitados e aprofundados de forma críti- ca por alguns autores (Carroy, 1991, Chertok & Stengers, 1989, Méheust, 1999, Neubern, 2009, & Stengers, 2001), cujos trabalhos lançam novas pers- pectivas de compreensão da história e das práticas institucionais da psicote- rapia. Tal esforço, porém, continua distante das universidades e dos grandes centros de formação de psicoterapeutas que, sobretudo no Brasil, ainda se mantêm ligados às versões dominantes da história de uma vitória pretensa- mente triunfante da razão. Logo, malgrado as propostas inovadoras de releitura histórica, os percursos em que os psicoterapeutas haurem sua formação encontram-se, em larga medida, impermeáveis a novas perspectivas de compreensão, o que contribui para que as reflexões sobre as origens da psicoterapia continuem distanciadas de autores e acontecimentos importantes. É assim que os livros de história situam os magnetizadores, ora como pessoas bem-intencionadas, mas mal fundamentadas, ora como charlatões que não possuiriam mais que um valor histórico para o nascimento das ciências psi, já que seus métodos não teriam resistido às exigências da avaliação científica. Entretanto, poucos se referem às graves inconsistências metodológicas, tal como ocorrido com a avaliação da proposta de Mesmer em 1784 (Chertok & Stengers, 1989), nem às estratégias de franca sabotagem com que se forjou a ilegitimidade dos mesmerismo francês na primeira metade do século XIX (Méheust, 1999). Tampouco se aprofundam numa reflexão sociológica e epistemológica que provavelmente incitou posturas tão contraditórias entre os cientistas da épo- ca, como a dimensão subversiva do mesmerismo, seus questionamentos Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 19 contra a acentuada estratificação social, seu acolhimento nas classes operá- rias, entre desempregados e imigrantes, a visibilidade social que conferia à mulher no espaço público e sua aliança a movimentos espiritualistas que desagradavam à Igreja (Neubern, 2009). Em suma, as versões contemporâ- neas de história da psicoterapia, às quais geralmente temos acesso no Brasil, parecem recalcar uma série de processos que trariam importantes reflexões para os psicoterapeutas atuais tanto de suas práticas quanto a respeito de suas instituições de pertencimento. Esse mesmo processo de cegueira com que nos deparamos na atualidade também teve suas raízes na obra de Freud que, movido pelo de- sejo intenso de fazer ciência nos moldes modernos, tudo fez para distanciar a psicanálise da hipnose, filha direta do mesmerismo (Stengers, 1999). É assim que ele as comparou respectivamente a uma cirurgia e a um procedimento cosmético, sendo que a primeira – a psicanálise – seria mais eficiente por abordar a causa subjacente dos conflitos, enquanto a segunda ficaria restrita a um tratamento superficial focado em sintomas (Freud, 1905/1996a). Essa precisão cirúrgica seria a causa do sucesso e da superioridade da psicanálise, que ofereceria curas mais convincentes e duradouras com relação à hipnose, prática superficial e ineficaz. Essa ideia perpassou a maior parte de sua obra, sendo colocada como uma espécie de bandeira no movimento psicanalítico nascente, até que, ao final de sua carreira, Freud (1937/1996b), numa postura corajosa, finalmente assumiu que os mesmos problemas encontrados na hipnose, como o retorno e a substituição dos sintomas e a inconsistência das curas, também poderia ser encontrado na psicanálise. Ele chegou mesmo a acrescentar que “ainda não se encontrou substituto algum para a sugestão” (pp. 245-246) e a lamentar que o esforço de Ferenczi em retomar a sugestão e resolver essas questões não tivesse dado frutos nesse sentido. É curioso observar como tais reflexões raramente são levantadas por psicanalistas e psicoterapeutas, e como a mensagem inicial e heroica de Freud, que trazia uma proposta “superior” de terapia unindo cura e ciência moderna, ainda parece se manter dominante para grande parte de seus seguidores e sim- patizantes. Esses exemplos ilustram como aforça, em suas ações institucio- nais, pode contribuir para a cegueira à qual nos referimos, pois, ao mesmo tempo em que ofusca e esconde importantes personagens e acontecimentos históricos, acusa os pensamentos rivais de não científicos, condenando-os a um exílio sem fim. A história passa a ser contada por aqueles que vencem a guerra e ocupam os espaços de produção desse conhecimento que passam a reproduzir essa mesma história e, curiosamente ou não, a dar continuidade aos mesmos mecanismos institucionais e políticos de exclusão quanto a perspectivas alternativas. É assim que o reinado se mantém, não por uma Maurício da S. Neubern20 postura democrática, mas pelo policiamento das ideias, pelo silêncio imposto e pela exclusão de qualquer ideia tida como subversiva. Logo, torna-se pos- sível conceber que o ímpeto reprodutivo de ideias e procedimentos técnicos com os quais o psicoterapeuta se forma e se mantém em sua prática seja muito mais valorizado do que a possibilidade de pensar e refletir por si mesmo. Não é, portanto, por acaso que a psicoterapia acabe repetindo um problema geral das próprias instituições científicas, nas quais o preconceito se torna, de um só golpe, tão pertinaz e sutil que pode barrar a capacidade de reflexão dos sujeitos pensantes, utilizando-se, para tanto, dos mais diversos mecanismos de policiamento, coação e punição (Morin, 1991, Meyer, 2010). O que comumente ocorre na formação do pensamento de muitos psicoterapeutas, sejam neófitos ou veteranos, é um processo devocional, quase religioso que deve assumir o status de condição para que uma psicote- rapia seja considerada confiável. Aqui, o mestre fundador, mesmo que nas- cido em outra época e cultura, torna-se uma espécie de divindade a quem se deve recorrer insistentemente para que o processo terapêutico possa receber a chancela de um determinado nome que caracteriza seu pertencimento, como “psicanalista”, “humanista”, “behaviorista”, “sistêmico”. Pensar pelas próprias ideias, sentir o próprio corpo, estar ali diante do outro na própria pele pode se constituir em algo perigoso, principalmente se o processo fugir do que é esperado pela teoria, ou seja, dos padrões para os quais ela possui sensibilidade, dos processos que ela pode fazer visíveis e reconhecidos aos olhos do psicoterapeuta. Pouco importa que o psicoterapeuta não saiba ex- plicar o que é ciência, que jamais tenha tomado conhecimento das questões epistemológicas que perpassam sua prática, que sua cultura acadêmica seja pobre, que suas leituras estejam distantes no passado e que muitas de suas perguntas sejam silenciadas: importa que ele evoque o mestre e peça que o mestre assuma seu assento, conduzindo a sessão para que ele, pobre mortal, não cometa qualquer pecado. A capacidade de criação, portanto, torna-se muito restrita, de maneira que ele pode se ver obrigado a criar e permanecer em silêncio, para não ser classificado como herético em sua comunidade, ou permanecer um adepto fiel, em paz com seus colegas e dono de um pensar empobrecido em sua rigidez e automatismo. O que, todavia, parece fugir a seu conhecimento é que o mestre não tem como ressuscitar, conduzir seu trabalho e tomar posse de seu espírito. O máximo que pode acontecer, o que consideramos salutar, é que os mestres se tornem vozes que possam soprar, vez por outra, no espírito do psicoterapeu- ta, mas que cabem a este as decisões que o processo exige diante de um cli- ente, pois é ele, o psicoterapeuta, quem está engajado neste processo em sua corporalidade e em sua subjetividade (Roustang, 2006). Caso não consiga, porém, adquirir semelhante consciência, seu conhecimento pode, facilmente, Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 21 adoecer e enrijecer sua prática de diferentes formas (Morin, 1990). Pode se tornar um conhecimento doutrinário, no qual não existe espaço para um diálogo com a realidade, para que a teoria seja questionada e venha a se re- formular a fim de atender exigências que não contemplou corretamente. Na doutrina, existe um ímpeto de confirmação de seus pressupostos indepen- dente do que ocorra no mundo empírico, de maneira que aquilo que a con- tradisser pode ser tido como inexistente ou algo indigno do conhecimento científico. É assim que o psicoterapeuta tende a enxergar suas categorias mestras em quaisquer fenômenos empíricos, sem atentar para as contradi- ções próprias destes, como se pudessem ser transportados linearmente para seu corpo de conceitos. O pensamento do psicoterapeuta também pode degenerar sob a forma de um afã tecnicista, onde existe um menosprezo pela reflexão e uma supervalorização da possível eficácia das técnicas. “O que importa”, dizem tais psicoterapeutas, “é que essa técnica funcione!”, sem perceber que a bus- ca pelo resultado o afasta da capacidade de pensar, de modo a desconectá-lo de uma compreensão ampla do processo, do contexto e da pessoa que está à sua frente. Além de uma degeneração da prática, essa patologia pode impli- car riscos para as pessoas, uma vez que o psicoterapeuta só se torna capaz de enxergar a técnica e não como as pessoas se constituem subjetivamente e se expressam diante dele. E, por fim, as práticas psicoterápicas também podem degenerar por meio das pop-teorizações, ou seja, teorias que se tornam ve- detes da moda, ocupam espaços de mídia ou encontros acadêmicos de forma superficial e simplista. As contradições, os conflitos, os obstáculos que fazem parte de qualquer investigação empírica se desfazem diante de conceitos e técnicas mágicas, sem jamais aprofundar o problema e discuti-lo em suas nuances e variações e sem implicar na responsabilidade e protagonismo que um proces- so terapêutico exige. Seus poderes não vêm apenas da eficácia que possuem, mas de todo um aparato de mercado alimentado por indústrias de imagens, fármacos, livros de autoajuda, workshops e cursos que são acessíveis ao bolso e, por se tornarem objetos de consumo, não envolvem um engajamento emocional profundo e responsável do sujeito a favor de si mesmo. Técnicas terapêuticas, como as constelações familiares e a PNL, e diagnósticas, como TDAH, transtorno bipolar e transtorno do pânico, comumente caem nas ar- madilhas típicas das pop-teorizações em nosso país. Face a quadro tão sombrio, Édipo parece vacilar. Ele goza de um belo reino, com riquezas e poderes, mas já começa a intuir que algo está erra- do, que seu poderio está ameaçado e que sua sorte pode mudar de uma hora para a outra, como se inimigos saídos das sombras o surpreendessem e o depu- Maurício da S. Neubern22 sessem. Mas, face a tal ameaça ele ainda conta, no reino da psicoterapia, com uma importante arma que pode ser um tiro certeiro nesses inimigos obscuros que tanto o ameaçam – a eficácia, de preferência, amparada pela ideia de cien- tificidade. Não importa que essa ideia seja frágil, que o psicoterapeuta nunca tenha participado de um curso de epistemologia, que a natureza do campo dessa disciplina seja bem distinta daquela do laboratório: importa apenas a segurança que essa ideia proporciona, mesmo que ilusória. Assim, as diferen- tes escolas de psicoterapia se apropriam do espírito moderno e põem-se a justi- ficar suas propostas em termos de uma verdadeira eficácia, amparada (assumi- damente ou não) pela cientificidade, e atuando de modo desqualificatório quanto às propostas rivais: enquanto umas sustentam que a eficácia deve implicar a resolução de conflitos subjacentes a sintomas, outras respondem que são os esquemas de reforço de comportamento ou padrão cognitivo que devem ser modificados; se umas atentam para a emancipação do indivíduo, outras rebatem que uma psicoterapia sem envolver o relacional não cumpre seu papel; se umas atestam uma arqueologia do passado histórico, outras afir- mam convictas que é o “aqui-e-agora” que realmente importa. Desse modo, numa batalha cruel e feroz apontam as fragilidades uns dos outros,destacam seus insucessos e imposturas e, numa busca incessante de espaço e adeptos, ressaltam os valores de suas próprias propostas, a inteireza de seus pressupostos filosóficos (estes, no geral, pouco pensados), os feitos heroi- cos de seus expoentes, a ideologia de vida de suas ideias, os sucessos terapêuti- cos e, de uma forma ou outra, a consistência – e consistência em termos de ciên- cia moderna – de suas abordagens com relação às outras. “Ufa”, Édipo suspira aliviado. Enquanto seus súditos se engalfinham numa luta sem precedentes entre si, aqueles problemas que intuía, realmente ameaçadores, permanecem escondi- dos e seu reinado, ao menos por enquanto, permanece dourado, risonho e salvo. Pouco importa o que esteja recalcado, como a proposta moderna de um conhe- cimento único da realidade (Stengers, 1995); pouco importa que as psicoterapias jamais tenham conseguido um fiel da balança (como o laboratório) capaz de manter essa unidade, como o fez a Física; pouco importa que existam mais de 500 abordagens (Roudinesco, 2007) e que, de um modo ou outro, todas possam efetivar curas. Importa apenas que o reinado esteja salvo, sem que seja necessá- rio se preocupar com o amanhã. É por isso que a ideia de eficácia também é muito útil para que o psicoterapeuta se concentre em suas técnicas e simplesmente ignore toda uma série de influências sociológicas, institucionais e políticas que precedem seu métier3. Seja por desinteresse, seja por ignorância, ele desconhece o fato 3 Não pretendemos afirmar com isso que a ideia de eficácia seja uma ilusão e não mereça estudos e pesquisas que busquem compreendê-la. Apenas ressaltamos que ela é perpassada por influências Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 23 de que, quando uma nova abordagem surge, em nome da eficácia, ela des- qualifica as rivais arvorando-se a uma condição superior, demonstrando, inclusive, por meio de pesquisas e estudos que seu trabalho é melhor e mais convincente quanto aos demais, como já alertava Wolberg (1967) há mais de 40 anos. No entanto, o psicoterapeuta também desconhece que essas pesqui- sas, comumente, são produzidas por pessoas e instituições que definem os critérios do que seja ou não eficaz, apesar de se esconderem sob a capa da pretensa neutralidade do pensamento moderno. Assim, em nome desse co- nhecimento privilegiado e confiável esconde-se toda uma dimensão política que perpassa os discursos de eficácia, as relações entre abordagens e certos grupos, como laboratórios, conselhos profissionais e universidades, que atuam intensamente sobre as práticas sociais ligadas à avaliação de eficácia. Nesse sentido, é possível identificarmos dois grandes grupos de psi- coterapias que se diferenciam em termos da definição dos critérios de eficácia. Por um lado, encontra-se a grande maioria das escolas de psicoterapia, que se organizam sob o nome de um mestre fundador, tal como se deu com a psica- nálise de Freud (Stengers, 1999). Apesar de não se sentir a vontade com a lógica dos laboratórios, seus procedimentos e lógicas, a psicanálise desenvol- veu uma perspectiva autorreferente de determinação de suas práticas e ideias, de modo a definir o que seria ou não eficaz, como o que seria uma análise bem conduzida, uma possível resolução de conflitos ou as possíveis condições para que um paciente recebesse ou não alta do tratamento. O que determinaria, portanto, o que seria ou não uma boa análise, malgrado as contradições e difi- culdades dessa questão, não seria dado pela prática em si, como uma espécie de revelação que o divã viesse a fornecer, mas pelos “núcleos de inteligibili- dade”4 (Gergen, 1996) estabelecidos pelas instituições, inspiradas inicialmente por Freud, mas que encontraram posteriormente outros mestres fundadores, como Winnicott, Klein e Lacan, sendo ainda amparadas e reforçadas por ins- tituições e práticas que veiculam e preservam suas ideias, como escritos, for- mações, supervisões e espaços nas universidades. Entretanto, por algumas das razões já aqui listadas, o analista, como o psicoterapeuta em relação a suas próprias teorias, em geral não pensa nas vicissitudes das instituições de psica- nálise, que esses critérios implicam em negociações no seio de processos rela- cionais complexos, uma vez que o que ele precisa é ter uma confiança e um sentir-se à vontade semelhante ao do físico em seu laboratório. E qual não é seu gozo e sua alegria ao perceber que os conceitos, definidos sob a teoria-mãe que adota, parecem se confirmar, revelando uma realidade oculta do psiquis- políticas e institucionais e que tais influências também a forjam na mente dos psicoterapeutas, como dos pesquisadores que definem os critérios do que é ou não eficaz. 4 Segundo Gergen (1996), “núcleos de inteligibilidade” referem-se a grupos que exercem certas práticas sociais geradoras de sentido. Maurício da S. Neubern24 mo de seus pacientes, oferecendo-lhe a possibilidade de explicação diante de um mundo que por vezes o apavora e confunde! E nesse jogo de sedução extática e erótica com uma teoria que tudo explica que ele se imbui de uma sensação de supremacia e se põe a hostilizar os colegas de outras teorias, que são convertidos em adversários por adotarem uma visão tão distorcida do que é o ser humano. Curiosamente ele não se dá conta de que o pretenso adversário também pensa o mesmo sobre ele. Já o outro grupo de terapias é muito bem ilustrado pelo que ocorre hoje com as terapias cognitivas. Estas possuem uma chancela assumida do pensamento moderno – via laboratório – sendo amparadas por poderosos núcleos de inteligibilidade que remetem a instituições de considerável pode- rio político e econômico no mundo acadêmico e social. Assim, o impactante posicionamento do MIT (Michigan Institute of Technology) em privilegiar a expressão “ciências cognitivas” em detrimento do termo “psicologia” é bas- tante revelador no esclarecimento de como as terapias cognitivas foram e são amparadas por tais núcleos, o que justifica em grande medida sua vertiginosa difusão em diferentes países. Nos esquemas abaixo, é possível notar como existe aqui uma poderosa retomada de aproximação com a classe médica em termos de práticas sociais e instituições nutridas por núcleos de inteligibili- dade muito ligados às ciências cognitivas e às neurociências. Fig. 1. Práticas sociais de inteligibilidade e significação das Terapias Cogni- tivas (TC). Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 25 No tocante às práticas sociais (fig. 1), as terapias cognitivas apre- sentam-se irmanadas com práticas muito comuns na atualidade, a começar pelo diagnóstico altamente influenciado pelo DSM e sua lógica de transtor- nos. Como os padrões cognitivos (Beck, 1997) apresentam grande afinidade com a sintomatologia destacada nos transtornos, a terapia cognitiva é veicu- lada como uma opção eficaz, principalmente quando aliada à prescrição de psicofármacos, prática cada vez mais comum no cotidiano, que é influencia- da pela mídia e por profissionais, e ocupa um lugar central em importância para o tratamento de transtornos mentais e seus sintomas. Não é raro, em tais práticas, que as contradições referentes a um processo psicoterápico, como a inconsistência de certas mudanças, passe desapercebida devido ao afã do psicoterapeuta em comprovar a eficácia de suas técnicas. Toda essa lógica, que tem na eficiência sua palavra de ordem, já possui uma entrada vigorosa nas universidades, principalmente com disciplinas de neurociências, filosofia da mente, psicofarmacologia e psicologia cognitiva, e nos cursos de forma- ção de terapeutas que proliferaram rapidamente nos últimos anos, o que compõe o importante eixo das práticas sociais de ensino e formação, princi- palmentede psiquiatras e psicólogos, mas que, vez por outra, tem atingido e influenciado outras profissões como educação, serviço social e enfermagem. Fig. 2. Instituições à sustentação das Terapias Cognitivas (TC). Maurício da S. Neubern26 Já a dimensão institucional (fig. 2) compõe-se de instituições e grupos profissionais que alimentam essas práticas e divulgam suas ideias pela sociedade, principalmente com o intuito de ganhar espaço e visibilida- de. As universidades e escolas de formação possuem um laço estreito entre si, uma vez que os interessados em psicoterapia comumente se integram a essas últimas sem ter ainda concluído o curso universitário, movidos em grande parte pela sua proposta de cientificidade e eficácia sustentada por disciplinas como as acima mencionadas, como também por congressos, gru- pos de pesquisa e workshops. No entanto, os centros de pesquisa, em parti- cular os laboratórios farmacêuticos, possuem um papel de grande relevância nessa divulgação, uma vez que financiam profissionais de saúde, congressos e eventos e parecem possuir também um apelo muito significativo junto à mídia e aos conselhos e associações profissionais. É curioso notar mesmo como essa conquista de espaço do cognitivo coincide com a proliferação de cursos de formação, com a polêmica discussão sobre o projeto de lei do “Ato Médico”, com a aproximação entre o Conselho Federal de Psicologia e a classe médica – como no caso da fundação da Associação Brasileira de Psicoterapia (ABRAP) –, e da mudança de linhas de publicação de certas editoras, tanto na produção do livro técnico, como dos livros de autoajuda. Numa perspectiva como essa, a postura de muitos médicos, ao reco- mendarem a terapia cognitiva e desqualificarem as demais, torna-se compreen- siva. Atuam aqui como porta-vozes de um Édipo que goza seu reinado de tran- quilidade aparente, uma vez que não precisam pensar no que antecede e ali- menta suas práticas (nem em suas implicações sociais), mas apenas nos critérios de eficiência, ponto este muito bem-vindo numa sociedade de consumo que privilegia a performance e a velocidade, em diferentes formas de produtividade ou excelência, e o individualismo, em detrimento dos vínculos sociais e afetivos (Bauman, 2004). Ele pode dormir sossegado à semelhança do homem europeu do século XIX que acreditava que a ciência a tudo responderia, mas com a dife- rença significativa de que, agora, para dormir, existem medicamentos mais avançados. No entanto, esse sono não possui nada de tranquilo. Ele é habitado por pesadelos que atormentam seu espírito, justamente porque sua noção de eficácia, algo capaz de resolver problemas, talvez não tenha sido a mais perti- nente para as demandas de seus clientes, que ele nem sempre soube reconhecer, por estar demasiado preso a suas próprias ideias. Sua proposta de resolução – pragmática e assertiva – seria uma forma de adaptação da pessoa ao mundo competitivo e de desempenho num mundo pós-industrial em detrimento de uma proposta emancipatória? Tornar a pessoa mais competente e resolutiva implicaria em torná-la mais realizada, com novos sentidos de vida? Esse ímpeto de competência promovida pela terapia a colocaria numa possibilidade de vinculação e consideração com as Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 27 outras pessoas ou numa postura mais competitiva e individualista com rela- ção às mesmas? Como ficaria, então, a apropriação do sujeito, a autonomia que caracteriza tantas terapias (Binswanger, 1935/2008), se o critério de eficácia, como os meios de atingi-la, vêm de fora, de um outro especializado no saber moderno, e não do próprio sujeito? E, no caso específico dos psi- cólogos, essa obsessão pela eficiência estaria em consonância com sua pro- posta de um olhar diferenciado sobre a pessoa, que tem justificado inclusive sua inserção nas propostas políticas importantes, como a humanização no SUS (Ceccim & Merhy, 2009), ou seria uma reprodução do tão criticado modelo médico? É assim que seu sono se perturba e o incomoda, mas talvez seja muito difícil poder acordar, uma vez que a tentação da supremacia o acomoda numa posição em que é melhor manter os olhos fechados. Semelhante discussão não consiste numa crítica particular à terapia cognitiva, enquanto proposta técnica e terapêutica, que consideramos ter evoluído muito nos últimos anos (Beck, 1997; Greenberg, Rice & Elliot, 1993) e que entendemos possuir, em termos clínicos, a mais alta relevância. A crítica aqui desenvolvida, que poderia ser perfeitamente aplicável ao behaviorismo nos anos 50 e 60 (Wolberg, 1967), incide não sobre o que a eficácia dessa terapia pode proporcionar, mas à cegueira que a noção de eficácia apregoada por seus protagonistas favorece, por tudo o que esconde em termos políticos e sociais. Refere-se muito mais à forma degenerada do uso de uma proposta, uma forma que, como tantas outras, associa o ideal de hegemonia à conquista de espaços institucionais, imaginários e econômicos e que se torna respaldada pela alienação do psicoterapeuta, que oscila entre a fascinação e a devoção pela noção de eficácia e sua distância do compromis- so com reflexão sobre a sua prática em sua sociedade, com a percepção das relações que existem entre aquilo que faz e o mundo em que ele, seus pares e clientes vivem. Trata-se, em suma, de sua recusa em tomar o rumo de Del- fos, onde poderia repensar suas origens, e simplesmente permanecer no con- forto ilusório e tentador do reino de Édipo que, no entanto, já intui suas pró- prias fragilidades e, cedo ou tarde, tomará consciência de que tudo o que construiu pode ruir5 a qualquer momento. 5 Tal como se deu com a hegemonia behaviorista nos EUA. Até os anos 70, o behaviorismo se cons- tituía como força hegemônica da psicologia norte-americana, dominando universidades e centros de pesquisa e colocando-se como uma terapia mais científica e eficaz que as outras. Tal supremacia ce- deu lugar, a partir de duros ataques (Gergen, 1996), à psicologia cognitiva que, hoje, tornou-se o pensamento dominante neste país. É curioso observar ainda como que grande número de behavio- ristas buscaram o que antes pareceria heresia em muitos grupos dessa escola: uma associação com o cognitivismo ascendente. Daí surgiram as “terapias cognitivo-comportamentais”, algo impensável para muitos nos anos áureos do behaviorismo. Maurício da S. Neubern28 ÉDIPO EM COLONO: DA MISÉRIA À EMANCIPAÇÃO Uma das questões que mais chamam à atenção no mito de Édipo é sua entrega para um processo expiatório, onde pôde encontrar suas misérias e, a partir delas, atingir uma verdadeira maturidade espiritual. Sua autopuni- ção com uma cegueira que concretizava no corpo a verdadeira cegueira que vivia como rei e seu exílio voluntário e errante em Colono parecem levá-lo a uma espécie de destilação do próprio sofrer, a um encontro terrível, mas aberto com sua própria história, a enxergar com os olhos da alma, de modo a conquistar uma verdadeira e iluminada sabedoria. Sem qualquer dúvida, trata-se de uma trajetória heroica, uma vez que tal empreitada demanda uma parcela rara de coragem e determinação, como de bom-senso e esperteza para lidar com obstáculos tão assustadores, num processo em que qualquer mortal pode sucumbir pela depressão e pelo esgotamento de seus recursos vitais. Daí porque consideramos o mito de Édipo não como um complexo universal e estruturante da psique, como rezam os psicanalistas, mas como uma história cuja exemplaridade pode tocar muitas pessoas, dentre elas os psicoterapeutas, de modo a servir significativamente em seus processos de crescimento e reconciliação consigo mesmo. Parece-nos, por outro lado, sintomático que poucos psicoterapeutas conheçam essa segunda parte do mito – a de Colono – pois a grande maioria estudou apenas a primeira, que termina com a trágica descoberta dos terrí- veis segredosque permeavam a história do herói e sua consequente expia- ção. Uma coincidência estranha paira sobre a relação entre os movimentos de psicoterapia e o mito de Édipo: ao mesmo tempo em que ele é contado pela metade, os movimentos de psicoterapia se sentem seduzidos pelas bele- zas de seu reinado, representadas em grande parte pelos ideais modernos de ciência, e cultivam a mesma cegueira quanto a suas origens históricas e suas condições socioculturais de nascimento e vida. Então, talvez seja o momento de indagarmos se as psicoterapias teriam condições, enquanto movimentos sociais e institucionais, de seguir o caminho de Édipo, deixando as comodi- dades de um reino ilusório para a vida árdua, mas autêntica, do caminho de Colono, que permitiu uma verdadeira mudança em sua trajetória. Desse modo, uma das primeiras feridas com que os psicoterapeutas podem se deparar é com a dimensão histórica de sua disciplina, amparada pelas disciplinas irmãs que a sustentam. Nem a psicoterapia, nem suas irmãs psi possuem uma história progressiva, cumulativa e linear que sai da obscuri- dade e da ignorância rumo à razão triunfante e iluminada pela ação sem má- culas de algum gênio do pensamento moderno. Da mesma forma, o estudo da história não consiste numa revelação de uma natureza do mundo social, por- Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 29 que a história da ciência é um produto humano, contado por seus protagonistas num determinado período e contexto e que possui uma heterogeneidade de vozes e possibilidades de compreensão. Tal estudo deve incidir, portanto, não apenas sobre o que se disse, mas também sobre quem o disse, como foi dito e em quais condições tais afirmativas ganharam sentido nas comunidades. As- sim, torna-se possível conceber a contribuição de grandes ícones do pensa- mento moderno psi, como Wundt e Freud, a que se propuseram a estudar e sustentaram de pertinente para a psicoterapia e as possíveis razões que fizeram de suas propostas algo importante para tal disciplina. Mas, concebendo-se que este seria apenas um feixe de uma história altamente complexa, o mergulho histórico poderia ser ainda direcionado a outras raízes, como as do magnetis- mo animal (mesmerismo) e da hipnose, que antecederam as versões oficiais e, malgrado sua grande importância para o surgimento das ciências psi, foram marginalizadas e, em larga medida, excluídas em seus méritos histórico e ci- entífico (Méheuts, 1999; Neubern, 2009). Nessa perspectiva, a história perde o vício de possuir uma versão oficial, respaldada pelo pensar moderno mais estreito e exclusivista, para se tornar um conjunto de possibilidades, em que raízes e feixes distintos podem participar da integração de novas visões, concorrendo entre si de modo a oferecer uma perspectiva mais ampla para o psicoterapeuta. Mas, mais que isso, o psicoterapeuta encontra aqui a oportunidade de refletir, não apenas sobre a dimensão de realidade que estudaram, em termos de campos, objetos e métodos, como dos jogos institucionais que foram decisivos para a consa- gração de alguns heróis, fossem eles autores ou formas de pensar, e alguns vilões que foram condenados a um ostracismo que parece não vislumbrar fim. No primeiro caso, pode aprofundar o estudo sobre como os autores do século XIX, por exemplo, entendiam a psique, os fenômenos de cura, que métodos utilizavam para a abordagem de seus objetos de estudo e que ques- tões ocupavam o cenário da discussão nas comunidades científicas. Valeria mesmo a pena indagar porque, no caso dos magnetizadores dos séculos XVIII e XIX, os fenômenos magnéticos e mediúnicos, hoje pra- ticamente excluídos da academia, ocuparam tamanha importância em suas primeiras cogitações e no posterior nascimento da relação entre ciência e cura6 (Bergé, 1995; Ellenberger, 1971; Méheust, 1999). Já no segundo caso, deve focar suas atenções sobre as vicissitudes humanas e institucionais que marcaram a apreciação das comunidades científicas sobre momentos que foram decisivos, tirando-se o foco sobre uma questão puramente metodoló- 6 Vale destacar como os pesquisadores que buscam estudar tais tipos de fenômenos encontram ainda hoje uma considerável resistência no meio psi, mesmo no Brasil, onde tais fenômenos são ricos, co- muns e possuem especial importância na subjetividade do povo. Maurício da S. Neubern30 gica para o de uma compreensão dos jogos de poder e política envolvidos nos processos e tomadas de decisão. Logo, ao invés de se conceber o traba- lho de Mesmer como simples quimera ou charlatanismo, seria importante buscar uma compreensão sobre como as falhas metodológicas grotescas das comissões científicas no julgamento de suas ideias passaram desapercebidas das comissões científicas formadas por homens tão eminentes; por quais motivos se impôs uma lei de silêncio tão avassaladora, capaz de impedir a continuidade sobre o trabalho incompleto das comissões, de ignorar o pare- cer favorável de Laurent de Jussieu, grande naturalista dissidente das comis- sões, em continuar as pesquisas e mesmo de punir com exclusão os membros da Faculté de Médecine que se colocassem favoráveis ao mesmerismo e o utilizassem como instrumento médico (Bertrand, 1826/2004). A partir de semelhantes reflexões, o psicoterapeuta pode se indagar sobre a forma como sua instituição de pertencimento veicula a história de seu métier. Mais que isso, ele pode fugir às velhas explicações de efeito tiradas do baú do mestre fundador para perceber como as relações acontecem, como as negociações e produções de sentido ganham espaço no seio dessas instituições e até que ponto repetem os mesmos mecanismos que caracterizaram processos históricos tão ilustrativos como os dos magnetizadores na França ou da psica- nálise nos tempos de Freud. E sem que tenha que, com isso, mover-se num espírito de caça às bruxas e punição de vilões, refletir sobre as diversas possi- bilidades que permeiam o contar da história, tal como ocorre em muitas práti- cas clínicas contemporâneas (White, 2007). Assim, de uma postura cristaliza- da na passividade de um ensino dogmático, ele se coloca na posição de quem reflete e pensa, percebendo que uma história pode possuir versões distintas e conflitantes de acordo com os protagonistas que as narram. Há aqui uma observação importante, um paralelo que deve ser feito com relação à aventura de Édipo em Colono: sua trajetória heroica só se torna possível porque ele busca uma reconciliação com sua própria humani- dade. Não é a ação dos deuses ou a promessa mentirosa de um reino que lhe proporciona um movimento de superação tão impressionante, mas o reco- nhecimento de suas próprias misérias e fragilidades, que são colocadas em pauta, assumidas e trabalhadas para que ele se supere e ascenda a uma con- dição de iluminação. É desse modo que a práxis do psicoterapeuta, em suas dimensões reflexivas e clínicas, precisa incluir o sujeito como condição es- sencial, apesar de toda a fragilidade e desconfiança que essa categoria de- sempenha em termos modernos (Gonzalez Rey, 2007; Morin, 2001). Tal condição implica dois caminhos articulados de forma inevitável. Em primeiro lugar, uma vez que ele se encontra diante do cliente é importante que ele escute as vozes internas que vêm de si mesmo (seja de seu corpo, de Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 31 sua intuição, de suas leituras) porque é ele e não o mestre fundador quem está ali numa relação concreta com esse cliente, relação da qual o processo tera- pêutico depende por total (Morin, 1990; Neubern, 2004). Daí porque a teoria, ao invés de consistir numa entidade tirânica que escraviza seu pensamento, precisa se transformar num pano de fundo, num conjunto de referências que ganhe vida em seu espírito, que o auxilie no diálogo com o mundo empírico, mas que possa também ser questionado, aprimorado e até mesmodestruído. Ela não pode ser vista como um conjunto de respostas, mas como a possibili- dade de tratar um problema, de dialogar com a realidade do outro, de pensar a complexidade de seu mundo, de se transformar, em suma, num legítimo e precioso auxiliar para a pesquisa. Não pode, portanto, ser o ponto final onde se encaixam as expressões do sujeito, um túmulo onde termina a vida da refle- xão, mas um arcabouço articulado e flexível de conceitos que permita o nascer dessa reflexão. Daí porque é impossível pensar a teoria sem o sujeito7, por que ela, por si mesma, não é capaz de pensar e precisa dele para exercer qualquer uma das operações cognitivas que pode efetivar. Em segundo lugar, a condição de sujeito implica num resgate de sua própria subjetividade, da condição humana da relação e que permite, como diria Binswanger (1935/2008) ou Milton Erickson (Erickson & Rossi, 1980), o fundamento de um solo mãe e afetivo que nos liga e irmana como seres humanos. Tal condição se torna possível à medida que o psicoterapeuta passa a se escutar, a sentir seu próprio corpo, a perceber os apelos de sua intuição, a se interessar pelas emoções que sopram em seu íntimo e a se co- nectar com o manancial heterogêneo de sua trajetória de vida, com relacio- namentos e experiências diversas, e daí tirar as referências para se relacionar com aqueles que o interpelam. Essa abertura a si mesmo é o que permite que traga sua singularidade para a terapia, que ele mesmo entre em relação com o cliente não só como alguém portador de um saber técnico, mas, sobretudo, como uma pessoa que reconhece sua própria subjetividade e dela extrai a matéria-prima para que a terapia possa acontecer. Uma vez que ele se reco- nhece e se legitima, tanto pelo que estuda e desenvolve em termos cogniti- vos, como pelo que vive enquanto ser humano, sua relação com a teoria ten- de a ocupar um plano secundário, porque é a relação com a pessoa do clien- te, que está além de qualquer teoria, quem prevalece e permite que o proces- so aconteça. O psicoterapeuta, portanto, se torna ele mesmo responsável por suas ações no processo, sem o imperativo de transferir essa responsabilidade 7 É importante destacarmos que a condição de sujeito remete a uma conquista do psicoterapeuta, após um largo processo de crescimento e aprendizado. É necessário, a princípio, que ele aprenda a repro- duzir o que lhe é passado, compreendendo as nuances da tradição que recebe, para, em seu percurso, aprender a pensar e criar sobre essa herança. Do contrário, corremos o risco de instaurar um anar- quismo improdutivo. Maurício da S. Neubern32 a um mestre qualquer que, por mais brilhante que seja, nada pode fazer quanto àquele seu cliente em particular. Semelhante aventura implica num conjunto de mudanças nas co- munidades de psicoterapeutas em termos de uma maior horizontalidade das relações. Enquanto a teoria deixa o papel de um mausoléu que encerra, pre- tensiosamente, os restos do pensamento de seu criador, para se tornar um corpo orgânico, acessível à crítica e flexível ao diálogo com o mundo, as relações com o mestre fundador se modificam substancialmente. Ele pode continuar na posição de um daimon (Morin, 1991), um ser-ideia que se mantém vivo por ser constantemente evocado e alimentado pelas reflexões daqueles que são seduzidos e atraídos por suas ideias, um ser que mantém ideais e utopias que envolveram as pessoas e formaram comunidades. Mas, por outro lado, ele sai da posição de uma divindade porque o questionamento a seu pensar se torna possível e, mais que isso, necessário, pela comunidade de sujeitos que dialogam com sua obra. Esse questionamento se coaduna perfeitamente com a assertiva de Bachelard (1938/1996) segundo a qual no espírito científico é possível venerar o mestre criticando-o, colocando ques- tões a seu pensamento, em suma, dando-lhe possibilidade de evoluir por submetê-lo ao rigor e ao calor do debate. É assim que, mais do que sobre o que o mestre disse, a reflexão se volta sobre como disse e como pensou para poder tecer tais afirmações, como articulou ideias e abordou problemas concretos para concluir seus pensamentos, de que premissas partiu e como lidou com elas e ainda, com que vozes dialogava ao conceber sua teoria. Malgrado a ferocidade que tais processos podem envolver no seio das instituições, essa é uma forma de transportar o pensamento do mestre para o hoje, contextualizando-o no mun- do atual de maneira a colocá-lo sob a dolorosa prova de se transformar para poder evoluir, o que pode, inclusive colocá-lo sob o risco de aniquilação. É assim que, mesmo em instituições tidas por seu conservadorismo, como ocorre na psicanálise, alguns psicanalistas (Meyer, 2010; Nathan, 2006, 2007) têm trazido questionamentos incisivos sobre os pilares do universa- lismo, tais como do Édipo, do desenvolvimento infantil e da eficácia tera- pêutica, demonstrando a inconsistência de tais pressupostos, seja pela incoe- rência de suas afirmações, seja pelo avanço de disciplinas como a etologia e as neurociências. Semelhantes reflexões coincidem com algumas tendências tipicamente contemporâneas como as de considerar o sujeito em sua singula- ridade, sobretudo na produção de sentidos e significados, e numa relação estreita com o sociocultural, com sua corporalidade, como em termos de um questionamento incisivo sobre as noções modernas de teoria (Neubern, 2004; Roustang, 2006; White, 2007). Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 33 Nessa perspectiva, a comunidade se aproximaria de uma noção de pólis – um conjunto de cidadãos num jogo democrático de negociações, ou seja, um conjunto de sujeitos que pode se inserir num processo de debates e discussões a respeito de temas pertinentes para a práxis em torno do qual tal comunidade estaria engajada. Isto é, enquanto cidadão dessa pólis, ele possui a condição de voz, decisão e reflexão, patrimônios não mais restritos a mes- tres fundadores e escolhidos; a diversidade dos sujeitos, nesse sentido, pode contribuir para a construção de corpos teóricos mais heterogêneos de modo a se romper com a tendência monolítica das escolas modernas8. Todavia, con- cebemos que semelhante noção ainda pode parecer utópica, uma vez que a figura divina dos mestres fundadores se constitui como o pilar central de grande parte dos movimentos de psicoterapia, que talvez se colocassem em derrocada se aceitassem, em si mesmos, uma comunidade tão próxima ao sentido da pólis grega. No entanto, seguindo-se mudanças importantes que ocorreram na ciência e na discussão epistemológica do século XX, torna-se possível ao psicoterapeuta repensar a condição dessa viga mestra, particu- larmente no que se refere ao fracasso moderno de um conhecimento linear e direto da realidade, o que não o permite se situar em qualquer posição privi- legiada quanto a seus rivais (Gergen, 1996; Gonzalez Rey, 1997). Isto por- que em mais de cem anos de disciplina, sem contarmos os tumultuados anos anteriores da época mesmerista, a psicoterapia – como as ciências humanas e sociais – não conseguiu cumprir um ou talvez o principal requisito da ciência moderna (Neubern, 2004; Stengers, 1995): desenvolver uma abordagem que silenciasse as demais, que se impusesse, tal como o exige o espírito moder- no, como única e que contasse com dispositivos, como o laboratório das ciências duras, que fizesse cessar as polêmicas e os espíritos de partido. Com que triste realidade se deparou, então, o psicoterapeuta! Mais os anos se passaram, mais surgiram promessas de movimentos e mestres, arvorando-se a exclusividade moderna, mais o número de escolas proliferou, mais as batalhas continuaram e ninguém conseguiu concretizar essa tão al- mejada unidade na forma de uma hegemonia que desse ao psicoterapeuta o mesmo status que tem o físico. “E por que, então,” pergunta-se ele surpre- endido, “tantos embatescom os rivais, tantas querelas e disputas acirradas se o ideal de uma exclusividade científica permaneceu e permanece ainda hoje livre do espírito de domínio dos movimentos de psicoterapia?”. Sua surpresa se acentua ainda mais à medida que se dá conta de que chegou atra- sado nas discussões epistemológicas do século XX, onde a ciência passou a se constituir, não como um ato simplista de revelação de realidade, mas como um processo que envolve também uma série de construções e negocia- 8 Como ocorreu com os movimentos sistêmicos e narrativos entre os anos 90 e a virada do século. Maurício da S. Neubern34 ções de seus protagonistas, negociações que permitem que o empírico, em sua dimensão ontológica, ganhe visibilidade e sentido (Hacking, 1999). Assim, não faz mais sentido pensar, como o fazia o psicoterapeuta assombrado com a modernidade, que aquilo que o cliente lhe diz seja tido na conta de uma expressão linear da realidade (que só ele enxerga), uma ex- pressão de um objeto de estudo apenas por ele conhecido e que o setting psicoterápico seja uma espécie de laboratório, um espaço confiável em ter- mos de uma legitimidade capaz de tirar o véu da opinião para permitir uma autêntica revelação sobre a psique do sujeito. Mais ainda, parece não mais fazer sentido se entregar a tantas batalhas, fundadas numa paixão que não permite a compreensão epistemológica de que os princípios modernos já faliram na psicoterapia e não parecem dar sinais de ressurreição, apesar de continuarem a influenciar dissensões, a transformar colegas em rivais, a de- formar a formação do estudante e impedir o intercâmbio enriquecedor entre pensamentos distintos. No entanto, a lucidez que pode advir dessa dura realidade pode fa- zer a diferença em termos de uma nova forma de entendimento da psicotera- pia, uma forma que deixe de se restringir ao conteúdo do que se afirma, para refletir sobre o que antecede e precede as afirmações em diferentes pontos. Um primeiro ponto possível, já levantado por alguns autores (Erickson & Rossi, 1980; Gonzalez Rey, 2007; Hanns, 2004), refere-se à própria natureza do campo da psicoterapia, o que parece não se constituir como novidade à primeira vista, por ser um dos primeiros tópicos discutidos desde a época de Freud. No entanto, o que parece ser novo aqui é a busca de novas racionali- dades e metáforas da subjetividade humana, que não parece se sentir muito à vontade com as metáforas oriundas da matéria e da tecnologia trazida por grande número de escolas, como a máquina para os cognitivistas, o laborató- rio para os behavioristas e a mecânica dos fluidos para os psicanalistas (Go- olishian & Anderson, 1996). Assim, se as diferentes abordagens utilizam metáforas distintas e não parecem diferir muito em seus resultados, temos aqui um indicador significativo de que o campo da subjetividade é muito distinto do campo material onde se inspirou a ciência moderna e que, por isso, os conceitos precisam ser reinventados de modo a se estabelecer novas formas de diálogo com esse novo mundo empírico. Malgrado existam neces- sidades de um aprofundamento nesse sentido quanto à própria noção de ci- ência que se passa a buscar, existe aqui o retorno daquilo que ficou de fora na fundação da ciência moderna, particularmente ligado ao reino da subjeti- vidade, como o sujeito, a cultura e a geração de sentidos em seu mundo par- ticular e social, as emoções, a irregularidade e a singularidade (Neubern, 2004), como também a construção de noções muito mais voltadas para o Psicoterapias, hoje: direções técnicas e epistemológicas 35 lado humano que para o da matéria (Santos, 2000): o jogo, violência, histó- ria, retórica, escolha, drama, dentre outros. É assim que, num tema complexo como a experiência religiosa, o psicoterapeuta deve fugir da tentação de colonizar o pensamento de seu clien- te, para buscar compreendê-lo nos sentidos que lhe são próprios, em termos subjetivos e socioculturais (Nathan, 2004; Neubern, 2010a): um espírito, com quem o paciente diz se comunicar, não pode ser tido na conta de uma alucina- ção, produto imaginário ou arquetípico. É importante que o psicoterapeuta o compreenda nas narrativas que o sujeito traz (o espírito e seu mundo espiritual) e se pergunte o que esse ser gera, que sentimentos desperta nele e nos outros de suas relações, que redes de interação e produção simbólica promove e que práticas sociais e ações exige para que se possa negociar com ele. Desse modo, embora o psicoterapeuta não precise renunciar à sua formação, em termos de clínica e psicopatologia9, é preciso que se recuse a uma tradução perversa que imponha narrativas totalmente estranhas ao mundo de seu cliente, que patolo- gize o sujeito, transformando-o em mero indivíduo, destituído de qualquer participação em seu rumo, de seu nicho de produções simbólicas e de seu per- tencimento a diferentes redes, com todo o seu potencial terapêutico e emocio- nal. Não se trata, em absoluto, de procurar entender e ser empático com suas crenças, como se o psicoterapeuta as visse de fora, descritas num manual mi- nucioso e preciso, onde fosse possível classificá-las ou talvez mensurá-las; ao contrário, trata-se de uma disposição para entrar em seu mundo, com as metá- foras que lhe são próprias, e conceber que os sentidos gerados a partir de sua experiência com os espíritos são constituintes de sua realidade, o que envolve pessoas, seres, sistemas culturais de significados, objetos, lugares, procedi- mentos, outros tipos de terapia (Nathan, 2004) e práticas sociais implicadas no drama das relações humanas (Turner, 1982). Um segundo ponto a ser destacado é a importância de um olhar complexo (Delourne & Marc, 2001; Morin, 2001; Neubern, 2004) para a realidade das pessoas, um olhar que possa contemplar e dialogar com as múltiplas interseções que perpassam a fabricação de suas subjetividades. O encontro na psicoterapia não se reduz ao campo de uma única disciplina, pois é perpassado por registros históricos, culturais, biológicos, sociais, fa- miliares, econômicos, religiosos que encontram eco na subjetividade dos protagonistas e reproduzem, de forma particular, todo o cosmos de uma so- ciedade (Nathan, 2004). Isso força, de certa forma, a um diálogo com outras 9 A ideia aqui é muito mais a de que os saberes respaldados pela ciência moderna sejam narrativas possíveis para o auxílio a uma demanda terapêutica e não os únicos. Assim, psiquiatria e psicopato- logia podem conviver com outras narrativas de compreensão do mundo cultural do sujeito, tal como descrito por Tobie Nathan (2006). Maurício da S. Neubern36 disciplinas, uma vez que o psicoterapeuta mais lúcido se dá conta de que por mais completa que sua teoria possa lhe parecer, ela ainda se mostra muito insuficiente e tacanha diante de um mundo com tantas zonas de sentido, interações e processos que talvez ele nem imaginasse existir. Funcionando como uma espécie de antídoto ao dogmatismo doutrinário, semelhante abertura à influência de novos saberes pode favorecer que o psicoterapeuta assuma seu métier como uma práxis de pesquisa, porque, desse modo, ele possui uma condição possível de dialogar com um conjunto numeroso de interações que atravessam as situações clínicas em que se engaja. É assim que, diante de uma cliente que demanda ajuda devido a intensas dores crôni- cas, ele não pode se permitir à tentação de se manter nos conceitos já acaba- dos, onde a explicação já está dada; o conhecimento sobre essa dor, ele ain- da não o possui, pois está por se construir. O psicoterapeuta não pode mesmo afirmar que já sabe algo, uma vez que esse saber origina-se de um processo de relação com a cliente que nem ainda começou. Essa dor pode dizer de questões de gênero, de relações conjugais, de missões familiares, de questões econômicas no seio de suas
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