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Carlos Roberto de Oliveira Chagas O TERMO “RELIGIÃO CRISTÔ, SUAS MUDANÇAS HISTÓRICAS E IMPLICAÇÕES PARA A COMPREENSÃO SOTERIOLÓGICA NO CRISTIANISMO Instituto Metodista Izabela Hendrix – FATE-BH Belo Horizonte 2008 2 Carlos Roberto de Oliveira Chagas O TERMO “RELIGIÃO CRISTÔ, SUAS MUDANÇAS HISTÓRICAS E IMPLICAÇÕES PARA A COMPREENSÃO SOTERIOLÓGICA NO CRISTIANISMO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como Exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Teologia no Instituto Metodista Izabela Hendrix – FATE-BH Orientador: Prof. Ms. Gilmar Ferreira da Silva Belo Horizonte 2008 3 A todos que, por amor e em humildade, buscam a Verdade. 4 AGRADECIMENTOS Àquele que me criou, que me assiste e que me espera no fim da minha caminhada. Aos meus pais que sempre acreditaram em mim: Não tenho palavras para expressar... À minha Lady: Talvez juntando a gramática de todas as línguas que existiram, existem e que ainda existirá, quem sabe conseguirei dizer o quanto és minha vida!!! Te amo. Aos meus irmãos Samuel e Paulinho por cada vibração. À minha sogra Enilda pelas orações e carinho de mãe. Às minhas cunhadas Rosane, Eliane, Cristiane e cunhado Carlos Ramalho e à Alessandra: Já não mais os considero parentes emprestados, mas irmãos de sangue. À minha igreja pelo sonho compartilhado. Aos meus colegas de sala pelas dicas e “empurrãozinhos” e também pelo companheirismo. Ao Pablo, Valéria e Amiel: Se Deus me deu a luz neste curso, vocês me deram cor. Ao meu orientador Gilmar pela sapiência emprestada, dedicação e paciência. Valeu brother!!! A todos os professores deste curso que me formaram um teólogo. Um abraço em lágrimas de felicidade. A honra é toda de vocês! Ao Ludgero por um dia ter cruzado meu caminho: Cara, você é de grande valia para mim. Obrigado por existir. Ao Ricardo Tavares e família pelo companheirismo: Parte da minha vida foi marcada pela nossa amizade e com certeza o resto dela também. Agradeço a você por ainda andar ao meu lado. Ao Gustavo Lima: Realmente adquiri um ótimo estabelecimento... mas é porque você e seus pais estão lá. Ao Flávio Gomes (in memoriam): Nunca te esquecerei. Ao Ailton: Esta monografia existe porque você me ajudou... tanto pelo empréstimo de seu Notebook quanto por suas dúvidas. Obrigado. Ao Fernando e Carla: Vocês são especiais em minha vida. A todos os meus amigos que, por falta de espaço nesta folha ou por falha na minha memória RAM não foram citados. Contudo, todos estão em meu coração. Obrigado! A todos que se preocupam com a paz e com a justiça; que buscam com humildade e sinceridade a Verdade; aos que cheiram vida: Obrigado. Esta pesquisa é de vocês. 5 “Não sois vós para mim, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? Diz o SENHOR. Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e de Caftor, os filisteus, e de Quir, os siros?” (Amós 9:7) 6 RESUMO O tema maior em que esta pesquisa se encaixa é o da relação entre o termo “religião” e cristianismo. Especificamente, o objetivo é refletir sobre o termo “religião”, com seus conceitos adquiridos através dos tempos juntamente com suas adaptações feitas pelas demais religiões e mais especificamente pelo cristianismo. Nesta pesquisa busca-se traçar brevemente a história do termo “religião” juntamente com cristianismo, sua história e seu desenvolvimento e resultados obtidos nessa interação. Percebeu-se que nessa interação o conceito de religião passou de qualitativo para algo substantivado, fazendo com que a idéia de religião se tornasse algo diferente de tempos atrás. Refletiu-se sobre o cristianismo e sua soteriologia mostrando possíveis problemas na teorização da mesma que se deu, em partes, pela leitura reducionista de se ver como uma religião superior. Ao final da pesquisa conclui-se que a religião cristã participa veemente da salvação, contudo sua dogmatização do tema é algo ainda reduzido, pois não chega a uma conclusão plausível. Logo o cristianismo é uma religião de experiência e resultante das experimentações da fé em Cristo Jesus, que é seu marco principal e crivo para análise de todas as coisas. Palavras-chave: Religião, cristianismo, religião cristã, salvação, ser humano, soteriologia, desenvolvimento histórico, história. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 2 RELIGIO E SUA TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA................................... 2.1 O termo “religio” e suas adaptações históricas.................................................. 2.2 O cristianismo como religião ............................................................................ 2.3 Dimensão salvadora do termo “religião”........................................................... 2.4 Síntese................................................................................................................ 3 A RELIGIÃO CRISTà E SUA DIMENSÃO SOTERIOLÓGICA ATRAVÉS DA HISTÓRIA......................................................................................... 3.1 O cristianismo em surgimento .......................................................................... 3.2 O cristianismo Antigo........................................................................................ 3.2.1 Percepções soteriológicas no cristianismo antigo.................................. 3.3 O cristianismo da Idade Média.......................................................................... 3.3.1 O Escolasticismo: Sua importância para a eclesiologia da época.......... 3.3.2 Os pré-reformadores............................................................................... 3.3.3 Percepções soteriológicas no cristianismo medieval.............................. 3.4 O cristianismo moderno..................................................................................... 3.4.1 A Reforma.............................................................................................. 3.4.2 Sobre a Igreja Católica Romana............................................................. 3.4.3 Da Reforma para as igrejas protestantes: Características e doutrina..... 3.4.4 Percepções soteriológicas no cristianismo moderno.............................. 3.5 Síntese................................................................................................................ 4 SALVAÇÃO E RELIGIÃO: CONTRIBUIÇÕES PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO.................................................................................................... 4.1 A religião como progresso histórico.................................................................. 4.2 A salvação como dimensão divina e humana.................................................... 4.3 O elemento principal para a salvação no cristianismo....................................... 4.4 A religião cristã: codificação sobre o sagrado................................................... 4.5 Síntese................................................................................................................5 CONCLUSÃO.................................................................................................. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 08 10 10 12 16 18 20 20 23 25 26 27 30 31 32 33 34 37 40 41 42 42 44 46 47 49 50 51 8 1- INTRODUÇÃO O objetivo desta pesquisa é mostrar como que o termo “religião” se transformou através da história e como que nessa transformação o cristianismo, após usar o mesmo, participou destas transformações, especialmente na sua compreensão soteriológica. Por ser um tema amplo, o específico desta pesquisa é de identificar quais mudanças significativas ocorreram no cristianismo ao se ver como religião e, diante disso, perceber as implicações benéficas e maléficas que pode ocasionar ao mesmo e como a compreensão sobre o que seja salvação fica condicionada. Portanto a pesquisa apropriou-se de alguns objetivos específicos: 1) Apresentar o termo “religião” e suas modificações na história e no ato de sua apropriação pelo cristianismo; 2) identificar, no decorrer da história do cristianismo, como sua compreensão enquanto religião sobre salvação se transformou juntamente com o termo “religião”; 3) apresentar o cristianismo como possibilidade política1 no que tange à sua compreensão soteriológica. A metodologia empregada é de pesquisas bibliográficas. Apesar de se pesquisar especificamente a religião cristã o trabalho optou por não desprezar as demais religiões muito menos inferiorizar o cristianismo diante das mesmas. Neste trabalho o termo cristianismo diz respeito a toda comunidade que se identifica com Cristo, já que este é o marco inicial da religião cristã. O presente trabalho está estruturado em três capítulos, além da introdução e da conclusão. No primeiro capítulo o objetivo foi de apresentar como o termo “religião” aparece no surgimento do cristianismo e, após ser abordado por este, tal capítulo busca apresentar as mudanças sutis, contudo significativas que ocorreram após esta apropriação. Julga-se como importante tal averiguação já que o termo “religião” sofreu modificações por influências externas. Tais modificações fizeram com que o cristianismo se portasse diferentemente durante sua história. Portanto no segundo capítulo julgou-se relevante apresentar como que se deu a história do desenvolvimento cristão durante sua caminhada de fé, dando ênfase à sua soteriologia desenvolvida no decorrer da história. Isso é de grande valia para perceber que em cada momento histórico o cristianismo afirmava ter a revelação final sobre o que seja salvação e como ela se dá. Entretanto sempre novas elaborações surgiam. Lendo o cristianismo com os “óculos” do termo “religião” que foram apresentados no primeiro capítulo fica mais fácil 1 Entende-se por política como sendo uma habilidade no trato das relações humanas, com vista à obtenção dos resultados desejados. Para maiores esclarecimentos ver dicionário Aurélio, verbete “política”. 9 perceber que o cristianismo mais participa da salvação do que consegue elaborar teoricamente sobre ela. Logo, o quarto capítulo trabalha a possibilidade de o cristianismo ser uma leitura válida da salvação pelo fato de este experimentar, durante sua trajetória, a própria salvação. Contudo o mesmo se detém em mostrar que o cristianismo não deve se pautar exclusivamente em seus dogmas, que são resultados desta experiência, mas se pautar naquele do qual vem o resultado, a saber, Jesus Cristo de Nazaré. O cristianismo é apresentado como resultado da dimensão divina e humana da salvação, onde o mesmo é apresentado como progressivo e não estático. Interessa a esta pesquisa destacar que não se deve negar a importância das demais religiões já que as mesmas fazem, com o mesmo intuito, a síntese entre revelação e realidade, apesar de pressupostos diferentes entre si. Sendo assim o cristianismo é posto em pé de igualdade podendo ser considerado superior apenas por questão de fé e não existencialmente falando. Isso é crucial para contribuir para o diálogo inter-religioso. Nenhuma religião é desprezada, contudo nenhuma religião é afirmada como sendo melhor que outra. A pesquisa apenas se detém em analisar o cristianismo e sua relação com o termo “religião”. Deste tempos remotos a humanidade buscou alguma forma de salvação através da religião. O cristianismo participa desta história com o mesmo objetivo, contudo singular como as demais religiões. O cristianismo possui diversas faces. Em cada face uma nova leitura religiosa que não se iguala às demais e nem às anteriores, mas se identificam por certos elementos que são inatos na sua composição. 10 2- RELIGIO E SUA TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA O termo “religio” ou “religião” nem sempre possuiu o significado que hoje possui. Será mostrado neste capítulo, como que se deu o surgimento e a posterior apropriação do termo pelo cristianismo juntamente com suas elaborações mais sofisticadas para o mesmo. Desde já é possível considerar que o termo, através da história, obteve grandes modificações e estas interferiram grandemente na compreensão do mesmo, nunca mais proporcionando a volta à conceituação que se tinha de início. Tais mudanças foram um processo histórico que será mostrado a seguir. 2.1- O termo “religio” e suas adaptações históricas Segundo Smith é equivocado aceitar o termo “religião” como sendo algo que simplesmente explica a existência de certa instituição religiosa, ou que distingue uma instituição das demais.2 O termo “religião” é de origem latina e passou por modificações após sofrer uma transformação da palavra grega avle,gw, podendo ser datado até mesmo antes de Cristo.3 Lucrécio, filósofo do século I a.C., buscava promover sua própria visão de mundo, e, ao longo de seu poema de mais de seis mil versos, a palavra “religio”4 nasce denotando a idéia de um ser celestial; um Ente Supremo. Contudo Cícero, nascido em 188 a.C., contemporâneo de Lucrécio, relaciona religião com os deuses gregos, dando à palavra “religio” novo sentido, todavia se preocupando com uma posição de atitude.5 McGrath salienta que a definição do termo ainda está sendo discutida, entretanto “a palavra ‘religião’ [...] se refere a ‘crenças e prática que possuem uma referência sobrenatural’6”. Mas, Antony Giddens não aceita tal definição alegando que a idéia de “religiões” é algo criado pela mente humana, bem como pode ser um fenômeno social.7 Smith diz que “Religião [...] significa sujeição voluntária do ser humano a Deus”.8 A dificuldade na definição se dá pela mutabilidade do termo através da história.9 2 Cf. SMITH, 2006, p.7-13. 3 Dando sentido de: “prestar atenção”; “cuidar de”. Cf. SMITH, 2006, p.187. 4 Apesar de escrita em latim em seus textos, não deixa de apresentar suas características helênicas. É empregada oito vezes no singular e seis no plural. Cf. SMITH, 2006, p. 32-33. 5 Cf. SMITH, op.cit., p.32-34. 6 Cf. McGRATH, 2005, p.603. 7 Ibidem, p.603. 8 Cf. SMITH, op.cit., p.108. 9 Cf. McGRATH, op.cit., p.304-606. 11 No séc. I d.C. o termo “religio” sofre novas modificações. Nas palavras de Smith: “o termo ‘religio’, após ter sido adotado pelos cristãos, tornou-se mais multifacetado do que nunca e adquiriu profundidades bem novas. Mas ele não ganhou nada em clareza”.10 O termo passou a ser usado em ritos e observâncias. Logo “um desenvolvimento inovador a partir disso talvez seja o emprego de ‘religio’ para designar também a organização estrutural da igreja, com seus diferentes níveis eclesiásticos”. O termo,que antes era usado para tratar questões acerca de envolvimento com o outro ou com algo, que também se inclinava a explicações sobre a realidade, agora já tem um significado mais amplo. Seu intuito agora é trazer definição (conceito) e distinção (contraste) deixando para segunda instância a preocupação com o envolvimento com “o outro”. O ápice da ampliação do sentido do termo se dá no séc. IV. O termo “religio” passa a designar a organização estrutural da igreja com seus diferentes níveis eclesiásticos.11 Ainda segundo Smith “pela primeira vez nessa área, aparece a noção extremamente significativa de que, se é certo adorar a Deus de uma forma, então é errado fazê-lo segundo o modelo alternativo do vizinho”.12 O termo “religio”, que antes era algo singular que se referia à externalização dos sentimentos de coração de alguém, agora precisa ser usado no plural para distingui-lo de outras instituições. Religião passa a ser instituição.13 Nas palavras de Smith: Disso surgem dois desdobramentos. Um é o plural 'religiões', que é inviável enquanto pensarmos em algo que acontece no coração das pessoas, como piedade, obediência, reverência, adoração (nenhuma dessas palavras tem plural). O plural aparece - ele se torna padrão a partir de meados do século XVII e comum a partir do século XVIII - quando observamos de fora, abstraímos, despersonalizamos e reificamos os diferentes sistemas de outras pessoas nos quais não vemos sentido ou valor e cuja a validade nem sequer cogitamos em aceitar. Em segundo lugar, há um outro conceito, o de uma ‘religião’ genérica, para designar como uma entidade externa o sistema total, a soma de todos os sistemas de crenças ou, simplesmente, a generalização de que existem. Esse é um conceito formulado e usado primordialmente por pessoas que estão cansadas dos confrontos ou estão receosos com todo o empreendimento.14 “Religio”, que antes buscava tratar assuntos universais (comum), passa então a tratar de assuntos específicos e até mesmo diferenciados de grupos (individualidade). O termo é utilizado para comparação de religiões. Se a partir do séc. IV já se tem modificações do termo com relação aos grupos diferenciados pela sua cosmovisão, também dentro das religiões se 10 Cf. SMITH, 2006, p.35. 11 Ibidem, p.35. 12 Ibidem, p.36. 13 No sentido de organização de pensamentos. 14 Cf. SMITH, op.cit., p.50. 12 tem o termo “religio” “como um título, atribuído em especial a bispos ou outros clérigos”,15 como no cristianismo. O termo obteve tantas transformações que se chega a afirmar que “não há evidências no Novo Testamento de que os cristãos primitivos estivessem conscientes de estar envolvidos em uma nova religião”.16 O termo é trabalhado pelos Pais da Igreja em perspectiva platônica. Nesse contexto o envolvimento ser humano-Deus, é apresentado nos termos de uma relação mística. Tal época é considerada a mais “religiosa” da história do cristianismo, contudo, sobre o termo “religião” não se deu tanta ênfase etimológica.17 2.2- O cristianismo como religião Para se entender o efeito das transformações na confluência dos termos “religio” e “cristianismo”, que é posterior àquele, deve-se antes ter em mente a origem do cristianismo. Sua origem tem base na fé de um povo em Jesus de Nazaré, do qual veio uma nova interpretação das Leis de Moisés. Mestre da Lei, Jesus passa a ser visto como Profeta, Senhor, Messias, Filho do Homem e Filho de Deus. Tais títulos são conferidos a ele após serem presenciados pelo povo milagres vindos de suas ações18 e de sua morte seguida da ressurreição.19 Posteriormente, elaborações sobre Jesus como “Deus” surgem juntamente com diversas outras interpretações teológicas sobre sua pessoa. Portanto, é em Jesus, também chamado “Cristo”, que as bases do Cristianismo são encontradas.20 Antes de ser considerado como “religião”, o cristianismo era apenas uma reunião de pessoas que confessavam, de diversas formas, sua fé no Cristo chamado Jesus.21 De acordo com Hans Küng: Será que alguém ainda se recorda da origem suspeita da palavra ‘cristão’? Originou-se em Antioquia consoante o testemunho dos Atos dos Apóstolos. Ao começar a circular na história universal, ‘cristão’ era o termo ofensivo mais do que honroso epíteto.22 15 Cf. SOUTER apud SMITH, 2006, p.36. 16 Cf. SMITH, 2006, p.64. 17 Ibidem, p.34-41. 18 Cf. VERMES, 1995, p.9-17. 19 Cf. Mt 27.1 – 28.20; Mc 15.1 – 16.20; Lc 23.1 – 24.53; Jo 18.1 – 21.25. 20 Cf. KÜNG, 1976, p.104-105. 21 Ibidem, p. 99-102. 22 Ibidem, p.99. Ver também SMITH, 2006, p.75. 13 Küng destaca que ser cristão não está no fato de pertencer ao cristianismo, mas de professar a sua fé no Cristo Jesus, e este de Nazaré.23 Nos primeiros séculos o que definia um cristão era a sua fé no Cristo. O termo “cristão” é que significou o cristianismo e não o vice- versa.24 Posteriormente e de forma sutil, o que definia quem era cristão ou não era o fato de pertencer ou não ao cristianismo. O que antes era “religião cristã” passa a ser “cristianismo” não se referindo mais à qualidade, todavia à instituição; denominação.25 Smith, após averiguar mais de seiscentos títulos de livros impressos em que aparecem os termos “fé cristã”, “religião cristã” e “cristianismo” constatou que o mesmo acontece com os termos “religião cristã”, que possui sentido mais pessoal, e “a religião cristã”, com o artigo definido, que passa a ter conceito impessoal e institucionalizado. Com isso, “conceitos, terminologia e atenção passam de uma orientação pessoal para um ideal, então para uma abstração e, finalmente, para uma instituição”.26 A mudança é sutil, porém de grande efeito. Segundo McGrath a adaptação do termo “religião” no cristianismo, ao seu modo de ver o mundo, tornou-se viável até mesmo para as elaborações de fé. Ficou mais fácil a sistematização das idéias quando o cristianismo deixou de ser apenas um movimento.27 Porém, o cristianismo, no decorrer de sua história passou a não observar mais o que antes era seu ponto de valor: a liberdade do ser humano em Cristo. A lei Judaica poderia ser utilizada como mecanismo de desumanização. E o cristianismo era a testemunha de tal fato, até que este mesmo tornou-se escravizador do ser humano, impondo leis e dogmas que já não mais tratavam do ser humano em relação a Deus e sim do ser humano em relação ao cristianismo, agora portador exclusivo da salvação vinda de Deus. Smith esboça algo sobre isto: Em todo este estudo, pressupomos que é possível entender palavras empregadas em determinadas situações históricas como expressivas de idéias nas mentes das pessoas e que essas idéias eventualmente não são caracterizações finais do universo em que vivemos. Dito em termos teológicos, levamos a sério a possibilidade de que palavras utilizadas por pessoas não expressem necessariamente conceitos na mente de Deus. O apelo por uma reavaliação crítica de conceitos pressupõe que podemos ser as vítimas e podemos nos tornar os senhores do raciocínio humano. [...] Esses termos representam conceitos na mente de Deus, possuindo validade e permanência últimas. [...] Os conceitos humanos mudam, e os dessas pessoas estavam mudando, em parte sob o impacto de idéias novas, em parte sob o impacto de experiências novas, de coisas novas que elas viam.28 23 Cf. KÜNG, 1979, p.20-21. 24 Cf. SMITH, 2006, p.75. 25 Ibidem, p.77. 26 Ibidem, p.78. 27 Cf. McGRATH, 2005, p.41-44. 28 Cf. SMITH, op.cit., p.100-101. 14 No Iluminismo a reorganização dos pensamentos de cunho mais racional se tornoucrucial. Dentre esses estudos o estudo filológico tornou um vasto campo para pesquisa. Durante e depois do Iluminismo a crítica filológica buscou mostrar como os termos mudaram de seu sentido chamado “original” e como essa mudança poderia modificar também aquele quem iniciou a mudança. Destaca-se, neste aspecto o trabalho de Nietzsche. Dotado de espírito crítico contra o cristianismo, ele escreveu a obra O Anticristo, onde através da filologia e filosofia, ele busca mostrar as mudanças nos termos usado pelo cristianismo, dentre estes, o próprio termo “cristianismo”.29 O estudo filológico serviu para mostrar que muitas mudanças ocorreram dentro do cristianismo e na sua forma de pensar “religião”. O que antes era de valor no pensamento cristão agora já não mais necessita ser. Infere-se que cristianismo, em seu início de história, valorizava a história de Jesus,30 passando então para o conceito sobre Jesus,31 indo então para a melhor categorização sobre o que falaram de Jesus Cristo,32 não esquecendo sobre quem faz ou não parte da Igreja de Cristo,33 chegando à época atual valorizando ou um conjunto de regras ou preceitos sobre Jesus Cristo e a Igreja,34 ou um conjunto de textos e valores tradicionais adquiridos através da história.35 Sobre isso Smith diz que com o passar dos tempos a fé dos cristãos em Deus especificamente não tinha a mesma importância como a fé que os cristãos tinham no cristianismo. Portanto, quando estes cristãos já não mais encontravam plausibilidade nas suas relações pessoais com Cristo, eles passaram a se dedicar à religião, e esta no sentido institucional. Em tempos hodiernos cristãos dizem crer no cristianismo ao invés de dizer que crêem em Deus e em Cristo; preferem proclamar as doutrinas cristãs em vez de salvação, boa- nova e redenção encontradas no Evangelho cristão; por fim, praticar o cristianismo em vez do amor. Além do mais, cristãos contemporâneos já têm em suas mentes que é no cristianismo que se encontra salvação, no lugar que antes era ocupado pela agonia e amor de Deus. 36 Smith conclui: “Um cristão que leva Deus a sério deve reconhecer certamente que Deus não 29 Cf. NIETZSCHE. In: Os Pensadores. 1999, p.393-396. 30 Cf. At 4.8-12. 31 Diz-se sobre os credos Apostólico, Niceno e Calcedônio. Cf. GRUDEM, 1999, p.996. 32 Fala-se do período escolástico onde grandes teólogos católicos buscavam, filosoficamente, raciocinar sobre a pessoa de Jesus bem como seus feitos. Cf. McGRATH, 2005, p.79-84. 33 Sobre a definição de “Igreja”. Cf. GRUDEM, 1999, p.1021. 34 Arremetendo o pensamento aos conceitos católicos. Cf. CNBB, 2007, p.38-69. 35 Referindo-se à confissão de fé protestante e sua alegação de que somente as Escrituras possuem total autoridade. 36 Cf. SMITH, 2006, p.119. 15 se importa em absoluto com o cristianismo. Deus se preocupa com pessoas, não com as coisas”.37 O cristianismo possui uma noção especifica de salvação. Inicialmente a igreja não se preocupava com as demais “religiões” porque ainda não tinha nascido a idéia de “religião enquanto instituição”. Ela se voltava à imitação de Jesus e à preocupação com a busca pelo outro. Ao se mudar a compreensão do termo religião ficou claro que já não é mais o ser humano, em sua iniciativa, que se liga em Deus, todavia a instituição religiosa que faz este trabalho na forma que se compreende hoje. Outro fator que deve ser analisado é que quando se muda o significado de um termo como foi o de “religio”, demais termos ligados a este também têm seus significados mudados, como é o caso do termo “fé”. Nos primórdios da fé cristã, este termo não dependia de uma ligação com uma instituição, o que conseqüentemente não obrigava esta “fé” a se ligar a um conjunto de regras para defini-la. Com a valorização da instituição pelo seu adepto é que este termo não mais se viu livre de regras que agora passam a defini-lo como certo ou errado.38 Portanto, esta “fé” cristã passou a ser, com o passar dos tempos, uma forma de expressar uma religião ou até mesmo ser uma religião. Sendo assim, dever-se-ia considerar toda a fé presente no mundo hoje como religiões. Segundo Smith apenas Mani estava consciente de estar fundando uma religião. Outras religiões, como no caso dos muçulmanos, acreditam que o próprio Deus a fundou. E não só esta, mas muitas outras também acreditam estar por uma fundação divina.39 Essa crença de que Deus fundou pessoalmente uma religião exclui qualquer tentativa de mudança da mesma pelas mãos humanas. O fato de religiões se comportarem dessa maneira não permite o ser humano realizar melhorias na mesma que, segundo Smith, pode estar causando males aos seus adeptos pelo fato de esta não observar as mudanças necessárias na religião, ou por não observar as mudanças obtidas em sua caminhada que impedem ou deturpam novas interpretações de fé.40 A mudança deve partir da própria religião quando esta percebe que o mesmo que a moveu na busca de uma esperança moveu também os demais.41 Küng destaca que: Cada religião em concreto é uma mistura de fé, superstição e descrença. Mas poderá um cristão deixar de ver com que empenho e concentração os homens das 37 Cf. SMITH, 2006, p.120. 38 Ibidem, p.164-165. 39 Ibidem, p.102. 40 Ibidem, p.100. 41 Cf. KÜNG, 1976, p.75. 16 religiões universais se puseram incansáveis em busca da verdade e também a encontraram?42 Segundo Smith a mudança na compreensão de que apenas a fé de alguém ou de algo é certa deve começar a ser mudado dentro de seu próprio meio de convívio. Se alguém coloca a sua palavra como sendo a de Deus e esta se corrompe através da história ficará evidente que não só aquele que criou tal dogma ou regra virou vítima de si mesmo como também trouxe consigo diversas outras vítimas.43 Portanto, se alguém preza pela vida do próximo, e aqui entra o cristianismo, esse deve compreender que “o fim da ‘religião’, no sentido clássico de seu propósito e objetivo, aquilo para o qual aponta e para o qual pode conduzir, é Deus”.44 O cristianismo não deve deter a palavra de Deus, porém levar seus adeptos à mesma. 2.3- Dimensão salvadora do termo “religião” Segundo Drewermann religião está muito ligada à salvação. Isso se dá pelo fato de esta não se perguntar sobre o mundo, mas de tentar localizar para o ser humano lugares de abrigo, amor, esperança ante a realidade da morte.45 Ele acrescenta que religião nasce após o ser vivo “sentir a morte como um problema individual”46 e quando este se vê em relação com a natureza.47 Durante anos, em todo o período moderno e início do contemporâneo, percebeu- se o quanto a filosofia questionou a religião sobre uma definição sobre Deus, o ser humano, suas relações, que implicaram várias vezes em conclusões negativas sobre religião e divindade.48 Contudo a religião não foi abolida, tendo adeptos nas mais diversas instituições. A religião, desde seus primórdios, teve na sua intenção, livrar o ser humano do medo e da insegurança que a própria vida lhe oferece.49 É diante dessa ameaça que o ser humano, na sua vontade de alcançar algo melhor para sua vida, devotando sua confiança em algo ou alguém que o livre de tal mal. Mas ainda que o ser humano tenha essa vontade e ainda que faça parte de uma religião, esta não tem o poder de ser sempre boa para si. A religião, quando elaborada a partir de pensamentos errôneos sobre a realidade e o mundo que cerca esse indivíduo juntamente com ações inapropriadas para com a natureza, passa a ser ineficiente e 42 Cf. KÜNG, 1976, p.74. 43 Cf. SMITH, 2006, p.100. 44 Ibidem, p.183. 45 Cf. DREWERMANN, 2004, p.28.46 Ibidem, p.28. 47 Ibidem, p.73. 48 Cf. SAYÃO, 2001, p.36-39. 49 Cf. DREWERMANN, op.cit., p.77-78. 17 até mesmo maléfica em seus propósitos.50 Portanto a religião não só liga o ser humano a Deus como também ao seu meio de convívio, fortalecendo a passagem bíblica que diz: “ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças. [...] Ame o seu próximo como a si mesmo”.51 A religião deve passar por uma releitura de si mesma. Essa é a crítica de Drewermann que diz: Tanto mais, porém volta-se para nós a questão se nós seres humanos queremos permanecer do jeito que vemos por toda a parte, se podemos existir concordando com a perspectiva de que também para nós seres humanos não deve haver um mundo diferente. [...] Precisamos de uma alternativa para a biologia pura e simples, para nos definir como seres humanos. Aí é que começa a religião, e aí estaria o sentido da fé criacional dos cristãos.52 Porém Drewermann prefere dar ênfase a apenas uma característica da religião, que é da interioridade da mesma no indivíduo, que o leva a perceber a realidade e então agir na mesma de forma coerente. Não é de interesse aqui criticar tal visão, apenas de perceber sua colocação como algo que mostra a responsabilidade do ser humano na religião. Para ele, Deus coloca no ser humano essa responsabilidade para que o mesmo seja livre em suas ações, todavia não fugindo de suas responsabilidades que coadunam com as de Deus. Logo, percebe- se que não só o ser humano tem sua ação na religião, mas Deus também contribui com sua parcela na dimensão religiosa.53 É da natureza da religião elaborar teses para o melhor entendimento possível da realidade que cerca o ser humano. Com isso a religião passa a ter seu papel importante enquanto instituição para o ser humano e para sua relação com o próximo, com seu meio, consigo mesmo e com Deus. A instituição religiosa é relevante, não importando aqui sua confissão de fé. Isto é perceptível tanto na leitura de Smith quanto na de Drewermann, que tentaram deixar claro em suas pesquisas sobre diversas religiões e com mais afinco o cristianismo. A religião, por ser uma elaboração histórica, tem por característica a opção de escolhas durante sua caminhada de fé. Isso vale tanto para as escolhas do indivíduo quanto para as escolhas da instituição. A tradição cumulativa que Smith trabalha mostra a importância das elaborações teológicas nas religiões. O ser humano, quando inserido na realidade de sua religião, promove 50 Cf. DREWERMANN, 2004, p.10-12, 41. 51 Cf. Mc 12.30-31a. 52 Cf. DREWERMANN, op.cit., p.92. 53 Ibidem, p.79. 18 em si uma re-elaboração de sua identidade. O adepto da religião, seja qual for, passa a se ver como uma nova pessoa, sendo definida e, ao mesmo tempo, definindo a religião.54 No cristianismo não é diferente. Sua forma de ação em determinado período histórico provoca e sofre mudanças nas características, tanto do participante, quanto da instituição, a qual é constituída de participantes.55 Küng mostra claramente como foi a mudança de paradigmas na teologia cristã no auge da 2ª guerra mundial, que era anti-semita e, após realizada as barbaridades com o povo judeu, a teologia anti-semita é deixada de lado para ser adotada uma teologia mais inclusiva.56 Este período foi crucial para as mudanças nas teologias em prática hoje. Isso ajudou na evolução da interpretação bíblica, onde passa a ser aceito a Bíblia como um compêndio de textos que contam uma história sobre um povo e que possui uma “revelação progressiva” sobre Deus e sobre suas ações.57 Para se pensar então em uma correta compreensão do desenvolvimento histórico do cristianismo, e não só deste como das demais religiões, seria de grande relevância uma observação no desenvolvimento histórico no qual o cristianismo foi submetido. Essa observação ajudará nas abordagens sobre como entender a religião e seu processo soteriológico. 2.4- Síntese Foi abordada neste capítulo a transformação histórica que o termo “religião” sofreu através da história. O termo, que antes era usado para falar de envolvimento qualitativo com o “outro” passa a ser usado para designar certa organização estrutural religiosa. O termo passa então a ter caráter mais substantivado e menos subjetivo. “Religião” passa a designar cargos eclesiásticos denotando certo grau de importância na organização religiosa. Nessa nova abordagem do termo “religião” o cristianismo passa a se desenvolver adotando-o como termo discriminador das demais religiões. Com isso a religião cristã toma novo enfoque para seu desenvolvimento deixando de lado o termo “Cristo” adotando a expressão “religião cristão” chegando, por fim, no termo “cristianismo”. No Iluminismo nasce a crítica ao cristianismo alegando que o mesmo se distanciou de seu propósito anunciando mais o cristianismo que Cristo. O termo “religião”, no que tange à salvação, passa a ensinar uma salvação institucionalizada no cristianismo e que o mesmo, por 54 Cf. SMITH, 2006, p.145-149. 55 Cf. KÜNG, 1976, p.142-143. 56 Ibidem, p.143-145. 57 Cf. COOK apud PIERATT, 1994, p.115-124. 19 sofrer transformações na abordagem durante a história, mostra-se aberto às ações do ser humano e a transformações pelo mesmo. A abordagem do termo ”religião” mostra-se flexível às ações humanas, tendo então caráter humano e divino. 20 3- A RELIGIÃO CRISTà E SUA DIMENSÃO SOTERIOLÓGICA ATRAVÉS DA HISTÓRIA O presente capítulo busca apresentar o desenvolvimento do cristianismo enquanto religião institucionalizada bem como suas percepções soteriológicas em progresso juntamente com sua história. Apresentar-se-á aqui como o termo religião foi transformado sutilmente dentro do cristianismo e como que tal mudança mudou consideravelmente a compreensão soteriológica do cristianismo. Para isso contar-se-á com a abordagem da história do cristianismo feita por Tillich uma vez que o mesmo busca expor o desenvolvimento do pensamento cristão acerca de Jesus Cristo e sua obra. Sendo assim, com essa abordagem de Tillich fica mais fácil trabalhar a relação entre pensamento cristão com desenvolvimento soteriológico da religião cristã sem se esquecer do desenvolvimento à parte do termo “religião”. Apesar de este capítulo buscar toda atenção no desenvolvimento cristão foi optado em usar os estudos de Gaarder mesmo sabendo que sua obra não abarca somente o cristianismo. Tal opção se deu porque ele consegue distinguir de forma relevante as diferenças entre as religiões e entre o próprio cristianismo nas suas subdivisões. Caminhar-se-á apresentando, por etapas históricas, o desenvolvimento cristão juntamente com sua percepção soteriológica, mostrando assim sua complexidade crescente a cada instante histórico. 3.1- O cristianismo em surgimento O cristianismo surgiu como uma religião a parte do judaísmo. Seguindo a releitura da Lei que Jesus fez juntamente com uma nova ética pregada no sermão do monte,58 seus seguidores fizeram com que o cristianismo tomasse um rumo totalmente particular, adotando seus ritos, dogmas e metodologias nas elaborações das teologias. Logo, para que o cristianismo surgisse como uma nova realidade este precisou de ferramentas para seu labor teológico. Em seu surgimento o cristianismo se utilizou de palavras como “kairos” para trazer uma nova compreensão sobre o que seja o tempo dos homens (chronos) e o tempo de Deus. Tais palavras são elaborações helênicas que foram apropriadas por Paulo e seus seguidores 58 Cf.KÜNG, 1976, p.140-146. 21 para dialogar com o espírito da época. Tal termo ajudou a igreja a se expressar juntamente com sua revelação em Jesus Cristo, que segundo o pensamento cristão que já estava em vigor na época, o advento “Cristo” era o kairós de Deus.59 Nos anos iniciais da era cristã o Império Romano era o império dominante. Este não se interessava em religiões especificamente, apenas com a humanidade num todo. O Império Romano detinha o conhecimento filosófico grego, o qual estava no auge nesta época, fazendo com que, futuramente a igreja, após ser aceita como religião do Estado, adotasse esse método de leitura da realidade. A filosofia helênica contava com estóicos, dos quais vinham a preocupação com a moral e a ataraxia como o ideal do sábio, epicureus, que acreditavam que o prazer era o bem soberano, neo-pitagóricos, mais voltados à matemática e à geometria juntamente com as demais ciências de correspondentes numéricos, céticos, dos quais vinha a crença de que o homem não pode chegar a qualquer conhecimento indubitável, e neo- platônicos, influenciados por Platão e pela sua teoria das idéias, dos quais visava toda a meditação filosófica ao conhecimento do Bem, Bem este que era considerado suficiente para a implantação da justiça e do Estado.60 A fonte do pensamento cristão se encontra aqui. Como diz Tillich: “O cristianismo primitivo não foi influenciado tanto pela filosofia clássica, mas pelo pensamento helênico”.61 O ceticismo também contribuiu bastante para o desenvolvimento cristão. Isso se dá pelo fato do ceticismo não ser, nesta época, escolas totalmente voltadas à filosofia. Possuíam rituais cúlticos por acreditarem que a sapiência vinha dos deuses. O ceticismo considerava seus líderes como “grandes mestres” ou até mesmo como salvadores. Tal compreensão fez com que os seguidores de Jesus creditassem a este as mesmas idéias creditadas aos líderes céticos da época, mesmo sabendo que Jesus não era um cético.62 Ainda segundo Tillich as tradições platônicas juntamente com o estoicismo também tiveram papéis importantes. Idéias como da transcendência, do mundo material e do essencial e da providência influenciaram muito o cristianismo primitivo em suas elaborações de fé. Ainda na idéia de mundo material e essencial grande influência exerceu Aristóteles no cristianismo com sua idéia de que o divino é forma sem matéria, perfeito em si mesmo, atraindo tudo a si em amor. Tais sumas ajudaram o cristianismo em seu desenvolvimento.63 Já 59 Cf. TILLICH, 1967, p.17. 60 Ibidem, p.18-19. Ver também FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 61 Ibidem, p.18. 62 Cf. TILLICH, op.cit., 19-21. 63 Ibidem, p.21-22. 22 o estoicismo contribuiu com sua idéia de que todos participam do Logos universal64, portanto todos são participantes em potência na razão. No quesito salvação, cristianismo e estoicismo se chocam até hoje porque o cristianismo adotou a idéia da salvação por meio da intervenção da graça divina enquanto os estóicos adotaram a salvação por meio da sabedoria.65 Devido o judaísmo ter feito a adoção da idéia sobre Deus como sendo um ser mais transcendental, mais influenciada pelo helenismo e pelo fato da figura do Messias passar a ser vista como um rei de um paraíso juntamente com o aumento dos nomes dados a Deus bem como a aceitação do “Espírito de Deus” como figura de elaboração teológica de interação entre o ser humano e o Deus transcendente a repercussão se dá fortemente no cristianismo em seu início. Tendo Deus como totalmente transcendente faz com que santos eleitos pelos fiéis da igreja passem a ser mediadores do povo bem como venerados, mas não adorados. A teologia inicial do meio cristão passa a ter seus pilares nessas modificações últimas do meio judaico.66 Apropriações de discurso feitas pelo judaísmo com relação às religiões vizinhas também serviram para moldar no cristianismo certas características como: participações místicas divididas em estágios para os iniciantes na religião; rigoroso processo de separação e preparo para a participação de celebrações de cerimônias evitando assim qualquer tipo de profanação do culto pré-estabelecido.67 Portanto em seu início o cristianismo passou por duas características metodológicas de elaboração de fé cristã: a recepção das teologias advindas de meios externos do judaísmo e a transformação das associações teológicas que culminaram nos textos do NT68. No que tange às transformações teológicas, na cristologia percebe-se a associação de termos como “Messias”, que em grego se traduz como Christos69, a Jesus pelos primeiros discípulos extrapolando em partes a interpretação comum do termo na época70. O termo “Filho do Homem” que pode ter sido usado pessoalmente por Jesus, diferente do termo Messias que foi evitado por ele buscando não ser visto como libertador de seu país71, contudo o conceito não era adequado para Jesus já que o “Filho do Homem” deveria vir em poder e grande glória. “Filho de Davi” também foi usado, porém extrapolado de seu sentido original por Jesus 64 Considerado por eles como o poder divino. Ver TILLICH, 1967, p.22. 65 Cf. TILLICH, 1967, p.22-23. 66 Ibidem, p.24-26. 67 Ibidem, p.27-28. 68 Lê-se “Novo Testamento”. 69 Cf. GAARDER, 2000, p.155. 70 Cf. TILLICH, op.cit., p.28. 71 Cf. GAARDER, op.cit., p.155. 23 quando ele “disse que o próprio Davi considerava o Messias seu Senhor”.72 Outros títulos como “Filho de Deus”, “Kyrios”, “mestre” e “Logos” também tiveram suas elaborações seguidas de aplicações, todavia com limitações e adaptações.73 Tillich está com a razão em dizer que a “grandeza do Novo Testamento consiste em ter sido capaz de usar palavras, conceitos e símbolos surgidos na história das religiões, preservando ao mesmo tempo a pessoa de Jesus interpretada por essas categorias”.74 3.2- O cristianismo Antigo O desenvolvimento teológico sempre foi não-estático no cristianismo. Isso pode ser visto no cristianismo antigo onde teologias elaboradas pelos primeiros discípulos passam a ser relidos pelos pais da igreja trazendo novos conceitos para o mesmo. Devido à preocupação com o meio pagão, o cristianismo passa a elaborar sistemas de combate às chamadas heresias de povos não-cristãos, mais conhecidos nesta época como povos pagãos. Visando a vida das congregações os pais da igreja buscavam elaborar sistemas de fé que politizassem as mesmas idéias religiosas nas diversas comunidades cristãs que, nem sempre se encontravam próximas uma das outras. Essas elaborações se desenvolveram e resistiram até que recebessem o título de católico75 já que englobavam o pensamento de todos. Aqui começa a se perceber a troca dos antigos legados dos profetas por normas e observações escritas que são perceptíveis nas cartas chamadas pastorais do NT.76 O desenvolvimento inicial do cristianismo não contava com a definição de quais livros seriam aceitos no cânon do NT, o que foi decidido ao longo de duzentos anos. A cristologia também foi uma marca do cristianismo já que isso diferenciava o cristianismo do judaísmo. O cristianismo enquanto igreja, que vem do termo ekklesia, buscou se configurar ao termo já que para o judaísmo isso não foi possível porque o termo se referia aos chamados de todos os povos e não de um apenas. A organização da igreja era entregue ao bispo, que era eleito pela congregação por critérios definidos que, sendo representante do Espírito de Deus, passava a determinar o que era ser um cristão em detrimento às demais etnias. Apesar de não ter sido72 Cf. TILLICH, 1967, p.28. 73 Cf. GAARDER, 2000, p.156-157. 74 Cf. TILLICH, op.cit., p.29. 75 Que significa universal. 76 Cf. TILLICH, op.cit., p.31-32. 24 uma aceitação simples e fácil a sucessão apostólica passou a ser aceita no final da idade antiga e início da idade média.77 Nesta época o desenvolvimento teológico cristão buscou uma melhor elaboração. Idéias criacionistas como a de Clemente e sua idéia do Demiurgo78 como sendo aquele que criou o mundo material, considerado mal, juntamente com todos os elementos que o compõe, que veio a influenciar não somente a confecção do credo apostólico e posterior o niceno, como também a idéia de um suposto plano de salvação de Deus, elaborado por Inácio. Ainda sobre os credos estes vieram para distinguir o cristianismo das demais religiões visando o não-sincretismo e prevenindo cisões internas entre as comunidades cristãs. Posteriormente os credos viriam acompanhados de dogmas (doutrinas) visando um ensino mais correto.79 No campo da soteriologia, Inácio busca desenvolvimento falando sobre a “economia para o novo homem” que professa um pensamento trinitário (Pai, Filho e Espírito Santo) colocando o judaísmo como uma “direção” ao cristianismo que, tendo Cristo como o novo homem, dissipa a corrupção do velho homem vencendo este, a morte e caminhando então para uma cristologia mais avançada. Já a cristologia trabalha termos como “gnosis”, “sarx”, “soma”, “homoousios”, “zoe”, dentre outros mostrando que Cristo é athanatos gnósis (imortal) combatendo então o gnosticismo e o docetismo.80 Estas elaborações não tinham somente o interesse de se abstrair para conhecer, mas se achegar para vivê-las. Nas palavras de Tillich: Sem essa participação, a verdade não era possível e o conhecimento seria apenas abstrato e sem sentido. Era o que queriam dizer quando combinavam conhecimento e ser. A participação no novo ser era participação na verdade, no verdadeiro conhecimento.81 Nesta época surgem os apologistas que buscavam defender o cristianismo contra acusações feitas por uma autoridade ou por um mero acusador. Basicamente duas acusações contra o cristianismo foram as que mais se destacaram no meio apologético: (1) as crenças advindas de certos grupos que achavam que o cristianismo se demonstrava como uma ameaça contra o Império Romano e (2) as acusações de filósofos que diziam que o cristianismo não passava de superstição misturada a fragmentos filosóficos. Nesse meio apologético se 77 Cf. TILLICH, 1967, p.33. 78 Ibidem, p.34. 79 Cf. GAARDER, 2000, p.164. 80 Cf. TILLICH, op.cit., p.36. Ver também McGRATH, 2005, p.56-57. 81 Ibidem, p.36. 25 destacou grandes nomes e sumas cristãs, contudo tais ataques apenas serviram para o cristianismo como ajuda ao seu crescimento. Diz-se isso devido a três fatores: (1) O denominador comum: o cristianismo conseguiu explicar os ataques buscando sentido nos argumentos tanto para os pagãos, de onde vinha tais ataques, quanto para os cristãos. (2) Os apologistas aproveitaram a oportunidade para mostrar ao paganismo sua vulnerabilidade. Os apologistas mostravam os defeitos de suas idéias. E (3) o cristianismo conseguiu o cumprimento das expectativas pagãs.82 3.2.1- Percepções soteriológicas no cristianismo antigo No cristianismo antigo se encontra a base de todo o desenvolvimento soteriológico do cristianismo atual. Sua base é Cristo e sua morte e redenção.83 É nesse período que começam o desenvolvimento das idéias de monergismo e sinergismo, onde Deus atua sozinho para salvar o ser humano e onde tanto Deus quanto o ser humano atuam mutuamente para a salvação respectivamente. Os maiores representantes destas idéias são Agostinho e Pelágio.84 A salvação nesta época se dava pelo arrependimento para com Deus e a fé em Cristo85 Segundo Berkhof: A fé era usualmente tida como o notável instrumento para o recebimento dos méritos de Cristo, e com freqüência era reputada de único meio da salvação. Compreendia-se que a fé consistia de verdadeiro conhecimento de Deus, confiança nEle e entrega pessoal a Ele, tendo como objeto especial a Jesus Cristo e o Seu sangue expiatório. Essa fé, e não as obras da lei, era prezada como o meio de justificação.86 Sobre Pelágio não se tinha a idéia de que a fé anulasse as obras, contanto que as obras não anulassem a fé. Todavia este afastou muito do ensino bíblico em relação aos demais pais da igreja.87 Havia o conflito entre a salvação pela fé e a necessidade de justificação pela fé entre alguns pais da igreja. Não se encontram pensamentos nesta época como elaborações fora dos textos bíblicos, aliás, repetiam somente o que achavam na Bíblia.88 O arrependimento também era um pré-requisito para a salvação do ser humano. Tal termo é de difícil conceituação, mas sabe-se que sua manifestação era na forma de atos 82 Cf. TILLICH, 1967, p.37-39. 83 Cf. McGRATH, 2005, p.466. 84 Ibidem, p.59-61. 85 Cf. BERKHOF, 1992, p.183. 86 Ibidem, p.183. 87 Ibidem, p.185. 88 Ibidem, p.184. 26 penitenciais. Esses atos enfatizavam as boas-obras, contudo estas eram obras de abnegação enfatizando a doação de esmolas, abstinência do matrimônio, entre outros que eram considerados méritos especiais e coordenados com a fé como meios de garantir o favor divino.89 É também nos Pais da Igreja que se encontra o leve deslize para o ritualismo. Segundo Berkhof: Prevalecia [...] a idéia que o batismo tem o dom de perdoar os pecados passados, e que o perdão para os pecados cometidos após o batismo pode ser obtido pela penitência. Além disso, ia ganhando terreno, gradativamente, o pensamento que as boas obras de alguns, sobretudo os sofrimentos dos mártires, podem servir para expiar pelos pecados dos outros.90 3.3- O cristianismo da Idade Média O marco de início da Idade Média se dá com a ascensão do bispo Gregório Magno ao papado91, onde a igreja passa a ter um desenvolvimento dos chamados “sacramentos”, da escolástica e de sua hierarquia.92 Para uma melhor compreensão do desenvolvimento do cristianismo na Idade Média poderia ser dividida a história deste período em 4 momentos: O período de transição, que data do ano 600 a 1000; a primeira Idade Média, do ano 1000 a 1200; a Alta Idade Média, de 1200 a 1300; e a Idade Média posterior, que vai de 1300 a 1450.93 No período de transição à Idade Média, o cristianismo procurou preservar algumas de suas características dando margem à assimilação de outros pensamentos.94 Nesse período a Igreja se encontrava unida com o Estado, tendo a responsabilidade de governar as cidades que estavam em seu poder através dos bispos.95 Isso contribuiu para a mudança no pensamento eclesiológico. 89 Cf. BERKHOF, 1992, p.184. 90 Ibidem, p.185. 91 Cf. TILLICH, 1967, p.133. 92 Ibidem, p.134-136. 93 Ibidem, p.133. 94 Ibidem, p.133. 95 Cf. CAIRNS, 2005, p.99-101. 27 3.3.1- O Escolasticismo: Sua importância para a eclesiologia da época Três movimentos nasceram neste período, os quais ajudaram a igreja em seu desenvolvimento. No primeiro, o escolasticismo, que tratava da explicação metodológica da doutrina cristã, ajudou a igreja a se justificar mediante pensamentos que nasciam no movimento inicial da arte romanesca, que vai ter seu apogeu mais tarde, no segundo período da Idade Média. O misticismo, que é o segundo movimento, nasceu dentro do escolasticismo, mas que não abrangia este totalmente já que, segundo Tillich, os místicos “experimentavam em suas vidas pessoais as coisasde que falavam”.96 E o terceiro, o biblicismo, buscava na Bíblia fundamentos para o cristianismo prático. Este influenciou na Reforma do século XVI.97 Para o método escolástico a autoridade residia na tradição da igreja vinda dos pais, nos credos e nos concílios e na Bíblia. Logo percebe-se o deslocamento da autoridade da igreja para sua história e seu desenvolvimento, o que não era pregado pela igreja primitiva. No escolasticismo buscava-se a harmonia entre tradição e conduta, já que na tradição se percebia muitas contradições. Na busca da harmonia nas decisões práticas a escolástica adota a razão, que no caso é filosófica, como principal parâmetro para isto, deixando a fé, que se apresenta como mais subjetiva, em segundo plano, criando então o método dialético do “sim e do não”. Isso mais tarde recebe o título de dogmas.98 Porém a primazia da razão é questionada por um grupo mais platônico, que não reduzia tanto a fé como o grupo mais aristotélico que teve como seu maior representante da época Tomás de Aquino.99 Este influenciou (e influencia) até hoje o pensamento católico. Essas influências platônicas e aristotélicas eram mais percebidas nos meios agostinianos e dominicanos respectivamente. Este conflito de idéias demonstrou que as idéias platônicas da época eram mais místicas enquanto que as aristotélicas eram mais racionais e empíricas.100 No decorrer do raciocínio escolástico juntamente com o desenvolvimento hierárquico da igreja, a razão e a autoridade são separadas. A autoridade não precisava passar pelo crivo da razão. Nessa concepção a autoridade passa a ser mandatória já que não é mais necessário compreender para ter que obedecer. Portanto, a compreensão que se tem sobre Deus é que “sua vontade é irracional e dada”.101 Dessa forma a igreja passa a se abrir para abusos de 96 Cf. TILLICH, 1967, 135. 97 Ibidem, p.134-135. 98 Ibidem, p.136-138. 99 Ibidem, p.136. 100 Ibidem, p.138. 101 Ibidem, p.137. 28 poder em nome da fé. Contudo, “a razão voltou a ser completamente elaborada e se tornou criativa, na Renascença”.102 Contra os abusos autoritários da igreja um grupo de inconformados surge como sectários. São os chamados monges; adeptos ao movimento do monasticismo. O monasticismo foi muito importante para sua época já que foram os monges que produziram grande parte da teologia da época. Esse sectarismo surgiu por causa da distância entre o que a igreja fazia e dizia, o que às vezes era contraditório. Estes foram considerados como que cortados do corpo da igreja.103 Mas essa separação teve características marcantes. Os separatistas englobaram grande parte de leigos que também não aceitavam a posição da igreja. Uma vez inseridos, os leigos passaram a ter voz dentro do movimento. Enquanto os leigos buscavam uma leitura da realidade a igreja buscava sua legitimação o que, às vezes, negava a realidade dos leigos. Foi assim que adentraram no pensamento teológico da época as superstições populares. Tais superstições tentavam associar a realidade finita com o divino.104 Portanto objetos, conceitos e acontecimentos extraordinários como os milagres passam a ser “não apenas como indicadores do divino, mas como poderes que continham em si o próprio divino”.105 Nas palavras de Tillich: A vida diária inteira acha-se dentro das paredes da catedral em forma consagrada. Quando o povo entrava na catedral, sua vida diária se achava representada na esfera do sagrado; quando saía da catedral, o povo levava consigo a consagração aí recebida de volta para a vida diária. Esse é o lado positivo da superstição. O lado negativo transparece nas formas como essas coisas eram utilizadas: imagens, esculturas, relíquias e toda a sorte de objetos sagrados como elementos de religiosidade supersticiosa.106 É no meio dessas superstições populares que nasce o maior envolvimento de demônios com a realidade da criação. Estes passam a influenciar em toda vida dos cristãos que vivem nesta época. Havia uma forte crença de que estes demônios possuíam grande poder. Essa crença não deixou de influenciar os grandes pensadores da época como: Anselmo da 102 Cf. TILLICH, 1967, p.137. 103 Ibidem, p.142. 104 Ibidem, p.144. 105 Ibidem, p.144. 106 Ibidem, p.144. 29 Cantuária em sua forma de conceber a ação demoníaca na criação107, Bernardo de Claraval que teve uma visão bem mística da criação, da queda e da redenção de Cristo, entre outros.108 Esse envolvimento místico trabalhou muito a visão soteriológica do povo desta época. Na concepção mística nem sempre a Bíblia ou as teologias propostas no desenvolvimento escolástico tinham relevância já que muita das vezes o empirismo influenciava mais fortemente. Segundo Berkhof: Demoravam-se sobre o que alguém precisa experimentar antes de poder ser considerado crente verdadeiro, e nisso foram guiados primariamente, não pelo ensino das Escrituras, e sim pelas experiências daqueles que eram reputados “carvalhos de retidão”. [...] E antes que os homens realmente possam crer que são filhos de Deus, precisam ser trazidos para debaixo dos terrores da lei, têm de atravessar conflitos agonizantes, têm de sentir os reclamos acusadores da consciência, e têm de contorcer-se nos espasmos de temível antecipação da condenação eterna.109 Percebe-se que na parte citada de Berkhof fala sobre a consciência. Isso se deve ao fato de que as teologias da escolástica, apesar de que no movimento místico elas não foram adotadas efetivamente, influenciaram o pensamento místico. A teologia que trabalha a consciência é de autoria de Abelardo de Paris.110 As influências externas são o que compõem algo novo. Os sacramentos também ajudavam aos fiéis a terem consciência dos atos salvíficos de Deus. Segundo Gaarder “os sacramentos são os sinais visíveis de que Deus concede sua graça aos humanos”.111 Os sacramentos eram, talvez, o elemento mais importante da igreja Medieval. Os sacramentos representavam a objetividade da graça de Cristo, presente no poder objetivo da hierarquia. [...] Os sacramentos eram a continuação da realidade sacramental básica da manifestação de Deus em Cristo. Em cada sacramento, presentifica-se uma substância de caráter transcendente. [...] É um sinal visível, sensível, instituído por Deus para ser um remédio no qual sob formas materiais o poder de Deus age de maneira oculta.112 Os sacramentos reclamavam para si a apropriação de algo material para curar algo espiritual ocasionado pelo pecado original e pelos pecados de cada um. Eles são necessários à 107 Essa concepção fica clara na obra Cur Deus Homo (Por que Deus se fez Homem?) de sua autoria. 108 Cf. TILLICH, 1967, p.152-170. 109 Cf. BERKHOF, 1992, p.200. 110 Cf. TILLICH, op.cit., p.159-164. 111 Cf. GAARDER, 2000, p.185. 112 Cf. TILLICH, op.cit., p.150-151. 30 salvação para os católicos. É algo bem parecido com a apropriação de objetos pela superstição popular. O que os diferenciava era o caráter sacro dos sacramentos. Estes eram inúmeros. Após críticas feitas pelos pré-reformadores e reformadores os sacramentos reduzidos como sendo os mais importantes foram o batismo e a ceia do Senhor.113 Atualmente a igreja católica reconhecer apenas sete em sua crença.114 3.3.2- Os pré-reformadores O período anterior à Reforma, conhecido como período dos pré-reformadores, foi caracterizado como o período de ascensão dos princípios leigos e a valorização do biblicismo em detrimento da tradição da igreja. John Wyclif, pré-reformador inglês, foi talvez o grande ícone desse movimento chegandoa influenciar posteriormente os reformadores com suas idéias. A Reforma detinha todos os princípios da pré-reforma estando à frente somente pela detenção do princípio de Lutero, nascido da concepção paulina mais conhecida como “justificação pela graça mediante a fé”. A separação entre os termos Reforma e pré-reforma está na falta deste princípio fundamental.115 Questões como: o enriquecimento do clero, ligação entre igreja e Estado, o autoritarismo, as indulgências, o poder de salvação nas mãos da igreja, o papado, entre outros foram fatores muito questionados pelos pré-reformadores. O nominalismo, que tinha características realistas como a valorização da essência das coisas, passou a mostrar que a salvação do ser não se dá na sua obra, mas naquilo que o moveu a fazer tal obra. Logo a desvalorização dos sacramentos se dá porque mais vale a palavra de Deus que orienta o crente do que a obra que este faz tentando alcançar efeito.116 Destarte o papa não pode ser o vigário de Cristo, pois é de Cristo que derivam todos os poderes espirituais. Conclui-se então que o papa é um homem que erra e, “pela primeira vez, antes das noventa e cinco teses de Lutero, critica-se o sistema de indulgências”117. O papa erra, segundo os pré-reformadores, em dizer que é representante de Cristo, ao mesmo tempo que governa este mundo que se opõe a Cristo. Assim o papa mais parece um anticristo segundo os pré-reformadores.118 Contudo: 113 Cf. TILLICH, 1967, p.150. 114 Cf. GAARDER, 2000, p.173, 185-188. 115 Cf. TILLICH, op.cit., p.189. 116 Ibidem, p.189-190. 117 Ibidem, p.191. 118 Ibidem, p.191-192. 31 A Igreja Romana não podia ser reformada por um mero movimento sectário, embora radical, como o de Wyclif. Somente um novo princípio, ao lado de uma nova relação com Deus, teria suficiente poder. Foi o que aconteceu com a Reforma do século dezesseis.119 3.3.3- Percepções soteriológicas no cristianismo medieval Foi na Escolástica que o desenvolvimento soteriológico se deu efetivamente. Melhores definições sobre os termos “graça”, “fé”, “justificação” e “mérito” aconteceram. Neste período há uma grande variedade de opiniões sobre esses elementos do processo salvatício. Apesar da igreja se inclinar brandamente ao agostinianismo os escolásticos se inclinavam para o semi-pelagianismo.120 Sobre o termo “graça” os escolásticos, por serem pelagianos e semi-pelagianos, buscavam uma relação entre “graça suficiente” e “graça eficiente”, termos agostinianos que mostram a limitação do ser humano na busca de sua própria salvação. Tal relação levou os escolásticos a definirem “graça” como “qualidade ou poder sobrenatural insuflado no homem”121 tendo como objetivo levar o ser humano a voltar-se com fé a Deus. Tal discussão foi importante para se definir a relação entre graça e livre-arbítrio.122 Sobre a fé os escolásticos fizeram distinção entre fé, que é um afeto espiritual que produz boas-obras, e fé como forma de conhecimento, que é conformidade com a verdade. Mas para a época, a fé era algo que concordava com os credos e dogmas. Isso se dava porque o clero ainda influenciava o estudo dos escolásticos dizendo que é vantajoso “salientar a idéia que a cega submissão à autoridade da Igreja era a principal característica da fé, e alguns teólogos chegaram mesmo a encorajar tal noção”.123 Quanto à justificação e mérito os escolásticos salientavam que a justificação se dava pela infusão da graça santificadora por Deus cabendo ao ser humano se voltar a Deus em vontade livre mediante a fé e contrição. No caso dos infantes a justificação é obra exclusiva de Deus, onde este retira o pecado original através da infusão da graça.124 Quanto ao desenvolvimento da justificação do ser humano, este poderia se dar com a infusão da graça fazendo com que o ser humano troque o livre-arbítrio por Deus e saindo da influência do pecado, ou no momento em que a graça é infundida a contrição se torna 119 Cf. TILLICH, 1967, p.193. 120 Cf. BERKHOF, 1992, p.190. 121 Ibidem, p.190. 122 Ibidem, p.190-191. 123 Ibidem, p.192. 124 Ibidem, p.192. 32 arrependimento fazendo com que o pecado seja expulso pela graça. Logo, a diferença entre as duas concepções é que uma a graça de Deus é que inicia o processo de transformação enquanto na outra o processo de contrição desencadeia a salvação levando o ser humano à graça divina.125 Mas a justificação plena não era privilégio dos cristãos em geral. Ao se ter certeza de sua justificação o cristão era obrigado a aumentar essa justificação através de sofrimentos por causa da religião.126 Aqui as penitências ajudavam. A doutrina dos méritos caminhava juntamente com a doutrina da justificação. Essa era pouco combatida pelos escolásticos. Consistia em dar ao cristão certas vantagens ao passo que este se demonstre um bom realizador de boas-obras. Duas vertentes são encontradas aqui: A de Tomás de Aquino que alega que o cristão, quando pratica muitas boas-obras, chega a pertencer exclusivamente (mérito de condignidade) a Cristo diferindo-o dos demais cristãos, e chegando, quem sabe, a ter direitos sobre o próprio Deus (mérito de congruência). E a de Duns Scoto que afirmava que boas-obras feitas antes da justificação poderiam conceder uma graça aumentada.127 A doutrina católica finalmente se posiciona com relação às crianças afirmando que o pecado original das mesmas é removido com a infusão da graça por ocasião do batismo. Logo essa penitência passa a ser realidade no meio católico.128 3.4- O cristianismo moderno Juntamente com a reforma nasce no período moderno o renascimento. Embora o trabalho não dê ênfase ao mesmo é muito importante dizer que é no renascimento que nascem as idéias antropocêntricas de fato. E é no renascimento que a reforma encontra suas forças já que o mesmo pedia a volta à antigüidade, ao que era primevo. O cristianismo moderno, ao contrário do medieval, já não tem efetivamente Deus como centro de todas as coisas, mas o ser humano.129 Isso se deu no renascimento e proporcionou uma mudança significativa na visão sobre o que seja religião e seu poder de intermediação na salvação, como era pregado na era medieval. 125 Cf. BERKHOF, 1992, p.192. 126 Ibidem, p.192. 127 Ibidem, p.193. 128 Ibidem, p.193. 129 Cf. McGRATH, 2005, p.75-79. 33 3.4.1- A Reforma A reforma aconteceu no séc.XVI devido às diversas mudanças que a Europa havia sofrido dentre essas: mudanças geográficas, com as descobertas marítimas dividindo o mundo em “velho mundo” e “novo mundo”; mudanças políticas, com a formação das nações-estados que se revoltaram com o domínio de um governo religioso universal e com a organização das forças militar e civil; mudanças econômicas, devido a descentralização da economia sustentada pela agricultura passando a ser sustentada pelo dinheiro e pelas redes de comércio; mudanças sociais, onde já não era mais necessário ser servo da igreja para adquirir ascensão social quando uma pessoa era pobre, pois a rede de negócios da classe mercantil garantia status para qualquer um que quisesse e se empenhasse a se destacar nesta área. As mudanças intelectuais, provocadas pelo Renascimento e, que por sua vez fez com que humanistas cristãos da época se voltassem às fontes do passado e às línguas originais da Bíblia. A ênfase renascentista no indivíduo também influenciou a soteriologia protestante. Por fim, as mudanças religiosas, onde a uniformidade religiosa passa a dar lugar à diversidade religiosa onde passa a encontrar então uma nova interpretação sobre o que seja autoridade ejustificação, anulando assim, segundo os reformados, a intermediação de um mentor ou sacerdote.130 A Reforma foi um movimento que buscou mudanças para a igreja católica sem qualquer rompimento com a mesma para adaptá-la às mudanças ocorridas no mundo. Contudo forças internas colocaram para fora todos aqueles que não se submetiam às idéias da Igreja. A Reforma buscava “voltar à pureza original do cristianismo do Novo Testamento”.131 Tal grupo de excomungados continuou a expressarem suas idéias culminando assim na criação do protestantismo.132 Gaarder explica que “foi um monge alemão, Martinho Lutero, o maior responsável por esse conflito teológico. Ele deu forte destaque à fé e à palavra (à Bíblia), como elementos mais significativos”.133 Mais sobre Martinho Lutero será falado posteriormente. A igreja católica também se pronunciou diante da Reforma com a sua Contra- Reforma, onde buscou, após análises do movimento reformado, adequações e esclarecimentos às suas doutrinas e métodos.134 A divisão causada no cristianismo por esses movimentos, 130 Cf. CAIRNS, 2005, p.221-223. 131 Ibidem, p.224. 132 Ibidem, p.224. 133 Cf. GAARDER, 2000, p.195. 134 Cf. CAIRNS, op.cit., p.224-225. Ver também: TILLICH, 1967, p.195-196. 34 segundo Tillich, foi algo infeliz já que “a Reforma, em vez de se transformar na reforma da igreja inteira, tornou-se o dogma dos protestantes que eram o grupo protestador”.135 O desenvolvimento histórico “infeliz”, como diz Tillich, da Reforma se deu também contra a própria Reforma já que esta, quando iniciada, era bem aberta a questionamentos, contudo, com o passar dos anos ela se tornou, através de seus desdobramentos, bem fechada a críticas, como é o caso do fundamentalismo norte-americano. Nas palavras de Tillich: A Reforma, em si, foi muito aberta, mas quando começou a sofrer todos os tipos de ataques, fechou-se numa estreitíssima ortodoxia protestante, chamada neste país de “fundamentalismo”, que representa o fechamento da Reforma para resistir os ataques sofridos.136 Se por um lado a reforma serviu para trabalhar questões não muito bem explicadas como a apropriação indevida de terras por parte da igreja católica na extensão territorial européia, a corrupção moral na qual a igreja vivia em seu processo hierárquico e prático e a não-satisfação do povo com as posições teológicas e filosóficas da igreja,137 por outro a reforma serviu como uma nova divisão da igreja cristã138, porém com um maior desenvolvimento da ortodoxia de cada subdivisão.139 3.4.2- Sobre a Igreja Católica Romana140 A Igreja Católica Romana é a maior igreja cristã de todo o mundo. Sua doutrina está fundada na fidelidade à hierarquia, a qual é composta de papa, bispos e padres exercendo grande influência na camada inferior conhecida como leigos.141 O papa é o pontífice da igreja, sucessor de São Pedro e infalível apesar de pecador. Sua função é buscar conformidade entre a Bíblia e a tradição eclesiástica bem como liderar. Já os bispos e padres, num estilo parecido ao do papa, são seguidores das pegadas dos apóstolos. Os bispos têm como função ordenar padres. E os padres, por sua vez, dirigir sua paróquia ou comunidade.142 135 Cf. TILLICH, 1967, p.195. 136 Ibidem, p.196. 137 Cf. CAIRNS, 2005, p.224-229. 138 A igreja cristã já havia sofrido uma divisão mais conhecida como “cisma de 1054”. Ver CAIRNS, op.cit., p.167-168. 139 Cf. TILLICH, op.cit., p.196-204, 222-250. 140 Para maiores informações sobre as doutrinas da Igreja Católica Ortodoxa ver GAARDER, 2000, p.191-194. 141 Cf. GAARDER, 2000, p.181-182. 142 Ibidem, p.182-183. 35 Os católicos ensinam que a Igreja tem quatro características que os diferem da igreja primitiva: Ela é “una”, se referindo como a única e verdadeira igreja, adequadas à mesma fé; “santa, pois oferece a todos os meios para a santidade através dos sacramentos; “católica” porque possuem regras universais válidas para todos; e “apostólica” já que é comandada por pessoas que são sucessoras dos apóstolos.143 O fundamento católico se encontra na Bíblia e na Tradição. A Bíblia é vista à luz da tradição, todavia a tradição deve ser entendida como desenvolvimento constante do potencial que existe no Evangelho.144 A salvação professa pelo meio Católico Romano é mais bem entendida quando se parte do seu raciocínio sobre a humanidade. Segundo a visão Católica o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, tendo uma alma eterna e o livre-arbítrio. Porém, ao pecar abusando de seu livre-arbítrio, o ser humano não mais conseguiu ser o mesmo, obtendo então o pecado original.145 Mas a liberdade que o ser humano tinha não lhe foi retirada muito menos perdida, tão somente enfraquecida.146 O ser humano não perdeu sua capacidade de fazer boas ações, todavia este não consegue redimir a si mesmo. Por isso Cristo, que é homem, mas que ao mesmo tempo é Deus, morre na cruz e ressuscita dando a chance ao ser humano de ser salvo mediante a obediência a Cristo.147 Para a Igreja Católica Romana a salvação vem de uma ação conjunta entre Deus e o ser humano. De acordo com Gaarder: Tanto a fé como a salvação pressupõem a graça de Deus. Os sacramentos transmitem essa graça. Deles os católicos recebem a força para viver de acordo com a vontade de Deus. Mas a redenção final vem apenas após a morte. Esta vida terrena é só uma preparação para ela.148 O fato de uma pessoa já estar morta não quer dizer que ela esteja no céu ou no inferno. Segundo a crença católica o purgatório é o lugar por onde as almas que ainda não estavam totalmente puras quando deixaram a terra devem passar para serem purificadas antes de irem para o céu. A origem do purgatório pode ser encontrada na igreja antiga.149 A confissão de Augsburg afirma que o pecado é falta de fé não aceitando a concupiscência como pecado, ainda que seja esta que leve o ser humano ao pecado. Portanto o 143 Cf. GAARDER, 2000, p.183-184. 144 Ibidem, p.184. 145 Ibidem, p.184. 146 Cf. TILLICH, 1967, p.197. 147 Cf. GAARDER, op.cit., p. 184-185. 148 Ibidem, p.185. 149 Ibidem, p.188. 36 ser humano não pode ser entendido como totalmente corrompido. É aí que entra a maior liberdade dada ao ser humano pela Igreja Católica em relação aos protestantes já que estes consideram a concupiscência pecado. O pecado para o católico é a ação contra a lei de Deus. E pelo fato da igreja católica considerar os pecados como algo de fácil perdão, aqueles que os confessam ao sacerdote são absolvidos e libertados. Para os protestantes o pecado é separação de Deus. Não cabe apenas a confissão, mas a conversão completa com uma transformação do ser e reunião com Deus.150 A Igreja Católica acredita que a justificação parte de ambos os lados: De Deus e do ser humano, numa ação conjunta onde nenhum dos dois anula as ações do outro. A distinção é uma característica. Deus entra com sua Graça e benevolência enquanto que o ser humano entra com o cumprimento dos sacramentos. Já no meio protestante a justificação se dá por meio da Graça de Deus, e esta só pode ser mediada pela fé. Contudo muitas interpretações errôneas têm nascido deste ponto. Talvez por uma influência católica muitos têm entendido que, para ser justificado por Deus basta ter fé que este, por sua benevolência e compreensão, após convencido desta fé, se move em graça e perdoa o pecador.151 Contudo o pensamento reformado nega essa concepção. Para os reformados: O ato de se voltar para Deus, e de receber sua graça, é sem qualquer ambigüidade, um ato receptivo, em que Deus nos
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