Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Teologia das Religiões. Rumo a um inclusivismo bíblico. Sílvio Murilo Melo de Azevedo 2 Sinopse Esta pesquisa trata da complexa e difícil questão da teologia das religiões, com especial atenção à salvação no mundo pós-moderno, o papel salvífico das religiões não Cristãs, e a consequente relevância da mensagem cristã no mundo globalizado. Nosso quadro teórico é a teologia sistemática e a hermenêutica teológica. Apesar de ser uma obra introdutória (oferecendo uma visão panorâmica das principais teorias envolvidas na discussão), ela também pretende oferecer soluções para os problemas propostos, seja por fazer delas uma crítica baseada na Escritura, seja por desenvolver uma teoria bíblica para substituí-las, naquilo que não estão concordes com o texto bíblico. Nossa conclusão é contra o pluralismo e o inclusivismo. O pluralismo não é útil prática ou teologicamente falando. Com o objetivo de tratar todas as religiões como parceiras no mundo globalizado, ela destrói suas particularidades, esvazia seu discurso e experiência religiosa de um significado soteriológico factual e com isto nega sua relevância. Contra o inclusivismo institucional, nós usamos argumentos históricos tentando levar a Igreja de volta aos termos pré-constantinianos. Buscando nos evangelhos e no NT elementos para a construção de uma teologia bíblica das religiões, defendendo um tipo de inclusivismo, cujos esforços são para incluir pessoas não outras instituições. O objetivo desta investigação é criar uma proposta teórica de teologia das religiões biblicamente fundamentada, que mantenha intacta nossa obrigação de pregar, mas também o respeito e a consideração pelo outro religioso, não considerando as culturas inferiores ou sem valor, nem fazendo da pregação uma forma de calar as outras vozes. 3 Abstract This research deals with the complex matter of Theology of Religions, with special emphasis upon the salvation in post-modern world and the non Christian religions’ role in this, as well the importance and relevance of Christian message in a pluralistic world. Our frameworks are systematic theology and hermeneutic theology. Despite of being an introductory work (offering a survey of more important theories and methodological concepts), it intend to offer solution for many of the problems discussed, either for doing a biblical critic of the shown theories or developing a biblical theory to replace those found not fitting. Our conclusion is against pluralism and inclusivism in defense of biblical inclusivism. Pluralism is not useful, practical or theologically speaking, for in order to treat all religions as equal partners in global world, it dismiss all theirs idiosyncrasies, empts their addressing and experience of factual meaning and denies their relevance. Against institutional inclusivism, we argue with historical arguments trying to carry up the Church back into pre-constantinian terms, searching in the gospels and NT elements for building a biblical theology or religions, defending a kind or inclusivism which efforts to include people not institutions. The aim of this investigation is a proposal of a theory for theology of religions biblically grounded, which keep our preaching obligation, as well the respect and consideration for the religious other, not considering its culture inferior or valueless, nor making preaching a form of intolerance against other religious institutions. 4 Sumário 1. Introdução. A odisseia pós-moderna no oceano religioso..………………………………………………..7 1.a. Entre Cylla e Caribde...........................................................................................................8 1.a.1. A demanda empírica..........................................................................................10 1.a.1.a. Secularismo..........................................................................................11 1.a.1.b. Pós-modernidade................................................................................18 1.a.1.c. Globalização.........................................................................................25 1.a.1.d. Mundialização do Cristianismo............................................................28 1.a.1.e. O testemunho da história....................................................................33 1.a.2. A demanda escriturística....................................................................................35 1.a.2.a. Hermenêutica Teológica......................................................................37 1.a.2.a.1. Fenomenologia da religião....................................................38 1.a.2.a.2. Hermenêutica Pós-moderna.................................................42 1.a.2.a.3. Hermenêutica normativa......................................................45 1.b. Status questionis da Teologia das Religiões......................................................................46 1.b.1. Introdução..........................................................................................................46 1.b.2. Algumas taxonomias classificatórias..................................................................56 2. Capítulo II. Exclusivismo.......................................................................................................64 2.a. Introdução.........................................................................................................................64 2.b. Igreja Pré-constantiniana..................................................................................................66 2.b.1. Evangelhos: textos polêmicos............................................................................67 2.b.2. O contexto religioso neotestamentário.............................................................69 2.c. Exclusivismo Católico Romano..........................................................................................79 2.d. Exclusivismo Protestante..................................................................................................81 2.d.1. Karl Barth............................................................................................................83 2.d.2. Emil Brunner.......................................................................................................88 2.e. Exclusivismos de Organizações Ecumênicas, Evangélicos, Independentes e Pentecostais.............................................................................................................................91 2.e.1. Organizações Ecumênicas..................................................................................91 2.e.2. Evangélicos…………………………………………………………………………………………………….97 2.e.2.a. Robert Sproul e Ronald Nash...............................................................99 2.e.2.b. Gabriel Frackre..................................................................................103 2.e.2.c. John R. W. Stott e J. E. Sanders..........................................................104 2.e.3. Independentes.................................................................................................108 2.e.3.a. Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias...........................109 2.e.3.b. Igreja Adventista do Sétimo Dia........................................................110 2.e.4. Pentecostais.....................................................................................................111 2.e.4.a. Veli-Matti Kärkkäinen........................................................................112 2.f. Conclusão.........................................................................................................................1143. Capítulo III. Inclusivismo....................................................................................................115 3.a. Introdução.......................................................................................................................115 3.b. Inclusivismo Evangélico-Pentecostal..............................................................................118 3.b.1. Clark Pinnock....................................................................................................119 3.b.2. Amos Yong........................................................................................................124 5 3.c. Inclusivismo Católico Romano.........................................................................................130 3.c.1. Karl Rahner.......................................................................................................133 3.c.2. Jacques Dupuis.................................................................................................136 3.c.3. Edward Schillebeckx.........................................................................................140 3.d. Conclusão........................................................................................................................144 4. Capítulo IV. Pluralismo.......................................................................................................145 4.a.Introdução........................................................................................................................145 4.b. Pluralismo Particularista.................................................................................................146 4.b.1. Jüngen Moltmann............................................................................................149 4.c. Pluralismo Sintético…………………………………………………………………………………………………….154 4.c.1. John Hick………………………………………………………………………………………………………162 4.c.2. Paul Knitter…………………………………………………………………………………………………..170 4.c.3. Claude Geffré……………………………………………………………………………………………….175 4.c.4. Raimon Panikkar…………………………………………………………………………………………..179 4.c.5. Michel Amaladoss…………………………………………………………………………………………187 4.c.6. Hans Küng…………………………………………………………………………………………………….190 4.c.7. Stanley Samartha………………………………………………………………………………………….194 4.d. Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………..196 5. Capítulo V. O “reino de Deus” e a Teologia das Religiões..................................................201 5.a. Introdução.......................................................................................................................201 5.b. Escatologia da época de Jesus........................................................................................204 5.b.1. Essênios............................................................................................................212 5.b.2. Profetas de sinais.............................................................................................214 5.b.3. Profetas da destruição.....................................................................................214 5.b.4. Fariseus............................................................................................................216 5.b.5. Zelotes..............................................................................................................222 5.c. A escatologia de Jesus.....................................................................................................224 5.c.1. O conceito de santificação de Jesus.................................................................226 5.c.2. A taumaturgia de Jesus.....................................................................................236 5.d. Jesus e os Gentios...........................................................................................................242 5.d.1. A mesa aberta e o banquete escatológico.......................................................246 5.d.2. A purificação do templo...................................................................................250 5.d.3. O julgamento ético-práxico..............................................................................252 5.d.4. Abba.................................................................................................................254 5.e. Os Gentios e o programa missiológico de Jesus na redação das Fontes.........................256 5.e.1. Marcos..............................................................................................................256 5.e.2. Mateus.............................................................................................................260 5.e.3. Lucas-Atos........................................................................................................265 5.e.4. João..................................................................................................................267 5.f. Outras convergências neotestamentárias.......................................................................273 5.f.1. Paulo.................................................................................................................273 5.g. Conclusão........................................................................................................................277 6. Capítulo VI. Conclusão Final...............................................................................................281 7. Referências.........................................................................................................................291 6 Abreviaturas AR Approaching religion Ag. Ap. Against Apion Ant. Antiguidades Judaicas ATh Acta theologica BR Bible Review BEThS Bulletin of the Evangelical Theological Society BThT Biblical Theology Bulletin CBR Currents Biblical Research CR Cerpit Review Ciberteologia Revista de Teologia e Cultura Concilium International Journal of Theology CTP Cadernos de Teologia Pública EA Estudio Agustiniano EAPR East Asian Pastoral Review EF Educação e Filosofia EMQ Evangelical Missions Quarterly ER Ecumenical Review Études Guerra Guerra dos Judeus Horizons HTR Harvard Theological Review HTS Hervormde Teologiese Studies IR An International Review IRM International Review of Mission JES Journal of Ecumenical Studies JETS Journal of the Evangelical Theological Society Jeevadhara JHCS Journal of Hindu-Christian Studies JTR Journal of Theological Reflection L&S Letter & Spirit LS Louvain Studies Micromega Missiology An International Review NIB New Interpreters Bible NRT Nouvelle Revue Théologique Numen Revista de Estudos e Pesquisa da Religião PI Promotio Iustitiae Ribla Revista de interpretação bíblica latino-americana RTL Revue Theologique de Louvain RHPR Revue du Histoire et Philosophie Religieuse RP Raisons Politiques RS Religião e Sociedade ReS Religious Studies Spiritus SM Studia Missionalia ST Selecciones de Teología ST Scripta Theologica. Teocomunicação ThT Theology Today TC Teología y Cultura TD Theology Digest TJ Trinity Journal TS Theological Studies TTJ Torch Trinity Journal TV Teologíay Vida VE Verbum et Ecclesia Voices WFI World Faiths Insights As abreviaturas da Bíblia seguem as da versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida. 7 INTRODUÇÃO 1. A odisseia Pós-moderna no oceano religioso 1. a. Entre Cylla e Caribde Como lembra Paul Ricoeur, o Cristianismo nasceu sob o signo da hermenêutica1. Primeiramente, porque vem ao mundo como interpretação do Antigo Testamento à luz do advento de Jesus Cristo e de sua pregação – sem esquecer que o próprio AT também vem à existência como esforço de entender a ação de Deus em Israel; depois, porque esta mesma interpretação canônica agora dirige um convite aos ouvintes de outros tempos que também interpretem sua existência à luz do texto. Portanto, temos aí uma cadeia de interpelações cíclicas em que Deus se manifesta aos homens, chamando-os a conhecê-lo e à sua salvação, e, por outro lado, cada nova geração também interroga a Palavra em busca da compreensão. Isto ocorre porque nem o texto que questiona os homens nem estes que são questionados são entidades genéricas. A Palavra de Deus foi registrada e transmitida por homens santos de certo lugar e tempo e não primariamente destinada a seus ouvintes atuais. Cada leitor que não pertence a este círculo hermenêutico original é convidado a empreender novamente o vórtice hermenêutico, infelizmente, descendente, num processo dialético, como entendido por Sto. Agostinho: (crê para compreender e compreende para crer) crede ut intelligas et intellige ut credas. Em suma, cada novo tempo faz novas perguntas ao texto bíblico, para que, pelas inesgotáveis riquezas da revelação divina, possam ser respondidas, e é esta traducibilidade, ou seja, esta capacidade de falar a todos os homens, independendo de tempos e lugar (de suas condições históricas, sociais, econômicas e geográficas), que possibilitou ao Cristianismo tornar-se a religião de maior expansão mundial. 1 Paul Ricoeur. Le conflit des interprétations. Essais d’Hermeneutique (Paris, Éditions du Seuil, 1969), p. 372. 8 Entretanto, uma conclusão tão pronta e evidente esconde perigos. Por exemplo, em que medida deve-se fazer depender a mensagem bíblica da capacidade ou incapacidade de seus leitores de interpretá-la? A traducibilidade da Escritura não pode ser entendida em termos meramente humanos. A incapacidade pode resultar da contumácia e rebeldia dos ouvintes (por causa de sua condição caída e parcialmente destituída da imago Dei) e não da falta de habilidade contextualizadora dos pregadores. Também pode ser agravada pela rigidez de instituições seculares e religiosas e de contextos histórico-sociais desfavoráveis a certas verdades. Ou seja, os questionamentos humanos à Palavra de Deus não devem ser considerados todos legítimos. Cada nova questão imposta pelos tempos à Palavra deve ser examinada pela hermenêutica teológica, para que os homens e as culturas também possam ser postos em questão por ela. Dentre as novas questões que os tempos nos trazem, queremos destacar em especial uma referida ao âmago mesmo do Cristianismo, porque lida com sua identidade e seu legado num contexto onde tais coisas têm sua importância limitada ao âmbito afetual: o mundo pós- moderno. Nesta sociedade de relativismos tão onipresentes cabe perguntar: o Cristianismo ainda possui uma mensagem sui generis a dar ao mundo, ou, pelo contrário, sua mensagem religiosa é uma entre outras? Mantida a singularidade, impõe-se nova indagação: como pode o evangelho relacionar-se com os ensinos das demais religiões sem ofendê-las e sem ofender aqueles que, ainda acreditando-se cristãos, creem que o multiculturalismo e o pan- ecumenismo são valores? Com justa razão diz-se que o problema hermenêutico atual é um “impasse de área”2, dado o número extraordinário de teorias antagônicas que se apresentam para resolver o proposto problema. Alguns pensam que a mensagem cristã deve adotar um tom mais ameno e conciliador, o que significa, por exemplo, considerar legítimos os esforços salvíficos das 2 Michel Barnes. Theology and the dialogue of religions (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), p. 13. 9 outras religiões. Outros creem que fazer isto implicaria tornar imperativo o descarte de todas as passagens bíblicas que enfatizem a especificidade, a singularidade e exclusividade religiosa do Cristianismo, o que não estão dispostos a fazer. E aqui o impasse: não podemos fazer uma coisa ou outra, mas tampouco deixar de fazer algo. Esta necessidade de contextualização da mensagem cristã nos empurra para uma práxis que ainda hoje não conta com suficiente iluminação teórica, ainda que tão necessária. Lidamos com duas demandas igualmente importantes que exigem de teólogos, missiólogos e evangelistas uma solução salomônica, cujo objetivo é a preservação da vitalidade e da validade do Cristianismo. Por vitalidade entende-se a capacidade de falar ao coração dos homens de todas as eras; por validade, a habilidade de dizer a mesma coisa aos homens de todas as eras, a saber, que todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm. 3: 23). Esta não é uma situação inteiramente nova. Sempre que quando mudanças ideológicas muito profundas são experimentadas nas sociedades humanas a hermenêutica teológica é solicitada. O diferencial é que hoje o cumprimento da missão de pregar o evangelho ao mundo globalizado está revestido de tantas dificuldades que a prudência nos recomenda o uso da palavra crise. Pois para manter a relevância da mensagem cristã devemos atender a ambas as exigências: a contextualização e a preservação, numa medida de conciliação que anda longe do consenso. A propósito, há os que preferem ver na questão acima um problema sem solução, que é bem definido por meio de um oxímoro: ou negamos a essência das Fontes _discurso absoluto sobre Deus e sobre a condição humana, e isto o evangelho nos proíbe categoricamente; ou abrimos mão da proclamação da mensagem ao mundo, e isto o evangelho nos obriga terminantemente. Dito de outra forma: (a) entregamos as Fontes pela rejeição de seu exclusivismo essencial, na tentativa de tornar o evangelho relevante para o homem 10 contemporâneo, então, por este mesmo feito, fazemo-la irrelevante por relativizá-la; ou (b) não as entregamos e com isto fazemo-la perder de igual modo a relevância por incompatibilizá-la com o entendimento de seu ouvinte contemporâneo. Nos relatos homéricos há uma passagem que já serviu de ilustração para muitos discursos e que agora cai-nos como luva. Trata-se da difícil travessia de Ulisses, pelo estreito de Messina, entre dois rochedos onde viviam duas criaturas monstruosas, cujos nomes eram, Cylla e Caribde. O primeiro rochedo escondia um monstro cujo tragar produzia um sorvedouro onde desapareciam navios juntamente com suas tripulações; o segundo, ocultava uma criatura, de quem só se conheciam os longos braços arrebatadores dos marinheiros atarefados em livrar a embarcação de Cylla. Este episódio, citado mais de uma vez para ilustrar dilemas difíceis, quando algum tipo de consequência funesta é inevitável (cabendo, portanto, fazer a opção menos danosa) serve bem para representar a atual situação do Cristianismo, que, por um lado não pode deixar de responder à situação na qual está seu ouvinte; por outro, tampouco pode entregar as Fontes. Duas exigências, duas demandas, que impelem a fé cristã a se repensar e a se reposicionar face ao mundo. (a) Uma exigência empírica: o mundo a que deve dirigir uma mensagem; e (b) uma demanda teológica: a necessidade de conservar a validade de suas Fontes, que recém completam três milênios e seis séculos de existência e nunca antes tão questionadas. 1.a.1. A demanda empírica O que aqui se chama demanda empírica refere-seà necessidade de a mensagem cristã adequar-se a seus ouvintes no transcurso das eras que atravessa e das que ainda atravessará até que todos a tenham ouvido. Nenhum período da história tem sido mais pródigo de tantas cosmovisões; nenhum, tão repleto de opções ideológicas. Nenhuma delas, entretanto, parece 11 merecer maior e mais urgente consideração do que o problema da relação do Cristianismo com as outras religiões num ambiente globalizado. Antes, porém, de seguir nesta direção, faz-se necessário um breve exame de demandas de outros tempos, que, somadas a esta, formam a matriz cultural atual. Não caímos no estado atual de paraquedas. O que somos hoje é a soma do que vimos sendo há duzentos anos. Do ponto de vista histórico-ideológico nossa atual condição é complexa e merece consideração cuidadosa. O entendimento dos fenômenos analisados ficaria muito prejudicado não fossem considerados também fatores que, se hoje não estão mais na ordem do dia, permanecem influenciando o comportamento social. Com efeito, as contradições de nosso tempo são produto desta mescla de elementos que não se excluem, mas se completam e se unem para tornar mais complexa a nossa missão de entender o que está acontecendo ao mundo ao qual devemos uma mensagem. 1.a.1.a.Secularismo A primeira demanda empírica de nosso tempo é o secularismo, processo de obsolescência das instituições religiosas ora em curso no Ocidente. Seu fiat perde-se nos alvores do século XIX, quando o Iluminismo já se entronizara como ideologia dominante no Ocidente. Há uma expressão weberiana que pretende esclarecer em parte o que nos ocorreu: “o desencantamento do mundo” (die Entzauberung der Welt), entendido como a racionalização das relações sociais e a consequente separação da dominação estatal daquela exercida pelas instituições religiosas. Esta racionalização, por sua vez, teria sido resultado de uma racionalização da religião cristã provocada pelo aparecimento de um Protestantismo de natureza logocêntrica, em que aspectos litúrgicos e cúlticos característicos do Catolicismo Romano perdem importância e espaço. Segundo o entendimento de M. Weber os homens neste ambiente racionalista e dessacralizado são levados a destituir o discurso religioso de sua 12 autoridade, substituindo-o pelo discurso de outras instituições societárias mais seculares: as instituições políticas, produtivas, acadêmicas e midiáticas. Em outras palavras: [Secularização é] um processo pelo qual o abrangente e transcendente sistema religioso é reduzido nas sociedades funcionalmente diferenciadas a um subsistema ao lado de outros subsistemas, perdendo neste processo sua prerrogativa de incluir os outros subsistemas. Como resultado o significado social da religião é grandemente diminuído3. O processo não ocorreu da mesma forma e com a mesma intensidade em todos os lugares da Europa. Na França foi motivado por um anticlericalismo herdeiro da Revolução Francesa, como expressão do repúdio à aliança do alto clero Católico Romano com a nobreza francesa, cujo consórcio produziu o empobrecimento da população. Na Alemanha é resultado de uma longa linha de defensores da autonomização e individualização da religião que começa por Martinho Lutero, passa por Kant e termina na crítica textual dos séculos XVIII e XIX. Na Inglaterra foi produto de uma teologia da prosperidade de que nasceu a Revolução Industrial e cujas origens radicam no Calvinismo4. Obviamente, trata-se de ênfases histórico- sociais e não de exclusividades dos países acima relacionados. Peter Berger aduz a partir da perspectiva da sociologia do conhecimento que o principal problema da religião cristã é uma “perda de plausibilidade”, explicada da seguinte forma: a principal função da religião é a “cosmificação” da realidade, ou seja, a organização do mundo humano que inclui tanto o mundo natural como o social. É a constituição de um mundo de significados que serve para legitimar a lei e a ordem societária e dar à sociedade e à vida dos indivíduos um sentido que ultrapasse o mundo concreto e caótico. Ocorre que em nossos dias o aspecto mais importante desta cosmificação não ocorre mais por meio do discurso religioso, 3 K. Dobbelaere apud Katarzyna Zielinska. “Concepts of religion in debates on secularization” (AR, volume 3, no. 1, 2013) , p. 27. 4 Max Weber. A ética protestante e o “espírito” do Capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). 13 mas através da linguagem científica5. Parece que a religião perdeu a capacidade de dar uma visão unificadora da realidade. Os mitos científicos têm para o homem contemporâneo mais plausibilidade porque parecem satisfatórios na realização desta tarefa. Com efeito, a cosmificação religiosa é a modalidade mais antiga e eficaz6 e tem acompanhado a humanidade desde os seus primórdios. O Ocidente, porém, a partir do Renascimento, o vem abandonando gradativamente. No início foi o monólogo religioso do Teocentrismo medieval, depois adotou paralelamente motivos seculares que caracterizaram o Antropocentrismo renascentista. A mudança paradigmática ocorre por uma divinização do humano e por uma humanização do divino em todas as áreas da vida social: na política, na filosofia, na literatura, nas ciências e nas artes. A decadência espiritual da Igreja Católica, a opulência material das cidades e o consequente afrouxamento dos estames societários da Idade Média, o desenvolvimento das ciências da natureza e a redescoberta dos clássicos gregos, contam-se entre os principais fatores que levaram a alta sociedade desta época a uma espécie de ateísmo prático. P. Berger diferencia o secularismo deles do nosso dizendo que o secularismo contemporâneo atingir todas as camadas populacionais do mundo Ocidental e não apenas a parte mais educada da sociedade, como é o caso renascentista: Provavelmente, pela primeira vez na história, as legitimações religiosas do mundo perderam sua plausibilidade não apenas para uns poucos intelectuais e outros indivíduos marginais, mas para amplas massas de sociedades inteiras. Isto ocasionou uma crise aguda não apenas para a nomização das grandes instituições sociais, mas também para a das biografias individuais. Em outras palavras, surgiu um problema de ‘significado’ tanto para instituições como o Estado e a economia, quanto para as rotinas ordinárias da vida cotidiana. O problema é claro, tem se colocado de modo intenso para vários teóricos (filósofos, teólogos, psicólogos, etc.), mas há boas razões para se crer que também tem sido bastante agudo para pessoas comuns que 5 P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião (São Paulo: Edições Paulinas, 1985), p. 40. Cf. Lestor R. Kurtz. Gods in the global village. The world’s religion in sociological perspective (Thousand Oaks, CA: Pine Forge Press, 1995). 6 Ibid.. 14 não são dadas a especulações teóricas e apenas procuram resolver as crises de suas próprias vidas. 7 Outro sociólogo do conhecimento, também de origem germânica, Niklas Luhmann opina que não se trata apenas de a religião ter perdido sua capacidade “nomizante”8, haja vista não ser mais a principal agência de construção ideológica da sociedade. Sua conclusão é ainda mais pessimista. Na atual fase da história humana o sistema religioso entra em fase terminal, havendo perdido sua autonomia em relação aos outros sistemas. O subsistema religioso tende daqui em diante a ter seu espaço invadido pelos outros subsistemas (política, arte, ciência, medicina, etc.), os quais lhe subtraem gradativamente as atribuições até que nada mais lhe reste, senão uma vaga função interpretativa, que melancolicamente se reduz na distinção entre o absoluto do relativo9, com quase nenhuma aplicação prática. Luhmann está correto, a visãoholística do mundo provida pela religião perdeu-se e foi substituída pela visão atomizada da ciência. A religião já não consegue reunir em seu discurso toda esta realidade fragmentada do mundo contemporâneo e, pior, é atacada de todos os lados. Mas o Cristianismo não pode assistir sua expulsão da vida do Ocidente de braços cruzados. Muitos teólogos procuraram dar uma resposta à nova situação cultural e social. Com este mesmo propósito, desde a segunda metade do século XIX, a teologia Protestante europeia, principalmente a alemã, já procurava alinhar-se ao projeto iluminista de Kant e Hegel, dando nascimento ao que mais tarde ficaria conhecido como Teologia Liberal. O resultado, infelizmente, não foi ter tornado a mensagem cristã mais aceitável na Alemanha secularizada, antes expandiu o secularismo para dentro das igrejas protestantes. Mais tarde, na virada do século XIX para o XX, o fracasso moral e espiritual desta geração de teólogos tornou-se patente pelo fato de seus mais ilustres membros terem subscrito um vergonhoso 7 P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, p. 137. 8 Termo originário da sociologia de E. Durkheim cujo radical é nomos, lei, e quer dizer que a principal função da sociedade é criar um sentido de ordem e de ética comportamental que biologicamente o ser humano não possui. A tese de Berger seguindo a sociologia clássica é a de que a religião é a principal força nomizante da sociedade. 9 Roberto Cipriani. Manual de Sociologia da Religião (São Paulo: Paulus, 2007), p. 305. 15 manifesto de apoio ao belicismo imperialista alemão no alvorecer da Primeira Grande Guerra10. A partir deste fato ultrajante surge um grupo de teólogos decididos a retomar os caminhos da teologia no lugar que os liberais haviam os haviam abandonado: o texto bíblico. Os dialéticos (F. Gogarten, E. Thurneysen, R. Bultmann, K. Barth e E. Brunner), cada um a seu modo, tentaram responder ao desafio de pregar a Palavra de Deus em um mundo secularizado. A princípio, o que os moveu foi uma atitude profética, instilada pelo socialismo religioso (Herman Kutter e Christoph Blumhardt). Além disso, houve o influxo da filosofia existencialista de S. Kierkegaard e a liderança teológica de Karl Barth. Mais tarde, porém, cada um adotou sua medida de conciliação com o Iluminismo e seu próprio caminho teológico. Uma parte da teologia Católica chamada progressista também tomou para si o mesmo encargo. Adotando uma perspectiva menos radical, a intenção era a mesma. Aproximar a pregação da Palavra de Deus dos homens do século XX. Promover a tradução de doutrinas historicamente sustentadas pelo Catolicismo Romano para uma linguagem supostamente mais contextualizada e compreensível ao homem contemporâneo e a seu modo de ver a realidade e o mundo. Entre os vários teólogos católicos que seguiram esta linha pode-se citar Edward Schillebeeckx, teólogo belga de língua flamenga, para quem o ouvinte da Palavra contemporâneo estaria sofrendo de “um déficit de experiência”11. Para ele a revelação tem duas fontes empíricas, a experiência originária dos escritores dos textos bíblicos e a experiência dos leitores modernos. Portanto, para se desvendar o sentido da Escritura deve-se 10 Rosino Gibelini. A Teologia do século XX (São Paulo: Loyola, 1998), p. 18. 11 E. Schillebeeckx. Jesús, la historia de un viviente (Madrid: Ediciones Cristianidad, 1981), p. 58. 16 fazer uma correlação entre estas duas experiências12. Se ela não for feita, como costuma acontecer em nossos tempos, isto é indício de uma perda da dimensão hermenêutica do Cristianismo: A conversa sobre Deus e a salvação em Jesus, é expressa nos termos de uma cosmovisão de outros tempos, não fazendo sentido e nem sendo portadora de significado para os seres humanos, do ponto de vista intelectual ou prático13. A seu ver, a teologia esquecera que tanto o AT como NT são interpretações: o primeiro, da ação divina na história de Israel; o segundo, interpretação do AT à luz do evento escatológico de Cristo14. Para Schillebeeckx, portanto, a mesma busca de compreensão que nossos antepassados espirituais empreenderam deve acompanhar as leituras contemporâneas do Novo Testamento, ou seja, devemos interpretar a Escritura à luz de nossa própria condição de habitantes de um mundo secularizado. K. Rahner, um dos arquitetos do concílio Vaticano II, denunciou a teologia católica de seu tempo como portadora de uma doença teológica que ele chama de calcificação, endurecimento doutrinal (Fixierung). No século XIX a Igreja Católica estava acuada por ataques liberais (instilados pelas ideias de J. Locke) contra seus privilégios políticos. Esta situação de defensiva promoveu a hegemonia de um movimento ultraconservador na Igreja que ficou conhecido pela posteridade como “a era dos Pios”, responsável por várias ações autoritárias: o Silabus errorum (lista de livros proibidos pela Igreja por conterem ideias liberais), a declaração da infalibilidade do Magistério (ex cathedra), a proibição da diversidade teológica e o retorno do Tomismo (Neotomismo) à ordem do dia na filosofia da Igreja, etc. 12 E. Schillebeeckx. Jesus and the Christ (New York: Crossroads, 1981), p. 50. 13 E. Schillebeeckx apud Marguerite Abdul-Masih. Edward Schillebeeckx and Hans Frei. A conversation on method and Christology (Toronto: Canadian Corporations for Studies in Religion, 2001), p. 59. 14 Rosino Gibelini. A teologia do século XX, p. 326. 17 Era uma reação natural a Igreja Romana erguer barreiras teológicas contra o mundo que a agredia15 e procurasse proteger seu status quo das investidas de setores da sociedade que desejavam diminuir ainda mais sua participação na vida civil, como viria a ocorrer com a laicização do Estado. Mas, para Rahner, teria também aumentado o isolamento do Catolicismo, fazendo-o perder sua capacidade hermenêutica. O medo do modernismo fizera-o parar de pensar, limitando-o à repetição de velhas fórmulas confessionais e conciliares, como se isto fosse sua raison d’etre. Deveria apenas tê-las tomado como ponto de partida para novas reflexões, conforme os tempos fossem exigindo16. E não sua transformação em dogmática morta, fiel à letra, mas desinteressada da realidade humana17. Em relação à Schillebeeckx, o projeto hermenêutico de Rahner, kantianamente, dá um passo atrás. Seu interesse teórico é a pré-condição do homem como ouvinte da Palavra, ou seja, a investigação sobre o que produz nos humanos a disposição para a escuta da Palavra de Deus. A preocupação de Rahner é o incondicionado divino e o a priori humano. Esta perspectiva antropológica o põe a salvo de cooptações ideológicas que, por exemplo, são riscos reais no projeto hermenêutico de E. Schillebeeckx. Rahner também percebe que os instrumentos teóricos fornecidos pelos conceitos neotomistas de seus colegas não lhe dariam condições de levar a cabo a tarefa e assim decide substituí-los por ferramentas conceituais mais adequadas aos novos tempos: Kant, os existencialistas e Heidegger, para assim abordar a compreensão por um nível mais profundo. Em suma, em hermenêutica “não se trata apenas de saber a fé, mas de compreender a vida”18. A oclusão semântica da mensagem cristã que vem aqui deplorada também foi preocupação de Hans Küng. A solução proposta, entretanto, é a de um historiador do 15 Dermot Lane. The Experience of God: An Invitation to do Theology (New York: Paulist Press, 1981), p. 1. 16 Karl Rahner apud Érico J. Hammes. “Conceito e missão da teologia em Karl Rahner” (CTP, Ano 1 . Nº 5, 2004), p. 9. 17 Idem apud ibidem. 18 Rosino Gibelini. Op. cit., p. 226. 18Cristianismo, e não a de uma hermenêutica que corre atrás de novidades seculares, ou de um contínuo aggiornamento da mensagem cristã tão em voga em sua época. A nova hermenêutica deveria se inspirar nas fontes primordiais, longe da influência e interferência dos Concílios e do Magistério da Igreja, segundo ele, as raízes dos dogmatismos da atualidade: Não seria apropriado numa nova era, em vez de se estar simplesmente repetindo os velhos dogmas helenísticos, concentrarmo-nos outra vez na mensagem do Novo Testamento e interpretá-la de novo para os cristãos contemporâneos, tal como os teólogos helenistas uma vez corretamente fizeram para seu tempo?19 Para Küng, a era de ouro da hermenêutica bíblica foi o segundo século de nossa era. Tudo o que se situe antes e depois, será, respectivamente, semitismo ou helenismo, ambos classificáveis como abordagens dogmáticas das Fontes, haja vista o enorme número de heresias que estes dois tempos produziram. De fato, a verdadeira abertura para o outro, tendo como projeto a inclusão religiosa do mundo não cristão, só ocorreria verdadeiramente com a teologia dos Pais Apologetas (Justino, Irineu e Clemente). Com isto o autor de Ser Cristão já dá os primeiros passos no terreno da Pós-modernidade apesar de inicialmente se situar entre aqueles cuja preocupação era o discurso da ciência. 1.a.1.b. Pós-modernidade Alguns anos depois de as preocupações dos teólogos com o secularismo começarem a ocupar as páginas da literatura especializada um novo e inquietante desafio surge. Desta vez, por um excesso de experiência não por falta. Ou seja, a nova dificuldade hermenêutica do Cristianismo, ironicamente, ocorre num contexto de “revanche do sagrado”20, quando o interesse pela espiritualidade retorna em toda sua pujança. É a assim chamada Pós- modernidade. 19 Hans Küng. Christianity. The religious situation in our time (London: SCM Press, 1995), p. 95. 20 Leszek Kolakowski. “A revanche do sagrado na cultura profana” (RS, Maio (1), 1977), pp. 153-162. 19 É sempre difícil apontar fatores causais nas Ciências Humanas, mas pode-se dizer que a Pós-modernidade é uma ambiência cultural produzida em grande parte pelos fracassos ideológicos sucessivamente apresentados no século XX como solução para os problemas humanos (Nazismo, Fascismo, Comunismo, Capitalismo). Reflete também o nascimento de uma consciência holística que surgiu como reação ao excesso de fragmentação epistemológica da ciência; o esgotamento do dogmatismo da Modernidade e de outros ‘ismos’ éticos e estéticos derivativos; o fim do humanismo, cujo canto de cisne foi J. P. Sartre; o surgimento de epistemologias fracas, mais ou menos ligadas às mudanças na forma de ver a matéria e a energia (Eisenstein, Einstein, etc.). Resumindo, é difícil arrolar tudo o que concorreu para o nascimento da Pós- modernidade. Contudo, diante de tal massa de fatores, pode-se suspeitar que a Pós- modernidade seja uma espécie de ressaca da modernidade, “uma forma extrema de decomposição do modelo racionalista da modernidade”21. Como se os destroços de tudo o que este modelo produziu repousassem agora numa imensa praia por onde passeiam os contemporâneos. Os conceitos, as ideias, os valores, todos os produtos de uma era estão aí a degradar-se ao sol já posto da razão calculadora, sob cujos raios gélidos já estarão amadurecendo as sementes da nova barbárie, parafraseando a bela imagem filosófico- profética de Horkheimer22. Com efeito, do ponto de vista social, está em curso um processo de dissociação, desencadeado pela degradação das instituições criadas quando os grandes Estados nacionais foram inventados no século XVI. A Igreja teve suas funções reduzidas na nova composição do Estado laico. As instituições políticas que aparentemente haviam herdado dela as prerrogativas ideológicas sofreram em Maio de 1968 na França um golpe do qual ainda não se 21 Allain Touraine. Crítica da modernidade (Petrópolis : Vozes, 2002), p. 266. 22 Max Horkheimer. O Conceito de Iluminismo (São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983), p. 109. 20 recuperaram, em que própria democracia perdeu sua representatividade e os dogmatismos ideológicos não interessam a mais ninguém. As instituições sociais antes garantes da razão instrumental perderam também sua capacidade de lastrear o processo de nomização, transferindo ao indivíduo, por inércia, este encargo: A situação do pós-social é o produto de uma completa separação entre a instrumentalidade e o sentido, a primeira é gerida por empresas, econômicas ou políticas, em concorrência entre elas nos mercados; o segundo, tornou-se puramente privado, subjetivo23. Este estado de impermanência que envolve tudo o que se encontra distraidamente atirado à nossa frente tem sua explicação filosófica no famoso conceito de Lyotard sobre “o fim das metanarrativas”24. As narrativas legitimantes (a ciência, a Revolução Industrial, o conhecimento acadêmico, o progresso, a moral burguesa, o Iluminismo, etc.) sobre as quais os modernos pretendiam colocar os fundamentos da razão, fora da transitoriedade dos discursos e ali reproduzir um raciocínio absolutamente isento, capaz de gerar verdades certas, seguras e indubitáveis encontram seu final quando se percebe que a mera possibilidade de existirem é uma ilusão. Com a virada linguística promovida por Wittgenstein ao criticismo kantiano, chegou-se à conclusão cética de que não há um fora da linguagem epistemologicamente falando (e se houvesse ninguém poderia saber, já que ninguém pode pensar sem linguagem). Consequentemente, é impossível qualquer tipo de dogmatismo. A certeza e a verdade só são possíveis dentro de sistemas linguísticos fechados; o erro, idem. Derrida, seguindo o conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem, dirá “não há um fora-do-texto” (Il n’y a pas de hors- 23 Allain Touraine. Crítica da Modernidade, p. 198. 24 As metanarrativas, ou seja, as narrativas das narrativas, e são assim chamadas por terem a pretensão de se colocarem fora de si mesmas, num plano racional superior, sobre uma plataforma veritativa universal e transcendental, de onde supostamente poderiam julgar o transcurso da história humana. Cf. Jean-François Lyotard. La condición postmoderna (Madrid : Ediciones Cátedra, 1987), p. 4. 21 texte), o que significa que “não há nada de real que não seja textuado, construído, simbolizado e contextuado – interminavelmente”25. Resumindo, o ser humano está reduzido a uma imanência miseravelmente limitadora de sua capacidade de raciocinar e julgar. Aos homens, portanto, só restam razões menores para tomar decisões éticas, religiosas e estéticas e mesmo justificar sua existência: razões pessoais, afetuais. Sua condição de juiz do universo foi melancolicamente trocada pela de um caminhante solitário rodeando como “um turista o jardim da história, que considera um depósito de máscaras teatrais que podem ser usadas e abandonas conforme o seu prazer, o seu gosto, e a sua utilidade”26 . Apesar da falta de rigor de Lyotard ao falar do fim das metanarrativas, pela utilização de um argumento auto-refutante27, a condição pós-moderna pode ser definida como o naufrágio de um sujeito que sem referenciais já não consegue manter-se à tona da história e da própria realidade. Na verdade, a rigor, do ponto de vista epistemológico, não pode nem mesmo ser considerado um sujeito. Roland Barthes, interpretado além de si mesmo, pode dizer que para os pós-modernos o homem como sujeito deixa mesmo de existir, nada sendo exceto o que as máscaras que usa digam que é. A inferência parte da conclusão literária de Barthes sobre a morte do autor, presente em célebre passagem onde ele interpreta as observações de H. Balzacsobre a condição feminina ínsitas em Ilusões Perdidas. Segundo sua leitura, elas são apenas 25 Joseph Margolis. Interpretation radical but not unruly . The new puzzle of the arts and history (Berkeley CA: University of California Press, 1995), p. 172. 26 Rossano Pecoraro. Niilismo e (pós) modernidade: introdução ao“ pensamento fraco” de Gianni Vattimo (Rio de Janeiro: Editora da Puc, 2005), p. 70. 27 Segundo J. Habermas, Lyotard, ele mesmo, oferece com este argumento uma metanarrativa que pode ser chamada ironicamente de “a grande narrativa do fim das grandes narrativas”. Habermas chama nossa atenção para o fato de que o desmascaramento dos críticos da Escola de Frankfurt ou a desconstrução levada a efeito pelos pós-modernos só seria possível se eles possuíssem um padrão racional transcendental, ou seja, uma teoria que revelasse as máscaras da ideologia (Richard Rorty. “Habermas, Lyotard e a Pós-modernidade” – Educação e Filosofia, 4 (8), Jan – Jun – p. 76). Em suma, sendo toda e qualquer teoria imanente a determinado sistema nada pode dizer sobre as outras a não ser no campo opiniático. 22 as manifestações mais acabadas do espírito de uma época28, não podendo mesmo serem tributadas a Balzac como se ele fosse o autor de observações inteligentes sobre a alma feminina. Voltando à questão religiosa e concluindo, segundo os pós-modernos, o Cristianismo ou as religiões não têm meios para julgar umas às outras, dado que é impossível sair dos sistemas religiosos onde cada qual se diz, diz o mundo e diz Deus (não há ninguém capaz de abstrair-se aos seus próprios jogos-de-linguagem). Desaparece a questão da verdade ante a impossibilidade epistêmica de uma verdade universal. Há tantas verdades quanto crentes nelas. Esvai-se a noção de erro, posto que erro só o é dentro de um dado sistema. Como consequência assiste-se ao nascimento de um relativismo que não permite qualquer possibilidade normativa, exceto os normativismos menores, decorrentes de razões subjetivas e afetuais. O homem pós-moderno encontra-se, perdido dentro de um labirinto de imanência, sem o fio de Ariadne e sem as asas de Ícaro; não sabendo quem é, e muito menos de onde vem ou para onde vai. Como já se pode suspeitar, “a revanche do sagrado” não nos trouxe de volta aos marcos pré-modernos. A frustração com o não cumprimento das promessas das metanarrativas modernas não tornou as igrejas europeias e norte-americanas mais habilitadas a cobrir o atual hiato existencial humano. Afinal, o Cristianismo europeu foi partícipe do projeto fracassado da Modernidade, adotando os princípios iluministas, abraçou um racionalismo insuficiente para dar solução aos problemas humanos e que, pelo contrário, só tem causado novos e mais inquietantes. Não é por este motivo que a maioria das pessoas no Ocidente sente uma verdadeira ojeriza por posicionamentos religiosos estritos e exclusivistas, que buscam a conformidade e desprezam as diferenças? 28 Roland Barthes. O rumor da língua (Brasília: Editora Brasiliense, 1988), p. 284. 23 Neste contexto, qualquer atitude religiosa, ética e ideológica mais incisiva será considerada politicamente incorreta. A exclusiva pretensão veritativa hoje se tornou inaceitável pelo ressábio às diversas e fracassadas experiências dogmáticas pretéritas. O período moderno, com seus numerosos disputantes (racionalismo, empirismo, criticismo, empirismo lógico, filosofia analítica), não conseguiu estabelecer com absoluta segurança uma verdade, uma metodologia ou doutrina epistemológica exclusiva. De igual maneira, o fracasso de definir ideologias político-econômicas para solucionar os problemas econômicos (Fascismo, Nazismo, Comunismo, Capitalismo), lançaram o mundo em duas guerras totais. Como consequência, ocorre hoje um ethos onde as religiões e as ideologias são apeadas de sua metafísica e solicitadas a apresentarem-se apenas como práxis, pela qual passam a ser julgadas: É um clima no qual é natural pensar nas religiões como diferentes, mas igualmente válidos caminhos para a salvação, igualmente válidas respostas ao Real. As asserções religiosas apenas são verdadeiras no sentido estrito de serem existencialmente significativas29. O relativismo contemporâneo gera a falsa ideia de que diminui a rejeição ao Cristianismo no mundo Ocidental. Se há esta sensação de aceitação, ela não é específica, mas dirige-se a todos os tipos de espiritualidades. Permanece aquele déficit de plausibilidade do Cristianismo constituído no contexto do secularismo. O discurso científico não foi suplantado ou substituído por narrativas religiosas cristãs. O que ocorreu foi um enfraquecimento da capacidade cosmificadora da ciência que faz com que os indivíduos busquem supri-la por outros meios: através de epistemologias fracas, pensamento holístico, a espiritualidade. A religiosidade, portanto, retorna pela porta dos fundos, pois as instituições societárias permanecem estruturadas como na época da Modernidade, sem dar acesso ao espaço público a estas modalidades de cosmificação. O Cristianismo, bem como as demais, continua exilado 29 Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 10. 24 do espaço publico na Europa e na América, permanece ocupando o lugar em que o Secularismo o colocara, em nome do Estado laico: o espaço da vida privada30. Este é o principal motivo por o ambiente sociocultural ainda não lhe ser favorável. Para contrastar, basta observar como fora do Ocidente o discurso da ciência e suas conquistas tecnológicas não tiveram e nem têm os mesmos efeitos devastadores sobre as religiosidades locais. Os muçulmanos e as religiões orientais têm boa convivência com a ciência e não se sentem ameaçados por ela, porque aí a religião ocupa um espaço fundamental na vida societária, sua função nomizante permanece intacta. Ela cria uma estrutura de plausibilidade sobre o qual se sustenta todo o conhecimento compartilhado, o que só ocorre porque em seu caso a religião permanece ocupando o espaço público. Sem entrar na consideração do mérito, uma percepção ateística ou secularizada do mundo não tem mais base epistemológica do que a religiosa. Se ela domina o Ocidente hoje é porque as pessoas vivem em um ambiente onde Deus, religião, fé, são assuntos-tabu, seja por não serem consideradas informações relevantes, seja porque, simplesmente, delas as pessoas não tomam conhecimento por não estarem disponíveis. É uma questão de práxis. Tornar algo acessível, ou seja, introduzi-lo no espaço público, aumenta a possibilidade de tal coisa ser usada, por que, geralmente, as ações humanas na maior parte das vezes estão baseadas na imitação. Basta observar como a taxa de tabagismo cai nos países onde a propaganda do cigarro é proibida. O mesmo ocorre com as ideias: A maior parte do que ‘sabemos’ nós o tomamos por sabido baseados na autoridade dos outros, e é somente se os outros continuarem a confirmar este ‘conhecimento’ que ele permanecerá plausível para nós. É tal social compartilhamento, ‘conhecimento’ socialmente tomado por óbvio, que nos permite mover-nos com alguma de confiança através da vida diária31. 30 Johann B. Metz. Passion for God. The mystical-political dimension of Christianity, J. Matthew Ashley (trad.) (Mahwah, NJ: Paulist Press, 1997). 31 Peter Berger. A rumor of angels. Modern society and the rediscovery of the supernatural (New York: Doubleday & Company, 1970), p. 19. 25 1.a.1.c.Globalização Outro fator que favorece o ambiente relativista atual é a Globalização, pois por meio dela torna-se mais evidente a diversidade culturale religiosa do planeta. As ondas migratórias hodiernas, produzidas pelas condições macroeconômicas, têm colaborado para aproximar as culturas e as religiões. Não por acaso, Os Estados Unidos, a nação mais rica do mundo, “tem se tornado [também] a nação mais religiosamente diversificada do mundo”32. A Europa, depois do boom econômico dos anos 90 também se tornou importante destino de levas de imigrantes. A França recebe sem acolher os mulçumanos oriundos de sua antiga colônia. A Inglaterra é anfitriã de hindus e a Alemanha, de turcos muçulmanos. As religiões vêm invadindo o Ocidente levadas na bagagem não só de imigrantes, mas de estudantes, turistas e homens de negócios, aventureiros, etc. Aquelas outras religiões que sabíamos existir em algum lugar remoto do mundo, põe agora sua cara em nossa janela, dispensando apresentações e discursos introdutórios. Além disso, na ‘aldeia global’ também é possível ter acesso direto às religiões pela internet, conhecendo seus ritos, sua espiritualidade, seus homens santos, etc. Mulçumanos, Budistas, Hindus, Xintoístas, Confucionistas agora estão entre nós. As palavras de Hans Küng resumem bem a atual situação: “pela primeira vez na história é impossível para qualquer religião existir em esplêndido isolamento, ignorando as demais” 33. As teorias interpretativas que até pouco tempo ajudavam o Ocidente a entender o legado cristão no contexto religioso mundial perderam sua utilidade. In nuce já estavam equivocadas, porque nasceram não com a intenção de compreender, mas de reduzir, de combater e dominar. 32 Diana Eck. A new religious America: How a Christian country has become the world most religiously diverse nation (New York: Harpercollins, 2001), pp. 4-5. 33 Hans Küng. Ser Cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976), p. 89. 26 Hoje deixam de exercer qualquer atração sobre as pessoas, porque o que elas querem é conhecer e compreender aqueles que não adoram como elas e são seus vizinhos. Andrés T. Queiruga fala de duas grandes ampliações no mundo humano responsáveis por estas inquietantes constatações: (a) uma ampliação do horizonte histórico e (b) uma ampliação do horizonte geográfico, decorridas principalmente no século XX, que fizeram com que um Cristianismo ensimesmado, ocupado apenas com suas diferenciações paroquianas, perdesse sentido34. (a) A ampliação histórica. O Ocidente descobriu que antes que nascessem os profetas bíblicos já havia civilizações inteiras florescendo na Ásia, com cultura, tecnologia e religiões avançadas, como é o caso da chinesa, da indochinesa e da indiana. Sobre isto há a conhecida a tese do historiador Erik Voegelin, a qual fala a respeito do “alcance e significação da extraordinária experiência espiritual que surgiu simultaneamente em vários focos da civilização”35, num período que se estende do oitavo ao segundo século a. C.. Chamado por K. Japers de “era axial”36 este período foi testemunha do nascimento das mais importantes religiões mundiais. É deveras impressionante como todos estes movimentos religiosos e filosóficos em que estão incluídos, os grandes profetas reformadores do Antigo Testamento, Buda e os Pré-socráticos, apresentem uma “surpreendente homologia estrutural e temática em suas mensagens, operando uma verdadeira revolução no universo simbólico das grandes civilizações”37. Uma explosão criativa sobre o sagrado que muitos estudiosos atribuem à ampliação das relações comerciais entre as nações e ao advento de uma situação de prosperidade material inaudita. 34 Andrés T. Queiruga. O diálogo das religiões (São Paulo: Paulus, 1997), p. 13. 35 Henrique C. de Lima Vaz. Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura (São Paulo: Edições Loyola, 1997), p. 202. 36 Apud Karen Armstrong. Uma história de Deus. Quatro milênios em busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 43. 37 Henrique C. de Lima Vaz, Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura, p. 202. 27 (b) Ampliação geográfica. A contemporaneidade se caracteriza pelo espaço mais plural e simultaneamente menor, onde as diferenças tendem a ser absorvidas por um processo que envolve vários fatores. O transporte aéreo torna hoje possível que milhões se movimentem de um extremo ao outro do globo em algumas horas, permitindo que nós ocidentais vejamos rostos recém emersos de um contexto cultural bem diferente do nosso do modo como são, sem retoques. As redes sociais tornam a realidade social conhecida sem a interferência censora das instituições. De outra parte, grandes megalópoles como Mubai, São Paulo – Rio (São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas e Santos), Bos-wash (Boston, New York, Filadélfia, Baltimore e Washington), Tokkaido (Tokyo, Kawasaki, Yokohama), a megalópole do vale do rio Reno (Amsterdã, Düsseldorf, Colônia, Bonn, Sttutgart) não só se constituem como conglomerados de cidades, mas também como conglomerados dos subúrbios que existem entre elas; enfim, lugares onde a distinção entre o rural e o urbano desaparece, o que os torna lugares mais tolerantes em relação aos diferentes. Há que se destacar também a natureza cosmopolita destes grandes conglomerados urbanos. Los Angeles, talvez a cidade mais cosmopolita do mundo, conta entre seus 18 milhões de habitantes (Grande Los Angeles), asiáticos (chineses, japoneses, tailandeses, filipinos, vietnamitas, armênios, iranianos), afro-americanos e latinos (mexicanos, porto- riquenhos, salvadorenhos, brasileiros, colombianos, etc.), além das tradicionais populações caucasianas originárias da velha Europa. Em LA estas populações se agregaram formando redutos étnicos: os filipinos vivem num bairro chamado Filipotown; os tailandeses, em Thaitown. O resultado prático disto é que não é preciso mais ir às Filipinas para conhecer o modo de vida dos sul-asiáticos (inclusive sua religião). 28 Toda esta proximidade só poderia produzir o desmantelamento de diversos mitos referentes às populações não cristãs. Hoje é inegável, por exemplo, o fato de estas tradições serem portadoras de uma sabedoria milenar que rivaliza com a ciência Ocidental (a medicina, por exemplo) e mesmo em se tratando de religião, seus ensinamentos contém muitas ‘verdades’. A propósito disto, a superioridade moral do Cristianismo, tão decantada por teólogos e filósofos europeus e protestantes do século XIX – especialmente aqueles inscritos sob a rubrica do Idealismo alemão (von Harnack, Troeltscht, Ritschil, Herrmann)38, perdeu muito de sua persuasão depois que se descobriu que a assim chamada “regra de ouro” dos evangelhos, considerada marca singular da ética cristã – “faze aos outros aquilo que queres que te façam” – está presente em praticamente todas as grandes tradições religiosas mundiais39. Enfim, há nas religiões uma sabedoria incompatível com o lugar acanhado reservado a elas pelo Ocidente40. 1.a.1.d.Mundialização do Cristianismo A atual situação do Ocidente inundado por tantos ritos e crenças não significa, necessariamente um Cristianismo acuado. Embora em seu território de origem isto seja verdadeiro por causa da expansão do Islã, do Secularismo e do Consumismo, a fé cristã cresce em outros terrenos fora da Europa. Dois terços dos cristãos hoje vivem em países da Ásia, África e América do Sul e é nestes países que o Cristianismo hoje enfrenta seus maiores desafios missiológicos. É aí onde o encontro dos Cristãos com as religiões mundiais ocorre mais inquietantemente. 38 Rosino Gibellini. A teologia do século XX , p. 19. 39 Mahabharata: Shanti parva CCLX21: “que nenhum homem cometa contra o outro, ato que não gostaria fosse cometido contra si mesmo”. Analectus de Confúcio, livro 12:2: “não faças aos outros o que você não quer que façamcom você. Udanavarga budista, v. 18: “não machuque os outros com algo que dói em você”. Andrew Wilson (org.). World Scripture. A comparative anthology of sacred texts (New York: International Religious Foundation/Paragon House Publishers, 1991. 40 Raimon Panikkar. “The pluralism of truth” (WFI, no. 26, 1990), p. 7. 29 Apesar de o Cristianismo europeu enfrentar uma consistente decadência que já dura um século, o que permite que alguns se refiram a ela como um processo de “descristianização” da Europa, que ao final produzirá um “Pós-cristianismo” 41, em outras partes do mundo os cristãos experimentam uma expansão sem precedentes, que nem os mais otimistas missiólogos do início do século XX imaginavam fosse ocorrer, tornando-se hoje o movimento religioso mais dinâmico do mundo. De fato, durante o século XX tornou-se a mais universal e extensiva religião da história. Há hoje cristãos e igrejas cristãs organizadas em todos os lugares habitados da terra. A Igreja é pela primeira vez na história, ecumênica no sentido literal da palavra: seus limites são coextensíveis com a oikumene, todo o mundo habitado42. O crescimento do Cristianismo na África é especialmente impressionante, principalmente após o fim do colonialismo, com a independência da maioria das nações africanas. No início do século XX havia apenas 8.7 milhões de cristãos no continente africano, algo ao redor de 9 % de sua população. Os mulçumanos nos superavam na proporsão de 4 por 1. Com o fim do período colonial o Cristianismo experimentou um rápido crescimento que começou com 60 milhões no fim da década de 80, pulou para 330 milhões em 1998 e em 2000 já atingia o patamar de 350 milhões43. Hoje, já há mais cristãos na África do que adeptos do Animismo, sua religião original (existem por volta de 300 milhões de animistas na África atualmente)44. E quando a Europa ameaça ser totalmente coberta pela bandeira verde do crescente, quem enche as igrejas vazias europeias são cristãos étnicos originários da África Central. “A grande Paris tem 250 igrejas étnicas protestantes, a maior parte delas formada por negros africanos”45. 41 Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis (Oxford: Oxford University Press, 2005). 42 David Barret, George Kurian and Todd Johnson. World Christian Encyclopedia: a comparative survey of churches and religions in modern world (New York: Oxford University Press, 2001), p. 15. 43 Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity? The gospel beyond the West (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 2003), pp. 14-15. 44 Chad Meister. Introducing Philosophy of religion (London/New York: Routledge, 2009), p. 6. 45Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis, p. 94. 30 Na Ásia a mensagem cristã também se expande com grande velocidade. Há países quase completamente cristianizados como é o caso das Filipinas. Entre os que estão sendo evangelizados mais recentemente, está a China. Embora não haja dados confiáveis sobre a China (leis locais proíbem o proselitismo), sabe-se que os cristãos já se contam aos milhões neste país. Os dados oficiais do governo chinês somente levam em conta as congregações regularmente estabelecidas, por isso os dados oficiais que tendem a subestimar a taxa de crescimento do Cristianismo bem como o número total de seus adeptos, em 2006 havia 21 milhões de cristãos na China, sendo destes 16 milhões Protestantes e 5 milhões Católicos. Fontes extraoficiais, entretanto, apontam para números bem mais realistas, algo por volta de 12 milhões de Católicos e 30 milhões de Protestantes46. A Coreia do Sul é o caso missiologicamente mais interessante. Inicialmente um país budista (até o século XIX), hoje se encontra bastante cristianizado, cerca de 25 % da população professa a fé cristã47 (Católicos, Protestantes históricos e Pentecostais). Com pouco mais de cem anos de história as igrejas coreanas tem atingido notável crescimento em número e força. As megaigrejas coreanas redefiniram o significado da palavra mega para muito além do que pensa o Ocidente ao relacioná-la com igrejas, com megacongregações variando em tamanho entre 8 mil (Yodo Full Gospel Church) e 30 mil membros (Sung Rar Baptist Church)48, e que, apesar do tamanho, são extremamente organizadas, dividas em ministérios e com um fervor missionário que não arrefece. De 1995 para cá o Catolicismo os Pentecostais crescem na Coreia enquanto os Protestantes históricos, a exemplo dos Presbiterianos, estão estagnados49. De qualquer modo o dinamismo do Cristianismo coreano é inegável. 46 Lian Jiang. Visiting parents from China: their conversion experiences in America and contribution to Christianity at home (tese de doutoramento, Faculty of Bright Divinity School, 2006), p. 50. 47 Mark Mullins. “The Empire strikes back. Korean Pentecostal mission to Japan”. In Karla Powe (ed.). Charismatic Christianty as a global culture (Columbia SC: University of South Carolina Press, 1994), p. 88. 48 Ibid., pp. 89 e 90. 49 Han Soo Park. A study of missional structures for the Korean church for its postmodern context (An Harbor MI: Umi dissertation publishing, 2008), p. 42. 31 Na Índia há igrejas cristãs vigorosas e antiquíssimas, cuja fundação ocorreu há milênios, como é o caso da igreja Católica de rito siríaco. Outras chegaram ao final do século XIX com as missões de Metodistas, Presbiterianos e Batistas; e outras já no decorrer do século XX (Adventistas do Sétimo Dia e outros Independentes). Porém, apesar desta história milenar, O Cristianismo na Índia é apenas a terceira maior força religiosa, contando aproximadamente 24 milhões de seguidores, o que significa 2.3 % da população total do país50, estando a grande maioria da população ainda sob a lealdade do Hinduísmo. Ou seja, isto significa dizer que os cristãos são minoria e que nem mesmo nas províncias mais expressivamente cristãos (Kerala) seus membros não ultrapassam os 10 % da população51 . E nem podemos dizer que experimentem um crescimento vigoroso por que os números oscilam em volta desta taxa, para mais ou para menos, há décadas. Com tudo isto e à medida que avançam os esforços e os resultados missionários cristãos, cresce a necessidade de se teorizar sobre os limites da aculturação de sua mensagem, face aos perigos que se escondem por atrás de pressões por um crescimento mais rápido: sincretismos, heresias, faccionismos, etc.. Esta teorização vem sendo chamada de teologia das missões e pretende justamente lidar com três aspectos da evangelização que necessitam ser equilibradamente abordados: (a) o texto bíblico, (b) a fé da comunidade e (c) o contexto missionário52. Sendo minoria, os Cristãos são constantemente tentados a facilitar a conversão de seus ouvintes, tendendo a descurar do texto bíblico, quando quer que haja grandes dificuldades transculturais. Quanto a isto, um dos ocorridos mais sérios do mundo das missões dá-se na Coreia do Sul. Relatos dão conta de que igrejas pentecostais estão sofrendo influências litúrgicas e 50 Wikipedia, verbete: Christians in India (Government of India, Ministry of Home Affairs, Census commissions, Census 2001). 51 Leonard Fernando e G. Gilpert Sauch. Christianity in India. Two Thousand years of faith (New Delhi: Penguins Book India, 2004), xiii. 52 Charles R. van Engen. What is theology of missions (TC, ano 1, vol. 1, Ago, 2004), p. 45. 32 teológicas do animismo local, chegando a experimentar um processo de xamanização, com pastores emulando o papel dos xamãs coreanos, especialmente no que diz respeito às curas espirituais: Na sociedade tradicional coreana os xamãs (mudang) servem de link entre o povo comum e o mundoespiritual, habitado por inúmeros deuses, por ancestrais e espíritos. Através de rituais e oferendas os xamãs podem controlar o mundo espiritual, transformando espíritos malévolos em espíritos protetores; realizando curas e exorcismos e produzindo benefícios concretos aos indivíduos53. Andrew Walls escreve sobre a necessidade de teologizar todas as vezes que são cruzadas novas fronteiras culturais, já que em o fazendo o Cristianismo se depara com situações que lhe colocam novas questões intelectuais antes não consideradas54 . Esta necessidade se comprova pelos vários congressos missiológicos e teológicos convocados ao redor do mundo a partir do segundo quartel do século XX, quando se intensificou a penetração do evangelho no mundo não cristão55. Alguns historiadores do Cristianismo, contudo, defendem a livre propagação evangelística no mundo, ainda que com inovação doutrinal motivada por necessidades locais, o que ocorrendo seria até um indício de maturidade espiritual: Quando os teóricos das missões em décadas passadas falaram de três autonomias como meta para igrejas mais novas, incluíram o autofinanciamento, o autogoverno e a autopropagação. Eles não perceberam a autointerpretação ou a autoteologização como igualmente uma necessidade. Eles esperavam que a teologia continuasse sendo o que sempre foi, porque o significado do evangelho era perfeitamente entendido 53 Ibid., p. 92. 54 Andrew Walls. “The rise of global theologies”. In Jeffrey P. Greeman e Gene L. Green. Global Theology in evangelical perspective. Exploring the contextual nature of Theology and mission (Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 2012), p. 20. 55 “International Congress on World Evangelization in Lausanne (1974); Willowbank Consultation on Gospel and Culture (1978); International consultation on Simple Lifestyle (1980); Pattaya Consultation on World Evangelization (1980); International Consultation on the Relationship between Evangelism and Social Responsibility (1982); International Conferences for Itinerant Evangelists (1983, 1986); Lausanne II in Manila (1989); Theological Commission’s Consultation on the Unique Christ in our Pluralist World, Manila (1992); Mission Commission’s Iguassu Missiological Consultation; Forum for World Evangelization, Pattaya (2004). (Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity?, p. 25-26). 33 pelas Igrejas mães, e tudo o que as mais novas deviam fazer era continuar proclamando a mesma mensagem56. Não podemos esquecer que nem todas as demandas locais devem ser satisfeitas, pois por trás delas, segundo as Escrituras, há uma humanidade caída, propendente ao mal e ao pecado. Como já foi afirmado no início desta investigação, cabe à Teologia analisar a legitimidade das demandas para que o evangelho não caia em armadilhas ideológicas, como já ocorreu no passado quando uma parte expressiva de Cristãos no II século d. C. adotou o Neoplatonismo como quadro ideológico por meio do qual a mensagem cristã passou a ser compreendida. Infelizmente, aquela experiência transcultural acabou degenerando em Gnosticismo. Deve-se discernir entre o transitório e o eterno, o que significa entender que muitas reivindicações culturais estão atreladas a conjunturas socioeconômicas que rapidamente desaparecem se são subtraídas de seus fatores predisponentes. A teologia da prosperidade é um exemplo bastante contundente do que pode acontecer à pregação do evangelho se as necessidades das massas forem as únicas guias dos pregadores. O que inicialmente poderia ser considerado um legítimo clamor popular por socorro divino diante de dificuldades relacionadas à própria sobrevivência (saúde, endividamento, dificuldades econômicas) acabou se degenerando em soberba espiritual, somada ao consumismo e ao materialismo, como hoje se vê. Em suma, as relações dos homens entre si e em relação a Deus distorcidas pela mediação da mercadoria e do capital (Karl Marx). 1.a.1.e. O testemunho da história Ao longo da história, o Cristianismo, em especial a Igreja pós-constantiniana, tem sido marcado por uma atitude opressora em relação às religiões e às suas diversas não autorizadas 56 Justo Gonzales. Mañana. Christian Theology from Hispanic perspective (Nashville, TS: Abingdon, 1990), p. 49. 34 mutações domésticas. Inúmeras vezes esta opressão se traduziu em violência e morte daqueles que não praticavam a doutrina hegemônica e isto hoje depõe contra os Cristãos, fazendo com que um sentimento de desconforto ante os fatos leve muitos líderes cristãos a considerarem o pluralismo como uma forma de compensação pela violência do passado. Não é metodologicamente adequada esta generalização; a história da Igreja cristã pré- constantiniana é um pouco diferente. No primeiro e segundo séculos o Cristianismo formativo vingou num caldeirão cultural greco-romano, merecidamente designada como primeira globalização. Neste tempo as diversas correntes religiosas confluíram e conviveram dentro das fronteiras do império romano, de forma mais ou menos pacífica. Os romanos controlavam o crescimento das religiões, mas não o coibiam, senão excepcionalmente, visando à manutenção da pax romana. O Cristianismo não era hegemônico em relação às demais modalidades religiosas até que veio a se tornar a religião oficial do império a partir de Constantino e seus herdeiros a partir dele, no quarto século. Foi daí para frente que começou sua história de intolerância. Mais tarde, no século VII d. C. os cristãos se defrontaram com o avanço do Islã no Oriente próximo e na Europa, no período conhecido como o das Cruzadas, em que houve muito derramamento de sangue, e, excepcionalmente, na Ibéria ocupada pelos muçulmanos, um convívio pacífico entre as três religiões do livro (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo), que coincidiu com o florescimento tecnológico e cultural sem precedentes. Com o poder mudando para a mão dos cristãos na Ibéria, depois da expulsão dos mouros, começa um processo de perseguição dos Judeus que só acaba com sua expulsão de Espanha e Portugal durante o período que ficou conhecido como ‘santa’ inquisição. Este espírito intolerante não foi, contudo, monopólio de Católicos. O século XVI também testemunhou perseguições se alastrando em terras Protestantes, contra minorias 35 religiosas na Alemanha e Suíça (Anabatistas, Menonitas e Espiritualistas, seguidores de Muntzen), lideradas ou pelo menos subvencionadas pelo silêncio dos reformadores e outras autoridades religiosas importantes. Até que o espírito intolerante crescente desencadeou uma hecatombe sangrenta que custou a vida de milhões de Católicos e Protestantes na Guerra dos Trinta Anos. Ainda no século XVI, nas Américas, uma das histórias mais infamantes reputada ao Cristianismo. Com a perda de territórios para o Protestantismo na Europa, os Ibéricos Católicos se voltaram para as Américas, vindo seu impulso missionário e civilizatório a se defrontar com as civilizações pré-colombianas, que não conheciam e ainda assim consideravam inferiores. Como resultado, o gigantesco morticínio que ceifou a vida de milhões de seres humanos, pelo único fato de não serem cristãos e viverem de forma diferente. Sabe-se que a difamação simbólica destes povos, foi não poucas vezes injustificada e produzida com o único objetivo de legitimar sua vergonhosa exploração57. Assim, com exceção das circunstâncias históricas excepcionais citadas, infelizmente, sustentadas não por iniciativa de Cristãos, o convívio do Cristianismo com outras religiões tendo sido violento, deixando genocídios e/ou etnocídios no rastro de sua passagem, provoca- nos hoje com a pergunta: até que ponto o projeto ‘civilizatório’ desses cristãos é tributário das Fontes do Cristianismo? Ou, dizendo de outra maneira, há algo de intrinsecamente intolerante
Compartilhar