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CADERNOS DE EDUCAÇÃO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 04, n.1, (2013) ISSN 2316-9907 DOI 10.14571/cets.v4.179-197p AS APROPRIAÇÕES DOS INTELECTUAIS: DISCURSO CIENTÍFICO E IDEOLOGIA RACIALNO BRASIL DO SÉCULO XIX THE APPROPRIATION OF INTELLECTUALS: SCIENCE SPEECH AND RACIAL IDEOLOGY IN BRAZIL OF XIX CENTURY Luciano dos Santos, Túlio Almeida de Ázara Resumo. O objetivo deste artigo é analisar como se deu a divulgação e apropriação do discurso científico no Brasil do século XIX. Partimos do pressuposto que o discurso de cientificidade, construído no universo europeu desse período, serviu como elemento balizador da ideologia racial defendida pela elite intelectual brasileira da época. Para demonstrar isto, primeiro definimos os conceitos, termos e categorias de analise que utilizamos no artigo, depois apresentamos como o discurso biologicista e raciológico se desenvolveu na Europa do século XIX, para, por fim, poder analisar à recepção e apropriação desse discurso cientificista pela intelectualidade brasileira desse período. Palavras-chave: Discurso cientificista, Apropriação, Intelectualidade brasileira, Raça. Abstract. The purpose of this article is to analyze how was the dissemination and appropriation of scientific discourse in nineteenth-century Brazil. We assume that the discourse of scientism, built in European universe that period, served as a beacon element of racial ideology advocated by the Brazilian intellectual elite of the time. To demonstrate this, we first define the concepts, terms and categories of analysis that we use in the article, then presented as speech and biologicist raciological developed in nineteenth-century Europe, to finally be able to analyze the reception and appropriation of this discourse by scientistic Brazilian intellectuals of that period. Keywords: Scientistic discourse, Appropriation, Intellectuality brazilian, Race 1 Introdução O século XIX é o século da Ciência não só porque foi o período de maior efervescência científica (grandes descobertas e criação de novos ramos do saber científico), mas, sobretudo, pela crença profunda de que este tipo de conhecimento era o estágio final do desenvolvimento humano. A ciência se tornou a forma mais verdadeira de explicacão da realidade, seja física ou social. Várias invenções como o telefone de Graham Bell, a lâmpada elétrica de Thomas Alva Edison, o descobrimento da bactéria da tuberculose por Robert Koch, o motor de combustão de Nikolaus August, entro outras, ganharam a sociedade e criaram a noção de progresso. Isto tudo criava uma atmosfera de otimismo e superioridade deste saber sobre os demais. Parecia que finalmente o homem possuía as condições de explicação e controle sobre tudo. A ciência passava a ser a própria representação da verdade. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 No contexto europeu vivencia-se o Positivismo, o Evolucionismo, o Imperialismo e os avanços da segunda Revolução Industrial. Uma das teorias mais destacadas desse período era a da evolução das espécies de Charles Darwin (1809-1882), que logo passava a servir de modelo para outros discursos cientificistas que já vinha sendo gestados desde o século XVIII. Não demorou muito para que as formas cientificistas de pensar e compreender o mundo chegassem ao Brasil. Os primeiros passos se deram, no início do século XIX, com a chegada da Família Real portuguesa, com a inauguracão das primeiras faculdades de Medicina e Direito, além de criação de Museus, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do ensino de Química na Academia Real Militar do Rio de Janeiro. Mas o crescimento dos espaços e da divulgação da temática científica no Brasil só se deu, de forma mais forte, na segunda metade do século XIX. A partir disso, é coerente indagar acerca de como se deu o avanço do pensamento científico no Brasil do século XIX? Qual o paradigma científico (para usar o conceito de Thomas S. Kuhn) era hegemônico nessa época? Que visão de Brasil os “cientistas” europeus da época construíam? Como foi a recepção dos intelectuais brasileiros a estas visões? Será que o discurso de ciência permaneceu imune a ideologia racial presente na Europa e no Brasil? Partimos da hipótese que o discurso cientificista europeu se mostrou como elemento balizador das concepções racistas no Brasil do século XIX. Todavia, ele não foi aceito de forma tal qual era construído pelos “cientistas” estrangeiros, na verdade, foi apropriado e ressignificado pela elite intelectual e dirigente brasileira para manter e justificar sua própria ideologia racial. Para corroborar essa premissa é importante trilhar um caminho que permita à compreensão que a história do pensamento científico não está totalmente apartada da história social, que a ciência está na sociedade e como tal sofre influência dela e a ela influencia. 2 Pressupostos teórico-metodológicos As primeiras concepções de compreender teórica e metodologicamente a história da ciência, na relação com a história social, nasceram no início do século XX com a estadunidense Martha Ornstein, sob a influência de James Harvey Robinson, como também com o russo Boris Hessen e o inglês Joseph Needham. Mas foi só a partir SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 da década de 1960 que se tornou normal examinar a ciência de uma perspectiva social (BURKE, 2003, p.18). Por essa perspectiva compreende-se que a ciência não se desenvolveu apartada da sociedade mais ampla. Segundo Eric J. Hobsbawm (2003), a maior parte das atividades humanas tem sua lógica interna, que determina parte de seu movimento, no entanto, mesmo o mais apaixonado crente na imaculada pureza da ciência pura é consciente de que o pensamento científico pode, ao menos, ser influenciado por questões alheias ao campo especifico de uma disciplina, ainda que só porque os cientistas, até mesmo o mais antimundano dos matemáticos, vivem em um mundo mais vasto que o de suas especulacões (HOBSBAWM, 2003, p.384). No mesmo sentido, o geneticista Newton Freire-Maia afirma que, não se pode ingenuamente acreditar que a ciência, como um conjunto de conhecimentos (ciência-disciplina) e de atividades (ciência-processo), seja algo independente do meio social, alheio a influências estranhas e neutro em relacão às várias disputas que envolvem a sociedade. Analisada por qualquer um de seus dois ângulos, a ciência representa um corpo de doutrinas geradas ou em geração num meio social específico e, obviamente, sofrendo as influencias dos fatores que compõem a cultura de que faz parte. Produto da sociedade influi nela e dela sofre as influencias (FREIRE- MAIA, 2000, p.128). O pensamento científico é, então, ao menos em parte, construído sócio historicamente, nasce de certas condições históricas e também influência as mutações e/ou nuances sociais de uma dada época e lugar. Foi nesse sentido de compreender a ciência a partir de uma visão histórica que o físico teórico e historiador da ciência Thomas S. Kuhn (1922-1996) propôs o conceito de paradigma. Em suas palavras: “considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, oferecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 2003, p. 13). Ou seja, o paradigma é como um modelo,um conjunto de regras, ou mesmo “um conjunto de imagens do mundo e de crenças básicas sobre ele”1. Nessa perspectiva o que é tido como ciência deve estar dentro dos moldes aceitos pelos cientistas, e esse modelo é histórico na medida em que o ideal de cientificidade, que se tem em um 1 Segundo Margaret Masterman (1975) Kuhn dá vinte e uma definições de paradigma, mas estas podem ser agrupadas em três grupos fundamentais: primeiro, de um ponto de vista metafísico, como um conjunto de imagens do mundo e de crenças básicas sobre ele; segundo, sociológico, como um conjunto de proposições fundamentais, resultantes de uma realização científica de reconhecimento universal, o paradigma é um padrão, um modelo; terceiro, funcional, um conjunto de instrumentos que permitem a análise e a solução de problemas. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 determinado período, é fornecido não por leis imutáveis do funcionamento do mundo físico ou social, mas sim por problemas e soluções modelares criados e aceitos por uma determinada comunidade de cientista que detém o conhecimento já produzido. Então a compreensão da ciência, sem negligenciar seu movimento interno próprio, se faz também por meio da investigação de seu contexto histórico, do ideal de cientificidade de uma dada comunidade científica e também da ideologia presente na sociedade mais ampla. A ciência está no mundo e não é completamente imune aos problemas mundanos. É certo que é possível fazer uma história das ciências de forma internalista, abordando apenas suas teorias, seus métodos, suas descobertas, etc. Mas também é igualmente válida uma história externalista da ciência, uma história marxista da ciência, uma história do discurso científico, ou, ainda uma história social das ciências, que busque mostrar que esse conhecimento não é neutro, que pode servir para legitimar ideologias, visões de mundo e até a dominação de um povo sobre outro. Quer na forma de sua produção, divulgação e/ou apropriação a ciência não está completamente imune aos jogos de poder (MAYOR E FORTI, 1998). Por essa perspectiva, em uma história da ciência, ou do discurso científico, que não desconsidere as relações com o poder e a dominação, é importante o conceito de ideologia. Mas, não de uma noção de ideologia acrítica. Embora, seja cheia de significados e várias perspectivas (Marx, Lênin, Mannheim, Barthes, Althusser, Touchard, Eagleton, Hall, Habermas, entre outros), ela pode ser uma interessante ferramenta conceitual se bem delimitada sua acepção. Reconhecer que em síntese ideologia pode designar desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as idéias falsas que legitimam um poder político dominante, não significa dizer que não podemos restringir seu significado – pelo menos para efeito analítico-crítico. Para começar é importante compreender que há a ideologia “em si” – noção imanente de ideologia como doutrina, conjunto de ideias, crenças, conceitos e assim por diante, destinada a construir efeitos de verdade, mas que serve a algum inconfesso interesse particular de poder e dominação; como há também a ideologia “para si”, ou seja, quando ela precisa ser externalizada para construir seu processo de dominação e legitimação – à noção athusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado, que aponta para a materialidade da ideologia nas práticas, rituais e instituições ideológicas, é exemplar nesse sentido, embora a materialização da ideologia possa SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 ganhar formas que não foram previstas por Althusser. Por essa perspectiva, então, a ideologia é compreendida como um processo que se configura quando um conteúdo, efeito de profundidade e de verdade, é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração”) e se materializa nas práticas sócias (ZIZEK, 2010, p.09,15). No caso dos processos ideológicos racistas sua materialização se dava nas práticas de relações assimétricas de reconhecimento, nos preconceitos, na exploração em função da cor, origem ou descendência, na exclusão da distribuição dos bens materiais, dos diretos e até da própria ideia de humanidade. Assim, podemos dizer que a ideologia racial atuaria em função da valorização de tudo o que se refere aos grupos de cor branca – e, logo, na constituição de uma identidade positiva para esse grupo –, e na desvalorização do que se refere aos grupos de cor negra e ou origem indígena (TEIS, TEIS, 2007). Mas, mesmo que se reconheça a força das construções ideológicas no processo de “em si” “para si”, isto não significa dizer que elas sejam mecanismos perfeitos e homogêneos que garantem a total reprodução social. Na verdade, por mais que haja hegemonia (GRAMSC, 1995), a dominação nunca é total (MOSCOVICI, 1978), (CERTEAU, 1994), os indivíduos, grupos sociais, as comunidades, não são receptores passivos, “tabulas rasas”, mas integrantes ativos, participantes e elaboradores de ressignificações e apropriações. Embora, não seja o foco desse trabalho analisar como os grupos “dominados” reagiram à dominação, é importante não perder de vista essa perspectiva. Por outro lado, ela também nos ajuda a compreender como foi à recepção e apropriação dos “intelectuais brasileiros” em relação às teorias e proposições cientificistas do racismo europeu do século XIX. Outro termo que cobra discussão em nosso trabalho é o de intelectual. Polimorfo e polifônico, a noção de intelectual também não remete a uma definição aceita por todos. O termo, como substantivo, nasceu no final do século XIX resultado do célebre Manifeste des intellectuels publicado na França acerca do Caso Dreyfus (SIRINELLI, 1996) (CHARLE, 2009) e se tornou objeto de estudo e de reflexão de vários teóricos, pesquisadores e pensadores (Gramisc, Benda, Mannheim, Aron, Sartre, Foucault, Bourdieu, Said, Sirinelli, entre outros). Oscilando entre uma concepção substancialista, que tende a assimilar os intelectuais como grupo social particular, e uma forma nominalista, que os situa, antes de tudo, por seus compromissos nas lutas ideológicas e políticas (DOSSE, 2006, p.19), o termo já foi usado – com certa dose de anacronismo – em estudos sobre a antiguidade clássica (LORAUX, MIRALLES, 1998), da idade média SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 (LE GOFF, 2006), da ilustração (LOPES, 2001), até chegar aos estudos do XIX e XX, em que o objeto ganhou maior consistência histórica e sociológica (ROCHE, 1988; SIRINELLI, 1998; BOBBIO, 1997, BOURDIEU, 1999). Assim, há várias possibilidades de trabalhar com o termo intelectual. Pode-se partir da proposição de Gramsci (1995, p.07,14), e compreender “que todos os homens são intelectuais, mas que nem todos exercem função de intelectual”, e, a partir daí, distinguir entre intelectuais tradicionais (literato, filósofo, artista, professor), que perpetuam sua função, e orgânicos (aqueles vinculados a categoriassociais, ou que fazem parte de um partido político). Como também se pode adotar a normativa de Edward Saïd (2005), e ver o intelectual como aquele que se coloca sua verve em nome dos valores universais e fala a verdade ao poder; ou mesmo a ideia de intelectual especifico defendida por Foucault (1979). Há também a possibilidade de não partir de uma ideia a priori do que seja intelectual, mas sim de uma história do seu conceito – aos moldes do que propõem o alemão Reinhart Koselleck (1993) – analisando como se deu o nascimento e o uso do termo em uma dada época e lugar. Outra perspectiva possível é trabalhar com as sociabilidades intelectuais em sua interface com a história política, como tem feito numerosos historiadores franceses (Pascal Ory, Daniel Roche, Jean Francois Sirinelli, entre outros); ou ainda, em uma sociologia dos intelectuais pelas proposições de Pierre Bourdieu (1999). Não é nosso interesse acompanhar a evolução do conceito de intelectual no Brasil, como fez, por exemplo, Guillermo Zermeño (2003), ao analisar o uso do termo na América de fala espanhola na passagem do século XIX para o XX. Como também não estamos preocupados em investigar o campo intelectual de disputas por reconhecimento e poder simbólico que as elites letradas brasileiras do século XIX empreendiam. Nosso objetivo não é analisar o intelectual em si, mas, sim, como determinados discursos tidos como científicos foram desenvolvidos e depois apropriados pelos os intelectuais na construção de suas representações sobre os grupos humanos que habitavam o Brasil. Poderíamos inclusive, para evitar complicações de definição, usar o termo homens de letras,como fez, por exemplo, Robert Mandrou (1973) para analisar os humanistas e homens de ciências na passagem do século XVI para o XVII na Europa. Mas, como nossas preocupações estão associadas aos efeitos ideológicos das construções intelectuais, partilhamos da perspectiva de Norberto Bobbio (1997, p.11) para quem, Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do poder econômico SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos (...) mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões do mundo. Para Bobbio (1997), toda sociedade em qualquer época teve seus intelectuais, sejam eles chamados sábios, sapientes, scientific, doutos, philosophes, clercs, hommes de lettres, o que caracteriza o intelectual – homens que estão diretamente relacionados com a produção do que em uma sociedade é compreendido como conhecimento – é sua relação com as construções ideológicas. Nessa relação entre conhecimento e ideologia, eles podem assumir a posição de radical ou reacionário, de questionador ou justificador da ordem sócio-cultural-política de uma época. No caso dos “intelectuais brasileiros” do século XIX foram indubitavelmente legitimadores de uma ordem social calcada no racismo e determinismo. Mas, eles não foram meros copiadores das teorias estrangeiras, na verdade, em boa medida, eles se apropriaram e ressignificaram essas teorias. Com base em Roger Chartier (1990), apropriação é compreendida aqui como sendo a operação de produção de significação tomando como base objetos, práticas, ideias e representações construídas por outrem. Ou seja, ela é uma releitura, uma ressignificação de uma representação, de uma ideia, de uma imagem e/ou visão de mundo. Por essa concepção, partimos da perspectiva que por mais que os intelectuais brasileiros não tenham construído o modelo biologicista, determinista e raciológico do século XIX, eles se apropriaram dele para construir uma interpretação da sociedade brasileira que legitimava o statu quo. 3 Resultados e Discussões 3.1 A ciência no século XIX: o discurso biologicista e raciológico como paradigma científico Para muitos autores “O século da ciência é o período que vai de 1780 a 1914, um século da fé e da inocência. Fé nos resultados das experiências e inocência na crença quase cega nos diagnósticos científicos e nas previsões rígidas”. (KNIGHT, 1986 apud SHWARCZ, 1993, p. 29). Um dos fatores para edificação dessa fé na ciência desenvolve com o positivismo de Augusto Comte (1798-1857). Ele afirmava que, SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro vôo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental (...). Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo (COMTE, 1978, p.03-04). O positivismo comtiano fundamentou uma visão linear do desenvolvimento intelectual humano e justificou a crença cientificista do progresso. Acreditava-se piamente que o último estágio de desenvolvimento da humanidade era a cientificidade, e a Europa do século XIX era o único lugar em que tal estágio tinha sido alcançado. Essa visão dogmática da ciência levava as concepções de que o conhecimento científico era superior a todas outras formas de saberes. As explicações verdadeiras só poderiam ser fornecidas pelo discurso científico. Nesse contexto, em 1859, Charles Darwin (1809-1882), publica A Origem das Espécies. Aos poucos as ideias de Darwin vão se tornando hegemônicas no universo científico, muitas vezes apropriadas de forma a legitimar outro campo do conhecimento. O positivismo-evolucionista e o darwinismo foram paulatinamente formando um discurso cientificista que logo assumiria a forma de um “paradigma” de cientificidade – uma teoria ou sistema explicativo aceito por uma comunidade científica e que durante algum tempo orienta a sua atividade (KUHN, 2003)2 – que, nesse caso, extrapolou sua esfera original de investigação e se fez presente em vários campos do conhecimento: (…) na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor (1877); na linguística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil; na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle (SHWARCZ, 1993, p. 56). 2 Um paradigma pode ser compreendido como elemento epistemológico que orienta a totalidade do fazer científico, como, por exemplo, o paradigma mecanicista. Mas também é possível compreender paradigma em um escala menor, como uma teoria ou mesmo uma ideologia que orienta grande parte dos problemas investigativos e das soluções criadas por um campo do conhecimento em uma dada época e lugar. É possível, como define Olga Pombo (2008), falar em epistemologias regionais, como também em paradigmas regionais. Ou seja, em pressupostos, tidos como científicos, que fundamentam uma dada área do conhecimento em uma da época. Não é por acaso que temos teorizações epistemológicas – com asde Georges Canguilhem (1904-1995) ou as de Jörn Rüsen (1938-) – que tratam de campos específicos como a biologia ou a historiografia. Para mais detalhes ver: CANGUILHEN, Georges. Conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. E também: RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: Os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 Além dessas concepções derivadas das máximas de Darwin3, podem ser mencionadas outras como o Inatismo ou Maturacionismo da psicologia de Binet (1857- 1911) e Gesell (1880– 1961), que defendiam que a aptidão, a inteligência e a personalidade são características humanas determinadas biologicamente. Na antropologia, André Ratzius – como também Pierre Borca –utilizava da técnica de craniologia para estudos quantitativos sobre as variedades do cérebro humano. Acreditava-se efetivamente que a natureza biológica poderia determinar até mesmo o comportamento criminoso, como defendia as teorias de Cesare Lombroso (1835-1909). Aos poucos o darwinismo social foi se tornando efeito de verdade e as Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834 - 1919) e Herbert Spencer (1820-1903) contribuíram fortemente para isto. A partir daí, o conceito de raça ultrapassou os problemas estritamente biológicos, adentrando questões de cunho político e cultural, termos darwinistas como competição, seleção do mais forte, evolução, passaram a fazer parte do vocabulário do discurso cientificista, justificando a superioridade ou inferioridade dos povos. Dessa forma de compreender o mundo e os povos não ocidentais surgiu à concepção de “raça pura”, e, logo também, a da “não miscigenação de raças”, pois aos olhos dos defensores dessas teorias era a miscigenação que causava a degeneração racial e social do homem. A noção de raça era muito forte nessa época. Havia duas formas de compreendê-la, a concepção dos poligenistas, que empregava o termo como espécie, ou seja, cada raça era uma espécie; e os monogenistas, que acreditavam que todas as raças faziam parte de uma espécie só: o ser humano. No entanto, os monogenistas acreditavam no evolucionismo, consideravam que os negros e índios eram da mesma espécie que os brancos, porém menos evoluídos, visto que se igualam mais aos primatas. Na verdade, essas concepções vinham de longa data, já no século XVIII, Carolus Linnaeus, ou simplesmente Carlos Lineu (1707-1778), considerado o pai da taxonomia biológica, sugeriu a divisão do homem em quatro raças, baseada na origem geográfica e na cor da pele: Americanus, Asiaticus, Africanus e Europeanus, além do Homo ferus (selvagem) e Homo monstruosus (anormal). Nessa divisão o homo Europeanus era visto como mais inteligente, inventivo e gentil, enquanto os índios americanos seriam teimosos e irritadiços, os asiáticos sofreriam com dificuldades de 3 Na verdade, o próprio Darwin extrapolou sua teorização para além da esfera da natureza, e construiu muitas explicações racistas sobre os diferentes grupos humanos. Para mais detalhes ver: DARWIN, Charles. A origem do homem e seleção sexual. Lisboa: Relógio d’Água, 2009. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 concentração e os africanos não conseguiriam escapar à lassidão e à preguiça (MAGNOLI, 2009, p. 24). Outro exemplo desse tipo de concepção era a formulada por Georges-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido como Conde de Buffon. Para esse naturalista francês, “o negro estaria para o homem como o asno para o cavalo, ou antes, se o branco fosse homem, o negro não seria mais homem, seria um animal à parte como o macaco” (BUFFON apud POLIAKOV, 1974, p.142). Além de Buffon, outro naturalista que também afirmava que os americanos não são apenas “imaturos”, mas são degenerados foi Cornelius Franciscus de Pauw (1739- 1799). Para ele “a natureza do Novo Mundo é débil por estar corrompida, inferior por estar degenerada” (DE PAUW apud ZEA, 1972, p.81). Outras muitas visões dos “homens de ciência” do século XVIII, carregadas de ideologia racial, poderiam ser listadas (François Bernier, Georges Cuvier e Blumenbach). Todavia, foi fundamentalmente no século XIX, em especial na segunda metade, sob o darwinismo social, que este discurso raciológico se vestiu de argumentos científicos, criando uma atmosfera de verdade inquestionável, se tornando um paradigma explicativo da diferença dos povos. Nessa concepção se mantém a perspectiva de classificar o homem branco europeu no ápice do desenvolvimento e da civilização, enquanto os americanos e os africanos eram enquadrados em escalas menores sendo, inclusive, muitas vezes comparados aos animais (TODOROV, 1999). Certamente o imperialismo, europeu e estadunidense, se apropriou dessas teorias para legitimar sua dominação com o discurso da “seleção natural”, o do mais forte, o mais adaptado, o mais superior. O discurso civilizacionista do imperialismo se justificava no discurso científico criando a concepção ideológica que era função do homem branco superior levar a civilidade aos povos inferiores e selvagens (HOBSBAWN, 1977). No entanto, não foram apenas os imperialistas das nações europeias que se utilizaram desse discurso do cientificismo raciológico para justificar suas ações colonialistas e exploratórias, muitas elites letradas e dirigentes de vários países do Novo Mundo se apropriaram desse discurso, e os homens de letras e/ou “ciência” no Brasil estavam entre elas. A partir dessas considerações analisaremos a divulgação e apropriação do discurso científico, e sua relação com a ideologia social do racismo no Brasil do século XIX. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 3.2 Discurso científico e ideologia racial no Brasil do século XIX Segundo Renato Ortiz (1985, p. 14), no século XIX, as três principais concepções cientificistas que tiveram impacto real junto à intelligentsia brasileira foram o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. No entanto, as ideias não se difundem no ar, elas precisam de suportes e/ou locais de sociabilidade para circularem. A partir da década 1870 essas concepções passaram a ser divulgadas mais intensamente na sociedade brasileira não apenas com a circulação de alguns livros e revistas4, mas também, nas reuniões e palestras “científicas”. Participar dessas reuniões era uma prática, uma forma de sociabilidade, uma tentativa da elite brasileira de fazer parte da ideia de “mundo civilizado” e de progresso. A elite brasileira queria se igualar à europeia, então, conhecer, divulgar e se apropriar das concepções artísticas e do discurso científico eram sem dúvida os principais veículos para isso. Nesse período, temos, então, a criação da Conferência da Glória que era realizada na escola pública primária da Freguesia da Glória (atual Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado na cidade do Rio de Janeiro). Essas reuniões eram palanques para reivindicações sociais e políticas, como também acabaram se tornando o epicentro de propagação das novas “ideias científicas” da época. Os temaseram diversificados, havia conferências acerca de literatura, teatro, história das civilizações, educação, geografia, gramática, matemática, biologia, medicina, botânica e ciências físicas. Os frequentadores das conferências eram membros da elite brasileira (políticos, profissionais liberais, estudantes e literatos). Nesse período, apenas os filhos de famílias ricas, pertencentes à aristocracia, é que tinham condições de ter estudos em nível de formação superior, muitos, aliás, formados na Europa. Embora fosse gratuita a entrada, ela era restrita aos convidados. O convite valia para toda a família. O imperador D. Pedro II, que se dizia ser um homem de ciência, participava dessas reuniões, como também quase toda a família real (CARULA, 2009). Assim a divulgação da ciência se dava por meio da elite que incorporava assuntos pertinentes a sua ideologia. Vários jornais divulgavam resumos com os temas da Conferência. O jornal O Globo lançou periódicos mensais que abordavam temas das reuniões com comentários. O darwinismo foi apresentado nas Conferências por vários oradores, alguns versaram sobre os temas mais diretamente, outros perpassaram o assunto. O primeiro a tratar da 4 Para mais detalhes sobre as publicações de “ciência” no Brasil do século XIX ver: PINHEIRO, Rachel. O que nossos cientistas escreviam: algumas das publicações em ciências no Brasil do século XIX. Tese de Doutorado, Campinas: Instituto de Geociências (UNICAMP), 2009. SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 teoria de Darwin, nas Conferências da Glória, foi o médico Augusto Cezar Miranda Azevedo. Em abril de 1875, ele sintetizou os princípios darwinistas em quatro pontos: a luta pela existência, a variabilidade das espécies, a hereditariedade e a seleção natural (COLLICHIO, 1988). Na verdade a concepcão que Miranda Azevedo tinha do darwinismo era permeada por outras teorias evolucionistas. A leitura que ele fazia de Darwin, era mediada também pelas ideias do darwinismo social de Ernst Haeckel, e de igual modo pregava a extensão das teorias biológicas para compreender a sociedade (GUALTIERI, 2003, p.45). Embora o darwinismo social tenha sido apropriado tardiamente ele foi bem recebido no Brasil, uma vez que legitimava a ideia de superioridade dos brancos tidos como puros sobre os negros, indígenas e mestiços. A ideologia racial da elite que já vinha desde a época da colonização, prontamente se alimentou do discurso cientificista do positivismo-evolucionista. Para uma sociedade em que a economia era baseada e sustentada pela mão-de-obra escrava, era necessário ter uma forma de verdade que legitimasse essa dominação. Mas, se por um lado, o conhecimento e a aceitação desses modelos (evolucionista e darwinista social) por parte da elite intelectual e política brasileira traziam a sensação de proximidade com o mundo europeu e de confiança na inevitabilidade do progresso e da civilização, por outro, isso implicava, no entanto, certo mal-estar quando se tratava de aplicar tais teorias em suas considerações sobre raças. Paradoxalmente, a introdução desse novo ideário científico expunha, também, as fragilidades e especificações de um país tão miscigenado (SHWARCZ, 1993, p. 34). Ao mesmo tempo em que as teorias raciológicas agradavam os intelectuais e a elite política brasileira, provocavam, na mesma proporção, um mal-estar, sobretudo, porque serviam também para vários estrangeiros representar o Brasil como exemplo de nação degenerada. Um dos representantes dessa visão era francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) que via o país como o maior exemplo de degeneração decorrente da miscigenação. Aos seus olhos era a mistura de raças que apagava as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, e resultava num tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental, o mestiço (SKIDMORE, 1976, p. 46). Como lembra Ortiz (1985) essas teorias colocavam um dilema aos intelectuais desta época, como pensar a realidade brasileira sob a luz dessas teorias que colocavam o país em estágio civilizatório inferior ao alcançado pelos países europeus. Era SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 necessário explicar o “atraso” e apontar para um futuro próximo que dava possibilidade de o Brasil se constituir enquanto nação. A forma de contornar tal mal-estar foi se apropriar dessas teorias de modo à ressignificá-las. Juntamente com o evolucionismo os intelectuais brasileiros encontravam argumentos em duas noções particulares como o meio e a raça (ORTIZ, 1985, p.15-16). Não é por acaso que Os Sertões de Euclides da Cunha (1866-1909) começam com dois longos capítulos sobre a Terra (o meio) e o Homem (a raça); que Silvo Romero (1851- 1914), já em seus primeiros estudos sobre o folclore, dividia a população brasileira em habitantes das matas, das praias e margens do rio, dos sertões, e das cidades. Do mesmo modo, Nina Rodrigues (1862-1903), em suas análises do direito penal brasileiro, teceu inúmeras considerações a respeito da vinculação entre características psíquicas do homem e sua dependência do meio ambiente. Muitos desses intelectuais se apropriaram das concepções do historiador inglês Henry Thomas Buckle (1821-1862), principalmente as ideias desse historiador que buscavam vincular o desenvolvimento das civilizações a alguns fatores como calor, fertilidade da terra, umidade, sistema fluvial. Nessa interpretação a natureza suplantava o homem, a cultura europeia teria dificuldades em se fixar, o que determinaria o estado ainda de atraso em que o conjunto da população brasileira se encontrava. É certo que houve críticas por parte dos intelectuais brasileiros a esta visão, mas não iam até o núcleo do pensamento buckleiano, precisavam conservar os fundamentos para legitimar a sua apropriação. As críticas se referiam simplesmente aos seus exageros e o pouco conhecimento que o historiador inglês tinha do Brasil. Para Sílvio Romero a interpretação de Buckle estava incompleta, por isto ele se colocava o objetivo de aprimorá-la. Em Euclides da Cunha (2003, p.77) era contrastada a neurastenia do mulato do litoral com a rigidez do mestiço do interior. Nesse determinismo o clima explicaria a natureza do brasileiro, mas apontavam para outras conclusões, relativamente, diferentes daquelas dos homens de ciência estrangeiros. Para Sílvio Romero o fator raça era mais importante que o meio. Segundo ele, “conquanto reconheçamos a extraordinária influência do meio, cremos ainda superior – a da raça” (ROMERO, s/d, p.107). Nesse sentido, algumas das proposições dos “modelos científicos” sobre raças e meio eram aceitos e outros não, a elite intelectual e política brasileira fizera uma releitura, uma apropriação, dessas teorias raciológicas do século XIX. Segundo Skidmore (1976, p.82) a intelectualidade brasileira na busca da negação da ideia de SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 inferioridade inata dos mestiços, construiu uma visão otimista da miscigenação, para essa elite, a mistura racial não produzia a degeneração, pelo contrário, produzia sim umapopulação cada vez mais branca. A defesa do branqueamento da população se dava, em primeiro lugar, porque se acreditava que o “gene branco” era mais forte, e, em segundo lugar, porque, aos olhos desses intelectuais, as pessoas procuravam parceiros mais claros do que elas. Um desses defensores foi Sílvio Romero, que dizia Manda a verdade, porém, afirmar que essa almejada unidade, só possível pelo mestiçamento, só se realizará em futuro mais ou menos remoto; pois será mister que se dêem poucos cruzamentos dos dois povos inferiores entre si [grifo nosso], produzindo-se assim a natural diminuição deste, e se dêem, ao contrário, em escala cada vez maior com indivíduos da raça branca (ROMERO, s/d, p.114). No discurso de Romero a ideologia racial de superioridade do branco fica explicita. Mas, também é possível perceber uma diferença das concepções que sustentava Gobineau. Ao contrário do “teórico racista” francês, Romero, nessa época, defendia claramente a mestiçagem como forma de melhoramento do povo brasileiro, embora esta, como se percebe em suas palavras, devesse ser realizada não entre índios e negros, elementos tidos como inferiores, e, sim, destes com os indivíduos tidos como superiores em função de sua pele clara. Para efetivar a tese do branqueamento a imigração de europeus aparecia como fator sine qua non, pois, o elemento branco se constituiria como a raça mais forte, logo se imporia na relação racial e levaria a paulatina purificação da sociedade brasileira. Neste contexto passa a ser corrente a afirmação de que a identidade do Brasil era fruto de três raças: o branco, o negro e o índio. Não obstante, essa forma de pensar a identidade se caracteriza pela legitimação-dominação, isto é, ela legitimava a dominação de certos atores sociais sobre os outros membros da sociedade, representando os negros e o índio como entraves ao progresso e a civilização e o elemento branco com status de superioridade (SANTOS, 2011, p.150).. 4 Conclusões No século XIX a ciência ganhou caráter de quase um dogma, servindo como explicação indubitável da realidade física e social. Nesse contexto, formou-se um forte discurso de cientificidade que sustentava as teorias raciológicas quase que como uma SANTOS, L. AZRARA, T. A. As Apropriações dos Intelectuais: discurso científico e ideologia racialno brasil do século XIX. Cadernos de Educação, Tecnologia e Sociedade, Vol. 04, n. 01, 179-197p., 2013. ISSN 2316-9907 ciência normal na forma de interpretar os povos e nações não europeus. Essas proposições cientificistas logo serviram as ações imperialistas e as ideologias de superioridade das elites brancas europeias. O Brasil não ficaria imune a essas concepções cientificistas. Já na segunda metade do século XIX o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo e todas as formas de teorias raciológicas passam a serem divulgadas e defendidas. Um dos palcos dessa divulgação foram sem dúvida as Conferências da Gloria. Mas, logo esse discurso de cientificidade ganhou maior ressonância nas interpretações raciológicas e climatológicas nas obras de vários intelectuais. Em muitos casos esse discurso serviu como elemento de explicação do atraso do país em relação às nações europeias. Não era incomum ver membros da elite defendendo que os negros e os índios eram a causa da falta de civilização do Brasil, e que para o progresso da nação deveria haver o branqueamento da sociedade. Assim, o discurso de cientificidade do século XIX se associou intensamente a ideologia social brasileira desse mesmo século. Todavia é importante destacar que as ideias cientificistas importadas da Europa não foram simplesmente reproduzidas Ipsis litteris pela elite intelectual brasileira, na verdade elas foram apropriadas, isto é, reinterpretadas, ressignificadas para compreender e, muitas vezes, justificar a ideologia social de uma época e lugar, o Brasil do século XIX. Referências ANDERY, Maria A et al. Para Compreender a Ciência: uma perspectiva histórica. 5 ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1994. ARON, Raymond. O ópio dos Intelectuais. Brasília: Editora da UnB, 1980. BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo, Unesp, 1997. BOURDIEU, Pierre. Intelectuales, política y poder. Buenos Aires: Eudeba, 1999. -------------, Los usos sociales de la ciencia. Buenos Aires: Nueva Visión, 2012. BRANDÃO, Helene H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 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Membro fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares Túlio Almeida de Ázara (tulio_azara@hotmail.com) Graduando em Licenciatura em História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares
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