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Direito Civil III 1 Tema I Contratos: noções gerais. conceito e evolução. Princípios fundamentais. A nova ótica contratual. Os princípios contratuais da autonomia da vontade, da obrigatoriedade, da relatividade e do consensualismo e suas mitigações. A função social dos contratos. O princípio da probidade e da boa-fé. A boa-fé objetiva e sua distinção da boa-fé subjetiva. Aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva nas diversas fases do contrato. Notas de Aula 1. Principiologia contratual: breve evolução histórica 1.1. Autonomia da vontade Com o fim do Estado absolutista, em 1789, pela Revolução Francesa, teve início a era do Estado liberal, em que se primou pelo repúdio a toda e qualquer interferência estatal sobre aquilo que se considerasse privado. de fato, foi-se de um extremo a outro: da grande ingerência do Estado, opressiva, absolutista, a uma liberdade igualmente extremada, calcada em quatro grandes pilares: a constituição como instrumento fruto da vontade do povo, e não mais do soberano, manifestada por meio de representantes eleitos; a lei, representando a mesma vontade popular, em menor escala; a razão, o racionalismo, concepção de pensamento que buscava explicar tudo à luz das regras da razão (concepção que colocava-se em exata contraposição ao predomínio da igreja, que era quem legitimava o absolutismo, com seu apoio, com a escolha divina dos soberanos); e, por último, e mais importante neste estudo que se faz agora, o contratualismo. A Revolução Francesa promoveu uma síntese das relações humanas a uma perspectiva quase que exclusivamente contratual, entre pares e mesmo entre os cidadãos e o Estado. Não por acaso, é desta época O Contrato Social, de Rousseau, que explica a natureza do Estado de forma contratualizada. Veja que este contratualismo é fruto direto do ideal libertário da época, pois nada premiava tão claramente a liberdade do que permitir que os indivíduos pactuassem e ajustassem, sem interferências, os seus interesses. A vontade passou a ser soberana. E isso era a liberdade maior que se podia conceber. Neste diapasão, o contrato surge com a mais profunda ligação ao princípio da autonomia da vontade, princípio também chamado (emblematicamente) de liberdade de contratar. O contratualismo liberal tinha na autonomia da vontade seu maior baluarte, justamente porque se pensava que a maior expressão da dignidade da pessoa humana era a possibilidade de exprimir livremente a sua vontade. Mesmo por isso, algumas expressões representativas desse ideário foram cunhadas, e adotadas dogmaticamente à época: como exemplo, citava-se como dogma que “tudo que é contratual é justo, desde que as partes sejam livres para contratar”, ou “diz-se contratual, diz-se justo”. Percebia-se que a única medida de justiça de um contrato era a liberdade em contratar, porque o próprio contratante, ao manifestar livremente sua vontade, era fiscal daquilo que lhe iria ter pertinência. O Estado, então, deveria preocupar-se tão-somente em garantir a liberdade em contratar, a livre manifestação da vontade, porque o filtro de regularidade do restante seria incumbência das próprias partes manifestantes. Este Estado liberal era um grande Pontius Pilatus, lavando as mãos diante do conteúdo dos contratos, alheando-se completamente de intervir na substância dos contratos livremente pactuados. Direito Civil III 2 É claro que o próximo passo evolutivo não tardou a vir. Tão breve quanto possível, se pôde fazer notar que a autonomia da vontade, a liberdade em contratar, não representava a medida da justiça de forma fiel, porque, na prática, o equilíbrio não vem da liberdade das partes: mais que isso, é preciso que estas sejam iguais para que um contrato seja realmente justo. Veja: se uma das partes é mais forte que a outra, em qualquer aspecto, a tendência é que seus interesses prevaleçam sobre os interesses da mais fraca, e a mera possibilidade de se manifestar autonomamente não impede que o pacto dali resultante seja tremendamente injusto – mesmo que tenha havido livre manifestação da vontade. As relações trabalhistas ilustram bem esta falsa liberdade. A disparidade entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores fazia com que os contratos de trabalho fossem firmados na forma e medida que melhor atendesse ao empregador, por mais que fosse livre o trabalhador para contratar-se ou não. Anatole France, autor francês da época, tem uma frase emblemática: o trabalhador era “maravilhosamente livre para morrer de fome”. Percebido isto, esta disparidade, esta desigualdade que tornava a autonomia da vontade um tanto quanto inútil, percebeu-se também que seria necessário promover a real liberdade, que só se poderia alcançar por meio de certa igualdade. Como é naturalísticamente impossível produzir a igualdade total, o equilíbrio contratual precisava ser buscado de outra forma. Dali surgiu certa mitigação à autonomia da vontade – mitigação, jamais abolição –, consubstanciada no dirigismo contratual. Este dirigismo se trata, em última análise, da mão invisível do Estado pousada sobre o pacto privado, com o objetivo de equilibrar uma relação que é naturalmente desequilibrada. O Estado, deixando de ser mero espectador e passando a dirigir o contrato de maneira a proteger a parte mais vulnerável, promove o equilíbrio que a própria parte mais fraca jamais conseguiria promover. Este Estado intervencionista, sucessor do Estado liberal clássico, salomonicamente, torna a parte que é naturalmente mais vulnerável em uma figura juridicamente mais forte. Hoje, esta mentalidade vige forte em diversos exemplos: a legislação trabalhista, a legislação consumerista, a lei das locações, etc. O dirigismo se manifesta de duas formas diferentes: ora impõe algumas cláusulas contratuais que provavelmente não estariam ali presentes pela vontade pura das partes, como quando a legislação trabalhista prevê as regras gerais do contrato individual de trabalho, impondo carga horária máxima, por exemplo (que, fosse ainda vigente o liberalismo clássico, certamente seria a carga horária que o empregador impusesse); ora proíbe certas cláusulas, que se presentes exibiriam toda a sobrepujança de uma parte sobre a outra – como as cláusulas abusivas vedadas em contratos de consumo. Hoje, aliado a esta concepção vigente do dirigismo contratual, há alguns princípios de grande poder de promoção da paridade contratual, e dentre eles surge com tremenda significância a função social do contrato, mitigação ao princípio da autonomia da vontade que demonstra que a sociedade está atenta à justiça dos pactos como medida de justiça de si própria. 1.2. Força obrigatória dos contratos Outro princípio fundamental, elevado à categoria de norma inquestionável e imitigável em épocas de liberalismo estatal, é o da força obrigatória dos contratos, também chamado de imutabilidade dos contratos, princípio originado do Direito Romano, representado no famigerado brocardo pacta sunt servanda. Direito Civil III 3 Na concepção pura, originária – e, diga-se, conceitualmente perfeita – o contrato surge para ser cumprido. Do contrato promanam condutas obrigatórias para as suas partes, é um vínculo jurídico que obriga as partes, não podendo ser modificado por meios outros que não o próprio meio que se lho cria: o consenso. À mais pura expressão, a imutabilidade do contrato significa que sequer o Judiciário pode alterar aquilo que a vontade criou. Esta concepção tão severa do pacta sunt servanda, vigente à época do liberalismo clássico (tão severa que Kelsen colocava este princípio, ao lado da autonomia da vontade, no topo da pirâmide normativa do contratualismo liberal), não pôde se sustentar por muito tempo. A cláusula rebus sic stantibus, que torna possível a revisãocontratual, praticamente desapareceu no Estado liberal clássico, pois que consiste justamente em uma fragilização deste princípio da força obrigatória dos contratos. No direito moderno, é claro que o pacta sunt servanda é vigente, e forte, sendo decerto um dos pilares do contratualismo moderno. É princípio fundamental para o equilíbrio social, para a estabilidade das relações. O que este princípio não é, agora, é absoluto, pois a nova ordem jurídica, relendo estes conceitos pela necessária dialética normativa que a evolução social impõe, atenuou a severidade de tal força obrigatória, fazendo surgir as novas teorias revisionistas do contrato. A cláusula rebus sic stantibus, então, exprime bem esta revisão da concepção contratual. Esta cláusula permite que se resolva ou modifique um contrato a pedido de uma só das partes, ou seja, superando o consenso como elemento inarredável que o era, sempre que um fato superveniente provoque o rompimento grave da equação econômica do contrato. Entenda-se: as partes de um contrato o celebram na pressuposição de que a situação econômica que sobre aquela relação paira permaneça a mesma. Se esta pressuposição se rompe, com o manifesto prejuízo de uma das partes, nada mais justo que se modificar, ou mesmo resolver o contrato, de forma a restaurar o equilíbrio inaugural da relação. As teorias revisionistas, em suas diversas vertentes – teoria da imprevisão, da onerosidade excessiva, da pressuposição, da quebra da base econômica dos contratos, etc –, todas elas calcam-se em um mesmo estuário, que é justamente o reequilíbrio da equação econômica do contrato, desequilibrada no curso temporal de sua existência. São, todas estas teorias, mitigações justas ao pacta sunt servanda. O novo Código Civil brasileiro, diploma típico do Estado intervencionista que vigora, é claro que acolhe estas idéias revisionistas. O já mencionado princípio da função social dos contratos, limitador da autonomia da vontade, vem expresso logo no primeiro artigo do livro referente aos contratos, o artigo 421 do CC: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Esta previsão denuncia a nova concepção do contrato, que mais do que um instrumento de circulação de interesses, deve ser um gerador de bem estar social, capaz de produzir efeitos positivos entre os contratantes e para além deles. Além deste dispositivo, há uma “sensação” geral de proteção ao equilíbrio contratual espargida por todo o codex, tal como se vê nos institutos da lesão e do estado de perigo, erigidos como vícios do consentimento capazes de anular o contrato, ou da onerosidade excessiva, do artigo 478 do CC, causa resolutiva legal do contrato: Direito Civil III 4 “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” Há que se consignar um comentário apartado sobre este artigo 478. Em que pese ser uma expressão altamente positiva do dirigismo contratual, o legislador pecou em sua concepção, ao prever que a onerosidade excessiva só autoriza a resolução do contrato se causada por evento extraordinário e imprevisível. Isto porque, tendo ou não estas qualidades, o desequilíbrio ainda persiste, e a resolução ainda é necessária, tanto que, no Código de Defesa do Consumidor, o mesmo instituto é traçado, no artigo 6º, V, sem esta imprevisibilidade como elemento essencial. Veja: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; (...)” 1.3. Consensualismo O contrato, é certo, nasce com o consenso das vontades. Não é preciso nenhum outro ato, senão o consenso das vontades, para que haja contratação aperfeiçoada, em regra. O vínculo surge desde que há vontade plural manifesta. Mesmo por isso, em uma compra e venda, por exemplo, a entrega da coisa e o pagamento do preço são atos de execução do contrato, que já se aperfeiçoou antes, quando da emissão da proposta e da aceitação, manifestação das vontades. Esta regra, contudo, também conta com mitigações, e são elas os contratos classificados como reais. Nestes contratos, não basta o consenso para que se aperfeiçoem. Não é suficiente que haja a manifestação de vontade do proponente e do oblato. O contrato real só se aperfeiçoa, só existe o contrato, quando há a entrega da coisa, a tradição. No Código Civil de 2002, há quatro contratos reais típicos: o mútuo, empréstimo de coisas fungíveis; o comodato, empréstimo de coisas infungíveis; o depósito; e, inovação, o contrato estimatório. 1.4. Relatividade Os contratos são oponíveis apenas entre as pessoas que deles tomam parte, ao contrário dos direitos reais, oponíveis erga omnes. Somente quem faz parte da relação contratual pode exigir cumprimento da conduta ajustada, ou ser compelido a cumpri-la. O contrato só vincula os contratantes, não podendo ser oposto a quem dele não participe – são lex inter partes. Também este princípio enfrenta mitigações. A estipulação em favor de terceiro, modo de contratar que tem muita presença na realidade negocial atual, é um exemplo: os contratantes podem estipular que uma das prestações emanadas de seu contato seja adimplida junto a um terceiro, beneficiário alheio ao contrato, e que passa a ter legitimidade Direito Civil III 5 para exigir tal cumprimento do devedor, mesmo sem ter jamais participado da formação do contrato. Exemplo de contrato desta espécie é o contrato de seguro de vida. O CC, de fato, apresenta mais duas modalidades expressas que consistem em mitigações à relatividade contratual: além da estipulação em favor de terceiro, há a promessa de fato a terceiro, e a surpreendente inovação do contrato com pessoa a declarar, no qual uma das partes se reserva o direito potestativo a indicar uma pessoa que, futuramente, substituirá a si mesmo no pólo contratual que ocupa. Serão, todas as hipóteses, estudadas detalhadamente em momento oportuno. 1.5. Boa-fé Este princípio contratual é de tamanha relevância que pode ser considerado uma cláusula geral sobrejacente, inclusive, a todos os demais princípios. Também por isso, é o único princípio que não comporta qualquer exceção: não há mitigações à exigência da boa- fé nas relações contratuais. Ocorre que, entretanto, se algum princípio sofreu alteração significativa – alteração, veja, e não mitigação –, este princípio foi a boa-fé. A mudança da concepção da boa-fé subjetiva para a boa-fé objetiva é realmente paradigmática. Entenda: a boa-fé subjetiva consistia em um estado psicológico, em um princípio ético, verificado junto às intenções do indivíduo, e por isso não tinha tanta relevância para a regularidade dos pactos, uma vez que era um princípio ético: bastava que a parte tivesse a intenção de agir com probidade para estar cumprida a exigência deste princípio, quando subjetivo. Hoje, porém, a boa-fé não se refere ou se contenta com a intenção do agente. É necessário que haja uma conduta de boa-fé, ou seja, é necessário que se possa perceber objetivamente a presença da boa-fé. A boa-fé é um dever jurídico, cláusula implícita em todos os contratos imagináveis. Veja o que dispõe o artigo 422 do CC: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Esta cláusula imposta pelo dirigismo contratual exerceuma tríplice função: é método de hermenêutica, regra de interpretação dos negócios jurídicos, na forma do artigo 113 do CC: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” Segundo esta regra, a análise da honestidade na condução do pacto é parametrizada pela boa-fé, servindo como um trilho da conduta esperada, parâmetro da conduta standard que se espera dos agentes, dando ao intérprete os meios para, espelhando aquilo que analisa, saber se está ou não em consonância com o ordenamento. A segunda função da boa-fé objetiva é justamente ser uma regra de execução do contrato, ou seja, é a própria boa-fé contratual, que traça a forma pela qual os contratantes devem se conduzir. Esta função é depreendida diretamente do artigo 422 do CC, há pouco transcrito. Veja que o legislador criou ali uma obrigação às partes, e não uma mera exortação, um conselho de como conduzir-se: é imposta aos contratantes a atenção à boa- fé, obrigação cujo cumprimento será objetivamente verificado. Direito Civil III 6 A terceira função da boa-fé objetiva é justamente a de integração do contrato, quando for necessário promover seu equilíbrio econômico. Veja: é de se esperar que um homem honesto, que se porta de acordo com a expectativa social de justiça, saiba que vantagens exageradas não promovem o escopo social do contrato. O benefício econômico do contrato deve ser perseguido, sem sombra de dúvidas – é uma das funções do contrato, girar riquezas –, mas não de forma exacerbada, capaz de trazer ruína ao co-pactuante. Por isso, a boa-fé é o limite: se, objetivamente, estiver clara a disparidade excessiva, fica claro que o contratante beneficiado não estava de boa-fé – e aí reside a enorme inovação da concepção objetiva, pois mesmo que estivesse subjetivamente de boa-fé, crendo-se em correção de conduta, ainda há ausência da atuação objetivamente de boa-fé. Da boa-fé objetiva surgem consectários, desdobramentos de tremenda importância, sub-princípios que a identificam e tornam operável o que a boa-fé dita. Vejamo-los. 1.5.1. Lealdade Este consectário da boa-fé objetiva exige que os contratantes zelem pelas expectativas que estão criando na mente dos seus relacionandos. É tão importante portar-se de forma leal que até mesmo na fase das tratativas é imponível o respeito a tal preceito, tratativas estas que, no passado, eram virtualmente ignoradas pelo direito. Entenda: mesmo antes de se emitir a vontade de vez, firmando o contrato, é necessário que as partes tenha cuidado com aquilo que estão a despertar umas nas outras. É importante não obnubilar suas verdadeiras intenções, assim como deixar cristalina todas as peculiaridades do negócio jurídico que se está pretendendo aperfeiçoar. Objetivamente,se pode exemplificar esta reverberação da boa-fé, na lealdade exigida, pelo desencorajamento implícito à formulação de propostas dúbias, que conduz a uma interpretação favorável ao que se sentiu desinformado – o que nos leva ao próximo consectário da boa-fé, o princípio da informação. 1.5.2. Informação As partes não podem sonegar informações quaisquer, de qualquer natureza, que possam influir no bom resultado de um contrato. Informar a respeito de absolutamente tudo que seja pertinente ao contrato é conduta honesta, standard que se espera de todos os indivíduos em sociedade. O CDC considera tão relevante a informação que a sua ausência é considerada um vício do produto ou serviço, tal como se um vício físico a inutilizar o objeto contratado fosse presente. Íntima correlação com o dever de informação tem o princípio da transparência: as partes devem eximir-se de qualquer conduta que obscureça a realidade contratual, o que se faz especialmente relevante quando da redação de contratos escritos, em que uma das partes seja um tanto mais vulnerável. 1.5.3. Cooperação Este consectário da boa-fé determina que as partes têm que se ajudar na consumação do contrato, ou seja, hão de conduzir-se de forma a facilitar o adimplemento Direito Civil III 7 das obrigações uns dos outros, portando-se de forma proba,e até mesmo socorrista, em certa monta. Há correlação entre o princípio da cooperação e o da preservação dos contratos: as partes devem conduzir-se de forma a favorecer a perfeita execução do contrato, evitando sua extinção anômala, qualquer que seja – a dissolução prematura do contrato só deve ocorrer se impossível for sua manutenção. 1.5.4. Teoria da vedação aos comportamentos contraditórios Em razão do peso da boa-fé, hoje, surgem teorias derivativas que têm ganhado presença cada vez mais significativa no ordenamento. Uma das mais marcantes pode ser nomeada genericamente como teoria da vedação aos comportamentos contraditórios, que se manifesta em diversas subespécies. Vejamos. A primeira manifestação desta teoria é o famigerado nemo potest venire contra factum proprium, que, em síntese, significa que a adoção comum de uma determinada conduta impede que seja legítima uma outra conduta absolutamente contrária. Esta situação, que certamente surpreende a outra parte, é conduta que não corresponde à boa-fé objetiva e seus paradigmas. Isto porque a adoção de determinada conduta, por tempo razoável, incute na mente da outra parte a expectativa de que esta conduta se solidificou e não será alterada, sobremaneira em repente. Outra espécie é a supressio: esta consiste em uma redução da obrigação correspondente a um direito que, por certo tempo razoável, não foi exercido pelo seu titular. É, de fato, a perda proporcional de um direito que não foi exercido, e que, de acordo com o correr do tempo, passa a demonstrar que se for plenamente invocado será, de fato, abuso de direito. Veja que, ao não exercer o direito por período significativo, o titular incutiu na mente da outra parte a sensação de que não seria mais exercido tal direito, e por isso passa a ser abusivo o exercício deste direito agora, após a criação da expectativa de não invocação deste. Este exercício, nesta condição, seria conduta contrária àquela que se consideraria de boa-fé. Da mesma forma, mas em sentido contrário, surge a surrectio, que é a aquisição de um direito pela reiteração, por tempo razoável, de uma conduta que não sofreu oposição pela outra parte. Esta não oposição cria a expectativa, e cria o próprio direito a, se porventura oposição vier, repudiá-la, pois que esta oposição tardia será contrária à boa-fé. O CC traz duas hipóteses expressas de supressio, nos artigos 329 e 330: “Art. 329. Ocorrendo motivo grave para que se não efetue o pagamento no lugar determinado, poderá o devedor fazê-lo em outro, sem prejuízo para o credor.” “Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.” O artigo 330 é que é de fato a hipótese, porque ali fica clara a perda do direito de exigir o pagamento no local pactuado, quando reiteradamente for admitido em local diverso. Direito Civil III 8 Mais uma reverberação desta vedação à contradição como medida de implemento da boa-fé é o tu quoque1. Esta novel teoria consiste, em termos rasos, na vedação à exigência de comportamento tal que, quando aquele que exige se encontrava em situação idêntica, não adotou, ele próprio, o comportamento exigido. Explique-se: é algo como a perda da legitimidade para exigir um comportamento por não ter, este que exige, observado tal comportamento quando dele este era exigível. Exemplo de invocação do tu quoque seria o de um condômino que exige prestações de contas mensais do síndico, sendo que este condômino fora síndico outrora e, à sua época, jamais prestou tais contas: não tem, portanto,autoridade moral para exigir tal conduta, porque não é objetivamente de boa-fé tal exigência partida de quem não a cumpriu quando em situação análoga. 1.5.5. Vigência da boa-fé O princípio da boa-fé é de tal importância que se faz sentir até mesmo nas fases pré e pós contratuais. É possível se invocar a atenção à boa-fé nas tratativas ou após a execução extenuada do contrato, e isto é uma verdadeira revolução nesta seara do direito. Veja: as tratativas, especialmente, sempre foram tidas como irrelevantes ao direito, modo que o seu abandono por uma das partes, por exemplo, jamais ensejou indenizabilidade à parte oposta. Da mesma forma, depois de findo o contrato, há ainda que se atentar para deveres que são surgidos unicamente da boa-fé. Como exemplo, o fornecedor que coloca um produto durável no mercado, se retirá- lo de produção, não poderá deixar de oferecer peças de reposição por tempo razoável após a cessação da produção do próprio produto – o que decorre da boa-fé pós-contratual, porque o contrato em si já pode ter-se executado e exaurido. Um exemplo seria a retirada de um automóvel de linha: a compra e venda exaure-se na entrega do bem e paga do preço, mas a obrigação de oferecer peças de reposição perdura muito após a retirada do automóvel em questão da linha de produção, ou seja, muito após a execução final da compra e venda, o término do contrato. 1 Este nome vem da famosa expressão do imperador romano César, que, em suas últimas palavras, ao ser esfaqueado por seu protegido Brutus, exclamou “tu quoque, Brutus, fili mi?”, significando “até tu, Brutus, meu filho?”. A lógica da adoção deste nome, me parece, significa que quando há a demanda por um comportamento, não tem autoridade para assim demandar aquele que deveria ter assim se portado no passado, e não o fez. Seria algo como “até você, que não se comportou desta forma, vem exigir de mim que assim me comporte?”. Ressalto que esta é uma interpretação pessoal, não abalizada em doutrina. Direito Civil III 9 Casos Concretos Questão 1 A empresa de enlatados XIXA anualmente compra a safra de tomates do agricultor RIBAMAR, inclusive disponibilizando-lhe materiais como sementes e caixas para o armazenamento da produção, situação essa que se repete com habitualidade. Ocorre que, neste ano, a empresa resolve contratar outros agricultores da mesma região, atraindo-os para o cultivo dos tomates, e igualmente distribuindo-lhes sementes e caixas, sem comunicar tal fato a RIMAMAR. No mês de novembro, época em que normalmente era adquirida a colheita de RIBAMAR, este dirige-se à empresa XIXA, que lhe informa não mais desejar comprar sua produção, tendo em vista já haver recebido tomates dos outros agricultores da região. Inconformado, RIBAMAR ingressa com ação de reparação de danos em face de XIXA, postulando inclusive lhe sejam ressarcidos os custos decorrentes da parte da produção que não conseguiu vender para outras empresas. Em contestação, a empresa XIXA invoca a ausência de contrato escrito. Decida o caso acima, à luz do entendimento jurisprudencial sobre a matéria. Resposta à Questão 1 Este caso deixa transparecer a aplicabilidade da vedação ao venire contra factum proprium, pois a conduta passada da empresa, reiterada, fez surgir para Ribamar a expectativa real e sólida de manutenção do contrato. No mínimo, deveria ter sido notificado da descontinuidade do contrato em tempo hábil, mas ainda assim deveria ser indenizado pelo que despendeu crendo mantido o pacto. Assim se posicionou o TJ/RS, em caso emblemático, como se vê na apelação cível 591028295: “EMENTA: CONTRATO. TRATATIVAS. "CULPA IN CONTRAHENDO". RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA ALIMENTICIA, INDUSTRIALIZADORA DE TOMATES, QUE DISTRIBUI SEMENTES, NO TEMPO DO PLANTIO, E ENTAO MANIFESTA A INTENCAO DE ADQUIRIR O PRODUTO, MAS DEPOIS RESOLVE, POR SUA CONVENIENCIA, NAO MAIS INDUSTRIALIZA-LO, NAQUELE ANO, ASSIM CAUSANDO PREJUIZO AO AGRICULTOR, QUE SOFRE A FRUSTRACAO DA EXPECTATIVA DE VENDA DA SAFRA, UMA VEZ QUE O PRODUTO FICOU SEM POSSIBILIDADE DE COLOCAÇÃO. PROVIMENTO EM PARTE DO APELO, PARA REDUZIR A INDENIZAÇÃO À METADE DA PRODUÇÃO, POIS UMA PARTE DA COLHEITA FOI ABSORVIDA POR EMPRESA CONGÊNERE, ÀS INSTÂNCIAS DA RÉ. VOTO VENCUIDO JULGANDO IMPROCEDENTE A AÇÃO.” Questão 2 Na fase final das tratativas, o proponente desiste de prosseguir nas negociações. Tem o outro policitante direito à indenização pelas despesas que realizou? Ocorrendo ou não o direito, qual seria a espécie de responsabilidade? Direito Civil III 10 Resposta à Questão 2 Mesmo que a fase de tratativas seja isenta de vínculos, normalmente, porque é mera pesquisa prévia à policitação – tratativa não é proposta –, na casuística em que se demonstre a avançada criação de expectativa de solidez no crédito a ser contratado permite que a boa-fé seja invocada como dever a ser observado, merecendo, sua quebra, indenização, tratando-se de responsabilidade aquiliana, e não contratual, na fase das tratativas, por conta do abuso do direito de desistir. Veja: se o tratamento na fase pré-contratual foi tão convincente que a parte previra como certa a contratação, suas despesas são indenizáveis. Assim se posicionou o TJ/RJ, na apelação cível 2003.001.34607: “RESPONSABILIDADE CIVIL. PRE-CONTRATO. ARREPENDIMENTO DO NEGOCIO. ABUSO DE DIREITO. RESSARCIMENTO DOS DANOS. Acao indenizatoria. Responsabilidade civil pre-contratual. Abandono das tratativas. Abuso de direito. Aplicacao dos principios da boa-fe' objetiva e da funcao social. A regra geral admite que qualquer das partes pode se retirar das tratativas, independentemente de pagar perdas e danos, e sem precisar declinar as razoes. Se, entretanto, a parte se conduz, durante as negociacoes preliminares, de tal maneira convincente, que incute na mente da outra a certeza da realizacao do contrato, e depois se arrepende, nao o firmando, isto traduz abuso de direito, que se equipara ao ato ilicito, fazendo gerar o dever de indenizar. Nao se pode considerar como simples minuta, so' para exame, o instrumento entregue por uma parte a outra, em 2 vias, com todos os dados preenchidos, e ja' ambas as vias assinadas por testemunhas, sendo que uma delas e' o proprio advogado da parte que encaminhou o documento. Revestida de tais caracteristicas, o documento deixa de representar uma minuta, e se converte em policitacao, que tem forca obrigatoria, e cuja retirada obriga a indenizar. A boa-fe' deve ser respeitada em todas as fases do contrato, mesmo durante a preliminar, e tal principio nao se aplica apenas apos o advento do Novo Codigo Civil. Provimento parcial do recurso, para fixar a indenizacao no valor de R$ 15.000,00, com a inversao dos onus sucumbenciais, por maioria, ficando vencido o Relator original, que negava provimento ao recurso. Ementa do voto vencido do Des. Ivan Cury. Acao pelo rito ordinario. Validade do pre- contrato ou contrato preliminar. Parte que propoe acao para cobranca de valores clausulados em contrato que nao chegou a ser aperfeicoado. Pedido julgado improcedente. No sistema do Codigo Civil de 1916 o direito positivo patrio nao previa o contrato preliminar,cujo instituto foi introduzido entre nos pelo Novo Codigo Civil, artigo 462, que exige instrumento escrito e registrado no registro competente. Recurso conhecido e improvido.” Questão 3 José Antonio Fernandes, proprietário de um edifício comercial no Bairro da Penha, foi procurado por um funcionário da empresa NEXTIL, o qual lhe informou que a empresa estava interessada em locar parte da área do imóvel em questão para instalação de umaantena de recepção de telefonia celular. Após negociações, as partes avençaram a locação, com prazo de 10 anos, e aluguel mensal de R$ 2.500,00, além das demais condições locatícias. A empresa NEXTIL elaborou o contrato em duas vias, sem apor sua assinatura, mas com todos os dados preenchidos. O contrato foi assinado por duas testemunhas, sendo uma delas, o gerente jurídico da empresa, que negociou as condições contratuais com o proprietário. Após receber e examinar o documento sem nada alterar, José Antonio Direito Civil III 11 Fernandes assinou as duas vias contratuais, reconheceu sua firma em cartório e devolveu uma das vias para a empresa no prazo de três dias, convencido de que o contrato se aperfeiçoara. Passados alguns dias sem receber notícias e com sua via assinada, Jose Antonio Fernandes entrou em contato com a NEXTIL, ocasião em que lhe foi comunicado, para sua surpresa, que a empresa desistira do negócio, optando por outra área, o que, segundo ela, se fazia possível por não ter assinado o contrato. Diante das circunstâncias do caso, decida fundamentadamente: 1) A desistência da empresa se afiguraria regular? 2) Terá direito o outro solicitante a indenização? 3) Se afirmativa a resposta, qual o fundamento legal? 4) Ocorrendo ou não o direito, qual seria a espécie de responsabilidade? Resposta à Questão 3 1) A desistência é irregular, pois que se criou na mente da parte a expectativa real de contratação. Na fase das tratativas houve danos a serem reparados pela desistência, e estes serão imputados à sociedade desistente. 2) Sim, será indenizável tudo aquilo que lhe foi causado de dano pelo abuso de direito em desistir da contratação. 3) Como se trata de abuso de direito, o artigo 187 do CC o prevê como ato ilícito, e por isso indenizável, na forma do artigo 927 do mesmo Código. 4) Trata-se de responsabilidade aquiliana, calcada na teoria do abuso do direito, quando violador da boa-fé objetiva. Direito Civil III 12 Tema II Classificação dos contratos: contratos unilaterias, bilaterais e bilaterais imperfeitos. contratos gratuitos e onerosos. contratos comutativos e aleatórios. contratos solenes e não-solenes ou consensuais. contratos reais. contratos principais e acessórios. contratos típicos e atípicos. contratos paritários e de adesão. o contrato de adesão no Código Civil (arts. 423 e 424) e no Código de Defesa do Consumidor. Notas de Aula 1. Classificação dos contratos A importância da classificação dos contratos reside na necessidade de se organizar, por meio de uma relativa padronização, as idéias que circundam uma determinada matéria. A classificação decorre da necessidade de ordenação e clareza das idéias. Ela se dá por meio da organização, em categorias comuns, dos fenômenos que costumam surgir de maneira esparsa e desordenada no cotidiano. Através da classificação é possível diferenciar e analisar as especificidades de cada tipo contratual. Como exemplo, a diferenciação em contatos gratuitos ou onerosos é relevante para se definir que nos contratos gratuitos a interpretação é restritiva, diante do gravame que representa uma liberalidade, que não recebe qualquer contraprestação, diante do animus donandi presente. Dar uma interpretação ampliativa à vontade de quem pratica a liberalidade pode significar majorar sua depleção patrimonial mais do que por ele fora desejado, mais do que seu animus donandi acolhera de fato. E este é um exemplo claro da relevância da classificação contratual. Vejamos cada classificação em detalhe. 1.1. Contratos típicos ou atípicos Também chamados de contratos nominados ou inominados, se trata da classificação que separa os contratos segundo sua previsão ou não em lei. São nominados, ou típicos, os contratos que a lei descreve, e inominados, ou atípicos, os que não vêm apresentados em lei. Diz-se contratos típicos os que, além de possuírem nome próprio, nomen juris que os distingue dos demais, constituem objeto de regulação específica. Contratos atípicos ou inominados são aqueles em que, em razão da liberdade de contratar, foram criados fora dos modelos traçados na lei. A atipicidade significa ausência de tratamento legislativo específico. Veja o que dispõe o artigo 425 do CC: “Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.” Os contratos, por natureza, nascem da sua presença fática, e não da previsão em lei. antes de serem previstos na lei, os contratos surgem de fatos sociais. O legislador, verificando a necessidade de se regular aquele fato social, faz constar na regra legal a sua tipificação, tornando-o nominado, em razão de sua majorada importância. O contrato é típico sempre que previsto em lei, e não necessariamente no CC. Os contratos atípicos, por sua vez, não vêm previstos em qualquer norma – são livremente pactuados e desenhados pelas partes. Só é possível a existência de contratos inominados válidos porque vige a atipicidade contratual como regra. Como dito, se é o fato social que cria o contrato, não pode a lei Direito Civil III 13 engessar, em rol taxativo, quais são os negócios jurídicos bilaterais possíveis. O rol de contratos nominados é numerus appertus. Não significa, porém, que os contratos criados na inventividade social sejam absolutamente irrestritos em suas previsões; por óbvio, são vinculados à observância das normas gerais dos contratos, exemplarmente consideradas a função social, a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico, a autonomia da vontade e a força obrigatória. Há que se mencionar também os contratos mistos, que são aqueles que reúnem em si elementos de contratos típicos, e inovações atípicas. Sendo desta espécie, há que se identificar as cláusulas nominadas, de forma a se identificar também quais serão as normas a elas atinentes. O interesse está na escolha das normas aplicáveis. Nas palavras de Darcy Bessone: “Quando não for possível harmonizar as regras reguladoras dos tipos combinados, deve-se atender à finalidade essencial da operação, ou, quando a infração for de determinada cláusula que se possa isolar das demais, merecerá observância a disposição disciplinadora do contrato simples que tenha sido extraída.” Aqui poder-se-ia mencionar a moderna técnica da interpretação fuzzy, a metodologia fuzzy, que se presta à compatibilização lógica de normas que parecem ser completamente colidentes, de forma a reduzir, sintetizar uma norma aplicável à casuística. Em breves termos, esta metodologia fuzzy aproxima-se do já mais bem conhecido diálogo das fontes, que é a compatibilização de normas que aparentam ser antagônicas, de forma a sanar a antinomia sem execrar uma das normas. Transportando o raciocínio do parágrafo anterior aos contratos, poder-se-ia entender que as normas que, num contrato misto, dizem respeito a outra modalidade nominada, não precisam necessariamente ser nulificadas ou nulificar o próprio contrato: há que se interpretar e tentar compatibilizar tal previsão contratual, antes de se invalidar tal pactuação. 1.2. Contratos bilaterais ou unilaterais É mais do que sabido que todo contrato é um negócio jurídico bilateral, quanto à pluralidade de manifestação de vontades: não há contrato sem ao menos duas manifestações de vontades, pois se assim o for é um negócio jurídico unilateral, e não um contrato. A classificação em bilateral ou unilateral do negócio jurídico em si não se confunde com a classificação de mesma nomenclatura do próprio contrato. Destarte, esta classificação diz respeito à existência de obrigações recíprocas ou não,no bojo do negócio jurídico bilateral, do contrato. Bilateral é o contrato em que se criam obrigações para ambas as partes. A característica fundamental do contrato bilateral é o sinalagma, ou seja, a existência de prestações correlatas – pelo que se denominam também de sinalagmáticos. Os contratos bilaterais caracterizam-se pela correspectividade das prestações: a prestação de um dos contratantes é a causa da prestação do outro. É de suma importância, aqui, abordar a diferenciação entre causa e motivo dos contratos. Pode ser iniciada a explicação por um recurso didático que sintetiza bem a diferença, que depois será perscrutada em si: o motivo do contrato é “por quê se contrata”; a causa, é “para quê se contrata”. Vejamos. Direito Civil III 14 Motivação é a razão que leva um indivíduo à prática de determinado ato. Reside na mente, no âmbito unicamente subjetivo e interno do indivíduo. Mesmo por isso, a motivação para contratar não tem relevância para a existência, validade ou eficácia do contrato, a princípio, porque se não está no mundo dos fatos, não pode ser oponível. Um exemplo clareia o conceito: se o agente vende seu automóvel com a perspectiva de, com o dinheiro recebido, investir no mercado e ações, esta intenção de investir é o seu motivo para realizar a compra e venda do automóvel. Como é irrelevante, se porventura não mais for investir em ações, por conta da crise econômica que se instalou, terá seu motivo frustrado, mas jamais poderá opor esta frustração como causa resolutiva da compra e venda do seu automóvel. Veja que esta irrelevância do motivo é regra geral, que se instaura em prol da segurança jurídica mínima, porque se se admitir que a frustração do motivo, elemento altamente subjetivo e interno, se presta a resolver contratos, serão estes absurdamente inseguros – o pacta sunt servanda será mitigado além do razoável. Todavia, há que se fazer uma ressalva: se o motivo vier expressamente consignado no contrato como razão determinante de sua pactuação, passa a ser oponível, porque deixa de ser uma mera cogitação mental, imperscrutável, para ser uma condicionante do próprio contrato. Pode-se depreender tal raciocínio da leitura transversa do artigo 140 do CC: “Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante. Perceba: se o falso motivo, quando for expresso, é capaz de viciar a declaração, o motivo perfeito, quando expresso, integra a declaração de vontade, e deve ser observado. Se frustrado, frustra a declaração de vontade em si. A causa do contrato, por sua vez, como dito, em nada se confunde com a motivação. Causa é o efeito econômico que se espera do contrato, elemento fático de constatação objetiva. É mais simples do que aparenta, como se pode ver no exemplo dado: a compra e venda de um automóvel tem por causa, para o vendedor, a obtenção do preço. Só se realiza a venda para se obter o preço. O motivo por que se quer este preço é irrelevante, mas a causa da venda – a obtenção do preço –, é absolutamente relevante, sendo o próprio objetivo do negócio. Da mesma forma, a causa da compra do veículo é a obtenção deste bem da vida pelo comprador: ele realiza a compra para que lhe seja entregue o veículo. Por que motivo ele quer o veículo é irrelevante, mas não a causa da compra, que se atine unicamente à obtenção da propriedade do veículo. A causa de qualquer contrato é sempre a mesma, independentemente da motivação interna dos contratantes. Voltando à classificação em comento, é importante perceber, então, que nos contratos bilaterais há uma reciprocidade de obrigações necessária, havendo, sempre, débito e crédito recíprocos, cada um de as natureza. Nos contratos unilaterais, apenas um dos contratantes tem débito, e apenas um tem crédito, sem que haja qualquer reciprocidade. A doação pura, por exemplo, só impõe obrigação ao doador, que é devedor da entrega da coisa ao donatário. Dito isso, há alguns efeitos diretamente decorrentes desta classificação. Se há bilateralidade, há correspectividae de obrigações; por conta disso, se um dos contratantes não adimplir sua obrigação, o outro não precisará adimplir a sua própria, por simples lógica: quebrado o sinalagma, não mais se impõe a exigibilidade da contraprestação. Está nascida, assim, a exceção do contrato não cumprido, a exceptio non adimpleti contractus. Direito Civil III 15 Este instituto, consabido, só pode ser aplicado em contratos bilaterais porque nos unilaterais simplesmente não há que se esperar qualquer cumprimento da parte contrária: só há um devedor e um credor, não havendo reciprocidade. E mais: esta exceção só se aplica em havendo simultaneidade das prestações correlatas. Veja: se há momentos diversos para o cumprimento das obrigações, porque a lei ou o contrato assim estipulam, este momento diferido impede que aquele que é credor do devedor que tem que pagar à frente possa reclamar, antes do vencimento, que seu contrato foi inadimplido, como meio de deixar de cumprir sua própria prestação. Veja o artigo 476 do CC: “Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.” Há que se abordar, pelo ensejo, a variante deste instituto, que se denomina como exceptio non rite adimpleti contractus. Veja: enquanto a exceptio non adimpleti contractus clássica diz respeito ao descumprimento da obrigação, a exceptio non rite está ligada ao cumprimento imperfeito da obrigação. Nas palavras de Gustavo Tepedino: “O artigo 476 prevê a hipótese de não cumprimento da prestação sem aludir expressamente ao cumprimento incorreto, inexato ou incompleto. Entende-se que as duas situações são equiparáveis, pois que o contrato só estará cumprido se todas as estipulações que ele contiver estiverem satisfeitas. A defesa baseada no cumprimento incompleto ou incorreto da outra parte designa-se por exceptio non rite adimpleti contractus”. Este conceito, portanto, tem íntima vinculação com a afamada violação positiva do contrato, o adimplemento imperfeito do contrato. Por isso, se no contrato bilateral uma obrigação for cumprida de forma insatisfatória, será argüível a exceptio, na proporção da insatisfação. E veja que o mau cumprimento, o adimplemento imperfeito, pode assim se configurar quando não há descumprimento do dever diretamente imposto, mas há violação a um dos deveres impressos pela boa-fé objetiva: se uma conduta aparenta ser bastante a adimplir uma obrigação contratual, mas se demonstra uma violação à lealdade, por exemplo, há violação positiva do contrato, e há as conseqüências do inadimplemento, inclusive a possibilidade de se invocar a exceptio non rite adimpleti contractus. Um exemplo: se há no contrato de locação a imposição da obrigação de “restituir o imóvel pintado”, sem estabelecer detalhamento da pintura, ao entregar o bem pintado com tinta preta, estará, aparentemente, adimplindo sua obrigação; todavia, é tão imperfeito, tão insatisfatório este adimplemento, que se equipara a inadimplemento, pois é clara deslealdade contratual, falta de cooperação a merecer repúdio, padecendo das conseqüências da inadimplência. Outra reverberação da boa-fé objetiva nas questões de cumprimento das obrigações se trata do adimplemento substancial. Veja que, mesmo não havendo a completitude do adimplemento, há cumprimento tão significativo da obrigação que se permite dizer que o objetivo do contrato, em relação ao interesse do credor que teve seu crédito minimamente inadimplido, foi alcançado. Efeito desta circunstância é a redução da obrigação à proporção faltante, ilidindo eventual direito que seria oriundo do inadimplemento, se total – exercício que se demonstraria abuso do direito, dada a quase completa adimplência.Há ainda que se tratar aqui da exceção de inseguridade, prevista no artigo 477 do CC: Direito Civil III 16 “Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.” Sempre que, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes uma diminuição do seu patrimônio que possa comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode o outro contraente recusar-se a cumprir a sua até que aquela satisfaça sua obrigação ou dê garantia suficiente. Esta é a exceção de inseguridade. 1.2.1. Contratos bilaterais imperfeitos Estes contratos são, de fato, unilaterais na sua formação, gerando, de início, obrigação apenas para uma das partes. Contudo, no decorrer da execução contratual, supervenientemente à sua formação, surge uma obrigação para o contratante que, de início, não tinha qualquer dever. Um bom exemplo seria o contrato de depósito, que, de início, só cria obrigações para o depositário (cuidar da coisa e restituí-la). No curso do depósito, porém, ocorrem despesas de manutenção da coisa; estas despesas são indenizáveis, e o depositante passa, agora, a ter a obrigação de ressarcir o prejuízo patrimonial do depositário. Torna-se, então, bilateral supervenientemente. Este é o contrato bilateral imperfeito. 1.2.2. Cláusulas resolutivas Em todo contrato bilateral, uma prestação é correspectiva a outra. Isto significa qe se uma das partes não cumpre a prestação, a outra parte pode resolver o contrato, quer por previsão contratual desta resolução, quer porque a lei assim o dispõe. Trata-se, aqui, das cláusulas resolutivas expressa ou tácita, respectivamente. Na execução dos contratos bilaterais, cada contratante tem a faculdade de pedir a resolução, caso o outro não cumpra sua prestação. Essa faculdade pode resultar de convenção pactuada expressamente ou de presunção legal. Quando essa faculdade resulta de presunção legal, tratar-se-á de cláusula resolutiva tácita. Não obstante a cláusula resolutiva tácita ser oriunda da lei, as partes podem convencioná-la expressamente no bojo do contrato. Nesse caso, estaremos tratando da cláusula resolutiva expressa. A principal diferença é que a tácita demanda interpelação judicial enquanto que a expressa opera de pleno direito. A cláusula resolutiva tácita é eu se demonstra mais problemática em sua análise. Há dois sistemas, o francês e o alemão. No sistema francês, é necessário que haja interpelação judicial, porque somente o provimento jurisdicional poderá resolver o contrato; no sistema alemão, a ação judicial é dispensada, operando-se a resolução de pleno direito, pelas mãos do próprio contratante inadimplido. É claro que o sistema alemão denota maior insegurança, e por isso o CC brasileiro adotou a metodologia francesa, sendo necessário o provimento jurisdicional para a resolução do contrato. 1.3. Contratos onerosos ou gratuitos Direito Civil III 17 O contrato é oneroso quando gera vantagens a ambas as partes, enquanto os gratuitos somente trazem vantagens a uma das partes, o beneficiário – e por isso se chama também de contrato benéfico. Nos contratos onerosos, cada uma das partes visa a obter vantagem. Nestes, ambas as partes obtêm proveito, ao qual, corresponde um sacrifício. Chamam-se gratuitos os contratos em que somente uma das partes obtém proveito: é o contrato em que um contratante aufere vantagens ao passo que o outro suporta depleção de qualquer natureza. A importância da distinção diz respeito às conseqüências práticas. Nos contratos gratuitos, a interpretação é sempre restritiva, como dispõe o artigo 114 do Código Civil, e são, ainda, tratados com maior rigor, pois podem implicar em fraude contra credores, como se depreende dos artigos 158 e 159 do Código Civil. Veja: “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.” “Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. § 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente. § 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.” “Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.” Outra previsão altamente relevante vem no artigo 392 do CC, que trata de forma bastante diferente os contratos benéficos, quanto à responsabilidade: “Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.” Nesse sentido, no transporte gratuito, o transportador só pode ser responsabilizado por dolo ou culpa grave. Este foi, aliás, o entendimento sumulado pelo STJ: “Súmula 145, STJ: No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.” Repare-se que sempre que o transportador obtiver alguma vantagem, ainda que indireta, o transporte não será gratuito, na forma do artigo 736, parágrafo único, do CC: “Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia. Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.” Outra diferença diz respeito à evicção, que só se aplica a contratos onerosos, na forma do artigo 447 do CC: Direito Civil III 18 “Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.” No entanto, a evicção permanece nos casos de doações onerosas e doações para casamento com pessoa certa e determinada, salvo, no caso desta última, estipulação em contrário. Veja o artigo 552 do CC: “Art. 552. O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é sujeito às conseqüências da evicção ou do vício redibitório. Nas doações para casamento com certa e determinada pessoa, o doador ficará sujeito à evicção, salvo convenção em contrário.” Vale consignar que a doação onerosa, doação com encargo, ainda é um contrato gratuito, e é um contrato ainda unilateral, porque o encargo não pode ser considerado como contraprestação capaz de emprestar reciprocidade aos contratos. É comum se confundir os conceitos de unilateralidade e bilateralidade com gratuidade e onerosidade, respectivamente, confusão que merece ser espancada, porque nem sempre todo contrato gratuito será necessariamente unilateral. Em regra, os contratos gratuitos são unilaterais, mas não é vinculação absoluta: o mútuo feneratício é um exemplo de contrato unilateral oneroso. Há, no entanto, quem defenda que este contrato é bilateral. 1.4. Contratos consensuais ou reais O princípio do consensualismo, que determina que o mero acordo das vontades é suficiente para criar o vínculo e gerar o contrato,parece se opor diretamente à existência de contratos que não sejam formados pelo mero consenso. Não é assim, porém (como se verá). Chama-se consensual o contrato que se torna perfeito e acabadopor efeito exclusivo da integração das duas vontades. Em outras palavras, formam-se exclusivamente pelo acordo de vontades. No que diz respeito à teoria dos contratos, prevalece o princípio do consensualismo, ou seja, a regra é que o mero acordo de vontades é suficiente para fazer surgir o contrato, sem que se exija formalidade na manifestação, em regra. Os contratos reais são os contratos que se perfazem com a entrega da coisa. Em outras palavras, somente com a traditio se forma o contrato. São exemplos deste contrato o mútuo, o depósito e o comodato. A grande crítica a esta classe de contratos é a seguinte: o contrato consiste num acordo de vontades e, portanto, a entrega da coisa não deveria ser considerada uma condição para a sua formação, mas o simples cumprimento de uma obrigação contratual. A entrega da coisa, em regra e por conceito, deveria sempre ser tida por simples execução do contrato. Condicionar a existência do contrato real à traditio é uma afronta grosseira ao princípio do consensualismo. A respeito, vale a leitura das palavras de Darcy Bessone: “A conclusão é que, se a classificação em exame se prende ao modo de formação do contrato, os chamados contratos reais são tão consensuais quanto quaisquer outros, desde que a entrega ou o recebimento constitui simples execução de obrigação assumida em consequência do acordo de vontades.” Depõe ainda mais em favor desta crítica a falta de lógica em se entender que um contrato de comodato é real, e um contrato de locação é consensual. Não há nenhum Direito Civil III 19 argumento plausível que explique esta diferença (havendo quem entenda que se baseia na maior confiança envolvida num comodato ou depósito, o que não é um argumento juridicamente substancial). Não se confundem, os contratos reais, com os contratos com efeitos reais. Estes consistem em contratos que têm por objeto direitos reais, ou seja, não geram direito pessoal para o credor, mas sim o próprio direito real almejado. Por exemplo, na compra e venda, a obrigação gerada é de dar o bem comprado, em troca do preço; não se transfere, portanto, a propriedade deste bem senão com a tradição, ou registro, se imóvel. Não se transfere o próprio direito real de propriedade com o contrato, o que seria o efeito real: se gera apenas um título hábil a que se exija a transmissão da propriedade, pelo meio hábil (tradição ou registro). No Brasil, não há contrato de efeito real algum2. 1.5. Contratos formais e informais Os contratos formais, ou solenes, são exceção ao consensualismo informal, pois a manifestação de vontade precisa ser expressa conforme regras previstas na lei ou no próprio contrato. Veja o artigo 107 do CC: “Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.” Contratos formais são aqueles em que não basta o mero acordo de vontades para sua formação, mas, ao invés, dependem de uma formalidade exigida em lei. Ou seja, só se aperfeiçoam quando o consentimento é expresso pela forma exigida em lei. Veja o artigo 108 do CC: “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.” É preciso distinguir, entretanto, os contratos formais ad solemnitatem dos contratos formais ad probationem. Na formalidade ad solemnitatem, a formalidade é da própria essência do contrato e a sua inobservância implica, diretamente, na invalidade do negócio jurídico, de acordo com o artigo 104, III, do Código Civil: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.” Se a forma é da essência do ato, sua falta é causa de nulidade – trata-se de formalidade ad solemnitatem. Outro exemplo de forma prescrita em lei, formalidade ad solemnitatem, é a fiança, que deve ser escrita, na forma do artigo 819 do CC: 2 A cessão de posse poderia ser cogitada como um exemplo de contrato de efeito real, porque a posse se transfere, ali, de forma ficta, pelo próprio contrato. Ocorre que a posse não é, para a corrente majoritária, direito real, e por isso não seria, a rigor, contrato de efeito real. Direito Civil III 20 “Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.” Sendo alheia, a formalidade, à essência do contrato, trata-se da espécie ad probationem. Esta forma se presta tão-somente a favorecer a prova do contrato: o contrato não é formal, mas a formalidade é imposta como técnica probatória. Nesses, o contrato produz seus efeitos, embora só possa ser provado pela forma especificada em lei. Exemplo desse tipo de contrato é o depósito voluntário, do artigo 646 do CC: “Art. 646. O depósito voluntário provar-se-á por escrito.” Questiona-se, então: é possível a demonstração do contrato formal ad probationem ainda que não se tenha observado a forma especifica em lei? O entendimento predominante é que sim. A não possibilidade de demonstração implicaria em verdadeiro cerceamento de defesa, contrariando o artigo 5º, LV, da CRFB, o artigo 332 do CPC, além de que o próprio Código Civil, no artigo 221, parágrafo único, admite a possibilidade de prova dos contratos celebrados por outros meios: “(...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (...)” “Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” “Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público. Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter legal.” Vê-se, então, que a formalidade ad probationem perde muito de sua força diante da interpretação lógica e sistemática da matéria. De fato, não faz mais do que facilitar a prova, quando assim respeitada a formalidade ad probationem. 1.6. Contratos comutativos ou aleatórios O contrato é comutativo quando há prestação e contraprestação paritárias. Nesses contratos, a relação entre vantagem e sacrifício é equivalente. Em outras palavras, as prestações das partes são conhecidas, previamente estipuladas,existindo, por conseguinte, um equilíbrio entre elas. Aqui se faz relevante abordar questão principiológica importante: a nova teoria contratual se pauta pelos novos princípios que complementam os clássicos. Nesse diapasão, tem especial relevância o princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, que diz respeito exatamente à comutatividade. Direito Civil III 21 O princípio do equilíbrio econômico financeiro do contrato tem como escopo impedir a desproporção entre as prestações dos contratantes. Esta idéia traz, na noção de contrato, um ideal de equilíbrio entre as prestações dos contraentes. As maiores expressões desse princípio são o instituto da lesão, da onerosidade excessiva, e a quebra da base objetiva do negócio. Mas veja que não se pode pensar que toda e qualquer desproporção entre as prestações é uma violação à comutatividade,denunciando um dos institutos nulificantes do pacto. É fato que há, em qualquer negociação, alguma medida de desproporção dada à maior ou menor aptidão de uma das partes para o negócio. Nos dizeres de Teresa Negreiros, este princípio tem como objetivo “vedar um desequilíbrio real e injustificável entre as prestações dos contratantes”, ou seja, a desproporção não pode suplantar o razoável, em medida de equidade, sob pena de fazer presente um dos mencionados vícios de desequilíbrio. De outro lado, surgem os contratos aleatórios, aqueles em que os contraentes não podem antever ambas as prestações com certeza absoluta. Há uma incerteza para as duas partes sobre se a vantagem esperada será proporcional ao sacrifício. A incerteza pode prender-se à data de um acontecimento inevitável, como sucede no seguro de vida, ou à própria verificação do acontecimento, como sucede no seguro contra o fogo, bem como no jogo ou aposta. O risco, ou alea, pode dizer respeito ou a própria existência da coisa futura ou sobre sua quantidade. No primeiro caso, em que há incerteza sobre a existência ou não da contraprestação, o contrato aleatório é da espécie emptio spei, no qual o preço será devido ainda que nada venha a existir. É previsto no artigo 458 do Código Civil: “Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir.” Veja que ainda que nada venha a existir em contraprestação, a prestação de um lado é devida, porque ele assumiu este risco. Soa estranha a assunção de tal risco, mas quando se verifica que a prestação é infinitamente inferior ao que seria um preço normal pelo que se espera como contraprestação, a lógica se faz perceptível. Aposta-se na possibilidade de um grande ganho, esta é a verdade, assumindo-se o risco de pagar o preço e nada receber. Por outro lado, se o risco for somente quanto à quantidade da coisa futura, estaremos falando da emptio rei speratae. Nesta hipótese, caso nada venha a existir, o preço será restituído à parte que assumiu o risco. No entanto, caso venha a existir alguma coisa, ainda que em quantidade inferior à esperada, o preço será devido. Veja o que determina o artigo 459 do CC: “Art. 459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada. Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido.” Direito Civil III 22 O assuntor do risco não aposta quanto à existência da contraprestação, mas apenas quanto à sua intensidade, o que faz com que, se existente, em menor monta do que almejava, ainda assim o preço é devido. Outrossim, se inexistente a contraprestação, o contrato é resolvido, pois ao firmar o emptio rei speratae o agente não assumiu este risco de inexistência. O risco pode dizer respeito, ainda, a coisas existente, porém expostas ao risco de perecimento ou deterioração. Neste caso, se o adquirente assumiu o risco, o preço será devido, ainda que a coisa venha a se perder ou deteriorar. Veja o que dize o artigo 460 do CC: “Art. 460. Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato.” Veja que, no entanto, o dolo do alienante que sabe que o perecimento é certo não pode ficar impune: sabedor que o risco não é mais alea, e sim certeza, estará em dolo, e o contrato é anulável. É o que dispõe o artigo 461 do CC: “Art. 461. A alienação aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser anulada como dolosa pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não ignorava a consumação do risco, a que no contrato se considerava exposta a coisa.” Os contratos de seguro são um exemplo de contrato aleatório, para grande parte da doutrina, e da modalidade emptio spei: a paga o preço é devida mesmo se não for recebida a indenização, por não se implementar o sinistro – ilidindo comutatividade, portanto. Entretanto, significativa parte da doutrina (e mais coerente, a meu ver), entende que o contrato é comutativo: a prestação consistente no preço pago pelo segurado é equivalente à contraprestação que é prestada ao longo da vigência do contrato pela seguradora, qual seja, a garantia do risco. Esta garantia é uma prestação em si mesma, equivalente ao preço, prêmio, que é estipulado em cálculo atuarial. O STJ, em julgado recente, parece entender que a suportar o risco é uma contraprestação em si, considerando, porém, que este risco é uma alea típica de contrato aleatório. Veja: “SEGURO. VIDA. INVALIDEZ. PRÊMIO. RESTITUIÇÃO. Os valores pagos a título de prêmio pelo seguro de invalidez ou morte não são passíveis de restituição quando da rescisão do contrato, uma vez que a seguradora, durante sua duração, suportou o risco, como é próprio dos contratos aleatórios. O segurado usufruiu da cobertura securitária (de natureza onerosa), ainda que não tenha ocorrido sinistro. Precedentes citados: AgRg no REsp 617.152-DF, DJ 19/9/2006, e REsp 573.761-GO, DJ 19/12/2003. AgRg no Ag 800.429-DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julgado em 3/12/2007.” 1.7. Contratos de execução imediata, ou instantânea, ou contratos de trato sucessivo Direito Civil III 23 São os contratos em que a solução se efetua de uma só vez e por prestação única. Nesses, a prestação pode ser realizada num só instante. Os contratos instantâneos podem, ainda, ser de execução diferida. Em tal hipótese, mantém-se a característica de instantâneo, mas a prestação há de ser cumprida em uma única prestação no futuro. A execução, portanto, é protraída para outro momento, geralmente em razão de um termo. Já os contratos de trato sucessivo são aqueles que têm que ser cumpridos durante certo período de tempo, continuadamente. Nos contratos de duração, a prestação não pode ser executada de uma só vez, mas de modo contínuo ou periódico. Eles se subdividem em contratos de execução periódica e de execução continuada: os primeiros executam-se mediante prestações periodicamente repetidas, ou seja, a cada novo período surge uma nova prestação – como exemplo, os contratos de fornecimento de luz, água, ou telefonia; nos contratos de execução continuada, a prestação é única, mas ininterrupta – como exemplo, a locação, ou comodato. É nesta seara de classificação, nos contratos de execução continuada ou diferida, que tem sede natural a teoria da onerosidade excessiva. Veja o artigo 478 do CC: “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” Veja um detalhe: sempre que se der a resolução por esta causa, esta opera efeitos ex tunc, alcançando a data da citação. Apesar do dispositivo falar em resolução, é preferível sempre a revisão, em atenção ao princípio da conservação dos negócios. O CJF conta com dois enunciados assim dispondo, o 176 e o 367. Veja: “Enunciado 176, CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos,o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.” “Enunciado 367, CJF: Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório.” O STJ já enfrentou o alcance da expressão “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”, quando a vinculação ao dólar como indexação das parcelas de leasing levou à majoração excessiva das prestações, por ocorrência da liberação do dólar à flutuação do mercado, em 1999. Veja que a variação do dólar é um evento ordinário e previsível, decerto, e por isso sua majoração estaria alheada do instituto da onerosidade excessiva, ou seja, os prejudicados não poderiam se valer do instituto para rever o contrato. Contudo, o STJ vem entendendo que mesmo que o evento em si seja previsível, se os seus efeitos forem imprevisíveis, pode-se aplicar a teoria. Assim, poderia ser revisto o contrato com base na onerosidade excessiva de uma prestação causada por um evento ordinário, previsível, mas que tenha tido por efeito uma majoração extremada e imprevisível da prestação. Direito Civil III 24 1.8. Contratos principais ou acessórios Principais são os contratos que têm existência própria, ou seja, são autônomos e independentes, ao passo que os contratos acessórios são aqueles que existem vinculados e subordinados a outros. O interesse da referida classificação encontra-se nos efeitos produzidos nos contratos acessórios em razão de vícios ou defeitos nos contratos principais. De acordo com Orlando Gomes, em virtude do principio da gravitação jurídica, , em que o acessório segue a sorte do principal – accessorium sequitur naturam sui principalis –, a extinção do contrato principal acarreta a do contrato acessório, por ausência de sua razão de ser. No entanto, nem sempre o defeito do contrato principal implicará na invalidade do contrato acessório. Por exemplo, no caso de fiança concedida em contrato celebrado por incapaz, salvo hipótese de mútuo feito a menor, de acordo com o artigo 824 do Código Civil: “Art. 824. As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor. Parágrafo único. A exceção estabelecida neste artigo não abrange o caso de mútuo feito a menor.” A regra é que se o contrato principal for nulo, a fiança também será, mas se a nulidade só diz respeito à incapacidade do contratante, não se nulifica a fiança. Mas veja que esta exceção ainda comporta exceção ela própria, qual seja, a do mútuo feito a menor, em razão da maior proteção do menor em relação à exploração usurária. O artigo 588 do CC reafirma esta lógica: “Art. 588. O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver, não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores.” 1.9. Contratos de adesão A produção em massa fez surgir um importante fenômeno jurídico: o da contratação em série. O fornecedor, para racionalizar as condições que regem as suas relações, começou a usar um modelo contratual padronizado, sem dar possibilidade à outra parte de discutir as cláusulas que regerão a relação econômica entre elas. Esta prática não é abusiva, de per si, pois é um importante meio de efetivação das contratações massificadas, que de outro modo, fosse observada a puntuação amiúde, não seriam possíveis. Mas há que se regular com bastante zelo esta prática, para que dela não surjam abusos, estes sim repreensíveis. Contrato de adesão é aquele contrato em que uma das partes não tem a possibilidade de discutir as cláusulas contratuais a que adere. O legislador, portanto, observando que uma das partes fica tolhida em sua possibilidade de debater as cláusulas contratuais, passa a se preocupar com o controle destes contratos, chamados de contratos de adesão (ou por adesão, como prefere Orlando Gomes), justamente porque um dos contratantes não tem a possibilidade de nada fazer, senão aderir aos termos ali expressos. Fenômeno correlato com o do contrato de adesão, mas que com ele não se confunde, é o das condições contratuais gerais. Esta técnica contratual consiste em realizar-se a contratação mencionando-se no instrumento as condições que regerão a Direito Civil III 25 relação jurídica, mas sem reproduzi-las no documento contratual (o que por vezes agrava ainda mais a situação do outro contratante, em regra um consumidor). Como exemplo, a redação de uma cláusula, por um contratante, que dispõe que o outro contratante “declara ter ciência de que o contrato será regido por uma determinada resolução, emitida por determinado órgão”, ou seja, remete a um documento, alheio ao corpo contratual, que prevê mais uma série de cláusulas que têm influência sobre o pacto. Nas relações de consumo, se estas condições gerais não forem oportunizadas clara, prévia e expressamente ao consumidor, são tidas por não escritas. O artigo 54 do CDC é a sede legal do instituto, na seara consumerista: “Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. § 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato. § 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior. § 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor. § 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.” O Código de Defesa do Consumidor protege o consumidor de forma muito mais enérgica que o Código Civil, em razão de sua vulnerabilidade reconhecida no mercado de consumo. A primeira proteção ao aderente, tanto no Código Civil como no Código de Defesa do Consumidor, é a garantia de uma interpretação sempre mais favorável ao aderente. Veja o artigo 423 do CC, e o artigo 47 do CDC: “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.” “Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.” A lógica, novamente, vem da boa-fé objetiva, agora em sua segunda função, a interpretativa: se quem elabora o contrato é uma só das partes, não pode haver interpretação em seu favor quando há ambigüidade clausular, pois esta ambigüidade veio por suas mãos, ao redigir o contrato. O Código Civil traz uma proteção meramente repressiva em relação às cláusulas leoninas, sempre que existirem cláusulas de renúncia antecipada de direitos do aderente. É o que dispõe o artigo 424: “Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.” No CDC a proteção estatal se faz sentir até mesmo antes da colocação do contrato em apelo de mercado, ao prever hipóteses em que a autoridade analisará o contrato antes Direito Civil III 26 deste ir ao mercado (o que é previsto no caput do artigo 54, supra). Como exemplo, a ANS e os contratos de plano de saúde. O controle, tanto preventivo, da autoridade administrativa,
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