Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
>71 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 > clínica do social Roberta Carvalho Romagnoli Trabalhando com famílias na rede de Saúde Mental: dificuldades e desafios* c l ín ic a d o s o c ia l > p . 7 1 -8 0 O movimento de luta antimanicomial, em sua proposta de reestruturação da assistên- cia em saúde mental, foi bem-sucedido em várias frentes. De fato, a reforma psiquiátri- ca brasileira teve muitos méritos, susten- tando o redirecionamento do modelo assistencial para serviços de bases comuni- tárias, criando serviços substitutivos que possibilitaram a desospitalização, com reper- cussões positivas na população. Embora o hospital psiquiátrico ainda coexista com os serviços extra-hospitalares de base comuni- O presente artigo visa relatar e desenvolver algumas discussões sobre a experiência de uma atividade de extensão em psicologia, realizada no Programa “Saúde Mental e Família”, desenvolvido em parceria da PUC-Minas com a Prefeitura Municipal de Betim. > Palavras-chave: Saúde mental, clínica social, família, terapia familiar This article discusses experiences related to extension activities in the area of psychology, in the Mental Health and Family Program, sponsored jointly by PUC- Minas University and the municipality of Betim. > Key words: Mental Health, social clinic, family, family therapy *> Este trabalho é resultado do Projeto de pesquisa ”Estudo das famílias usuárias do Centro de Referên- cia em Saúde Mental – CERSAM Teresópolis”, financiado pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa – FIP da PUC-Minas. tária, esses serviços já estão consolidados e gerando frutos. A luta pela cidadania do portador de doença mental também está atuante, no sentido de lhe assegurar direi- tos humanos, políticos e sociais. Todavia, em relação à família, essa luta ain- da precisa avançar. Boa parte da reinserção social dos portadores de doença mental ain- da fica a cargo de suas próprias famílias, em geral pobres e despreparadas para cuidar deles. Este texto tem como objetivo discutir as dificuldades do trabalho de intervenção >72 a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > c l ín ic a d o s o c ia l clínica junto a essas famílias, com base na experiência de um programa de extensão. A experiência O programa de extensão “Saúde Mental e Família” foi realizado por meio de uma par- ceria do curso de Psicologia da PUC-Minas, com uma prefeitura da região metropolitana de Belo Horizonte. Essa atividade é parte do projeto implantado em fevereiro de 2001. Ele objetivava inserir o aluno no cotidiano do trabalho em saúde mental, com base nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica Brasi- leira. Contou com vinte estagiários bolsistas, distribuídos nos seguintes locais de atuação: Centro de Referência em Saúde Mental – CERSAM, Centro de Referência em Saúde Mental Infantil – CERSAMI, Centro de Con- vivência, Moradia Assistida, Unidades Bási- cas de Saúde – UBS e Hospital Regional. A possibilidade de se trabalhar também com as famílias dos usuários desses centros sur- giu de uma demanda da Coordenação do Programa de Saúde Mental da referida pre- feitura. A demanda por essas intervenções ocorreu sobretudo depois de se constatar que a reinserção do portador de transtorno men- tal se dava prioritariamente no espaço fami- liar. Esse espaço é, na maioria das vezes, árduo e tenso, em função de conflitos cris- talizados e de fortes sentimentos de impo- tência dos familiares, inviabilizando alternativas. Foi nesse contexto que o programa geral de trabalho com famílias teve início em agosto de 2003, como um projeto-piloto. A experiên- cia aqui relatada começou em fevereiro de 2004, visando estudar os valores, crenças e modelos de vida das famílias de portadores de transtornos mentais, a fim de compreen- der o que é ser família em tal situação. Acre- ditando que o conhecimento daí advindo poderia contribuir para a melhoria das con- dições sociais e subjetivas da comunidade assistida, decidiu-se atender preferencial- mente as famílias carentes, em cujo interior havia psicóticos e neuróticos graves. Nossa ótica de trabalho é de uma clínica so- cial. Esse atendimento é realizado até hoje, com objetivo e tempo limitados, pretenden- do abranger as altas demandas existentes. Insistindo na possibilidade de invenção do grupo familiar, utilizamos as idéias de De- leuze & Guattari (1980) como referencial teórico, o que nos permitiu examinar os pro- cessos de subjetivação tanto na interface indivíduo-sociedade como entre seus mem- bros. Os autores acima defendem que a sub- jetividade não se aplica apenas ao indivíduo e a seus núcleos familiares, mas é imanen- te a um campo social povoado de linhas de virtualidade, de situações, acontecimentos, sendo detentora de um caráter de transver- salidade. Os acontecimentos possibilitam a atualização do virtual, do que existe em po- tência e não em ato, e dão consistência ao que ocorre no molecular, no invisível. Esse aglomerado de forças que acompanha si- tuações emerge nos encontros, nas rela- ções, e também faz parte da subjetividade, cuja composição é heterogênea, sem nenhu- ma primazia hierárquica de qualquer compo- nente ou determinante, com possibilidade de autopoiese permanente. Trabalhando a questão da subjetividade por esse viés, Rolnik (1998) afirma que esta pos- sui duas faces: uma formal, que correspon- de àquela na qual o indivíduo se reconhece, >73 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 c l ín ic a d o s o c ia l e outra sensível, que corresponde à capaci- dade de afetar e ser afetado pelos universos cambiantes a que somos submetidos inces- santemente, deflagrando sensações e de- sestabilizações. Entretanto, essa constância de afetamentos não garante a emergência de figuras singulares que se inventam me- diante processos de subjetivação. Na verda- de, esses afetamentos exercem pressões sobre a subjetividade, gerando tensões e conduzindo a desestabilizações. As tensões ocorrem na superfície de forças cambiantes: por um lado, as forças intensi- vas produzidas por fluxos que se movimen- tam para o desconhecido, convidando a um outro modo de existência; por outro, as for- ças do estabelecido, tendendo a copiar o existente. Nesse campo de forças, geral- mente preferimos a segurança do conhecido e raramente embarcamos no desconhecido. Isso pode acontecer com as famílias e, como veremos, com os terapeutas de família. Analisando como se dá a construção de sin- tomas, Rolnik (1995) pontua que os mesmos funcionam por insistência na referência identitária, como um sedativo contra o mal- estar vivido no movimento existencial de poder vir a ser outra composição. A recusa do diferente, da aventura na processualida- de inerente à vida, faz eclodir o sintoma, que corresponde a uma paralisação, a uma perda da expressividade das subjetividades. O sintoma na família pode ser entendido, nessa perspectiva, como uma perseverança do grupo em sua identidade. Aí o estranho e o inédito sensibilizam, perturbam e incitam uma contra-reação, emforma de sintoma, bloqueando as vias criadoras de existencia- lização na família. A circulação da vida vê- se, assim, circunscrita a ilhas de interações reprodutivas e sintomáticas: ilhas-território que se manifestam através de mágoas eter- nas, dores irrefreáveis e um sofrimento pe- rene, gerando efeitos de incapacidade e impotência, comprometendo as relações no cotidiano familiar. Quando tem em seu núcleo um membro com uma psicopatologia grave, a família vive uma série de abalos e desestabilizações constan- tes que exigem a criação de novos territó- rios existenciais. No processo terapêutico, percebemos freqüentemente que as subjeti- vidades envolvidas nesse encontro reprodu- zem, a todo momento, seus arranjos antigos, perpetuando o território existencial experi- mentado até então (Romagnoli, 2003). Pro- curamos, em nossos atendimentos, não só acolher a família e conhecer esse território, mas também caminhar junto com o grupo, na construção de uma outra composição. O programa em questão conta com quatro estagiários que realizam o atendimento em duplas. Eles fazem uma entrevista inicial com as famílias encaminhadas pelos profis- sionais do serviço, preenchendo, em conjun- to com os responsáveis, o cadastro familiar elaborado pelo programa. Esse cadastro bus- ca conhecer a realidade das famílias e sua dinâmica de funcionamento, a fim de prepa- rar os alunos para o primeiro encontro com a família e colher dados para a pesquisa si- multânea ao programa. O atendimento das famílias se dá em seis encontros, podendo estes ser renovados ou não, de acordo com a avaliação da equipe. Os estagiários têm ainda supervisão semanal dos casos atendi- dos e preenchem um relatório de acompa- nhamento do caso. >74 a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > c l ín ic a d o s o c ia l O programa foi alocado, em um primeiro mo- mento, nas Unidades Básicas de Saúde – UBS. Tais UBS são ligadas à saúde mental in- fantil e atendem a uma clientela prioritaria- mente composta por casos graves de psicose e de neurose infantis. Embora esses casos revelem fortes componentes do grupo fami- liar, o tratamento oferecido é na maioria das vezes individual, abarcando o filho e não a família como um todo. Nesse caso, a pers- pectiva de se trabalhar com o grupo fami- liar é que possibilita alternativas para a maior eficácia do tratamento e maior impli- cação do grupo. Nas UBS, a primeira experiência do progra- ma teve a duração de um semestre, ao final do qual foi realizada uma reunião com a equipe da saúde mental infantil, para ava- liação. Nesse primeiro momento, o programa atendeu a dez famílias, com alguns casos bem-sucedidos. Mas, na avaliação realizada pela equipe, não ficou “evidente” a importân- cia do mesmo e se decidiu pela sua paralisa- ção. O desconhecimento desse tipo de atendi- mento e uma forte resistência do grupo de profissionais determinaram tal decisão. Mas o programa, em si, continuou em vigên- cia, sendo hoje realizado em outro local, mas atendendo somente os adultos das famílias com portadores de transtorno mental. A unidade atual possui uma tradição de acolhi- mento e trabalho com as famílias, e o pro- grama possui apoio dos técnicos e da coordenação. Entretanto, essas mudanças nos fazem re- fletir sobre o que ocorreu no primeiro local de atuação, levando-nos a perguntar: por que um programa que atende a uma deman- da não só dos usuários, mas da própria re- forma psiquiátrica, não foi aceito? Reprodução e invenção: uma compreensão da experiência Trabalhar com famílias não é prática usual entre os psicólogos e tampouco entre os psi- canalistas. Em revisão das escolas de tera- pia de família, Féres-Carneiro (1996) constata que, já na década de 1950, essa modalidade clínica era excluída da prática dos profissionais “psi”: No início da década de 1950, ao mesmo tem- po em que crescia, a partir da produção teóri- ca, a consciência da importância da família no desenvolvimento e na manutenção da patologia mental, a prática clínica vigente era regida por regras que ressaltavam que o contato com a família do paciente não deveria ser feito. (p. 39) Infelizmente, já agora em outro século, essa postura ainda persiste, o que nos leva a in- dagar o porquê de tal discriminação, princi- palmente num momento em que a família é um tema tão em evidência nos estudos aca- dêmicos, na mídia e nas políticas públicas. Refletindo sobre os determinantes de tal posição, verificamos uma grande relutância, por parte dos profissionais de saúde, sobre- tudo psicólogos e psicanalistas, para atender a esse grupo. Diante disso, buscamos uma análise provisória dos obstáculos que invia- bilizam tal prática. Em nosso entender, um primeiro complica- dor é exatamente a formação dominante dos psicólogos. Historicamente, a psicologia surgiu, no país, a partir das áreas da clínica, da educação e das organizações do trabalho. Os primeiros cursos universitários foram ins- tituídos na década de 1960, com um forte domínio da orientação positivista experi- mental. Vale lembrar que, embora nessa época já florescesse a psicologia social e or- >75 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 c l ín ic a d o s o c ia l ganizacional, bem como o trabalho com gru- pos, a ênfase era dada à clínica privada individual. Esta se desenvolveu junto às classes mais favorecidas, associada ao mo- delo médico tradicional. As práticas clínicas eram geralmente realizadas em consultório particular, para a elite, versando em torno da cura. Esse modelo dominante insistia no tratamento individual, desqualificando ou- tras práticas, provocando um esvaziamento do trabalho com os coletivos e com as cama- das mais baixas da população. E mesmo que a clínica cada vez mais, na atualidade, am- plie seus campos de atuação, com novos dis- positivos teóricos e técnicos, preocupando- se cada vez mais com sua responsabilidade social, esse traço ainda permanece. Recen- temente, ao examinar esse panorama na realidade brasileira, Ferreira Neto (2004) considera que, apesar da emergência de no- vas concepções e novas práticas, ainda há uma onipresença, no imaginário social, de uma clínica curativa, com ênfase no diag- nóstico e nos modelos de classificação no- sológica. Essa permanência é sustentada por um con- texto social e cultural mais amplo, que en- fatiza o indivíduo em todos os domínios. A modernidade funda uma sociedade comple- xa que, paulatinamente, passa a ser regida por uma acentuada divisão do trabalho, com grande aumento da produção e do consumo, a mundialização da economia de mercado e um intenso processo de desenvolvimento urbano. Há aí uma lógica própria na qual pro- dução, metamorfose e inovação se mesclam para a consolidação de um cenário que tem no indivíduo seu eixo central. Tal lógica re- sulta na precarização dos modos de vida e na degradação das relações entre indiví- duos, grupos e sociedades. Lipovetsky (s/d) vê a sociedade pós-moder- na como uma sociedade de consumo pós- industrial embasada não mais nas relações de produção, mas sim na sedução que ten- de a regular o consumo, as organizações e os costumes. Isso conduz, em última ins- tância, ao alargamento da esfera da alie-nação. É necessário ressaltar que a pós-mo- dernidade não tem uma relação de descon- tinuidade com a modernidade, apenas exa- cerba o processo hedonista do individualis- mo. O espaço privado se psicologiza como um espaço da dependência narcísica do de- sejo. O crescimento de uma lógica indivi- dualista hedonista, impulsionada pelo uni- verso do consumo, coloca o narcisismo no ápice da esfera privada, gerando o desinves- timento na esfera pública. Daí o perfil do ho- mem contemporâneo: informado, apático, consumista, alienado, imediatista e, so- bretudo egocêntrico. Lasch (1983) atribui à intensa preocupação com o eu, incessante- mente empenhado na busca de auto-satis- fação, a crise que a sociedade atravessa, num misto de angústia e de desordem nar- císica. Nesse panorama, as práticas psicológicas focalizam-se cada vez mais nos indivíduos, relegando os coletivos, se não ao esqueci- mento, pelo menos à desvalorização. Por outro lado, quando essas práticas lidam com o que os agentes de saúde não conhecem, não remetendo à sua formação, elas são desqualificadas a priori. Mesmo que o traba- lho com famílias tenha uma tradição histó- rica de produção e de intervenção, esta é uma modalidade pouco conhecida pelos pro- >76 a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > c l ín ic a d o s o c ia l fissionais da rede de saúde mental, não sen- do valorizada pela maioria deles. É nesse contexto que localizamos a experiência com a terapia familiar, em nosso primeiro local de atuação. A família contemporânea é agente de so- cialização primária, locus da estruturação psíquica, primeiro núcleo de referência gru- pal, efetuando a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Ela é também foco de ten- sões e conflitos, vivenciados tanto na sua relação com a sociedade quanto na relação entre seus membros (Romagnoli, 1999). Con- tudo, apesar da grande produção teórica so- bre sua contribuição na estruturação dos indivíduos, a família não é objeto de inter- venção da maioria dos profissionais “psi”. A predominância do individualismo contempo- râneo contamina também a formação do psicólogo que se gradua com quase nenhu- ma informação sobre a terapia familiar. Tal desconhecimento, não raro o conduz a um desprezo desse modelo de trabalho. Assim, ele não só deixa de contribuir para a trans- formação da família, como também passa a responsabilizá-la pela falta de alternativas frente à emergência da psicopatologia, em seu seio. No campo teórico, observamos que a maio- ria dos profissionais que atua na área da saúde mental, em Minas Gerais, tem uma formação “psi” centrada no indivíduo. No li- vro O porão da família (Meira, 2003), psica- nalistas mineiras realizam um trabalho que tem dupla função: denunciar a exclusão do tratamento de famílias da prática psicanalí- tica e propor esse tipo de trabalho, dando- lhe sustentação teórica e técnica. As autoras salientam que, embora as relações familia- res estejam no cerne da criação da psicaná- lise, sendo consideradas ponto crucial nos conflitos psíquicos, as suas releituras tem como eixo de sustentação a noção de sujei- to, enfatizando o trabalho com o indivíduo. Ainda que essa vertente contenha um vas- to e sistematizado arsenal para a compreen- são das tramas familiares, não possui dispositivos de intervenção clínica com es- ses grupos. Precisamente por destacar o su- jeito em sua singularidade, em detrimento do indivíduo da relação, o trabalho com as famílias foi desvalorizado e criticado. Nesse ponto está a inovação das autoras: insistir não só que o sintoma da criança é também sintoma de uma estrutura familiar, fruto da dinâmica pulsional da família, mas também insistir que a clínica necessita apreendê-lo através da palavra, trabalhando inclusive com o par parental. Nesse caso, a estrutura desejante da família não só deve ser exami- nada para uma compreensão do sujeito que ocupa um lugar no desejo de cada um dos pais, mas sobretudo deve deixar a família entrar porta adentro do consultório. Mesmo sendo a demanda de análise uma demanda em torno da criança ou da “relação”, ou do mal-estar entre os membros da família, esta deve ser acolhida e analisada. Além disso, certas elaborações psicanalíticas podem gerar uma culpabilização da família, na questão da psicose. Aliás, isso caberia a todas as teorias “psi”. Em um estudo sobre o trabalho com grupos de familiares, na Saúde Mental, Melman (2001) destaca a culpabili- zação maciça das famílias, por parte dos profissionais de saúde, pelo adoecimento do portador de transtorno mental. Essa culpa- bilização é confirmada até mesmo pelas cor- >77 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 c l ín ic a d o s o c ia l rentes de terapia familiar e pelas análises da antipsiquiatria. Fazendo um percurso so- bre as escolas de terapia familiar, o autor revela que a maioria dos estudos, nesse campo, enfatiza os aspectos disfuncionais ou patológicos das relações familiares, focando-se em sintomas, conflitos, dificul- dades de comunicação e de desempenho adequado de papéis. Cada uma dessas ver- tentes, guardadas as suas especificidades, trata de responsabilizar a família e, em gran- de parte, as mães, pelo surgimento da doen- ça mental. Assim, o conhecimento “psi” foi em grande parte usado para culpabilizar a família e não para lhe propiciar a construção de novos territórios existenciais. Na rede de saúde mental, os profissionais remontam aos “erros” do passado familiar para explicar o surgimento da doença men- tal, em vez de acolher o sofrimento da famí- lia. Com certeza, possuir um membro portador de transtorno mental é, para qual- quer família, uma realidade de dor, gerando um grande abalo em seu cotidiano. A gravi- dade e a longa duração dos sintomas, os fra- cassos sociais vivenciados, além das dificuldades de interação e comunicação, conduzem a família a um processo de isola- mento girando em torno da doença. Essa realidade é muitas vezes ignorada pelos pro- fissionais “psi”. Melman aponta a necessidade de os profis- sionais de saúde mental e os familiares dos usuários saírem do registro da culpa e da vi- timização da doença. Em vez de buscar a gê- nese da doença mental apenas no seio da família, eles deveriam promover encontros inovadores com a família, tentando novas formas de convivência, novos arranjos rela- cionais, criando práticas terapêuticas mais ricas e flexíveis. Estudando o cuidado familiar ao portador de transtorno mental, Rosa (2003) afirma que este é um processo cotidiano de ensaio e erro e que, na maioria das vezes, não con- ta com a colaboração dos técnicos de saúde mental. A autora salienta ainda que a famí- lia “desapareceu”, no debate do movimento de reforma psiquiátrica, em nosso país, que privilegia a cidadania, a reabilitação psicos- social e os serviços substitutivos, como pon- tos fundamentais. Todavia, ela lembra que todos esses dispositivos exigem a participa- ção da família, retirada desse debate. O que, de fato, acontece, na relação da família com os profissionais, é uma dupla responsabili- zação. De um lado, a família lhes atribui o saber sobre o processo e a responsabilida- de por qualquer mudança. De outro, os pro- fissionaisdepositam na família a responsabilidade pelo adoecer. Daí, a dificul- dade de uma relação inovadora entre os usuários e o serviço. Retornamos aqui à questão do desconheci- mento, pois a exclusão da família, na refor- ma psiquiátrica, se deu também pela igno- rância dessa modalidade de atendimento, o que inclui a própria subjetividade dos técni- cos, receosos de inovar, frente ao desconhe- cido, de habitar novos territórios. Esse re- ceio reflete uma tendência a validar e repro- duzir recursos já existentes e já institucio- nalizados, portanto aceitos e valorizados. O mesmo ocorre com as famílias que, ao recu- sar novas formas de existência, só am- pliam a produção de sintomas. Acrescente- se que, para o profissional, o trabalho com famílias remete diretamente ao seu próprio >78 a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > c l ín ic a d o s o c ia l grupo familiar, em suas relações complexas e conflituais. Para evitar a análise da pró- pria implicação ou de sua contratransferên- cia, no atendimento à família, ele pode se refugiar na estratégia defensiva de evitar esse atendimento. Por outro lado, vimos que a família também se omite, no tratamento do portador de transtorno mental, ficando à mercê dos pro- fissionais, aos quais atribui um grande po- der. Analisando esse posicionamento, arriscamos uma análise foucaultiana da questão. O filósofo afirma que todo discur- so revela um desejo e uma vontade de po- der (Foucault, 1999). Este se espalha em nosso cotidiano, disseminando-se nos espa- ços moleculares, não se localizando somen- te nas instituições sociais, mas se exercendo em postos diferentes, articulando-se de ma- neira variada na rede social, sob relações desiguais e móveis. Nesse contexto, o poder está intrinseca- mente ligado ao saber. Todo saber remete a uma relação de poder, ao mesmo tempo em que todo poder instaura um campo de saber. É importante assinalar que as relações de poder são processos que implicam uma po- sitividade, ou seja, não apenas excluem, censuram ou mascaram, mas induzem, inci- tam, produzem modos de existência. Cabe ressaltar que a noção de positividade, aqui, não remete a um critério moral, mas opõe- se a uma hegemonia do poder no âmbito re- pressivo, pois, no que se refere a seu funcionamento e a seus efeitos, o poder não se restringe a desqualificar, limitar, negar e reprimir. O poder é sim, positivo, no senti- do de constitutivo, de determinante, de construir a vida das pessoas por meio de verdades normativas. Aliás, sendo o poder positivo, a repressão é apenas uma de suas estratégias possíveis e talvez, atualmente, das menos eficazes. Neste raciocínio, as relações de poder se fundamentam em dois processos: o de obje- tivação do sujeito (produzem o sujeito en- quanto objeto dócil e útil), e o de subjetivação (produzem o sujeito enquanto sujeito portador de uma identidade determi- nada). Esses dois processos não são oriun- dos de uma prática punitiva, mas se fazem de maneiras distintas, nas diferentes épo- cas, produzindo modos de existência pró- prios. Aplicando essa abordagem à família, vemos que ela também é resultado de rela- ções de poder, moldada por disciplinas, por diversos discursos e práticas sociais. Nas fa- mílias dos portadores de transtorno mental, esses discursos e práticas contribuem para a produção de modos de existência familiares assujeitados, submissos e alienados. O poder e o saber atuam sobre o corpo e o espaço, controlando-os. Essa é a base do poder disciplinar que produz indivíduos dó- ceis e úteis, através de observações, norma- lizações, medidas comparativas, dentre outras. Podemos perguntar aqui: até que ponto a passividade da família, seu alhea- mento em relação à própria mudança, não corresponde, de fato, a uma ausência de sa- ber sobre si mesma? Expropriada de conhe- cimentos sobre seus membros e sobre seu funcionamento, a família acomoda-se nos microfascismos do “nada sei”, socialmente e historicamente construídos. É essa constru- ção que sustenta as práticas em Saúde Men- tal, como já nos disse Melman (2001). Nesse sentido, podemos perguntar ainda: até que >79 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 c l ín ic a d o s o c ia l ponto a culpabilização da família, por parte dos técnicos, reforça essa construção, ex- propriando-lhe as condições de transforma- ção, inserindo-a em determinadas normas pretensamente científicas? Ao examinar as normas que transitam por todos os eixos do poder e em torno das quais as pessoas são estimuladas a moldar e a fa- bricar suas vidas, Donzelot (1980) lembra o seu domínio sobre a família. Para o autor, esse domínio é fundado na ascensão do se- tor social, formado por trabalhadores sociais da área da saúde, médicos, educadores, e agentes “psi” – psicólogos, psicanalistas, psi- quiatras. Ele emerge no entrecruzamento das esferas pública e privada e tem como um dos objetos de intervenção o grupo fami- liar. O que ampara esses profissionais são as normas que atuam como lei, por meio de me- canismos reguladores e corretivos. Esses es- pecialistas tomam para si a função de vigilância constante dos membros do grupo familiar, seja no que se refere à definição do que é normal ou patológico, seja no que se refere às medidas aplicadas para sanar os problemas por eles diagnosticados. De acor- do com o autor, esse setor torna-se respon- sável, em última instância, pela adaptação e pelo ajustamento de toda a sua clientela aos discursos que sustentam algumas práti- cas sociais. No caso específico da nossa experiência no citado programa de extensão, a culpabiliza- ção e a submissão do grupo familiar apóiam- se nos saberes psiquiátricos, psicológicos e psicanalíticos. Estes, quando alçados a mo- delos inquestionáveis e irrefutáveis, propi- ciam uma composição paralisadora e reprodutiva da vida. Muitas vezes, quando se reúnem os técnicos e as famílias, as in- tervenções não suscitam novidade e auto- nomia, fogem às alternativas que não se adequam aos padrões ideológicos das disci- plinas. Considerações finais Sem dúvida, o trabalho com famílias na rede de saúde mental é um campo de experimen- tação incipiente, no qual perguntas e desa- fios são uma constante, com respostas e soluções transitórias e inacabadas. Contudo, acreditamos que os serviços de saúde men- tal têm potencial para estabelecer uma par- ceria com as famílias, para ajudar a construir um outro arranjo coletivo, uma ou- tra relação com a doença mental. Apostando nessa possibilidade, acreditamos que os profissionais podem associar sua competência teórico-técnica ao conhecimen- to da família sobre si mesma, gerando um campo de afetamentos que opere a criação de novos modos de subjetivação. Em vez de culpabilizar a família, seria mais proveitoso suscitar nela um papel ativo na construção de novas formas de convivência, inclusive em sua relação com o portador de transtor- no mental. Em vez de evitar o atendimen- to, melhor seria que os profissionais enfren- tassem o desconhecido, concebendo novas práticas, outras formas de intervenção. Ao analisar o trabalho social, Noronha (2003) nos convida a um desprendimento dos equívocos presentes no conhecimento científicoestabelecido. De fato, devemos atrelar a eficácia desses saberes à sua po- tência de favorecer ou não a ampliação das formas de vida, em todas as suas manifes- tações e singularidades. Nesse sentido, a >80 a n o X V II , n . 18 0 , d e z e m b ro /2 0 0 4 p u l s io n a l > r e v is t a d e p s ic a n á l is e > c l ín ic a d o s o c ia l Artigo recebido em outubro de 2004 Aprovado para publicação em outubro de 2004 autora defende que: As práticas e relações entre vários profissio- nais, e entre estes e os usuários, passaram a ser pautadas por valores como a cooperação, a amizade, o direito à informação e à constru- ção de relações étnicas, etárias, de gênero, de dons, de habilidades que priorizem a diversi- dade de desejos, as diferentes maneiras de ser do humano e seus diversos modos de consti- tuição. (p. 126) A autora nos convida a estarmos abertos às diferenças, sem lhes dar uma conotação pe- jorativa ou comparativa. Pois há diferenças entre nossas formações, nossos conheci- mentos, nossas práticas. Diferenças entre nossas famílias de origem e as famílias que atendemos. Diferenças entre as próprias fa- mílias e seus cotidianos bizarros. Somente sustentando essa heterogeneidade podemos promover ações que, mesmo parciais, nos conduzam a outras práticas clínicas e so- ciais. Em nosso entender, o momento atual da reforma psiquiátrica brasileira necessita dessa postura e da atuação direta com a fa- mília dos portadores de transtorno mental. Referências DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix (1980). Mil Pla- tôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janei- ro: Ed. 34, 1997. DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980. FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. Terapia familiar: das divergências às possibilidades de articulação de deferentes enfoques. Psicologia: Ciência e Pro- fissão, Brasília, v. 16, n. 1, p. 38-42, 1996. FERREIRA NETO, João Leite. A formação do psicó- logo: clínica, social e mercado. São Paulo/Belo Horizonte: Escuta/Fumec, 2004. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Reló- gio d’água, s/d. MEIRA, Yolanda Mourão (org.). O porão da famí- lia: ensaios de psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. MELMAN, Jonas. Família e doença mental: repen- sando a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras, 2001. NORONHA, Patrícia Ayer de. Uma perspectiva dio- nisíaca no trabalho social: afirmação da vida. Psicologia em Revista. Belo Horizonte, v. 10, n. 14, p. 124-135, dez./2003. ROLNIK, Suely. O mal-estar na diferença. Psicaná- lise, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, nº 3, p. 97- 103, 1995. _____ Novas figuras do caos, mutações da subjetividade contemporânea. Universo Psi [on line], n. 2, agosto 1998, p. 7-11. “http:// www. universopsi.inf.br/l “. Acesso em: 7 set. 1998. ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. (Des)Conhecendo a família. Cadernos de Psicologia da PUC-Minas. Belo Horizonte, v. 6, nº 8, p. 13-19, jul./1999. _____ Clínica e vida no trabalho com famí- lias. 2003. 210 p. Tese (doutorado em Psicolo- gia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ROSA, Lúcia Cristina dos Santos. Transtorno mental e o cuidado na família. São Paulo: Cor- tez, 2003.
Compartilhar