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Artigo Dobra

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A Dobra Deleuziana: Políticas de Subjetivação 
 
 
Rosane Neves da Silva? 
 
 
 
RESUMO 
O conceito deleuziano de dobra permite problematizar tanto a produção da 
subjetividade – no sentido da constituição de determinados territórios existenciais – 
quanto os modos de subjetivação, entendidos aqui como o processo pelo qual se produz 
a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças que resultam na criação de 
determinados territórios existenciais em uma formação histórica específica. A dobra 
exprime a invenção de diferentes formas de relação consigo e com o mundo ao longo do 
tempo. Inicialmente nós vamos utilizar as próprias ferramentas do pensamento 
deleuziano para situar o plano de imanência e o personagem conceitual que se atualizam 
na criação do conceito de dobra. Num segundo momento, pretendemos mostrar como 
este conceito se operacionaliza no debate contemporâneo sobre os processos de 
subjetivação. 
 
Palavras-chave: Deleuze; Dobra; Subjetivação 
 
The Deleuzian fold: politics of subjectivation 
 
 
ABSTRACT 
The deleuzian concept of fold allow us to think critically about the production of 
subjectivity – in the sense of a constitution of determined existential territories – as well 
as the modes of subjectification, understood like a process through witch will be 
produced the flexion or the curbing of a certain type of power relationships that results 
in the creation of specific existential territories in a particular historic formation. In 
this sense, the fold expresses differents kinds of relationship with us and with the world 
throughout the time. Initially we are going to use Deleuze’s own thought devices to 
situate the plan of immanence and the conceptual personage that are actualized in the 
creation of the concept of fold. After, we intend to demonstrate how this concept is 
present in the contemporary debate of the processes of subjectification. 
 
Key words: Deleuze; Fold; Subjectivation 
 
 
? 
 
? Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS 
 
A dobra deleuziana: políticas de subjetivação 
 
O conceito deleuziano de dobra é uma importante ferramenta teórica para se 
pensar a experiência subjetiva contemporânea. A dobra exprime tanto um território 
subjetivo quanto o processo de produção desse território, ou seja, ela exprime o próprio 
caráter coextensivo do dentro e do fora. A dobra constitui assim tanto a subjetividade, 
enquanto território existencial, quanto a subjetivação, entendida aqui como o processo 
pelo qual se produzem determinados territórios existenciais em uma formação histórica 
específica. A idéia de indivíduo, por exemplo, enquanto território subjetivo moderno, 
expressa um modo de subjetivação específico, pois traduz uma certa captura da 
subjetividade dentro de um determinado sistema de códigos, no caso, o sistema de 
códigos próprio ao modo de produção capitalista. O ‘modo-indivíduo’ do capitalismo 
moderno é completamente diferente da experiência subjetiva em outros períodos 
históricos. A subjetivação refere-se, portanto, às diferentes formas de produção da 
subjetividade em uma determinada formação social. 
Ao falarmos de ‘subjetivação’ estamos considerando que esta expressão 
constitui, "um modo intensivo e não um sujeito pessoal" (Deleuze, 1990, p. 135). Sendo 
assim, podemos dizer que um processo de subjetivação traduz o modo singular pelo 
qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças. Cada 
formação histórica irá ‘dobrar’ diferentemente a composição de forças que a atravessa, 
dando-lhe um sentido particular. Isso explica por que a própria subjetividade pode 
adquirir uma configuração distinta em função do modo pelo qual se produz a curvatura 
das forças que a constituem. 
A idéia de dobra é, portanto, fundamental para entendermos o que vem a ser um 
processo de subjetivação. Ela torna-se um importante operador conceitual para pensar a 
produção, ao longo da história, de diferentes modos de constituição da relação consigo e 
com o mundo, ou seja, dos diferentes modos de produção da subjetividade. 
É através do pensamento deleuziano – sobretudo nas obras dedicadas a Foucault 
(Deleuze, 1986) e a Leibniz (Deleuze, 1988) – que situaremos esta relação do conceito 
de dobra com os processos de subjetivação. Nessas obras, Deleuze procura apreender a 
problemática que atravessa o campo de investigação desses dois filósofos em um 
determinado momento, mostrando que tanto as tecnologias de si, que marcam a obra de 
Foucault, quanto a idéia de que o mundo encontra-se virtualmente dobrado em cada 
alma, característica da mônada leibniziana, exprimem a idéia de multiplicidade e de 
criação permanente que vão forjar o conceito deleuziano de dobra. 
A seguir, nós vamos utilizar as próprias ferramentas do pensamento deleuziano 
para problematizar o conceito de dobra e, num segundo momento, mostrar como este 
conceito se operacionaliza no debate contemporâneo sobre os processos de 
subjetivação. 
 
1. Traçar, inventar, criar: a dobra como “efeito de superfície” 
O que seriam estas ferramentas do pensamento deleuziano? No livro ‘O que é a 
filosofia?’, escrito em parceria com Félix Guattari, encontramos que a própria definição 
da filosofia consiste na arte de criar conceitos e que a criação de todo conceito está 
diretamente relacionada a um problema ao qual o filósofo se vê confrontado. É claro 
que este problema não é um problema do filósofo exclusivamente, mas um problema do 
seu tempo e que remete a questões que habitam o mundo deste filósofo – mesmo que a 
maioria de seus contemporâneos não consiga identificar e perceber qual é exatamente 
 
 
este problema. Por isso, muitas vezes, os problemas filosóficos são tão mal 
compreendidos, pois o filósofo, assim como o artista, ao expressar a intensidade do 
presente, experimenta a sensação de estar fora do seu tempo. 
Existe, portanto, uma relação de pressuposição recíproca entre o conceito e o 
problema a ele relacionado. Antes de falarmos da dobra e da relação deste conceito com 
os processos de subjetivação, vamos entender outros dois elementos que, segundo 
Deleuze e Guattari (1992), são inerentes a toda criação conceitual. São eles: o traçado 
de um plano de imanência e a invenção de personagens conceituais. 
O plano de imanência é a paisagem ou o solo onde se tece “a imagem que o pensamento 
se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento...” 
(Deleuze e Guattari, op. cit., p. 53). Neste sentido, o plano de imanência seria o 
impensado do/no pensamento, como “um deserto movente que os conceitos vêm a 
povoar” (ibid., p.57), atualizando o movimento infinito no qual se desloca o pensamento 
enquanto pura variação. 
Os personagens conceituais não designam um personagem extrínseco, como, por 
exemplo, um personagem de diálogo ou um tipo psicossocial, mas “uma presença 
intrínseca ao pensamento, uma condição de possibilidade do próprio pensamento” 
(ibid., p. 11). Segundo Deleuze e Guattari (op. cit., p. 10), quando os gregos inventam a 
filosofia, ‘amigo’ é um dos personagens conceituais que torna possível o próprio 
exercício do pensamento filosófico: o filósofo é um amigo da sabedoria, aquele que 
pretende se aproximar da sabedoria não para capturá-la, mas para potencializá-la em 
novos e diferentes devires. 
Portanto, os conceitos não existem em algum lugar prontos para serem 
descobertos pelos filósofos. Eles precisam ser criados, fabricados e sempre a partir do 
encontro com algo que coloque uma necessidade absoluta de se pensar outramente. É aí 
que entrao combate do filósofo com o seu tempo e a irredutibilidade da criação de 
conceitos que expressem os problemas deste tempo, na direção, quem sabe, de um novo 
porvir. 
Para entender esta relação de pressuposição recíproca entre o conceito e o 
problema ao qual ele remete, vamos começar analisando o plano de imanência e os 
personagens conceituais inerentes à criação do conceito de dobra. 
O plano de imanência deleuziano, ou o solo de onde brota o conceito de dobra, 
introduz uma diferença fundamental na imagem que, desde Descartes, com algumas 
exceções, o pensamento filosófico se dá do que significa ‘pensar’. A novidade do plano 
de imanência traçado por Deleuze é, justamente, romper com uma imagem do 
pensamento que remete o próprio pensamento a pressupostos implícitos e subjetivos 
calcados na forma pessoal e individual de um sujeito empírico. 
Antes de analisarmos a topologia do pensamento deleuziano, convém entender a 
sua crítica a essa imagem do pensamento que caracterizou e ainda caracteriza boa parte 
da filosofia moderna. Tal imagem do pensamento se constituiu a partir do modo muito 
peculiar com que o plano de imanência cartesiano e o seu respectivo personagem 
conceitual encontravam-se articulados na criação do conceito de Cogito, tomando como 
ponto de partida pressupostos implícitos e subjetivos fundados no senso comum sobre o 
que significava pensar. Segundo Deleuze (1968), Descartes é extremamente habilidoso 
ao traçar o solo de onde brotam seus conceitos ao dizer, por exemplo, que como todos 
pensam, supõe-se que todos saibam o que significa pensar. Vemos, portanto, de que 
maneira o plano cartesiano vai envelopar o movimento infinito do pensamento: pensar 
torna-se o exercício natural de uma faculdade e a proposição ‘eu penso’ será 
completamente separada do problema que lhe diz respeito e que remete à questão ‘o que 
é pensar?’. 
Ao recorrer ao bom senso e ao senso comum como modelos da recognição que 
sabe a priori o que significa pensar, esse tipo de pressuposto implícito e subjetivo vai 
estabelecer uma afinidade ‘natural’ do pensamento com a verdade. 
No entanto, o apelo a uma ‘doxa generalizada’ não seria suficiente para explicar 
nem essa afinidade do pensamento com o verdadeiro nem o alcance de tal procedimento 
filosófico. É preciso considerar também as condições interiores ao pensamento em seu 
exercício real, ou seja, a maneira pela qual o que todos sabem (o que significa duvidar, 
pensar, ser, etc.) será selecionado para a criação do conceito de Cogito. 
Essa seleção se fará pela intervenção do personagem conceitual. Vimos que tal 
personagem não é "o representante do filósofo", mas corresponde a uma atitude ou 
"aptidão do pensamento" (Deleuze e Guattari, op.cit., p.86). 
No caso da filosofia de Descartes, o personagem conceitual vai se caracterizar 
por um movimento de deriva entre o Cogito (Eu penso) e os pressupostos implícitos e 
subjetivos do plano de imanência (todos sabem o que quer dizer pensar); entre a 
capacidade ‘natural’ do ato de pensar e uma ‘banalização’ do próprio pensamento. Esse 
estranho personagem que quer pensar e que pensa pela "luz natural" de seu próprio 
pensamento será denominado por Deleuze e Guattari de "o Idiota" (ibid., p. 83). O 
idiota caracterizaria aquele que duvida de tudo e considera que a "luz natural" de seu 
próprio pensamento pode levá-lo à verdade, já que a única coisa da qual não pode 
duvidar é que ele "pensa". 
Vemos assim que a criação de todo conceito é inseparável de uma relação de 
pressuposição recíproca entre um plano de imanência e o ou os personagens conceituais. 
 
Os conceitos não se deduzem do plano, há necessidade do personagem 
conceitual para criá-los sobre o plano, assim como há necessidade dele para traçar o 
próprio plano, mas as duas operações não se confundem no personagem, que se 
apresenta ele próprio como um operador distinto (ibid., p. 100). 
 
Portanto, podemos dizer que a consistência do conceito de Cogito será dada 
pelas ‘zonas de indiscernibilidade’ de seus componentes, isto é, por essas relações de 
pressuposição recíproca entre um plano de imanência que opera a seleção de certos 
elementos oriundos do senso comum, e um personagem conceitual que é tomado como 
uma espécie de ‘operador’ para o próprio exercício do pensamento. 
O plano de imanência e o personagem conceitual implicados na criação do 
Cogito cartesiano fazem com que pensar e o ato de pensar convertam-se, assim, em uma 
única e mesma coisa. Dissolve-se assim todo vestígio de uma exterioridade e, 
consequentemente, do próprio tempo: o pensamento torna-se então um "assunto 
privado" que cada um possui por sua própria conta (Deleuze, 1968). 
Ao contrário do que ocorre no pensamento cartesiano, o plano de imanência e o 
personagem conceitual implicados na criação do conceito deleuziano de dobra vão 
produzir uma nova imagem do pensamento. Para Deleuze (1968), pensar não é o 
exercício natural de uma faculdade: nós só pensamos raramente e sempre a partir do 
encontro com algo que nos força a pensar. É o caráter contingente deste encontro e a 
violência de seu golpe que cria no pensamento a necessidade absoluta do ato de pensar. 
Pensar não é, portanto, um ato involuntário e banal, mas algo que pressupõe uma 
relação imediata com o Fora, entendido aqui como um campo intensivo que se desloca a 
uma velocidade infinita. O Fora funciona assim como uma máquina abstrata que emite 
singularidades e envolve o movimento infinito do pensamento. O plano de imanência 
deleuziano caracteriza-se por uma topologia traçada a partir dessas “emissões de 
singularidade” (Deleuze, 1969, p. 122) que fazem do pensamento uma máquina de 
experimentação permanente: pensar é pura potência de invenção. Esta experimentação, 
no entanto, não é calcada em um sujeito empírico ou transcendental, mas no impessoal 
enquanto potência de atualização das virtualidades que habitam este campo intensivo 
que se desloca a uma velocidade infinita. 
A idéia de singularidades, portanto de anti-generalidades, distingue-se de 
imediato da idéia de senso comum que serve de fundamento à imagem do pensamento 
que estrutura a forma da representação. As singularidades, caracterizando-se como 
"anti-generalidades", excluem toda relação a uma forma pessoal e individual. O que 
Deleuze chama em Lógica do sentido de "emissões de singularidade" se dá sobre uma 
superfície móvel e heterogênea, distinguindo-se, assim, das distribuições fixas e 
sedentárias características das formas pessoais e individuais. 
É neste sentido que se pode dizer que o plano de imanência deleuziano 
caracteriza-se por um campo transcendental marcado por estas emissões de 
singularidade “anônimas e nômades, impessoais e pré-individuais” (Deleuze, 1969, p. 
125). 
Esse campo transcendental não se assemelha aos campos empíricos 
correspondentes: toda a sua importância no pensamento deleuziano é que este campo 
transcendental não pode ser relacionado "a" alguma coisa que pressuponha uma base 
pessoal ou individual. 
Segundo Schérer (2000, p. 22), o plano de imanência deleuziano é traçado como 
um “campo transcendental impessoal” que dispensa o “eu penso” da tradição cartesiana 
e todo suporte transcendente daí decorrente (quer se trate de um sujeito empírico ou 
mesmo de uma consciência transcendental). 
O campo transcendental para Deleuze (1969) é, portanto, povoado de 
singularidades-acontecimentos providos de uma "energia potencial" que organizará esse 
campo de um modo "metaestável", de maneira que "o elemento paradoxal" que percorre 
todas as séries que compõem essas singularidades vai colocá-las em ressonância. Esse 
elemento paradoxal funciona então como contra-senso (non-sens) e assegura assim uma 
outra característica das singularidades que é seu "efeito de superfície", isto é, sua função 
de contato entre o exterior e o interior. A superfície das singularidadesconstitui uma 
espécie de membrana que anula a existência de uma distância topológica entre o dentro 
e o fora. Portanto, é ao nível da superfície das singularidades que pode se produzir o 
sentido. Não um sentido já fixado numa direção única, mas um sentido que sobrevoa os 
acontecimentos na espera de sua efetuação. É por isso que se deve falar de uma 
produção de sentido em oposição à idéia de uma origem do sentido, pois a produção 
comporta um caráter indeterminado que terá por estatuto "o problemático" e não "o 
idêntico". O estatuto do problemático como característica do campo transcendental 
deleuziano pode-se explicar pelo fato de as singularidades se distribuírem nesse campo 
de uma forma aleatória (sem sentido único ou identidade fixa) e de sobrevoarem os 
acontecimentos de acordo com sua superfície de contato antes de adquirir uma 
significação. O problemático torna-se então uma categoria imanente à determinação 
mesma do campo transcendental, pois as singularidades que povoam tal campo são 
irredutíveis a qualquer instância dita "originária". Essa irredutibilidade das 
singularidades à forma da representação constitui um aspecto importante da crítica 
deleuziana à determinação do campo transcendental. Esse campo não seria 
condicionado por nenhuma forma preestabelecida, pois toda determinação a uma base 
empírica conduziria inevitavelmente à constituição de universais. 
A importância do pensamento deleuziano consiste em mostrar que o 
transcendental não pode ser concebido à imagem e à semelhança do que ele 
supostamente fundaria, e que é a partir de uma teoria das singularidades que se pode 
compreender a complexidade pela qual o campo transcendental é determinado. 
O problema do sentido constitui assim um aspecto essencial da crítica deleuziana 
à filosofia da representação: enquanto instância originária e predicável, o sentido não 
cessa de produzir uma imagem do pensamento que deve decalcar o transcendental a 
partir do empírico. É por essa razão que o elemento paradoxal vai desempenhar um 
papel preponderante no procedimento deleuziano: tal elemento não cessa de fazer girar 
o sentido em todas as direções, permitindo que a experimentação se desloque do 
idêntico (plano da representação) para o problemático (plano do acontecimento). 
Essa função criativa e produtora do elemento paradoxal permite tratar o sentido 
não como predicado ou propriedade original, mas como acontecimento. E, quando o 
sentido se torna "acontecimento", podemos separar o transcendental de seu suporte 
empírico e problematizar a determinação do campo transcendental a partir de sua 
própria capacidade genética. Mas, para tanto, é preciso desenvolver toda uma "lógica do 
acontecimento" que produzirá uma mudança crucial em relação ao problema mesmo do 
sentido. Desde já podemos dizer que a "natureza" mesma de tal problema muda 
consideravelmente: não se trata mais de um problema de origem, mas de um problema 
de gênese, pois o "problema", enquanto exercício transcendente, não quer estar de posse 
de uma "regra de soluções", mas simplesmente nos ensinar a fazer germinar seu poder 
genético, ou seja, seu poder de constituição de um campo de problematização. 
Além de seu caráter impessoal e pré-individual (sua dimensão “anônima”, 
segundo Deleuze, 1969), as singularidades se caracterizam também por seu nomadismo. 
Uma singularidade não é separável de uma zona de indeterminação que constitui de 
certo modo o espaço aberto de sua distribuição nômade. Esse nomadismo se traduz por 
um movimento imanente que faz com que uma singularidade possa se estender até a 
vizinhança de uma outra e constituir assim uma série convergente. Essa convergência 
das singularidades numa série constitui ao mesmo tempo o início de sua efetuação e é a 
condição para que um mundo comece. 
Neste sentido, podemos dizer que o nômade constitui o personagem conceitual 
do pensamento deleuziano. O nômade “é o homem da terra, o homem da 
desterritorialização – ainda que ele seja também aquele que não se move, que 
permanece agarrado ao meio, deserto ou estepe” (Deleuze, 1977, p.162). Ele se 
caracteriza menos pelos deslocamentos que realiza de um ponto a outro que pelo fato de 
habitar a superfície lisa e intensiva do campo transcendental. 
Segundo Deleuze (1968, p. 188), é sempre pela intensidade que o pensamento 
nos advém, uma intensidade que se produz no encontro com o que força a pensar. A 
intensidade constitui-se assim na condição de possibilidade do próprio pensamento. O 
nômade atualiza esta intensidade na medida em que habita o campo transcendental 
povoado de singularidades anônimas. A construção do plano, neste sentido, é sempre 
uma política (Deleuze, 1977, p. 110), ou melhor, uma micropolítica, pois ela engaja 
uma série de agenciamentos coletivos que se expressam através destas singularidades 
móveis e anônimas. É toda uma geografia do pensamento que se coloca em movimento 
e o nômade é aquele que, mesmo sem sair do lugar, foge por todos os lados, para não se 
deixar capturar pelas armadilhas do instituído. 
A dobra deleuziana é a curvatura ou a inflexão destas linhas infinitamente 
móveis que percorrem o plano de imanência cuja superfície é povoada por 
singularidades anônimas e nômades. A dobra exprime a desaceleração deste movimento 
infinito, produzindo a convergência das singularidades em um dado momento, criando 
assim um dentro que é coextensivo ao fora, e que é a condição para que um mundo 
comece. A dobra é, portanto, a expressão de um mundo possível. Este mundo possível 
não corresponde ao melhor dos mundos, segundo a fórmula leibniziana, mas significa 
que o mundo mesmo é acontecimento, é produção contínua do absolutamente novo. 
Partir do mundo, da série infinita que é o mundo, implica traçar um plano de imanência 
– cujo pressuposto é a multiplicidade – e inventar um personagem conceitual – o 
nômade – que possa habitar esta multiplicidade e montar sua tenda em qualquer lugar. 
 
 
 
2. As dobras da subjetivação capitalística 
Para Deleuze (1988), tudo no mundo existe dobrado. Sendo assim, nós 
poderíamos dizer que são essas múltiplas dobraduras do Fora que vão produzir 
diferentes modos de expressão da subjetividade. A dobra, neste caso, pode ser 
caracterizada como o ponto de inflexão através do qual se constitui um determinado tipo 
de relação consigo; o modo pelo qual se produz um Dentro do Fora (Deleuze, 1986, p. 
104). A noção de dobra não é, portanto, independente do campo social. Como vimos 
anteriormente, a produção de um certo tipo de relação consigo e com o mundo é 
coextensiva às forças que atravessam e constituem um determinado arranjo do tecido 
social. 
Deleuze (ibid., p. 111 - 114) considera que há quatro tipos de dobras presentes 
em qualquer modo de subjetivação. A primeira concerne à "parte material de nós 
mesmos que vai ser cercada, apanhada na dobra" (o corpo, entre os gregos; a carne, 
entre os cristãos, e assim por diante). A segunda é a "regra singular" pela qual "a relação 
de forças é vergada para tornar-se relação consigo" (pode ser tanto uma regra "divina", 
"racional", "estética", ou outra, conforme o caso). A terceira é a maneira pela qual se 
constitui uma relação entre saber e verdade. A quarta se refere àquilo que o sujeito 
espera do exterior. Esta última dobra já pressupõe um modo de subjetivação calcado na 
idéia de uma divisão entre o dentro e o fora, característico das formações ocidentais. 
Essas quatro dobras propostas por Deleuze no livro Foucault nos permitem 
compreender o caráter singular dos diferentes processos de subjetivação ao longo da 
História. 
Interessa-nos entender como essas quatro dobras vão se atualizar num modo de 
subjetivação específico que, segundo Guattari (1986), caracteriza a subjetivação 
capitalística_. As dobras da subjetivação capitalística também se produzem 
diferentemente ao longo do tempo. Tomaremos duas cenas,uma de um passado recente 
e outra mais contemporânea, para explicar os diferentes desdobramentos da 
subjetivação capitalística e como as quatro dobras de que falamos acima se atualizam 
em cada uma das cenas. 
 
 
 
Primeira cena da subjetivação capitalística 
A primeira cena se localiza no momento em que assistimos ao apogeu (e, ao 
mesmo tempo, ao declínio) do que Foucault (1975) denominou de “sociedade 
disciplinar”, e que coincide com um arranjo social marcado por um processo de 
industrialização crescente, mas, sobretudo, por uma tecnologia disciplinar forjada pela 
visibilidade permanente imposta aos mais diferentes espaços de confinamento. Segundo 
Foucault (ibid.), o aperfeiçoamento de uma tecnologia disciplinar, ancorada sobre um 
modo específico de organização das relações de produção, constitui o correlato 
essencial para o desenvolvimento do capitalismo. 
Nesta primeira cena, vemos que é preciso disciplinar o corpo (primeira dobra), 
vinculando-o a um lugar preciso na produção a partir da vigilância constante do espaço 
que ele ocupa em cada momento (na escola, na fábrica, na prisão, etc.), e nele 
imprimindo uma cadência ritmada no tempo a partir de uma programação de seus 
gestos, que será tanto mais eficaz quanto mais se torne automática e retire todo vestígio 
de vontade do corpo. O corpo é a superfície de inscrição das normas e valores de uma 
determinada sociedade, logo, é sobre ele que também se atualizarão as relações de 
poder. 
O objetivo principal dessa tecnologia disciplinar é forjar a idéia mesma de 
indivíduo no interior desse espaço produtivo. Neste sentido, "a elaboração de um 
‘micropoder’ fundado sobre o corpo como objeto a manipular é a chave do poder 
disciplinar" (Dreyfus e Rabinow, 1984, p.222). Trata-se, portanto, de criar um indivíduo 
apto a ser manipulado como um “corpo dócil” a partir da implementação de dois tipos 
de vetores de atualização: um espacial e outro temporal. Esses dois vetores acham-se 
mutuamente implicados. Por meio do vetor espacial produz-se uma demarcação precisa 
entre o dentro e o fora. É principalmente através da organização dos grandes espaços de 
confinamento (a escola, a fábrica, a caserna, a prisão, etc.) que vai se produzir essa 
divisão entre o dentro e o fora. Nesse modelo disciplinar, o indivíduo não cessa de 
passar de um meio fechado (a escola, por exemplo) a um outro meio fechado (a fábrica, 
a caserna ou a prisão, conforme o caso). Esse enquadramento dos corpos em diferentes 
tipos de espaços fechados e a vigilância constante do lugar que o indivíduo ocupa em 
cada um deles são a expressão, por excelência, da atualização do vetor espacial desse 
modelo disciplinar. Por outro lado, através do vetor temporal produz-se um 
automatismo dos corpos. Pela imposição de um ritmo cadenciado no interior de cada um 
dos equipamentos coletivos (escola, fábrica, caserna, prisão, etc.), o poder disciplinar 
busca aplainar toda forma de experimentação criativa do tempo. A linha de montagem 
traduz, de certo modo, o ponto culminante da instalação de um dispositivo de captura 
dos corpos em relações de tempo fixas e determinadas que caracterizam esse outro vetor 
de atualização do modelo disciplinar. 
 
Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, 
particularmente visível na fábrica: concentrar; repartir no espaço; ordenar no tempo; 
compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das 
forças elementares (Deleuze, 1990, p.240). 
 
A noção de indivíduo é então forjada através da lógica disciplinar instaurada no 
interior de um ambiente fechado, a partir da sujeição dos corpos a uma regra de 
visibilidade e de segmentaridade; com isso, seria possível exercer uma vigilância 
generalizada. "A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder 
que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu 
exercício" (Foucault, 1975, p.172). 
Assim, sem a inserção na produção de indivíduos disciplinados e regrados, as 
novas exigências do capital jamais poderiam ter sido satisfeitas. A implementação de 
uma tecnologia disciplinar está, portanto, intimamente relacionada à própria escalada do 
capitalismo. 
A individualização e a vigilância encontram-se assim ligadas no interior do 
espaço disciplinar e constituem o elemento indispensável para garantir a eficácia e a 
consolidação do modo de produção capitalista, caracterizado, sobretudo, pela junção de 
um grande número de indivíduos em diferentes tipos de ambientes fechados. Torna-se 
de fundamental importância a organização desses indivíduos no espaço, pois a 
vigilância sobre o indivíduo permite vigiar melhor a multiplicidade e reduzir o perigo 
iminente de instabilidade causado por essa "mistura dos corpos" no interior dos espaços 
fechados. O poder disciplinar se encarregará, então, de vincular cada indivíduo a uma 
identidade bem determinada de uma vez por todas, e criar assim a idéia de uma 
subjetividade privatizada. 
Por outro lado, é recorrendo a um modelo de racionalidade, organizado em torno 
de uma regra de equivalência geral (segunda dobra), que produz, ao mesmo tempo, uma 
segmentação e uma homogênese dos universos de valor, que as forças que atravessam 
esse campo de intensidades serão dobradas para constituir um novo tipo de relação 
consigo, que, daqui para frente, será territorializada sobre a idéia de indivíduo. 
De acordo com Guattari (1986), um modo de subjetivação está sempre ligado à 
busca de uma estabilização da subjetividade em torno de um certo tipo de relação 
consigo. Isso explica por que, ao longo da história, vamos encontrar diferentes 
configurações da subjetividade, pois toda produção subjetiva é coextensiva à produção 
de um certo tipo de configuração do campo social. 
 
"Até a Revolução Francesa e o Romantismo, a subjetividade permaneceu ligada 
a modos de produção territorializados – na família ampla, nos sistemas de corporação, 
de castas, de segmentaridade social – que não tornavam a subjetividade operatória ao 
nível específico do indivíduo" (Guattari e Rolnik, 1986, p.35). 
 
Com a emergência de uma nova relação entre forças produtivas e meios de 
produção, produz-se também uma mudança ao nível da subjetividade: em vez de uma 
subjetividade engendrada a partir de certos territórios articulados a um domínio mais 
amplo, vamos assistir a um processo de privatização da subjetividade. Tal processo 
acompanha certamente o movimento de desterritorialização desencadeado por uma nova 
configuração sócio-econômica e pela invenção de novas tecnologias. Essa 
desterritorialização produz, por sua vez, uma transformação dos modos de valorização 
dos bens e das atividades humanas. O conjunto dessas transformações dos modos de 
valorização dos bens e das atividades humanas marca a emergência do que Guattari 
(1986) chama de “subjetivação capitalística” em sua versão moderna. 
Isso explica por que a invenção de um novo território subjetivo fundado sobre a 
idéia de indivíduo constitui o principal dispositivo em torno do qual a subjetivação 
capitalística vai dobrar as forças do Fora (e que, ao mesmo tempo, lhe são imanentes) e 
produzir um novo tipo de relação consigo. 
O controle dos corpos, a partir de sua sujeição a relações de espaço e de tempo 
introduzidas pela tecnologia disciplinar, constituía apenas a ‘dimensão material’ 
segundo a qual a relação de forças era capturada nesse modo de subjetivação. Todavia, 
para atingir sua plena eficácia, o poder disciplinar deve também se apoderar de uma 
‘dimensão imaterial’ que vai definir a regra imanente à constituição desse novo tipo de 
relação consigo territorializada sobre a idéia de indivíduo. Essa regra se organiza em 
torno de um princípio de equivalência generalizada que produz uma segmentação e uma 
homogeneização dos modos de valorização, fazendo com que qualquer coisa possaequivaler a qualquer coisa. O equivaler generalizado é a expressão mesma da 
subjetivação capitalística e se caracteriza por um duplo movimento: um de 
desterritorialização, marcado pela destruição dos sistemas de valor tradicionais, e o 
outro de reterritorialização, marcado pela recomposição dos valores que foram 
destruídos em cima de modelos funcionalmente similares a estes. 
Assim, pela sistemática dissolução dos universos de valor (desterritorialização), 
cada esfera de valorização segmentarizada vai erigir (reterritorializar) 
 
um pólo de referência transcendente autonomizado: o Verdadeiro das idealidades 
lógicas, o Bem da vontade moral, a Lei do espaço público, o Capital do intercâmbio 
econômico, o Belo do domínio estético... Esse recorte da transcendência é consecutivo 
de uma individualização da subjetividade, ela própria fragmentada em faculdades 
modulares tais como a Razão, o Entendimento, a Vontade, a Afetividade... A 
segmentação do movimento infinito de desterritorialização é acompanhada de uma 
reterritorialização desta vez incorporal, de uma reificação imaterial (Guattari, 1992, 
p.143-144). 
 
A segmentação e a transcendência dos valores podem então ser definidas como 
capitalísticas em razão do ‘achatamento’ e da desqualificação sistemática das matérias 
de expressão das quais procedem. Disso resulta uma homogeneização onde todos os 
valores passam a estar referidos a um equivalente geral, ou seja, o capital. A tendência 
do sistema de valorização capitalístico é dissolver todo ganho de consistência dos 
valores que por ventura pretendam escapar à sua lei, já que o poder semiótico desse 
sistema consiste particularmente em confundir, num mesmo plano geral de 
equivalências, elementos que são, à primeira vista, radicalmente heterogêneos. 
Esse novo território subjetivo permite a esse “indivíduo” reconhecer-se ao 
mesmo tempo como sujeito e objeto de conhecimento (terceira dobra), expressando 
assim um determinado “regime de verdade” para que o modelo da subjetivação 
capitalística ganhe uma relativa consistência. 
Segundo Foucault (1975), um regime de verdade se caracteriza pelo "conjunto 
das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se vinculam ao 
verdadeiro efeitos específicos do poder" (ibid., p.26). Por conseguinte, "não há relação 
de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não 
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder" (ibid., p.32). 
A efetivação de um certo tipo de saber torna-se então um componente essencial 
para afirmar um regime de poder e de verdade em uma formação social específica. 
A terceira dobra é, portanto, 
 
a dobra do saber, ou a dobra da verdade, enquanto ela constitui uma relação do 
verdadeiro com nosso ser e do nosso ser com a verdade, que servirá de condição formal 
a todo saber, a todo conhecimento: subjetivação do saber que não ocorre em absoluto da 
mesma maneira entre os gregos e os cristãos, em Platão, em Descartes ou em Kant 
(Deleuze, 1986, p.111-112). 
 
A partir dessa relação entre saber, poder e verdade, que se atualiza 
diferentemente segundo a relação de forças que atravessam uma formação histórica em 
um dado momento, podemos tentar compreender a relação entre o modo de subjetivação 
capitalístico e o sistema de racionalidade próprio às ciências modernas. Parece-nos que 
há uma complementaridade intrínseca entre ambos e que esse sistema de racionalidade 
vai proporcionar, de certo modo, uma "legitimidade científica" ao princípio de 
equivalência generalizada que se encontra na base do novo tipo de relação consigo 
caracterizado pela invenção do indivíduo moderno. 
Podemos mesmo dizer que a realização máxima desse sistema de racionalidade 
se traduz pela invenção de uma subjetividade privatizada cujo protótipo é precisamente 
esse homo psychologicus que emerge ao mesmo tempo como sujeito e objeto de 
investigação no quadro desse novo corpo de conhecimentos chamado "ciências 
humanas", e que constitui assim o fundamento necessário para legitimar a idéia de 
indivíduo tão cara ao desenvolvimento do modelo capitalista. 
É a partir da invenção dessa subjetividade privatizada que podemos analisar a 
complementaridade entre o modo de subjetivação capitalístico e o sistema de 
racionalidade próprio às ciências modernas. É nesse ponto, relativo à invenção da idéia 
de indivíduo, que a subjetivação capitalística junta-se à questão concernente à posição 
de fundamento do sujeito colocada pelo discurso científico oriundo de uma herança 
cartesiana, e permite criar as condições de possibilidade para a invenção do psicológico 
enquanto campo específico de saberes e práticas. 
A invenção de tal campo acompanha o modelo de racionalidade próprio ao 
conjunto das ciências modernas cuja operacionalidade implica a efetivação da síntese 
realizada pelo cogito cartesiano entre pensamento e existência. A partir dessa síntese, o 
sujeito assume uma posição de fundamento: a cada enunciado do saber científico, o "eu 
penso" permanece co-presente. 
Deste modo, a idéia de uma consciência totalizante que se encontraria na base do 
modelo operatório da racionalidade científica – cujo enunciado poderia ser formulado 
da seguinte maneira: "sou o mestre tanto de mim quanto do universo" – participaria 
também, segundo Guattari (1989, p.39), de uma espécie de "mito fundador" da 
subjetividade capitalística. 
Instalado nessa posição de fundamento, o sujeito não apenas faz o mundo 
comparecer diante de si, como também atinge uma representação objetivante de si 
mesmo. Em suma, para pensar as coisas ele deverá também se auto-representar. 
Essas três dobras preparam o ponto de inflexão para a criação da quarta dobra 
desse modo de subjetivação. A quarta dobra se constitui por um movimento de dupla 
captura_ envolvido na divisão entre o dentro e o fora imanente ao modo de subjetivação 
capitalístico e que garante assim a operacionalidade desse modelo. 
Vimos, na terceira dobra, que o modelo de racionalidade próprio às ciências 
modernas se sustentava precisamente sobre essa divisão para afirmar a posição de 
fundamento ocupada pelo sujeito, e que, por outro lado, esse artifício levaria 
naturalmente à criação de duas séries dicotômicas – de um lado, o indivíduo, de outro, a 
sociedade. A criação dessas duas séries seria então o corolário natural de um certo tipo 
de relação entre saber e verdade que, ao afirmar a posição de fundamento do sujeito, 
constituiria as condições necessárias para o desenvolvimento de um preceito de 
objetividade intrínseco ao modelo de racionalidade das ciências modernas. 
O movimento de dupla captura, característico da quarta dobra, consiste 
particularmente em "aprisionar" essas duas séries numa espécie de "armadilha 
semiótica" tramada por aquilo que Guattari (1994, p.34) chama de "pensamento 
referencial". O postulado de base desse pensamento é que não há nenhum acesso ao real 
sem que se estabeleça uma relação entre um sistema de signos ditos significantes e o 
objeto referente. Assim, o real só pode se constituir a partir de uma capacidade de 
reconhecer uma forma preexistente. A trama urdida nessa armadilha semiótica repousa, 
portanto, sobre a proliferação de todos as formas de mediação entre as duas séries para 
que se possa finalmente alcançar o real. 
Isso nos leva a pensar que a existência desses dois registros (sujeito versus 
mundo; indivíduo versus sociedade) não pode ser considerada como um "fato natural". 
Ao contrário, a formulação dessa dicotomia corresponde a um tipo de subterfúgio 
produzido por um certo tipo de relação entre saber e verdade que se acha ligado a um 
modo de subjetivação específico. 
O artifício desse movimento de dupla captura consiste em criar uma regra de 
identidade entre esses dois registros (o social e o individual) que ao mesmo tempo os 
opõe (como se fossem duas séries dicotômicas)e os aproxima (como se um pudesse 
explicar ou ser explicado pelo outro), criando, deste modo, uma espécie de aderência 
entre esses dois termos. A invenção desses dois registros traduz, de certo modo, um 
procedimento esquizofrenizante próprio ao modelo capitalista cuja característica é fazer 
circular simultaneamente mensagens que se excluem mutuamente: ao mesmo tempo em 
que são divididos, criando-se uma relação de oposição entre as duas séries (por 
exemplo, o individual e o social), produz-se uma espécie de amálgama entre esses dois 
registros, de modo a jamais se encontrar seu ponto de discernibilidade. É a isso 
precisamente que corresponde o movimento de dupla captura próprio a uma lógica 
capitalística. 
É importante ressaltar que essas quatro dobras não podem ser dissociadas: cada 
dobra segue a outra e a precede, tudo isso simultaneamente, pois elas fazem parte de um 
mesmo campo de intensidades e são expressões de um certo tipo de relação de forças 
que, neste caso, caracteriza a subjetivação capitalística. 
A principal característica desse modo de subjetivação é a de “embaralhar” todos 
os códigos: na medida em que opera a apropriação das forças produtivas dentro de 
novas relações de produção sustentadas pela divisão entre o dentro e o fora, provoca, 
simultaneamente, a abolição sistemática de toda relação a uma exterioridade. A 
armadilha da subjetivação capitalística traduzir-se-ia, portanto, em um movimento de 
dupla captura que implicaria forjar a separação entre estes dois registros (o dentro e o 
fora) e, ao mesmo tempo, romper com tal divisão já que a lógica inerente à dinâmica 
capitalística é uma lógica inclusiva, fundamentalmente desterritorializada e 
homogeneizante, que não cessa de fabricar riqueza e miséria ao mesmo tempo e em 
todos os lugares. Isso significa que a lógica capitalística não opera por exclusão e sim a 
partir de uma estratégia de “inclusão diferencial”(Hardt, 2000, p. 365). Deste modo, 
nada escapa à ubiqüidade do seu poder. 
 
Segunda cena da subjetivação capitalística 
A partir da segunda metade do século XX podemos perceber um novo tipo de 
arranjo dessa lógica capitalística, traçando o esboço de um novo campo intensivo 
marcado, principalmente, por uma volatilização do poder capitalístico. 
Nós podemos dizer que este novo arranjo caracteriza-se basicamente por uma 
revolução tecnológica e cibernética que produz uma nova trama do tecido social a partir 
do advento de novas tecnologias resultantes dos avanços da informática. Este conjunto 
de novas tecnologias aliado a uma concentração de poder do capital financeiro 
internacional dá condições para a criação de uma nova ordem mundial, um mega-
mercado planetário conhecido pela expressão “globalização”. A globalização implica 
não somente a eliminação de limites bem definidos (“ausência de fronteiras”)_ como 
também uma aceleração das formas de experimentação do tempo. Deste modo, 
podemos dizer que a principal característica desse novo cenário da subjetivação 
capitalística é estabelecer novas coordenadas nas relações espaço-temporais, criando 
uma superfície lisa para a expansão “ilimitada” do capital que vai, sem dúvida, afetar os 
modos de existência em escala planetária. 
Vejamos como, neste caso, as quatro dobras de que falamos anteriormente, 
atualizam a lógica subjacente ao modo de subjetivação capitalístico: chegamos a um 
estágio de modelagem contínua e visibilidade permanente que se produz através de um 
culto exacerbado do próprio corpo (primeira dobra). A disciplina do corpo continua 
sendo um elemento imprescindível neste novo cenário da subjetivação capitalística. Só 
que neste momento, não há mais necessidade de docilizar os corpos submetendo-os às 
duras regras e à intensa vigilância dos meios de confinamento. A individualização e o 
controle permanente continuam sendo os elementos fundamentais para garantir as novas 
relações de produção e, sobretudo, a expansão do mega-mercado no capitalismo 
globalizado. No entanto, a docilidade dos corpos é alcançada através de meios muito 
mais sutis e eficazes. Ao invés da passagem de um meio fechado a outro para assegurar 
o disciplinamento dos corpos, chegamos a um estágio de modelagem contínua e 
visibilidade permanente que se produz através de um culto exacerbado do próprio 
corpo. 
A mídia desempenha aí um papel fundamental: é ela que vai se encarregar de 
modelar o padrão de corpo que se deve ter, definindo o que e quando comemos, como e 
o que vestimos, como amamos e nos relacionamos com o sexo oposto, etc., procurando 
sempre identificar os “erros” e corrigir as “falhas”, traçando assim um verdadeiro 
“mapa” das múltiplas normalizações e normatizações indispensáveis para se alcançar o 
corpo ideal (Fischer, 1996). Com um tal dispositivo de modelização dos corpos, é 
possível que as antigas disciplinas nos meios de confinamento pareçam pertencer, como 
diz Deleuze (1990, p.237), a um passado “delicioso e benevolente”. 
O bio-poder a que Foucault (1975) se referia no caso das sociedades 
disciplinares atinge tais proporções que podemos falar de um bio-imperialismo onde 
não se trata apenas de dominar os corpos, mas toda e qualquer forma de vida sobre o 
planeta. Os avanços tecnológicos permitem eliminar assim qualquer resquício de 
imperfeição que possa vir a comprometer um padrão definido como universal. 
Chegamos, no entanto, a um estágio paradoxal em relação à experiência do 
corpo na atualidade: ao mesmo tempo em que se produz um controle contínuo e uma 
visibilidade permanente através de um culto exacerbado dos corpos, assistimos também 
à dissolução e à ausência de vestígios dos corpos quando estes estão conectados ao 
ciberespaço. Na rede, os caracteres que comumente dão uma certa espessura ao corpo 
(como o sexo e a idade, por exemplo), tornam-se puros efeitos de texto. É como se a 
supressão do corpo favorecesse de certa forma os contatos. O paradoxo da sociedade de 
controle é que a perfeição tão almejada do corpo não é alcançada por uma visibilidade e 
uma exposição permanente dos corpos, mas, ao contrário, exatamente pelo fato de o 
corpo se tornar quase imaterial. 
A segunda dobra, que constitui a regra singular que norteia o tipo de relação 
consigo, continua sendo calcada sobre o registro de uma equivalência geral dos valores. 
Só que agora, nas sociedades de controle, é forjado um novo tipo de relação consigo a 
partir de uma “estratégia sem estrategista” (Dreyfus e Rabinow, 1984, p.355) que 
corresponde, de certa forma, a um processo de invisibilização das tecnologias 
disciplinares. Trata-se, neste caso, de uma regra flutuante, como o são as flutuações das 
moedas no mega-mercado mundial, que acaba fazendo com que esta relação consigo se 
desenvolva numa perspectiva cada vez mais intimista, atualizando-se sobre o que 
Foucault (in Dreyfus e Rabinow, op. cit., p. 333) chama de “nossos sentimentos”. O 
conhecimento de si torna-se um fim ao invés de ser um meio para agir no mundo. Sendo 
assim, o espaço público vai se tornando cada vez mais desprovido de sentido enquanto 
espaço de implicação do sujeito. Paradoxalmente, é a confissão pública que se torna, 
neste caso, a forma de expressão por excelência deste intimismo exacerbado_. 
A terceira dobra, que corresponde à relação entre saber e verdade, se 
territorializa através da idéia de ‘pensamento único’, instaurando um regime de verdade 
onde o mundo perde o sentido e, consequentemente, fazendo com que nossa ação no 
mundo torne-se supérflua e desnecessária. Isso faz com que a relação do nosso ser com 
a verdade oriente-se para um movimento de interiorização especulativa – marcado, por 
exemplo, pela enorme quantidade de livros de auto-ajuda – que é totalmente compatível 
com o projeto neoliberal. O pensamento único atualiza a figura do Idiota, ou seja, 
daquele que acredita que é pela luz natural do seu próprio pensamento que se podechegar à verdade. O Idiota funciona aqui como o personagem conceitual deste tipo de 
pensamento, ou seja, ele funciona como “uma presença intrínseca ao pensamento, uma 
condição de possibilidade do próprio pensamento” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 11). 
A quarta dobra atualiza-se através da idéia de ‘crise permanente’. A armadilha 
semiótica, neste caso, funciona a partir da regra segundo a qual “quanto mais as coisas 
se desarranjam, melhor elas funcionam” (Deleuze e Guattari, 1972). A crise torna-se 
assim o “meio imanente ao modo de produção capitalista” (ibid., p. 274). É neste 
sentido que a crise das diferentes instituições (família, educação, trabalho) aumenta 
enormemente a eficácia das estratégias de controle sobre as mesmas. Tais estratégias 
operacionalizam-se por meio da “gestão de microconflitualidades numa zona de 
expansão contínua” (Hardt, 2000, p. 367), traduzindo assim uma axiomática 
capitalística forjada a partir da idéia de “crise generalizada”. 
 
3. Resistência e criação 
A partir do que vimos até aqui, podemos dizer que a importância do conceito de 
dobra é justamente nos forçar a pensar e a resistir a um mundo que se dá como evidente, 
plausível e previsível, mostrando que o mundo é uma obra aberta e permanentemente 
inacabada. Ao expressar tanto um território subjetivo quanto o processo de produção 
desse território a dobra afirma o próprio mundo como potência de invenção: nela é cada 
vez o novo que se produz. 
A dobra dá, portanto, visibilidade aos diferentes tipos de atualização da relação 
consigo e com o mundo ao longo do tempo, mostrando as contingências e as 
singularidades que marcam tanto a produção da subjetividade quanto os modos de 
subjetivação. Sendo assim, é possível percorrer o artifício e as intensidades da 
experiência subjetiva contemporânea, colocando em questão o que somos e qual é este 
mundo, este período no qual vivemos, criando assim novas possibilidades de produção 
de sentido. 
 
 
Notas 
 
1. O termo "capitalístico" foi forjado por Félix Guattari (1986) durante os anos 70 para 
designar um modo de subjetivação que não se achava apenas ligado às sociedades ditas 
capitalistas, mas que caracterizava também as sociedades, até aquele momento, ditas 
socialistas, bem como as dos países do Terceiro Mundo, já que todas elas viveriam 
numa espécie de dependência e contra-dependência do modelo capitalista. Por isso, do 
ponto de vista de uma economia subjetiva, não haveria diferença entre essas sociedades, 
pois elas reproduziriam um mesmo tipo de investimento do desejo no campo social. 
 
2. Empregamos aqui a expressão “dupla captura” baseando-nos na noção de “duplo 
vínculo” proposta por G. Bateson (1976, p.238) ao explicar o procedimento 
esquizofrênico no interior da família. Para este autor, o duplo vínculo caracteriza-se por 
uma série de proposições contraditórias e conflitantes que tendem a embaralhar as 
mensagens que circulam num determinado meio, impossibilitando assim a 
decodificação das mesmas. A hipótese de Bateson é que cada vez que se apresenta uma 
situação de duplo vínculo, produz-se um “colapso” na capacidade do indivíduo para 
discriminar as mensagens conflitantes que ali circulam. 
 
3. Evidentemente que esta eliminação das fronteiras apenas existe quando se trata de 
defender os interesses dos países que ditam as regras deste modelo, configurando-se, 
portanto, numa liberalização seletiva das regras do comércio mundial. 
 
4. A busca da perfeição e da correção de determinadas “falhas” é, em todo caso, a 
explicação dada para justificar, por exemplo, as pesquisas com transgênicos e com o 
próprio genoma humano. 
 
5. Isso explica o enorme interesse por programas do tipo “big-brother”, onde a 
“intimidade” é a todo momento vasculhada e capturada pelo olhar do espectador. 
 
6. Podemos pensar em alguns exemplos para entender o modo pelo qual essa gestão de 
microconflitualidades se operacionaliza atualmente: na família, através da proliferação 
dos manuais de orientação aos pais; na educação, por meio da implementação de uma 
estratégia de “formação permanente”, e no trabalho, pela “flexibilização” (leia-se “fim”) 
de uma legislação trabalhista. 
 
 
 
 
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Primeira decisão editorial em: dezembro / 2003 
Versão final em: março / 2004 
Aceito em: junho / 2004

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