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Senzala (Salvador Gentile)

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SENZALA 
 
ROMANCE de SALVADOR GENTILE 
 
 
 
 
SENZALA 
 
ROMANCE DE SALVADOR GENTILE 
 
Capítulo I 
 
DIANTE DA MORTE 
 
A casa senhorial, plantada em meio ao arvoredo e coberta pela pálida claridade do 
entardecer, parece mergulhada na tristeza. Suas janelas estão cerradas. Silêncio profundo a 
envolve. A vetusta construção, de genuíno estilo colonial, alta, de paredes largas com os 
tijolos dispostos em simetria irrepreensível, tem, aqui e ali, rasgos altaneiros em que se 
encravam as longas janelas brancas, contornadas por delicadas molduras de argamassa 
caiada. Um casarão bem a gosto dos abastados fazendeiros do século XIX por si mesma, 
cresce de majestade sob a copa das árvores que a circundam. A impressão de quem pela 
primeira vez a vê, é de assombro e de admiração. 
Começa aí a nossa história, no silêncio reverente da tarde e na tristeza soluçante 
que se implanta ante a chegada da morte. Morrera, naquelas horas enlanguescidas, o 
Coronel Sílvio de Souza, dono da propriedade: vasta área de terra cuidadosamente tratada e 
que, sob a sua direção enérgica, vertia ouro na produção abundante. Prosperara o falecido 
de tal forma, que a fortuna, acumulada nos longos anos do seu trabalho, gozava a fama de 
ser a maior daquelas paragens interioranas. Estamos em uma fazenda, do interior do Estado 
de São Paulo, encravada no território de um dos seus mais importantes municípios cujo 
nome não vem ao caso determinar, porquanto é apenas um acidente geográfico que não se 
vincula de maneira indestacável no desenrolar do nosso relato. A época é o segundo quarto 
do século XIX, e bastará olhar-se o verdor a colorir o chão dadivoso dos prados e das 
encostas, e as flores silvestres a se altearem em largas manchas multicores, para se deduzir, 
facilmente, que estamos em outubro em plena primavera. Em contornos harmoniosos, ao 
redor do casarão, delicados canteiros, de grama exuberante e bem aparada, exibem uma 
variedade preciosa de flores e arbustos coloridos. 
Um arco-íris no chão. Mas nem o frescor e a poesia, as cores agradáveis e as flores 
caprichosas, bastam para retirar a sensação de tristeza que paira no vazio ambiental, e nas 
expressões de recolhimento estampadas no semblante das figuras humanas que se 
movimentam naquele paisaresco primaveril, e aí, chegam e saem carruagens, e o bater dos 
cascos dos animais de tração misturados ao ruído das rodas, esmagando calhaus do 
caminho e folhas secas, são os únicos sons que se sobressaem. Mesmo as pessoas que vão 
chegando, parecem caminhar com pés cautelosos para não profanarem o silêncio da morte, 
extravasando-se em respeito. As senhoras mais emotivas sufocam os soluços na garganta, 
para que o pranto de tristeza não apareça indiscreto. Morrera o Coronel, e ninguém queria 
aceitar a dura realidade. Tão inopinado fora o evento que caíra sobre todos como uma 
catástrofe irreparável e incompreensível. Quando a morte é esperada, todos sabemos disso, 
mas nunca nos habituamos a semelhante realidade, no decurso de tempo em que 
vagarosamente se instala, as pessoas vão se preparando para recebê-la sem surpresas 
dolorosas. 
Todavia, quando chega de repente, ceifa os canais da compreensão e da serenidade 
e traumatiza os corações. Na verdade, intimamente, todos nós supomos que os bons são 
imortais, insuscetíveis do decesso fatal. São tão úteis e indispensáveis a ponto de nos 
descuidarmos da justa compreensão de que são seres humanos, sujeitos como qualquer 
mortal ao ciclo da vida, que tem começo e fim, tanto na cabra pachorrenta que passa as 
horas a ruminar, simulando um tique nervoso, como no pássaro alegre que gorjeia, senhor 
dos ares e da Natureza, escolhendo o próprio pouso, aqui e ali, entre flores, ou na 
exuberância das árvores. 
Morrera o Coronel, o bom homem, respeitado por escravos e nobres, crianças e 
adultos, pois era assim como um símbolo do ideal que todos nós temos e se personifica em 
alguém. Admiti-lo entre os mortos era insuportável porque representava o apeamento do 
carro das alegrias e ilusões, a frustração da perene expectativa de amor, menos 
encontradiço na época a que nos reportamos, em que os corações padeciam de aridez 
profunda em razão das contrastantes situações sociais que não se escalonavam mas se 
definiam por extremos: entre gente que era "coisa" como os escravos, e "coisa" que era 
gente, como os desumanos nobres que fartavam sua mesa à custa do sangue escravo e, ao 
primeiro destempero, faziam jorrar esse sangue sob a brasa do açoite, junto ao poste do 
pelourinho. O Coronel era o vértice superior do triângulo com os dois braços distendidos 
para os pólos da base, iluminada pela sua influência superior. Todavia, ainda que difícil 
fosse admitir o infausto acontecimento e muito dolorosa a sua aceitação, morrera o 
Coronel. A emoção dos que saíam da câmara mortuária, os olhos brilhantes e 
sensibilizados, deixando marejar lágrimas discretas, mostravam que já não podiam duvidar 
da realidade. Tinha-se a impressão de que todos, sem exceção de um sequer, guardavam 
receios interiores do dia de amanhã, quando não mais poderiam contar com o arrimo 
daquele coração generoso e daquela personalidade marcante, que lhes ganhara a afeição e a 
confiança, transformando-se no pai, no irmão e no amigo de todos os instantes. 
Desembarcados naquelas terras incultas e poeirentas que queimavam os pés, sob o sol 
causticante, desrespeitando a proteção das próprias alpercatas, lutaram juntos e juntos 
sofreram longos dias de adaptação e desprendimento. Nasceram naquele ambiente eleito, 
seus filhos, agora três ao todo: Alberto, Francisco e Cidália. Tudo mudaria, sem dúvida. 
Todas aquelas vidas, presentes ou ausentes, que mourejavam ao redor e sob a sua 
influência, seriam afetadas, porque o Coronel era dessas criaturas inconfundíveis pela 
raridade dos predicados que somava. 
Se a morte é triste onde quer que ela se abata, ali chegava ao superlativo da tristeza. 
Instalara-se o Coronel há longa data, no local. Chegara recém-casado, na então 
modesta propriedade que herdara, acompanhado de D. Maria Cristina, fina dama da 
sociedade paulistana, cujos dotes pessoais e virtudes renteavam com os do esposo. Aceitara 
a contingência de deixar as rodas elegantes e os chás sociais, para mergulhar no sertão 
bravio e ser a doce companheira na solidão de trabalho e sacrifício que esperava o jovem 
casal. Os anos transcorreram e o relógio do tempo parara cinco lustros depois, naquela tarde 
triste de outubro, transformada em um anfiteatro da morte, encruzilhada para muitos 
destinos que seriam, forçosamente, constrangidos a escolher os próprios rumos. 
Rompera-se o leme e a nau, desgovernada, começava a balouçar sobre as ondas 
revoltas da realidade e do desconhecido, tendo, em seu bojo, toda uma comunidade que 
teria de encontrar o próprio porto de ancoradouro. 
Partiram-se as velas e a força propulsora se extinguira. Os ventos do mundo, 
conquanto continuassem a soprar, aguardariam novos panos onde se apoiarem para impelir 
a embarcação, momentaneamente encalhada, com sua tripulação desarvorada pelo medo e 
pela incerteza. Benedita, a velha serviçal que durante 25 anos tinha o privilégio de ser a 
primeira a vê-lo, pela manhã, ganhando as suas primeiras palavras, notara-lhe a diferença 
de expressão, e preocupou-se. 
Naquele dia fatídico, o Coronel Sousa levantara-se à hora do costume. 
Diga-se de passagem, porém, que ao acordar, manhãzinha ainda, como sempre pelo 
alvoroço e o gorjeio dos pássaros, não se sentia muito bem. 
Pesava-lhe a cabeça, e ligeira indisposição convidava-o a permanecer por mais 
tempo no leito. Ligando o fato a excesso de alimentação na tarde anterior, porém, cobrou 
ânimo e pulou da cama atento para os múltiplos afazeres do dia. Tomou o café algo 
pensativo, grave, como acometido de pequeno desânimo, a estampar-lhe na face. 
- O patrãozinho não está sesentindo bem? - perguntou ela espontaneamente, qual 
mãe carinhosa que quer adivinhar as dificuldades do filho, em razão da liberdade que o 
Coronel Sousa lhe dispensava. 
- Não há nada, Benedita. Apenas uma ligeira dor de cabeça, que passará logo - 
respondeu sem deixar transparecer uma nesga de preocupação pelo fato da observação 
amiga. 
Após o café, fez o giro costumeiro pelas adjacências da sede da fazenda, passando 
pelo estábulo, pelo mangueirão, pela pequena granja destinada a produzir para o consumo 
e, nesse passo, dirigia-se para a colônia onde se agrupavam os trabalhadores que vinham 
buscar-lhe as instruções para as tarefas. Reunido a eles, ditava-lhes as ordens seguras e 
minuciosas, distribuindo-os pela extensa herdade para os misteres do dia. Trouxeram-lhe 
uma montaria, que galgou lépido, açulando o animal para ganhar tempo e poder vistoriar 
todas as áreas onde vinham se desenvolvendo os diversos serviços. Mais um pouco e o sol 
inclemente surpreendia-o cavalgando daqui para ali, atento a todos os detalhes da paisagem, 
perscrutando-a com seus olhos experimentados, sem deter a marcha. Cavalgou até quase 
onze horas, não obstante sentir que a indisposição, ao invés de regredir, se acentuava cada 
vez mais. 
Habituado àquele tipo de vida e resoluto no atendimento das tarefas costumeiras 
que se impunham, cumpriu o programa e apeou, em casa, bastante preocupado com o mal-
estar que já o inquietava. Seu almoço foi frugal, contrariando, aliás, seu hábito, porquanto 
essa refeição era-lhe a principal e nela comia até fartar-se, costumando fazer a sesta por 
cerca de uma hora. 
Levantando-se da mesa, dirigiu-se para o quarto. Ao acomodar-se na cama larga, 
sobre o colchão de penas, cuja maciez sempre comentava, sentiu-se mais tranqüilo, pois 
guardava a certeza de que aquela hora de repouso seria suficiente para debelar a 
indisposição e devolver-lhe a plenitude da capacidade física. Naquela tarde, dormira um 
pouco mais e só não fora acordado pelos familiares, à hora habitual, por que Benedita 
chamara a atenção da patroa para o incômodo que notara, desde cedo, no Coronel Sousa. 
Eram 15 horas quando se levantou. Lavou o rosto apressadamente e, ao tomar o café, calou 
qualquer reclamação ou reprimenda, ponderando que os familiares talvez lhe tivessem 
notado o mal-estar, deixando-o, propositadamente, descansar mais. Ninguém mencionou o 
assunto, quem sabe para não melindrá-lo ou preocupá-lo desnecessariamente. Da cozinha, 
onde frugalmente se alimentara, dirigiu-se para o pomar. Notara que as frutas maduras, 
caindo das árvores, haviam forrado o chão, fazendo-se urgente uma limpeza. Ia verificar a 
magnitude do trabalho a ser realizado, a fim de programá-lo para o dia seguinte. Já estava 
em meio o pomar, sob a copa de velhas mangueiras, que se erguiam para o céu, imponentes 
e generosas, referias de frutos prometendo colheita exuberante, quando sentiu uma dor mais 
aguda na cabeça, um barulho estranho a repercutir-lhe no cérebro e, de repente, uma 
sensação violenta de estar sendo arremessado no espaço. Foi como um raio fulminante. 
Dobrou os joelhos e caiu no chão atapetado de folhas secas, com o rosto colado à terra, os 
olhos bem abertos, o braço esquerdo sob o corpo e o braço direito estirado como se, 
instintivamente, tivesse procurado apoio, no instante derradeiro, para amortecer-lhe a 
queda. 
Sobreviera-lhe um insulto cerebral e o homem, distendido no chão, sem dúvida, 
estava morto. Quando, no momento fatal, sentira como se lhe estourasse o crânio, o 
Coronel Sousa experimentou estranha vertigem, fugindo-lhe a consciência do momento e 
mergulhando num pesadelo no qual via desenrolar-se, celeremente, numa seqüência 
interminável, todos os lances mais importantes da sua vida. As imagens se sucediam e ele 
não tinha poder de controlá-las; queria fixar-se em alguma outra coisa, não obstante sentir-
se impotente; e, na semilucidez, assistiu a singular revisão da sua vida, sem atinar com a 
causa daquele fenômeno inusitado de que nunca ouvira falar. 
Quando o aparente pesadelo passou, permaneceu algum tempo naquele delíquio, só 
a pouco e pouco readquirindo a consciência. Passara-se quase uma hora e, a essa altura, o 
Coronel Sousa podia pensar e avaliar os fatos que se sucederam de modo tão insólito. Viu-
se caído de bruços no chão. Alguns insetos passeavam pelo seu rosto, insolentes e 
descuidados. Fez menção de mover-se para levantar-se mas, malgrado o ingente esforço, e 
para seu espanto, não conseguia comandar mais o corpo. Paralisia total. Tentou novamente, 
reunindo todas as forças, mas nada conseguiu. Nem um músculo a mover-se. - 
Decididamente - pensou - fora acometido de uma paralisia fulminante. 
Começou a desesperar-se. Que lhe teria acontecido afinal? Que situação estranha! 
Caído e imobilizado, via e ouvia perfeitamente. Ansiava por alguém que o encontrasse 
nessa situação terrível, e o socorresse. 
Imaginou que o Dr. Fernando, seu médico, não teria dificuldade em diagnosticar-
lhe a doença. Ele, com tudo, nunca ouvira falar de coisa igual; por isso crescia-lhe a 
inquietação. Quis gritar por socorro. A voz, porém, não lhe saía; as cordas vocais não lhe 
obedeciam mais ao impulso. Estava ali caído e inquieto sem poder mover-se ou falar, mas 
ouvia, perfeitamente, o cantarolar alegre de Benedita vindo lá da casa grande, bem como 
todos os ruídos circundantes. De repente, alegrou-se. 
Ouvira passos que se dirigiam ao pomar. Era Romualdo, o capataz, que diante da 
longa espera para o recebimento de ordens, resolvera ir à procura do Coronel para poder, 
assim, adiantar o serviço. Novamente o Coronel Sousa tentou gritar para fazer-se notar, 
temeroso de que não o encontrassem para providenciarem-lhe socorro urgente. No entanto, 
de novo nada conseguiu. O capataz, que lhe conhecia os hábitos, trilhara o mesmo caminho, 
sobre seus passos, não tardando a encontrá-lo, caído. 
Apavorado, o bom homem ajoelhou-se ao seu lado, chamando-o pelo nome uma, 
duas, três vezes; como não foi atendido, tocou-lhe nos ombros com as mãos largas, 
calejadas e fortes, virando-o de ventre para cima. 
Percebeu, de imediato, pelo abandono do corpo e pela expressão dos olhos, 
desmesuradamente abertos, sem brilho, que o Coronel estava muito mal ou já morto. 
- Socorro! Socorro! - gritou ele a plenos pulmões, e seu grito, perpassado de 
angústia e desespero, cortou a tarde como um punhal, transmitindo a todos, que lhe 
ouviram o apelo, vibrações de terror. 
O Coronel Sousa, que lhe ouvira o chamamento desesperado e que ao ser virado, 
quase rosto a rosto, lhe vira a expressão de medo e inquietação, ficara, ante seu lancinante 
grito de socorro, mais confuso ainda. - Meu Deus - pensou - que me estará acontecendo? 
Estava nessa reflexão, quando se sentiu rodeado por muita gente, serviçais que estavam nas 
imediações. Num instante, tomaram-no nos braços musculosos e, com todo o cuidado e 
carinho, transportaram-no para a casa, todos inexplicavelmente emudecidos, traumatizados, 
como se o medo lhes inibisse a voz. D. Maria Cristina que ouvira, também, os gritos do 
capataz, veio-lhes ao encontro. Ao ver o companheiro carregado por dois escravos, braços 
pendentes do corpo amolecido, olhos abertos e vidrados, adivinhou a extensão da 
fatalidade, não sopitando grossas lágrimas que lhe despencaram dos olhos azuis sobre as 
faces rosadas. Guiou-os ao interior da casa, acomodou o corpo do Coronel Sousa na cama, 
e expediu ordens para que fossem buscar, sem mais tardança, o Dr. Fernando Barros, na 
cidade. Correu à cozinha, e embebeu de vinagre uma toalha de rosto para aplicá-la às 
narinas do Coronel, cuidando que aquilo fora uma vertigem, conquanto estaria bem. O 
Coronel Sousa assistia a tudo, estarrecido. Imóvel sobre o leito, que lhe servira durante um 
quarto de século, com os olhos fixos no teto de largas tábuas de cedro envernizado, tinha o 
pensamento em brasas,incapaz de definir a situação profundamente esquisita com que se 
defrontava, e diante da qual sua impotência era total. Estava imerso nessas reflexões, 
quando chegou D. Maria Cristina, sobraçando custosa toalha impregnada de vinagre, um 
vidro de amoníaco, desarrolhado, para a aplicação inútil ao companheiro tombado. 
Desesperada, tomou-lhe a mão e ao senti-la gelada e inerte, caiu em si: o seu marido estava 
morto. Mal lhe cortou a consciência, este pensamento, o pranto convulso lhe brotou e, 
debruçando-se sobre o companheiro, chamou-o em vão, deixando-se envolver por uma 
angústia indescritível. Aquele pranto quente rolado dos olhos que lhe transmitiram, durante 
cinco lustros, tantas expressões de amor e de alegria; aquela expressão dolorosa marcada 
por palavras ditas no auge de uma crise de medo e de tristeza, caíam no espírito do Coronel 
como ácido terrível a destruí-lo. Que hora amarga, assistindo ao martírio da companheira, 
sem poder dizer-lhe que não se sentia morto, que estava vivo e, certamente, logo a 
paralisação seria debelada e tudo voltaria ao normal! A cena lhe infligia um sofrimento sem 
limites que se multiplicava ante a impossibilidade de manifestar-se. 
Longos minutos D. Maria Cristina, debruçada sobre o peito do companheiro que 
lhe dera tanto amor e tantas alegrias, chorou copiosa e convulsivamente. Quando conseguiu 
erguer a cabeça para fixar-lhe o rosto, na ânsia de descobrir-lhe sinais de vida, vendo-lhe os 
olhos abertos, cerrou-os delicadamente com as pontas dos dedos, fechando, para o Coronel 
Sousa, a janela pela qual ele via o mundo contingente, e que não teria mais forças para 
reabrir e tornar a ver. 
Desde que lhe fecharam os olhos, roubando-lhe o contato visual com o ambiente, o 
falecido começou a sentir uma diminuição gradativa da audição e um torpor que o invadiu, 
levando-o à exaustão. Estava assim, em gradativo relaxamento muscular, quando se sentiu 
envolver por uma vibração de tranqüilidade, experimentando sensação de leveza. Esforçou-
se por se levantar do leito e, para surpresa sua, levantou-se. 
Quando se pôs de pé, ao lado da cama, recuou amedrontado ao ver, sobre ela, o seu 
corpo distendido e inerte. Perplexo, procurou desvendar o mistério, analisando-se nas duas 
formas que tomara. Estava mergulhado nesse processo de auto-análise, quando sentiu como 
que um choque de alta voltagem que o arremessava à distância. Caíra no chão e, ao erguer-
se, sua percepção era diferente. Pareceu-lhe que fora arrebatado para outro ambiente e 
sentiu uma leveza indizível tal se seu corpo fora diáfano. 
Nisso, mão delicada tocou-lhe o ombro e chamou-o: 
- Meu filho! 
O Coronel Sousa reconheceria aquela voz entre milhões de vozes. Como uma 
criança que retornasse ao lar, após longa ausência, cheio de ansiedade, voltou-se e, 
contemplando a mãezinha, nimbada de luz, resplandecendo em longa túnica branca e bela, 
ainda mais bela que nos dias da sua juventude, exclamou: 
- Mamãe! meu Deus, o que estará acontecendo? A senhora já morreu! A entidade 
abriu-lhe os braços e sorrindo, com aquela doçura que só as mães sabem ter para com os 
próprios filhos, disse-lhe: 
- Vem, meu filho, você também morreu... 
 
Capítulo II 
 
A FAMÍLIA SOUSA 
 
Os dias rolaram tristes e intermináveis para a família do Coronel Sousa. 
Fora uma semana difícil, inundada de lágrimas. O golpe implacável do destino, 
assestado na pequena comunidade, surpreendera os corações desprevenidos e habituados 
àquela convivência franca e superior, que o falecido instalara ao seu redor. A ninguém 
nunca ocorrera a perda irreparável. Morrera um deus, que soubera entronizar-se em todos 
os corações, e o trono vazio como que representava o esvaziamento do conteúdo da própria 
vida, que mantinha vibrante todas aquelas criaturas. 
A atividade, na fazenda, limitara-se às providências inadiáveis. A desolação era 
completa, e tinha-se a impressão de que ninguém sabia como continuar as lides do dia-a-
dia, capitaneadas com segurança, até ali, pelo extinto. No dia a que nos reportamos, a 
família Sousa regressava da missa de sétimo dia realizada na capela da própria fazenda, 
quando uma multidão se erguera em preces em favor da alma boa que, no entendimento de 
todos, pelos elevados dotes espirituais que detinha, erguera-se ao céu. Após o almoço, D. 
Maria Cristina cobrou ânimo e reuniu, na sala de estar de vastas proporções, decorada com 
móveis de estilo colonial e pesadas cortinas de veludo, os três filhos para o entendimento, 
que já se fazia urgente, em busca da realidade e das soluções para os extensos problemas, a 
reclamarem continuidade. 
Sentou-se na velha poltrona de mogno que o Coronel usava habitualmente, nas 
freqüentes reuniões familiares que levava a efeito, quando trocava idéias com a esposa e os 
filhos acerca dos inumeráveis problemas relacionados com os interesses mediatos e 
imediatos que lhes diziam respeito, ocasiões em que procurava firmar a unidade familiar e 
formar o caráter dos descendentes que a Vida lhe confiara. Falava de negócios, da 
educação, da religião e do comportamento reto que se impunha no resguardo dos valores 
morais e intelectuais da família. Agora, a nobre senhora, afundada na almofada macia e 
revestida de veludo vermelho, sentia sobre os ombros o peso enorme da responsabilidade 
que lhe adviera com a morte do esposo. Deixou que todos se acomodassem. Cidália postou 
se ao seu lado, sentada em graciosa banqueta de pés recurvados; Alberto e Francisco 
deixaram-se cair no sofá que compunha o conjunto, pensativos e desalentados. Nos olhos 
de todos, marcados pelo pranto inconformado, transpareciam tristeza e cansaço. A dor 
abrira sulcos profundos naquelas almas acostumadas à felicidade. De todos, porém, quem 
aparentava melhor disposição era Alberto. Moço, de 24 anos, cursava o último ano da 
Faculdade de Direito, atendendo às próprias inclinações e aos conselhos paternos que lhe 
previa um futuro promissor face ao brilho da sua inteligência. O Coronel sonhava colocá-
lo, mercê dos méritos próprios, e da sua influência política, em altos postos do governo, 
facilmente acessíveis, também, pela qualificação acadêmica. Há oito anos, deixara a 
fazenda rumando para São Paulo, a fim de estudar. Talvez por isso, por ter-se afastado da 
convivência paterna, sentia menos o peso do adverso acontecimento, embora não pudesse 
esquecer do carinho que recebera e do apoio que o pai sempre lhe emprestara, cumulando-o 
de recursos. Ponderara, durante os dias anteriores, na situação nova que sobreviera e já se 
conformava em renunciar aos sonhos que agasalhara para o futuro. Sabia que sua mãezinha 
não poderia lhe prescindir o concurso para a gestão dos negócios. Tivera oportunidade de 
estudar e conhecer o mundo fora da herdade, adquirindo valores para assumir tamanha 
responsabilidade. 
Era um moço saudável e de caráter rijo, formado ao influxo de uma educação que 
sobrelevava o indeclinável cumprimento do dever e o mais profundo respeito às leis. 
Contudo, não assimilara, do pai, inteiramente, os valores da bondade que sabe ajustar as 
situações às conveniências da fraternidade mais pura. Muitas vezes, por isso, discordava, 
intimamente, da liberalidade do pai e da extremada tolerância com os subalternos. Nem por 
isso, até aquele momento, criticara, ostensivamente, qualquer ato paterno ou procedera 
contrariamente às linhas gerais de vivência que o Coronel impusera a todos. 
Orientava-lhe o princípio de "a cada um o seu" e, nessa norma, encontrava a 
segurança da ordem social. Não aprendera a adocicá-la com os benefícios da tolerância e da 
paciência, da renúncia e do perdão, que fizeram do Coronel Sousa aquele exemplo 
maiúsculo de personalidade tão querida. Todos, entretanto, confiavam nele e esperavam 
soubesse inspirar-se, na vida prática, nos exemplos e na orientação deixados pelo pai. 
Francisco, o outro irmão, contava apenas 16 anos de idade.A diferença de tempo entre 
ambos ocorrera em virtude de D. Maria Cristina ter abortado duas vezes seguidas e o 
médico prescrever-lhe um período de resguardo, no qual deveria abster-se de engravidar-se. 
Refeita dos inconvenientes orgânicos, predispuseram-se a novo filho, pelo qual o casal 
suspirara durante sete anos. Francisco era uma alma lúcida e generosa. Companheiro 
inseparável do pai, acompanhava-o, desde o dez anos, quase durante o dia todo, 
movimentando-se feliz pela propriedade e seguindo com profundo interesse a atividade 
paterna. Amava a terra e amava a todas as criaturas daquela singular comunidade. Crescera 
brincando entre os negrinhos, filhos de escravos, na mais completa cordialidade. Nunca 
tirara partido da situação que os diferenciava. 
Tratava-os como irmãos, respeitando-os como tal e, nessa vivência humilde e 
fraterna, comunicava-lhes os valores que recebia em casa, de maneira que seus 
companheiros lhe imitavam a educação e o trato. Quem chegasse na fazenda, de inopino, e 
o surpreendesse nos folguedos alegres, junto aos filhos de escravos, nem de leve suspeitaria 
de que aquela criança, formosa e singela, misturada à gente de cor, fosse filha do Coronel 
Sousa. E isso tudo acontecia para alegria dos pais, que viam naquela fraternidade 
espontânea uma preparação para a continuidade do tipo de vida que imperava na fazenda 
quando, por força do destino, o Coronel partisse. Ao chegar a hora de decidir-se o seu 
futuro pediu aos pais, entre lágrimas, para que não o afastassem dali a fim de estudar, 
falando do seu amor à terra e àquela gente sem a qual não saberia viver. O casal, embora 
com alguma relutância, assentiu em que ele ficasse e se preparasse, junto ao pai, para gerir 
os negócios da fazenda, no futuro. 
Por essa razão, o Coronel Sousa o fazia acompanhar e lhe explicava, muitas vezes 
até com exagero, os fundamentos das suas providências e decisões. Assim crescera ele, 
assimilando todos os valores do pai e, não poucas vezes, quando este precisava ausentar-se, 
era ele quem transmitia as ordens paternas e acompanhava Romualdo, o capataz, na 
supervisão dos serviços. 
Era ele quem primeiro sabia das dificuldades dos escravos, seus problemas e suas 
doenças, pelo contato com os companheiros humildes que lhe contavam as peripécias do 
lar, levando-os ao conhecimento do genitor para que tomasse as providências cabíveis e 
sanasse as dificuldades. 
Conquanto jovem, era um espírito sábio. Não era só com o pai que enriquecia sua 
alma de conhecimentos e sabedoria. Todas as tardes, ia até a casa do "tio" Henrique, velho 
escravo que o pai aposentara, e, sentado sob a proteção de uma laranjeira que vicejava ao 
lado da casa, conversava com ele horas a fio. O "tio" Henrique, um velho cheio de 
sabedoria, falava com segurança de todos os deveres do homem. Fora chefe da sua gente, e 
arrebatado pelos escravocratas. No Brasil, venderam-no ao Coronel Sousa. Desde logo, este 
vislumbrou-lhe a finura aristocrática e a vasta visão de comando, além da sua humana e 
profunda mente singular maneira de tratar as pessoas. Sabia comandar, sabia fazer 
respeitar-se, revelando-se mestre pela extrema bondade com que encarava as coisas e as 
pessoas. Fora o capataz até há alguns anos, quando, em virtude de um reumatismo pertinaz, 
o Coronel aposentou-o. Foi com ele que o Coronel Sousa formou a sua filosofia de vida e 
estruturou a sua personalidade, capacitando-se para comandar, como comandou, com tanto 
sucesso aquela comunidade que lhe devotava tão extremado amor e respeito como se um 
deus fosse. Quase todos os dias, desde o princípio de sua convivência, o Coronel ia ter dois 
dedos de prosa com ele, ouvir suas opiniões a respeito dos problemas que lhe afligiam e, 
não raras vezes, "tio" Henrique dava-lhe a solução integral. Era ainda, o bom velho, o 
conselheiro de todos os escravos, os quais, praticamente, nada faziam sem antes consultá-
lo. Francisco, também, na longa e agradável convivência com "tio" Henrique assimilara-lhe 
os ensinamentos. O preto velho falava do espírito, da bondade de Deus, da vida que existia 
além da morte e da necessidade de se viver em paz com a consciência, supremo tribunal 
dos nossos atos. Ensinava-lhe o ABC da bondade e da humildade como chave capaz de 
abrir todas as portas e todos os corações. 
Contava-lhe histórias do seu povo e de homens maus ou bons que encontravam, 
sempre, à sua frente, castigo ou recompensa. Ensinava-lhe, por essas vias, como ensinara a 
seu pai, que os pretos também eram gente de Deus como os brancos. Nessas duas fontes 
cristalinas de humanidade, Francisco bebera os exemplos e os ensinamentos que lhe 
emprestavam, mesmo em tenra idade, tanta sabedoria. - Pena que Francisco fosse apenas 
um jovem, sem idade bastante para assumir, nessa emergência, a gestão dos negócios da 
fazenda! - era o que estava pensando D. Maria Cristina ao olhá-lo com ternura naquele 
instante, quando, à sua frente, triste e mergulhado em profundas reflexões, Francisco 
aguardava a sua palavra. 
Cidália tinha catorze anos e, se se cumprissem os planos paternos, no princípio do 
ano, demandaria um colégio em São Paulo para iniciar-se nos estudos superiores. Simples e 
bonita, os cabelos loiros lhe emolduravam as faces graciosas, encimadas por dois olhos 
azuis tão serenos como a placidez do lago em tarde de calmaria. Também ela crescera 
brincando com o irmão e com as meninas da fazenda, herdando as virtudes primorosas de 
seus pais e, mais particularmente, de sua genitora de cuja boca nunca ouvira uma 
recriminação ou uma impropriedade. Nesse instante, na sala sóbria e ampla da casa grande, 
reuniam-se quatro almas valorosas, para as quais o destino abria um novo capítulo em suas 
vidas. Todas essas considerações passaram pela cabeça de d. Maria Cristina, enquanto 
reunia forças para iniciar o entendimento e olhava, enternecida, os filhos que a rodeavam. 
- Meus filhos - disse ela, afinal - estamos reunidos para decidir o que faremos daqui 
para a frente. Os dias de luto que vivemos, creio, já bastaram para que extravasássemos 
todas as nossas tristezas. Com a morte de Sousa cabe-nos, sem mais tardança, tomarmos as 
decisões que orientem nossas vidas. Sei que não é fácil, já que vivemos tanto tempo 
despreocupados, sob a sombra da sua autoridade, que a tudo provia. Contudo, não podemos 
nos entregar à inércia e ao desconsolo. É necessário que enfrentemos a realidade, e 
assumamos as nossas obrigações em novo nível. Graças a Deus, recebemos o fardo desta 
hora suportado sobre bases sólidas, que a generosidade do meu marido conseguiu edificar. 
Estamos cercados de criaturas que nos respeitam profundamente e que, sem dúvida, jamais 
nos suscitarão problemas insolúveis. Diz-me o bom-senso que apenas cuidemos de dar 
continuidade aos princípios que nos nortearam até aqui, para que tudo saia bem, em nosso 
benefício e em benefício dos que dependem de nós. Lembremo-nos ainda hoje, 
principalmente, que o mesmo amor deve presidir os nossos atos e decisões, como Sousa 
nos ensinou, pois só o amor constrói. Esta fazenda nunca teve escravos e nunca os terá, 
conquanto as leis do nosso País os qualifiquem como tais. As criaturas que estão lá fora, 
ansiosas por saberem o que lhes espera doravante, talvez até medrosas do dia de amanhã, 
são nossos irmãos em Humanidade, gente como nós que pensa e sente, ama e se multiplica 
aspirando aos mesmos valores espirituais que nós buscamos. Nunca nos esqueçamos da 
lição simples da Natureza, entendendo que o mesmo sol que banha e vivifica os lírios do 
campo, também atende às necessidades do pântano, e a mesma vida de Deus que anima os 
homens, anima, também, as serpentes mais temidas. 
- Nunca deixemos, meus filhos, - continuou depois de uma breve pausa - os 
caminhos que vimos trilhando e, aconteça o que acontecer, cerremos os nossos corações à 
visita do orgulho e da vaidade. A vida, lá fora, nos convidaàs diferenças sociais e à 
preservação da posse; lembremo-nos de que tudo o que temos é apenas empréstimo da 
misericórdia de Deus, pois, por Sua vontade, os espíritos que animam corpos de senhores 
poderiam estar, agora, na carne de um negro humilhado e explorado que não recebe, em 
troca do seu suor, nada mais que a senzala infecta e a chibata impiedosa. Os caminhos dos 
homens são estranhos e insondáveis; vocês poderão dizer que deliro, porquanto nunca 
ninguém provou isso, contudo, é justo considerar que, com esse amor, meu marido 
construiu a nossa felicidade e a felicidade dessa gente cativa. Não olvidemos, destarte, que 
sem nunca usarmos o poste e a chibata, e sem nunca privarmos os nossos servidores do 
essencial, esta é a fazenda mais próspera do Estado. Digo isso porque sei que se Sousa aqui 
estivesse, sabendo que amanhã não mais voltaria, isso mesmo iria recomendar a vocês, 
porque nos longos anos que aqui vivemos aprendi com ele e com a vida, todas as coisas de 
que lhes falo. 
Os olhos dos três jovens estavam marejados de pranto, agora de emoção, de uma 
emoção sublimada, pois lhes parecia que as palavras da genitora, tocadas de um estranho 
encanto, vibravam-lhes nas fibras mais íntimas. 
Tinham mesmo a impressão de que estavam sob a influência de forças superiores, e 
as palavras de D. Maria Cristina eram proferidas sob inspiração divina. A nobre senhora fez 
uma pausa, sensibilizada pela reação dos filhos, temerosa de ter a voz embargada pela 
emoção que também experimentava. 
- Alberto, - disse ela dirigindo-se ao mais velho - você, meu filho, vai ter que 
sacrificar pelo menos até que o Francisco adquira a maioridade, os seus sonhos de homem 
prestes a realizar-se no trabalho próprio. Só você está em condições de assumir a 
responsabilidade dos negócios. Nós precisamos que você retorne aos estudos, conclua o seu 
curso, e regresse para cá a fim de tomar o seu lugar. Até lá, o Francisco e eu cuidaremos de 
tudo para que nada sofra solução de continuidade. 
- Sim, mamãe, - atalhou o rapaz -. Nestes dias, venho pensando nisso, e já tinha 
mesmo decidido a fazer o que agora me recomenda. É uma obrigação que se me impõe e da 
qual não poderia furtar-me. Alegro-me a senhora ter ferido o assunto de maneira tão 
objetiva. 
- Francisco - disse ao rapaz que a fitava embargado pela firmeza das palavras 
maternas - você e Romualdo, de amanhã em diante, providenciarão que tudo seja atendido 
como vem sendo até aqui. Você conhece todos os problemas da fazenda, e não terá 
dificuldades, creio eu, para dar-lhes andamento. 
- Cidália, - disse em seguida à menina – os seus planos seguirão o curso normal. 
Em fevereiro, voltará para o colégio e encerrará os seus estudos. 
- Esperemos meus filhos que tudo nos saia bem e que a Misericórdia de Deus, que 
houve por bem levar meu companheiro, nos socorra sempre - finalizou a nobre dama, 
colocando os filhos à vontade para a conversação. 
 
 
Capítulo III 
 
NOVOS RUMOS 
 
No dia seguinte, aos primeiros albores da madrugada, a família Sousa já estava 
desperta para despedir- se de Alberto, que regressava a São Paulo a fim de retomar os 
estudos. Mal se despedira, rumando para a cidade, D. Maria Cristina acercou-se de 
Francisco, recomendando-lhe sobre o trabalho que começaria a desenvolver e incentivando-
o para que o assumisse dentro do mesmo espírito que norteara o pai. Francisco beijou-a, 
enternecido, e demandou a colônia, pelos mesmos caminhos que palmilhara, quantas vezes 
com o genitor. Enquanto andava, parecia ao lado pisando a grama molhada de orvalho. A 
casa grande ficava no alto da colina, e a colônia lances abaixo, separada, cerca de duzentos 
metros pela encosta bem trabalhada, onde alguns corredores de terra formavam planos em 
que se dispunham os pés de café, que tinham acesso por pequenas estradas de tijolos. 
Francisco parou no alto do primeiro lance, e contornou a fileira de casas geminadas, 
dispostas em fila, construção emoldurada de uma infinidade de portas e janelas, pintadas e 
alegres. 
Defronte a comprida construção, havia um pátio de mais ou menos quinze metros 
de largura, onde, em sua meninice, brincava o dia todo. Nessa hora, o pátio estava tomado 
pelos trabalhadores que aguardavam as ordens do dia. Olhando a multidão que sobraçava 
enxadas e outros instrumentos agrícolas, evocou, emocionado, a força austera e doce do 
pai. O genitor, sabiamente, não construíra as clássicas senzalas onde os cativos viviam em 
promiscuidade. Atendendo às ponderações de "tio" Henrique, que o convencera da 
vantagem de ter sob suas ordens pessoas agradecidas, inovara corajosamente, fazendo 
construir casas separadas onde as famílias se alojavam com toda a dignidade, e viviam a 
sua própria vida. Fizera questão de que todos se sentissem gente, e gozassem da 
necessidade fundamental de viverem reunidas, cada família, em seu lar. Eram casas 
simples, mas asseadas, suficientemente amplas para que se dispusessem comodamente. 
Viviam com a maior alegria e com todo o respeito. Cozinhavam a própria comida, 
ao invés de se alimentarem de uma cozinha comum. Distribuídas as rações de cada família, 
a própria D. Maria Cristina supria-lhes de tecidos para a confecção de suas roupas. Por isso, 
talvez, lá embaixo, via os negros bem limpos e decentemente vestidos. Aliás, o Coronel 
Sousa fazia questão de que todos praticassem hábitos de higiene. Na verdade, auxiliado por 
"tio" Henrique, homem íntegro que tinha grande ascendência sobre os cativos, implantara 
princípios rígidos de moral e de respeito. 
As mulheres, ali, não serviam de pasto para os apetites animais de capatazes e 
colonos brancos e para as investidas dos próprios negros, como acontecia nas outras 
fazendas, onde a promiscuidade e a devassidão imperavam. Recordou que certa feita um 
negro estuprara uma jovem de cor e o Coronel, sem contudo castigá-lo fisicamente, 
mandara vendê-lo na cidade, no mercado de escravos. Para aquela gente, esse era o castigo 
maior: a perda do convívio daquela comunidade, onde eram, verdadeiramente, gentes ao 
invés de coisas. Os negros casavam-se na Igreja, de véu e grinalda, como qualquer branco, 
para escândalo dos outros fazendeiros e com certa relutância do senhor vigário, que só 
oficiava as uniões tendo em vista as benesses que o generoso fazendeiro lhe dispensava em 
favor da paróquia. O fato é que os negros se casavam ganhando, em seguida, o próprio lar, 
onde constituíam a prole. - Que coração generoso! - pensava. Que sabedoria extraordinária 
a de seu pai que com isso, pequeninas coisas que nada lhe custavam, ganhava num 
crescendo a veneração dos cativos! Nunca, na fazenda, ocorreram brigas ou motins, nem 
qualquer cativo fugira, enquanto que, nas outras, alguns fazendeiros necessitavam até de 
um pelotão de captura para caçar os negros no mato. Nunca se fincara naquele chão 
dadivoso, um tronco de pelourinho, nem se usara de uma chibata para castigar alguém. Sem 
dúvida, a sua casa era uma nesga de céu plantada na Terra, indiferente aos reclamos do 
mundo hostil que a rodeava. Imerso nessas reflexões de reconhecimento e de saudades, 
venceu, vagarosamente mas a passos firmes, todos os lances do caminho, até o pátio onde 
era aguardado. Acercou-se de Romualdo, e pediu que reunisse todos ao seu redor, para 
falar-lhes. O jovem proprietário, com voz serena, ante o silêncio expectante de todos, 
tomou a palavra: 
- Meus amigos! - disse com aquela sinceridade que o caracterizava - nada mudará 
em nosso relacionamento com vocês. Tudo será como antes. Procuraremos agir dentro dos 
mesmos princípios de nosso pai, e vocês continuarão a ser, para nós outros, o que sempre 
foram até aqui. Pedimos a mesma ordem e o mesmo respeito que sempre imperaram nesta 
fazenda, e que nos assegurou uma convivência feliz. Ninguém tema por coisa alguma, 
conquanto se esperará de todos a mesma conduta exigida por meu inesquecívelpai. Vamos 
trabalhar todos unidos, como se meu pai daqui nunca se houvesse ausentado. Romualdo, 
como sempre, lhes transmitirá as ordens, e a nossa vida continuará como antes. 
O silêncio profundo que todos guardavam, era bem uma demonstração evidente de 
que o jovem fazendeiro não teria qualquer dificuldade para realizar o seu trabalho. Em 
seguida, Romualdo expediu ordens para todos os grupos, que se separaram alegres para os 
misteres do campo. 
À porta da casa grande, D. Maria Cristina, que acompanhara com o olhar 
umedecido os passos do filho, e que, em sua parada momentânea, supusera que ele 
vacilava, quando os trabalhadores se dispersaram, conquanto não pudesse ouvir o que o 
jovem lhes falara, não pôde conter o sorriso de satisfação que lhe assomou aos lábios. Ali 
ficou até o jovem afastar-se na curva do caminho, em demanda dos pesados encargos que 
tão prematuramente lhe chegavam. E os dias se sucederam uns aos outros, retomando a 
fazenda o seu ritmo normal de trabalho, com a família Sousa se ajustando, sem maiores 
dificuldades à contingência que lhe sobreviera. 
Depois que se desligara dos seus laços físicos, carregado pelos braços amoráveis de 
sua mãezinha, Sousa demandara uma cidade espiritual em esfera vizinha à crosta planetária, 
onde foi depositado em confortável leito de hospital. Após o encontro com a genitora, 
sentira uma sonolência invencível e se rendera a ela. 
No dia seguinte, despertou surpreso procurando analisar a própria situação, 
colocado ali em quarto confortável, e sentindo uma leveza indescritível. Procurava 
rememorar as horas angustiantes que vivera lembrando o encontro com sua mãe, e a 
evidência de que havia morrido. 
Apalpou-se, algo amedrontado, e verificou, sem muito esforço, que estava íntegro. 
Ele mesmo, senhor dos próprios pensamentos e ser vivente, conquanto a ocorrência da 
morte física, indiscutível. Sentia o coração bater, respirava, e até experimentava sensações 
de fome. Lembrou-se das conversas com "tio" Henrique, e o preto velho lhe falava da 
imortalidade do Espírito e lhe assegurava que a morte nada mais era a uma pequena 
transformação, sem o poder de aniquilar a personalidade. Dizia-lhe que o Espírito habita 
planos de vida, mais puros e mais felizes, e que cada um continuaria a ser aquilo mesmo 
que sempre fora. Falava-lhe do reencontro com seres queridos, que nos antecedem na 
morte, e assegurava- lhe que os laços de amor vigiam por toda a eternidade. Sempre amara 
profundamente o velho servidor e admirava a sua sabedoria, mas, só agora podia avaliar o 
quanto, realmente, era sábio, perguntando-se como aquela criatura podia conhecer esses 
mistérios inacessíveis aos mais cultos da Terra, inclusive aos sacerdotes, nos quais, muitas 
vezes, surpreendera o medo de morrer e a mais crassa ignorância de tudo isso que via e que 
sentia. 
Recordou-se das crenças do céu e inferno, diabos e purgatório, e das teorias 
materialistas que não viam, além da morte, nada mais que o não ser. Na verdade, nunca 
dera muito crédito às afirmativas arrojadas de "tio" Henrique contudo, jamais aceitara o 
nada materialista, nem as soluções, muito humanas que a Igreja procurava dar às 
implicações da morte. Estava mergulhado nessas reflexões sérias, quando bateram 
delicadamente à porta, e uma enfermeira entrou no recinto, acercando-se do seu leito. 
- Coronel Sousa, - disse ela - como se sente? 
- Confuso, honestamente confuso - retrucou espontaneamente. 
A moça estampou um sorriso generoso de compreensão e, afagando-lhe os cabelos 
grisalhos, confortou-o: 
- Na verdade, sem ter-se preparado para esta experiência, nem seria justo esperar 
que você tivesse explicação para as novidades com que se depara. 
- Diga-me, senhorita, onde estou? - arriscou Sousa, ante a cordialidade da visitante. 
- Você está em uma cidade espiritual bem próxima da Terra, para um estágio de 
convalescença e adaptação neste hospital. Conquanto se surpreenda vivo e me veja 
corporificada como qualquer ser humano, somos nós os mortos do Planeta, que deixaram os 
corpos para os vermes a fim de que o Espírito pudesse librar-se para a verdadeira vida. 
Tivemos, nós todos, na Terra, noções errôneas acerca do fenômeno da morte, mas, graças a 
Deus, podemos nos sentir bem vivos e nós mesmos, após o decesso físico - respondeu-lhe a 
jovem amavelmente. 
- Perdoe-me - retrucou Souza, respeitoso - mas não estou podendo entender como 
me sinto assim completo, com as mesmas sensações de vida. Seria isso, por acaso a 
ressurreição da carne, de que falam os sacerdotes? 
- Não, meu irmão, - respondeu a atendente com largo sorriso de benevolência - 
nada mais de carne; estamos, isto sim, diante da ressurreição do Espírito. A carne é 
instrumentalidade terrena de que se vale o Espírito para as suas experiências no campo 
físico. Mas acalme-se e não procure solucionar de vez todas as suas interrogações, muito 
justas, aliás. Vamos dar tempo ao tempo e, pouco a pouco, você compreenderá todas as 
particularidades da sua nova vida. Nem é justo que eu lhe expenda conceitos que, talvez, 
não possa entender, agora, por desconhecimento dos princípios fundamentais que regem a 
vida do Espírito. Alegro-me de vê-lo sereno e confortado, pois isso é o principal para a sua 
adaptação, no momento. 
Para surpresa de Sousa, nesse instante, entrou no quarto um homem, aparentando 
meia- idade, portando uma pasta cheia de instrumentos, acercando-se do leito. 
- Este é o irmão Salvius, - noticiou a jovem apresentando-o a Sousa. Ele o atenderá 
na convalescença, e o orientará com segurança. Chamo-me Alice, e quando precisar de 
mim, para alguma coisa, basta puxar esse cordel, logo acima da guarda da cama e virei 
imediatamente para atendê-lo. 
Despediu-se de Sousa, deixando-o com o visitante. Este desamarrou a sacola 
retirando uma série de instrumentos, passando a auscultar-lhe o organismo, 
silenciosamente. Depois de um minucioso exame, a que Sousa assistira maravilhado, 
depositou os instrumentos sobre a mesa e dirigiu-lhe a palavra: 
- Meu irmão, você chega em boas condições ao nosso plano. Creio que amanhã 
mesmo poderemos sair para um passeio no parque. Por ora, descanse e procure não se 
inquietar com interrogações desnecessárias, que só poderão prejudicar-lhe a recuperação. 
- Meu amigo, - arriscou Sousa - todos morrem do mesmo modo? 
- De forma alguma, - respondeu Salvius, afavelmente. Cada um morre como pode, 
isto é, de acordo com os valores que ajuntou para si no enriquecimento do Espírito. 
Você teve o privilégio de despertar nos braços maternos, tão logo se lhe 
destrambelhou a máquina física. Outros, no entanto, são constrangidos a acompanharem os 
próprios despojos, assistindo-lhes a decomposição ou a desligarem-se perturbados, vagando 
sem rumo por dias, meses e até séculos; outros ainda, porque acreditavam fosse a morte o 
termo da vida, dormem irremediavelmente por longos períodos. 
Sousa experimentou um calafrio diante da notícia que recebia, e rendeu graças a 
Deus por não ter atravessado essas experiências dolorosas. 
- Contudo, acalme-se - continuou o instrutor ao perceber-lhe o espanto. Logo você 
compreenderá os mecanismos dessas situações, e sentir-se-á muito feliz pela vida que 
viveu. Homem da terra, algum dia você colheu o que não plantou? 
- Não - respondeu Sousa. Nem poderia esperar isso. 
- Da mesma forma, meu amigo, em qualquer plano da vida, cada um de nós recolhe 
os frutos da própria semeadura. Amanhã, conversaremos com mais vagar. 
Preciso ir, outros afazeres me esperam - arrematou Salvius. retirando-se do quarto e 
fechando delicadamente a porta, enquanto Sousa tornava, sozinho, à meditação. Na noite 
anterior, depois de ingerir agradável alimentação que Alice lhe trouxera, Sousa dormiu 
profundamente. 
Despertou aos primeiros raios de sol que lhe invadiram o quarto amplo, quedando-
se na cama pensativo, rememorandoas impressões do dia anterior e dando campo a uma 
multidão de interrogações que lhe povoaram o espírito. Jamais se preocupara em analisar o 
fenômeno da morte e as suas conseqüências. Fora essencialmente prático e o seu dia, na 
Terra, era absorvido, inteiramente, pelos problemas do momento. Seu trabalho, suas 
extensas responsabilidades, tomavam-lhe todos os minutos de forma que não aprendera a 
pensar nas coisas que lhe fugiam ao interesse imediato. 
Algumas vezes, na Igreja, ouvira os sermões do Vigário à respeito da sobrevivência 
do Espírito, contudo, como sua razão não aceitava aquelas soluções, relegava o assunto 
para plano inferior. Agora via que, mesmo religioso, de certa forma, não acreditava na vida 
depois da morte, porquanto o assunto nunca lhe merecera maior atenção. Se colhera 
bênçãos de assistência carinhosa, fora por misericórdia de Deus, porque nada fizera, na vida 
terrena, tendo em vista a preparação dessa situação privilegiada. Entretanto, ali estava, e 
dava graças à Divina Providência por não ter mergulhado no caos, ante o evento que o 
desligou do veículo físico. Lembrou-se das horas aflitivas da desencarnação, quando foi 
constrangido a assistir, imobilizado, às cenas dolorosas que se desenrolaram ao seu redor, 
no extravasamento afetivo de familiares e servidores. Surpreendia-se por não agasalhar 
muita preocupação com a posição da família face aos problemas que ficaram dependendo, 
agora, para sua continuidade, da ação de outros responsáveis. Afinal - obtemperou de si 
para si - tudo estava em ordem e os familiares saberiam, sem dúvida, continuar a vida, na 
fazenda, no mesmo ritmo. Os recursos financeiros que lhes deixara, bastariam para que 
vivessem tranqüilos, e sua esposa e filhos estavam acostumados ao equilíbrio que não exige 
muito para manter-se. Alberto deveria formar-se em breve, e tinha tudo para abrir largos 
caminhos de progresso. Francisco conhecia os misteres e as necessidades da fazenda e 
poderia ajudar sua mãe com muito sucesso. Cidália iria para o colégio e ficaria, assim, 
protegida. 
Quem poderia sentir mais a sua falta, seria Maria Cristina, já que após 25 anos de 
convivência feliz, seria constrangida à solidão afetiva; restava-lhe, contudo, dividir o seu 
grande amor entre os filhos e arrimar-se neles para contrabalançar-lhe a ausência. 
Caminhava por essa vereda de indagações, quando Salvius entrou no quarto e, alegremente, 
convidou-o para um passeio no parque contíguo ao hospital. 
Vestiu-se rápido, ansioso por tomar contato com as novidades lá de fora, 
conhecendo, assim, o mundo espiritual além das paredes acolhedoras daquele aposento. 
Ganharam um longo corredor onde jovens enfermeiras iam e vinham, sozinhas ou em 
grupos. Presumia serem enfermeiras em razão da vestimenta e dos petrechos que portavam, 
com características de serem para uso médico. Tudo era um silêncio respeitoso. As moças 
conversavam, sorridentes e felizes. - Este hospital - disse Salvius procurando estabelecer o 
diálogo franco e fraterno - abriga quase um milhar de espíritos recém-vindos do plano 
físico. Estamos em ala destinada aos irmãos que retornam em melhores condições mentais, 
existindo outras, no entanto, em que a impressão, dada a perturbação dos que ali se 
abrigam, não é tão boa e tão serena como a que você sente aqui. Todavia, sua reação seria 
filha do desconhecimento da vida que nos cerca; nós, os que aqui lidamos, no entanto, 
acostumados ao trato com os hóspedes e com as nossas obrigações de mantença de 
equilíbrio mental e emocional, não notamos muita diferença. A esta altura, os dois 
alcançaram grande hall onde alguns Espíritos conversavam, em grupos dispersos. O hall 
dava para uma escadaria externa de onde descortinava formoso parque, marcado de 
canteiros dispostos em graciosos contornos. Árvores frondosas e delicadas, conquanto de 
porte médio, ofertavam sua copa larga e espessa à sombra acolhedora, enriquecida por 
bancos formados de vegetação verde e florida oferecendo-se para o descanso dos 
internados. Entre os canteiros, as ruas pavimentadas em pedra colorida, formando desenhos 
harmoniosos, contrastavam com o verde da grama bem cuidada e as variedades de flores 
multicoloridas do imenso jardim. Centenas de pessoas estavam dispersas pelo parque, em 
animada e alegre conversação, ou andando pelas ruas sinuosas, ou sentadas sob a copa das 
árvores. 
Sousa estava embevecido diante do espetáculo de singular beleza. Seus olhos 
percorriam todo aquele ambiente acolhedor, maravilhados e surpresos. Jamais poderia 
supor que, além das fronteiras misteriosas da morte física, pudesse existir uma vida tão 
exuberante a manifestar-se em espetáculo de beleza indescritível. Salvius convidou-o a 
sentarem-se em gracioso banco de relva. Sousa temia abusar do amigo, todavia, uma 
multidão de perguntas se engatilhavam em sua cabeça diante de tanta coisa nova para o seu 
entendimento. 
- Que lugar maravilhoso! - exclamou, procurando o início da conversação que 
ansiava levar a termo com vistas ao esclarecimento da sua curiosidade. 
- Sem dúvida - respondeu Salvius. Este é um dos parques mais graciosos e 
acolhedores do nosso hospital, conquanto, na cidade onde estamos; existam muitos deles, 
mais belos ainda, e nos quais as criaturas da nossa comunidade passam horas agradáveis ao 
encontro dos amigos. 
- Quer dizer, então, que estamos em uma cidade do mundo espiritual? perguntou 
Sousa algo intrigado. 
- Sim - esclareceu o companheiro - uma cidade de dezenas de milhares de 
habitantes e algo parecida com as da Terra. Difere delas mais em razão da natureza da 
nossa comunidade, onde a vida transcorre em outros moldes e a organização social atende 
um tipo de interesse essencialmente coletivo. Aqui, todos vivem e trabalham voltados para 
um fim único: o bem-estar geral, enquanto na crosta cada um procura atender os próprios 
reclamos, indiferente às expectativas da coletividade. 
- Então, aqui, também, todos trabalham? - perguntou Sousa, atalhando-lhe os 
esclarecimentos. 
- E por que não? - respondeu o mentor, bondosamente. A vida não dá saltos, meu 
amigo, e, como você pôde testemunhar desde que aqui chegou, as pessoas que se 
movimentavam ao seu redor tinham uma função definida, sujeitando-se às exigências das 
tarefas que lhes cabiam realizar. Estamos muito longe da suposição, vigente na Terra, de 
que a morte é um descanso. Até que o Espírito baste a si mesmo, tem que percorrer longos 
caminhos da eternidade, que mal podemos divisar. Enquanto cada um de nós depender do 
concurso de outrem, com certeza, ali estará o trabalho organizado para atender a essa 
dependência. 
- E como palmilharemos esses caminhos da eternidade, a que você se referiu? De 
que forma o Espírito alcançará essa auto-suficiência? - alongou Sousa. 
- De que maneira, pergunto, a criança que começa no bê-a-bá chegará às luzes da 
cultura? Não será freqüentando a escola e vencendo ano a ano, ciclo a ciclo, os cursos que 
escolheu? Da mesma forma o Espírito, só que a escola, para ele, é o cenáculo terreno onde 
reencarna sucessivamente, para enriquecer-se de valores que capacitem a sua realização 
própria. Nós morremos, renascemos na carne portando determinadas circunstâncias que se 
dirigem para a solução dos nossos problemas e para o nosso aperfeiçoamento espiritual. 
Sem que o suspeitemos, a vida à nossa volta se organiza em obediência a determinado 
esquema de realizações a que o grupo, do qual fazemos parte, se subordina. A nossa 
família, os nossos amigos, tanto quanto os nossos dependentes e aqueles dos quais 
dependemos, em síntese, constituem equipe que se movimenta em experiência coletiva, 
onde se resolvem problemas de reajuste e de evolução. 
- E todos estamos, na Terra, subordinados a essas linhas da fatalidade, obedecendo 
a um determinismo que nos condiciona a existência? - perguntou Souza, algo 
desconcertado com as afirmativasdo mentor que lhe abriam um campo novo para a 
compreensão dos problemas humanos. 
- Não. Não é bem assim. Ao reencarnarmos, carregamos conosco um programa 
particular ajustado a um esquema coletivo. Cada um de nós, porém, mercê do livre arbítrio, 
pode cumprir, ou não, esse programa. Se cumprir, além de beneficiar-se das conseqüências 
benéficas dele decorrentes, pois vêm em atendimento às nossas necessidades espirituais, 
contribui para o sucesso da planificação coletiva. Se não cumprir, no entanto, além de 
desperdiçar a valiosa oportunidade que a existência física representa, perturba a realização 
do objetivo maior, de caráter coletivo. Não existem, em realidade, nem fatalidade nem 
determinismo condicionante, existem, aí sim, perspectivas pessoais e objetivos comuns - 
esclareceu Salvius. 
- E por que não se proclama isso aos homens para que, conscientes dessas 
implicações, cada um viva com mais responsabilidade diante da vida? - perguntou Sousa, 
lembrando-se de que, na Terra nunca cogitou acerca desses problemas e nunca ouviu 
alguém falar deles. 
- Recorde-se de Jesus e compreenderá. O Mestre esteve no plano terreno para 
transmitir a mensagem da Imortalidade e ninguém o levou a sério, culminando por 
crucificá-lo como impostor. Lembre-se, também, de que praticamente vinte séculos 
decorreram e ainda Ele não foi compreendido. Acontece que, os homens, no estágio 
evolutivo em que se encontram, ainda não reuniram valores para a compreensão da Vida 
Maior. Contudo, não se preocupe, pois estão bem próximos os dias de uma nova mensagem 
para a Humanidade e, tudo o que o surpreende, e de que nunca você ouviu falar, será 
desvendado aos homens. (*) Isso, porém, não quer dizer que, diante de uma nova revelação, 
a Humanidade se transformará. Serão exigidos ainda muitos séculos para que as criaturas 
humanas fixem as lições e se conscientizem, realmente, delas. A evolução é obra do tempo 
e não o resultado de proclamações extemporâneas. À medida que as gerações se sucedem 
na Terra, os Espíritos que retornam o fazem enriquecidos de valores espirituais e em 
condições de, a cada vez, entenderem mais e aceitarem melhor as novas idéias e revelações. 
Chegarão os dias luminosos em que cada criatura saberá, como, você assinalou, viver com 
inteira responsabilidade - arrematou Salvius, deixando-lhe campo aberto para novas 
indagações 
- Eu nunca cogitei do problema da morte, nem, em conseqüência, me preparei para 
ela; por que, então, não me foi tão violenta ou dolorida a transformação? – perguntou 
Sousa, respeitoso 
- Na verdade, o problema não é de preparação para a morte, mas de preparação 
para a vida. As criaturas que vivem retamente, acostumando o pensamento no sentido da 
justiça e do dever, estão preparadas para viverem em qualquer situação. Os que encontram 
grandes problemas na transposição do túmulo para a espiritualidade, são os que vivem 
artificialmente, extremamente apegados a interesses egoístas, ao redor dos quais fazem 
gravitar a vida, e os que, vivendo à margem do dever e da justiça, criaram muitos conflitos 
de consciência. Os primeiros chegam aqui desarvorados, incapazes de se livrarem de suas 
criações mentais que os mantêm algemados; os segundos nos alcançam à maneira de 
alienados pelo medo, e atormentados pelas tenazes férreas do remorso e da vergonha. Os 
habitantes dos planos inferiores e os grandes doentes do espírito são, geralmente, 
delinqüentes que lesaram o patrimônio próprio ou alheio. Você viveu uma existência 
profícua; conquanto tivesse interesses próprios em jogo, não se esqueceu de estender os 
seus recursos e a sua benevolência para com todos que o cercavam. Onde a maioria via 
cativos, você identificava irmãos; a sua família transbordava do seu lar. Enquanto a praxe 
era o pelourinho, você ensinava pelo perdão e pela tolerância. É justo mencionar que você 
procurou viver em um clima mental onde cabiam todas as virtudes e com o espírito aberto 
ao entendimento de todas as situações. Tal disposição, meu amigo, é imperativa tanto no 
Planeta quanto aqui, no plano espiritual, para que o Espírito viva bem - arrematou o mentor. 
- Quer dizer, então, que há uma continuidade da nossa situação na Terra? Os 
nossos escravos, por exemplo, que não desfrutaram dos privilégios que desfrutei, mercê da 
minha posição, chegarão na mesma condição de inferioridade? - inquiriu Sousa. 
- Não é bem assim - respondeu Salvius, sorridente. Estou falando de situação 
mental, que diz respeito ao nosso mundo interior. A condição de escravo não proíbe que a 
criatura viva num clima mental superior; ao contrário, pela contingência da subalternidade, 
tem maiores motivos para educar o espírito nas linhas da tolerância e da humildade, da 
compreensão e do dever. Basta-lhe não asilar o monstro da revolta, nem entregar-se à 
fogueira da inveja para que a existência lhe seja sumamente proveitosa. Da mesma forma, 
privado de todos os recursos materiais e morais sabe, mais facilmente, entender as 
dificuldades alheias e não existe ninguém tão pobre que não tenha algo de si mesmo para 
dar, seja uma palavra de carinho, seja um gesto de compreensão. Quando sofremos e 
aceitamos com humildade esse sofrimento, estamos, também, com o espírito preparado para 
as mais duras realidades e com a mente aberta à compreensão de todos os problemas. A 
continuidade, como você pode perceber, diz respeito as nossas disposições espirituais e não 
a nossa situação no mundo material. Agora que você está desenfaixado do plano físico, 
quando lá retornar como espírito, terá oportunidade de verificar que, entre os que habitam 
as senzalas, estão espíritos de Sublimadas virtudes e grandes méritos espirituais. 
- Já que você feriu o assunto, quando poderei voltar para rever o meu ambiente 
doméstico? - perguntou Sousa, um tanto constrangido por alcançar assunto mais pessoal. 
- Tão logo reúna condições para isso - respondeu o mentor. E continuou: - Aqui, 
meu amigo, você está protegido pela qualidade do ambiente, sem problemas de interação 
com forças negativas. Na crosta, a sua situação seria diversa. A convivência com um meio 
extremamente conturbado poderia afetar-lhe o equilíbrio, já que você não dispõe de 
conhecimentos bastante para armar a própria defensiva. A partir de amanhã, você passará a 
freqüentar um curso especializado, aqui mesmo no hospital, onde aprenderá os meandros 
dessa interação e poderá compreender a complexidade da nossa vida mental. Quando 
terminá-lo, estará em condições de regressar ao Planeta, sem grandes riscos. Convidado ao 
retorno, Souza levantou-se e caminhou ao lado do companheiro para o vasto e acolhedor 
edifício onde estava internado. 
 
(*) Não se esqueça o leitor que os fatos aqui narrados ocorreram por volta de 1840, 
portanto, quase quatro lustros antes do advento da Doutrina Espírita que se deu com a 
publicação de "O Livro dos Espíritos" por Alan Kardec, em Paris, a 18 de abril de 1857 
(Nota da Editora). 
 
Capítulo IV 
 
OS CAMINHOS DA INTRIGA 
 
Era fevereiro. A família Sousa, com o perpassar dos dias, vencera a crise da 
ausência do chefe. Poucas coisas mudaram na fazenda, graças ao espírito de disciplina que 
fora implantado pelo Coronel, de tal sorte que, acostumados todos ao cumprimento 
rotineiro do dever, os serviços quase não sofreram solução de continuidade. Os dias de 
tristeza e de saudades foram-se deixando banhar pelo sol da realidade, e onde medravam os 
espinhos do desconsolo já começavam a florir as rosas da conformação. 
Cidália partira para o colégio em São Paulo e Alberto retornara, formado em 
Direito. Renunciando aos seus planos de realizações pessoais, o rapaz assumiu o lugar do 
pai, descansando dos ombros da genitora as graves responsabilidades da gestão dos 
negócios. Alberto unira-se ao irmão e, junto a ele, ia-se inteirando de todas as exigências do 
serviço administrativo. Graças à cultura que absorverana escola e ao trato com o mundo 
exterior, fácil lhe foi entrosar-se no trabalho. Arrimara-se no fiel capataz Romualdo e 
recebera dele todas as informações acerca dos problemas que envolviam a produção da 
herdade, e as relações com o pessoal que lhes servia nos misteres do campo. Não teve 
maiores dificuldades, também, para pôr-se a par das particularidades superiores dos 
negócios. D. Maria Cristina, aliviada, entregou-lhe todos os documentos do pai de maneira 
que, rapidamente, fez funcionar a máquina financeira da fazenda, algo emperrada pois 
dependente da atuação da genitora, que não estava acostumada a manobrá-la. Tudo ia bem. 
Os escravos olhavam com simpatia o novo dirigente, tributando-lhe o mesmo respeito e a 
mesma consideração que devotavam ao genitor, recebendo dele, espontaneamente, as 
mesmas regalias e assistência que sempre tiveram. Isso, no entanto, não agradava ao Barão 
Macedo, orgulhoso latifundiário e escravocrata que lhe compartilhava a vizinhança. O 
Barão havia tentado, por todos os meios, demover o Coronel Sousa dos seus propósitos de 
liberalidade com os cativos. Sua fazenda tinha centenas de escravos e, no seu entender, a 
conduta de Sousa, nesse particular, era um mau exemplo que incitava os escravos dos 
outros senhores à revolta. 
De fato, os negros que lhe enchiam as senzalas infectas, onde viviam como 
animais, eram constantes amotinados, prontos para a fuga à mínima invigilância dos 
truculentos capatazes, zelosos na aplicação da chibata que zurzia o dia todo. O rendimento 
dos seus negros era pequeno e porquanto, na improdutividade, tinham chance de vingar os 
maus tratos. No entanto, dada a rotina dos castigos, imperantes em todas as fazendas, o seu 
insucesso e os seus problemas com os cativos eram debitados à conta do mau exemplo do 
vizinho. Desde há muito, em razão disso, cortara relações com Sousa. Com a chegada de 
Alberto, jovem ainda, refinado pela vida da cidade, o Barão vislumbrou a oportunidade de 
convencê-lo a ajustar-se aos padrões escravocratas. Encontrando-o, certo dia, por acaso, na 
divisa das duas propriedades, cumprimentou-o entusiasticamente, procurando envolvê-lo 
nas malhas de uma falsa amizade, desmanchando-se na referência aos dotes do rapaz, ao 
brilho da sua inteligência. Ao despedirem-se, convidou-o para o jantar, na tarde do dia 
seguinte, em sua casa onde, disse ele, sentir-se-ia honrado em recebê-lo. Alberto deixou-se 
enredar pelas palavras adocicadas do Barão, simpatizou com ele e não teve dúvidas em 
aceitar o convite, o que fez de pronto e sem reservas. O Barão exultou de aparente 
felicidade. Enfim, iria retomar o fio das suas antigas pretensões e contava convencer 
Alberto, ganhando a batalha que fora obrigado a adiar sempre, dada a firmeza do Coronel 
Sousa, que nunca se deixara influenciar nos seus propósitos. - Só a facilidade com que 
Alberto aquiescera ao convite - argumentava para si mesmo - era indício alentador de que o 
filho de Sousa, não era um "cabeça dura" como o pai. Iria esperar, ansioso, pelo encontro. 
Alberto por sua vez, em regressando ao lar, vinha intrigado pela circunstância de seu 
genitor nunca ter tido relações mais estreitas com o Barão, homem de quem tivera boa 
impressão e que se evidenciava pelo fino trato. Ao chegar em casa correu a dar, à genitora, 
a notícia do convite, a fim de abrir conversação acerca das relações do Barão com sua 
família e se inteirar dos pormenores determinantes da distância com que sempre se 
houveram. D. Maria Cristina ouviu a novidade com desagrado, sem nada, no entanto, 
deixar transparecer, para não magoar o filho, entusiasmado com o convite. 
- Mamãe, - inquiriu ele, forçando uma definição - por que nunca tivemos relações 
mais estreitas com o Barão Macedo? Papai e ele tiveram algum problema que os manteve 
distanciados? 
- Bem, meu filho, - respondeu D. Maria Cristina - nunca soube de nada - grave 
entre seu pai e o Barão. Apenas os dois tinham pontos de vista contrários com respeito à 
maneira de tratar os cativos. Seu pai, homem bom por natureza, desde o início, quando 
começamos a trabalhar nesta propriedade, tratou os escravos como pessoas humanas e, até 
certo ponto, amando-os como se fossem sua família. Acreditava na bondade humana e 
dizia, com muita razão, que, preto ou branco, o homem que se sente respeitado e 
reconhecido, jamais se revoltará contra os seus benfeitores. Fazia os negros entenderem, 
também, que todos trabalhavam para todos e os recursos que o seu suor tirava da terra eram 
necessários não apenas aos seus senhores, mas, também, à sua própria mesa. Tinha capataz 
apenas em razão da organização dos serviços e distribuição das tarefas, porque seus 
servidores não necessitavam de vigilância. Punham amor em seu trabalho e as colheitas 
fartas lhes eram como uma bênção do céu e oportunidade de recompensar o patrão ao qual 
se sentiam extremamente devedores. O Barão, porém, não pensava e nem agia assim e, 
conseqüentemente, não colhia os mesmos resultados que seu pai - rematou D. Maria 
Cristina, ansiosa para pôr termo à conversação. 
- De fato - retrucou Alberto - papai sempre agiu sabiamente e, além das vantagens 
materiais, tornou-se um ídolo para essa pobre gente. Tenho a impressão, quando me olham, 
que procuram enxergar em mim a imagem de papai. Notei, mesmo, algumas vezes que, 
quando na conversação o nome de meu pai foi lembrado, encheram-se-lhes os olhos de 
lágrimas e, tenho a certeza, fazem muita força para evitar o pranto convulso. 
- Devo preveni-lo, filho, que o Barão, fatalmente, irá ferir o problema dos escravos; 
aconselho-o a agir com cautela - disse a genitora com ternura, afastando-se, em seguida, 
para não alongar o assunto. Chegara a tarde do dia seguinte. Alberto cerimoniosamente 
trajado, demandou a propriedade do Barão Macedo. Recebido à porta pelo próprio Barão, 
que o introduziu na casa, foi conduzido à sala de estar onde, desde logo, entraram em 
animada palestra. O Barão, velha raposa acostumada a correr à frente dos caçadores, 
conduziu a matéria em torno da pessoa de Alberto. Fê-lo relatar, até que o jantar fosse 
servido, todas as suas peripécias e impressões na Capital, cumulando-o de elogios e 
exclamações benevolentes, para que fosse se sentindo à vontade, confiando no anfitrião, 
dando margem a que este encaminhasse, lentamente, o assunto para o funil onde pretendia 
apertá-lo. Quando se sentiu amparado pela simpatia de Alberto, em pleno repasto, adentrou 
o tema, sutilmente: 
- É, meu filho, a vida na cidade grande, ao contato com pessoas cultas e de fina 
educação, é uma bênção para o espírito. Todavia, aqui no meio do mato, cercado por essa 
horda de negros sujos e revoltados, que nada reconhecem, e entendem somente o palavrear 
da chibata, a vida é muito dura e conduz a gente para a desilusão e a monotonia. Alberto 
percebeu, de pronto, a intenção de sondar- lhe o íntimo. Sentiu que o Barão lhe procurava 
uma definição onde assentar suas bases e conduzir seus argumentos. Lembrou-se das 
palavras judiciosas de sua mãe, e respondeu: 
- Barão Macedo, tudo tem as suas compensações. A vida na cidade grande também 
é deteriorada. Os interesses subalternos presidem a todas as relações humanas. Em breve, a 
gente percebe que a hipocrisia está em todos os rostos como uma segunda natureza, 
puramente social. Aqui tudo é espontâneo, emerge de cada um como a água límpida da 
fonte, e podemos beber das nossas amizades uma confiança tranqüila. 
As palavras de Alberto, caíram sobre o espírito do Barão como um balde de água 
gelada, arrefecendo-lhe o entusiasmo que alimentava para a conquista dos seus propósitos. 
O moço, que estava à sua frente, sabia manejar as palavras. Sentiu-se encurralado como um 
cão vadio surpreendido a furtar a carne da mesa. Fez muito esforço para conter-se, 
experimentando medo de que o rubor lhe tivesse subido à face, traindo-lhe o 
desapontamento e a irritação interior.A maneira como o jovem desviara o curso da 
conversa e sua observação quanto à sinceridade das pessoas, não lhe autorizavam continuar 
o assunto. D. Margarida, a esposa do Barão, que lhe conhecia os objetivos, interferiu no 
diálogo a fim de evitar que a conversação, dada a contrariedade que o marido 
experimentava, enveredasse por caminhos perigosos e viesse a degenerar-se como, no 
passado, já acontecera com o Coronel Sousa. 
- Quanto aos amores, - atalhou ela - como se saiu o nosso Alberto, na Capital? 
Deixou por lá alguma jovem suspirando pela sua volta? 
- Não, D. Margarida, - respondeu o rapaz respeitosamente - meu tempo foi todo 
absorvido pelas exigências dos estudos. Para lhe ser honesto, preveni-me contra a 
contaminação de cupido, a fim de que não sofresse prejuízo na minha carreira. Daqui para a 
frente, entretanto, terei mais tranqüilidade para isso e estou certo que, quando chegar a 
hora, tudo virá naturalmente. 
O jantar transcorreu dentro de um clima amigável e alegre, conduzida a 
conversação por D. Margarida. 
Ao retornar para casa, Alberto deixou o Barão frustrado nos seus propósitos e na 
contingência de aguardar uma melhor oportunidade, remoendo-se no clima de irritação 
próprio dos que não sabem perder. Mas o destino, sem que ninguém suspeitasse, estava 
conspirando a favor do velho Barão e armando perigosa cilada para Alberto. Havia, na 
fazenda dos Sousa, entre os cativos, um moço admirado por todos por suas qualidades de 
trabalhador devotado e amigo valoroso, de nome Juvenal. Ao início por olhares distantes, 
depois pela conversação mais íntima, separados pela cerca de arame farpado e em 
momentos furtivos, o jovem se enamorara de uma escrava do Barão Macedo, chamada 
Ismália. Haviam muitas jovens negras na fazenda, jovens e bonitas, no entanto, Juvenal 
deixara prender seu coração a um amor perigoso. Certa tarde, quando percorria os campos 
de trabalho, Romualdo surpreendeu-o conversando com a moça que, ao vê-lo, fugiu em 
desabalada carreira, como corça assustada pela proximidade do caçador. 
- Juvenal, - disse bondosamente ao rapaz, a quem muito estimava - isso não é bom 
para nenhum dos nossos. Você está cansado de saber que o Barão Macedo é nosso maior 
inimigo. Ele nunca abrirá mão dessa escrava para que ela se case com um desta fazenda, 
nem mesmo se você se sujeitar a sua escravidão. Vamos, meu rapaz, procure outros 
caminhos. Todos nós sempre encontramos, entre as nossas moças, as nossas companheiras, 
e não conheço ninguém, aqui, que não seja feliz. Não brinque com o destino, pois, onde 
você pensa encontrar felicidade, talvez lhe esteja reservado muito sofrimento. 
- Mas, Romualdo, - atalhou o rapaz - eu amo Ismália. Lutei muito contra isso, 
contudo, ela não me sai do pensamento. Parece que uma força estranha me arrasta para ela. 
Sinto-me desesperado nos dias em que não posso vê-la, O que posso fazer? 
- Esqueça - aconselhou Romualdo. - Melhor que você lute e sofra agora, quando 
tudo é fácil, do que quando sobrevierem as tempestades. Devo respeitar-lhe os sentimentos, 
mas aprendi com a vida que cada um de nós, que já somos imensamente felizes com a 
dádiva de sermos quase livres, não deve esperar na da mais que a dura realidade lá de fora, 
para a qual somos coisas imprestáveis, nascidas para o cativeiro. Fora do nosso meio, 
ninguém nos reconhece o direito de pensar e de sentir. A um cão é dado partilhar o lar dos 
brancos, lamber-lhe as mãos e receber carinhos; a um negro, no entanto, nada mais se 
reconhece que o dever de trabalhar e apanhar; - aos porcos estão reservadas as sobras da 
mesa farta dos senhores, aos negros, todavia, nada mais que rações exíguas e insípidas de 
comida ordinária. Não force, meu caro amigo, as portas da sua felicidade, para que não 
encontre, fora do castelo dos seus sonhos, muitas lágrimas e humilhações. Eu proíbo que 
você torne a ver essa moça e fale com ela. 
O moço, que amava e respeitava muito a Romualdo, calou qualquer reclamação; 
tomando suas ferramentas, lançou-se, febrilmente, ao trabalho, como a queimar todas as 
vibrações da sua inquietação. Em vão, tentou Juvenal sufocar a sua paixão por Ismália. 
Parecia-lhe que quanto mais buscava esquecê-la, mais sua imagem corporificava-se em seu 
pensamento. 
Transferido por Romualdo para outro setor de trabalho, evidentemente para ajudá-
lo, evitando o encontro do jovem par, nem o sol causticante que lhe queimava o corpo 
semi-nu, banhado de suor, ardia tanto quanto as chamas do seu amor, exacerbado pela 
saudade. Queria ver Ismália, contudo, não ousava quebrar a ordem do capataz e amigo, a 
quem devotava um desmedido respeito. Mas, sentia que precisava achar uma solução 
urgente, antes que enlouquecesse e antes que Ismália, dada a sua ausência, pudesse 
imaginar que o namorado não a queria mais. Jovem e inexperiente, não aprendera, ainda, 
que quando uma mulher ama verdadeiramente a perenidade do seu amor não conhece 
desfalecimentos. 
Temia sem razão. Também ele povoava os sonhos de Ismália, a quem a saudade 
torturava o coração. A jovem negra, trabalhava o dia todo com o olhar a perscrutar, 
furtivamente, por entre os arames da cerca, os campos de trabalho das terras do Coronel 
Sousa, em busca da silhueta encantada que lhe enchesse os olhos de alegria. Mas os dias 
passavam e, ao abandonar o serviço, lágrimas discretas corriam-lhe pelas faces negras, 
como lavas que o sol da tarde coloria de vermelho. Francisco, que convivera com Juvenal 
desde os tenros anos, - pois as idades quase coincidiam - vinha notando a tristeza e a 
nostalgia avolumarem-se no semblante do amigo e servidor. Certo dia, quando juntos 
preparavam montaria para Alberto, sem querer ferir a sensibilidade e devassar os segredos 
do amigo, arriscou: 
- Juvenal, o que há com você? Venho notando- lhe uma tristeza crescente; acaso 
está apaixonado por alguma donzela da fazenda? 
- Pior que isso - redarguiu espontaneamente ... Estou amando uma escrava do 
Barão Macedo. Ismália é a luz dos meus olhos, que estão tristes por terem mergulhado nas 
trevas da solidão. Romualdo proibiu-me de vê-la; sei que é em meu benefício, pois a 
realização dos meus sonhos é quase impossível. Estou desesperado "seu" Francisco e, mais 
que isso, a cada dia que passa, as minhas esperanças se apagam um pouco. Gostaria fosse 
verdade o que dizem os brancos, quando afirmam que escravo não tem sentimento por não 
ser gente. 
- Que é isso, Juvenal? - atalhou o rapaz - nós somos brancos e, no entanto, toda a 
minha família os considera gente, pessoas humanas, às quais estendem um indiscutível 
afeto. 
- Perdão, "seu" Francisco - explicou o rapaz envergonhado - não me referia aos 
senhores, nossos benfeitores, mas aos outros fazendeiros que possuem os nossos irmãos de 
cor. 
- Você está deixando revoltar-se, Juvenal, - respondeu Francisco, bondosamente - 
Isso não é bom porque desperta sentimentos maus, que só complicam a vida. Ademais, 
nada é impossível, e lhe prometo interessar-me pelo seu caso. Talvez ache uma solução. 
Por agora, meu amigo, vamos ao trabalho com alegria; a fé, com o concurso do tempo, 
soluciona todos os problemas, grandes ou pequenos. Leve a montaria para Alberto, 
enquanto preparo a minha. Não quero ver mais essa cara de tristeza que nunca conheci em 
você. 
Diante das palavras generosas de Francisco, Juvenal não pôde esconder um sorriso 
de alegria. Saiu, a passo firme, puxando, pela rédea de couro cru, o fogoso animal de que 
Alberto se servia para suas incursões rotineiras pelos campos. Logo em seguida, Francisco 
saía do estábulo, a cavalo, indo reunir-se a Alberto, em demanda às obrigações do dia. 
Cavalgando, lado a lado com o irmão, o moço ia imerso na preocupação que lhe adviera do 
caso amoroso de Juvenal. A única maneira de ajudá-lo - pensou - seria comprando, ao 
Barão, a escrava Ismália, o que não lhes seria sacrifício algum se o mesmo concordasse.

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