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COLLI, Giorgio. O nascimento da Filosofia

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GIORGIO COLLI
o NAS CIMENTO
DA FILOSOFIA
EDJTORADA
UNTVERS IDADE ESTAD UAL DE CA MPINAS
UNICAMP
Rdlor: Carlas Vogl
CoorMnaJorCiuu/. da Uniwr1idodr,.JoM: Manins Fi lho
CofUdlttl EdiJorioI:. Akio Pelen Chaps.. Alfredo
Miguel Ozono de AImeida. Antonio Carlos Bannwart.
asarFnncÍ3co Ci lllX(l (P~). Eduardo Guimaties,
Hermó genes de FreilaS Leido f ilbo. ¡. yme Alltuneli
Maciel J4n ior, Luiz Cesar Marqus Filho, Genldo
Severo de Souza Á vil..
DirrtorEuo.tiwr. Eduardo Guimaries
,
r,
Tradu ~ao:
Federico Carott i
,.., I
flCHACATALOGR.4FIcA ELABORADA PmA.
BlBl.IC:>THCACENTRAL-UNICAMP
Colli, Giorgio
C69n O nascimento da ñlcsoña I Giorgio Colli;
2.ed . tnldu~ Federico Carotti. - - 2.ed. - - Campillllll :
Editora da UNlCAM P. 1992.
(Col~lo RepertóriOl'l)
Trad~oo de : La nascita deUa filosofia.
I. Filceofia, l. TItulo.
ISBN: 8S-26S-0I27-9 2O.COO - lOO
Índice para catálogo sistem1il1co:
l. Filosofia 100
Col~io RepertóriO!l
Copyright ~ 1975 Adelphi Edirioni S.P.A. Milano
Projeto grárK:O
CamiliJ CtsarlllO Cona
E1ituIa KtstOlbaum
Rcvisilo
NiUZiJ MaritJ Gcllfalw$
1992
Editora da Unicamp
Rua ceeruc Fcllrin,:l'J
Cidade Univef!litária- Bario Gcnl.ldo
CEP 130S4_110_ Campi llllll _ SP _ Brasil
Te!. : (0192) 39.3720
Fax: (0192) 39.3 157
• •• O reí do templo,
Apolo o oblicuo,
capta a visao
através do maís direta
dos confidentes, o olhar
que conhece todas as coisas.
As mentiras ele nóo acolhe,
deus e homem nao o enganam
com obras nem destgnios.
SUMÁRIO
1. A loucura é a fonte da sabedoria 9
11. A senhora do labirinto 19
111 . a deus da adívinhacéo 31
IV. O desafio do enigma 41
V. O "pathos" do oculto 51
VI. Misticismo e dialérica 61
VII . A razao destrotiva 71
VIII. Agonismo e retórica 81
IX. Filosofia como literatura 91
7
1
A LOUCURA É A
FONTE DA SABEDORIA
As origens da filosofia grega - e, portento,
de todo o pensemento ocidental - sao misterio-
sas. Segundo a tradic áo erudita, a filosofia nasce
com Tales e Anaximandro; no século X IX. bus-
caram-se suas origens mais remotas em lendários
contatos com as culturas orientáis, com o pensa-
mento egípcio e o indiano. Por essa via nao Coi
possível comprovar coisa a1guma, 56 se consegui-
ram estabelecer analogias e paralelismos. Na ver-
dade, 0 _tempo das origens da filosofia grega está
muito mais próximo de 065. Platáo cherna "filo-
sofia" - o amor a sabedoria - a proprla busca,
a própria atividade educativa, ligada a urna ex-
pressño escrita, a fonna Iiterária do diálogo. E
Platáo olha reverente o paseado, uro mundo em
que existiram os verdadeiros "s ébios" . Por outro
lado , a filosofia posterior, a nossa filosofía, é
apenas urna contínuacáo, um desenvolvimento da
9
for ma literaria introduzida por Platáo : contudo ,
esta surge como fenómeno de decedsncia.uia me-
dida em que "o amor a sabedoria" está mais
abaixo da "sabedoria". O amor a sabedoria , para
Platño, nao sígniflcava de fato a espiracéo a algo
nunca atingido, mas sim urna tendencia a recupe-
rar aquilo quc já Jora realizado e vivido.
Portanto, nao há uro dcsenvolvimento con-
tinuo, homogéneo, da sabedoria a filosofia. O que
dá origem a esta última é urna reforma expre ssiva,
é a intervencáo dc uma nova forma literária, um
filtro através do qual condiciona-se o conheci-
mento de todo o precedente. A tradicño, em gran-
de parte oral, da sabedoria, já obscura e escaso
sa pela distancia dos ternpos, já evanescente e
tenue para o próprio Platáo, mostra-se, a noesos
olhos, francamente falsificada pela tnsercao da
literatura filosófica. Por outro lado, é muito in-
cena a extenséo temporal dessa época da sabedo-
ria: nela está compreendida a chamada idade pré-
socrática, ou seja, os séculas V e VI a.C¿ mas a
origem mais dista nte nos escapa . J! preciso recor-
rer a mais remota tradícáo da 'poesia e da relíglño
grega, mas a interp reracéo dos dados nao pode
deixar de ser filosófica. Deve-se configurar. mes-
rno que de modo hipotético. urna interp retacéo do
tipo daquela proposta por Nietzsche para expor a
origem da rragédía. Quando uro grande fenómeno
oferece urna documentacéo histórica suficiente
apenas em sua parte final, s6 resta a tentativa de
interpolar , no que se refere a sua totalídede, cero
10
tas imagens e conceitos , escolhidos e entendidos
como símbolos na tradicéo religiosa. Nietzsche
parte , como se sabe , das ímagens de dois deuses
gregos, Dionisia e Apolo, e. aprofundando esté-
tica e metafisicarnente os conceitos de dionisiaco
e apolíneo, esboce, cm primeiro lugar , urna dou-
trina sobre o surgimento e a decadencia da tragé-
día grega, depois, urna interpretacéo geral da
grecidade e até urna nova víséo de mundo. As-
siro, igual perspectiva parece abrir-se quando se
considera, em vez do nascirnento da tragédia, a
origem da sabedoria.
Sao ainda os mesmos deuses , Apolo e Dio-
nisia, que se encon tram no retroceder ao longo
das sendas da sabedoria grega. Mas, nessa esfera,
a caracterizacño de Nietzsche deve ser modifica-
da; alérn dísso, a prioridade deve ser concedida
a Apolo, e nao a Dionísio. De fato, se cabe atri-
buir a alguém o dominio sobre a sabedoria, é ao
deus de Delfos. Em Delfos se manifesta a vocacño
dos gregos para o conhecimento: sébio nao é o
rico ern experiencias, o que sobressai em habili-
dad e técnica, destreza, expedientes, tal coma ocor-
re na idade homérica. Odisseu nao é um sábio.
Sábio é quem lance a luz na obscuri dade, desfaz
os nós, manifesta o desconhecido, dete rmina o
incerto. Pata essa cívllízacáo arcaica, u conheci-
mento do fu turo do hornero e do mundo pertence
a sabedoria. Apolo simboliza essc olho penetran-
te, seu culto celebra a sabedoria. Mas o fato de
ser Delfos urna imagem unificadora, urna abrevia-
11
tura da prépria Grécia, indica algo maís, isto é,
que o conhecímenrc Ioi , para os gregos, o valor
méximc da vida. Outros pavos conheceram, exel-
taram a arte divinal6ria, mas nenhum povo a ele-
vou a símbolo decisivo, pelo qual , no mais alto
grau, a pot éncía exprime-se em conbecímento.
como acontecen entre os gregos. Ero todo o terri-
16rio helénico, exts tlram santuários destinados h
adivinha~o; esta se manteve como uro elemento
decisivo na vida pública, política dos gregos. E
sobretudo o aspecto teorético ligado a adivính a-
9ao é característico dos gregos. Adivinhar implica
conhecer o futuro e manifestar, comunicar tal
conhecimento. Issc acorre atreves da palavra do
deus. do oráculo. Na palavra , manifesta-se ao ho-
mem a sabedoria do deus, e a forma, a ordem,
o nexo em que se apresentam as palavras revela
que nao se tratam de palavras humanas, e sim de
palavras divinas. Daf o carét er exterior do orá-
culo: a ambigüída de, a obscurída de, as alusóes
de árdua decífracáo, a incerteza ,
O deus, portento, conhece o porvir, maniíes-
ta-o ao hornero, mas parece nao querer que este
o compreenda . Há um elemento de maldade , de
crueldade na imagem de Apelo, que se reflete na
comun ica~ao da sabedoria. E, de fato, diz Heré-
c1ito, um sábio: "O senhor, a quem pertence o
oráculo que está em Delfos, nao diz nem ocul ta,
mas ecena". Diante desses nexos, a signíñcacéc
que Nietzsche atribuí a Apelo mostra-se insufi-
ciente. Segundo Nietzsche, Apolo é o símbolo do
12
mundo como aparencia, na esteira do conceíto
schopenhaueriano de representacéo. Esta aparén-
cía é, ao mesmo tempo, bela e iJusória , e por isso
a obra de Apolo é essencialmente o mundo da
arte, entendido como líbertecéo, mesmo que ilu-
seria do tcrrí vel conhecimento dionisiaco, da in-
tuícéo da dor do mundo. Contra esta per spectiva
de Nietzsche, se considerada como cheve inter-
pretativa da Grecia , pode-se, antes de mais nada,
objetar que a cont raposlcác entre Apolo e Dioni-
sia como entre arte e conheclmento, nao corres-
pende a muitos e importantes testemunhos histó-
ricos referentes R esses daisdeuse s. Díssernos que
a esfera do conhecimento e da sabedoria liga-se
com muito mais naturalidade a Apelo do que a
Dionisia. Falar de Dionisia como o deus do ca-
nhecimento e da verdade , entend idos estri tamen-
te como inruícóes de urna angústia radical, signi-
fica pre ssupor na Grécia um Schopenhauer que
lá nao existiu. Dionisia aeeocla-se, antes, 110 ce-
nhecimento enquanto divindade eleusina: de fa-
to, a iniciacác aos mistérios de Eléusís culmin~va
numa "epopsia", numa visáo mística de beetiru-
de e puriñcacéo, que de certa forma pode ser
chamada de conhecímento. No entente, o éxtese
dos mist érios, na medida em que é alcencado
atrav és de um despojamento completo das ccndi-
rróes do individuo, na medida em que nele O su-
jeito cognoscente nao se distingue do objeto ca-
nhecído, deve ser considerado como o pressu-
pesto do conhecimcnto, e nao o próprio conheci-
13
mento. Pelo eontrário, o conhecimento e a sabe-
doria manif estam-se por meio da palavra, e é em
Delfos que é proferida a palavra divina , é Apelo ,
e certamente nao Dton ísio, que fala pela sacer-
dotisa.
Ao delinear o coneeito de apolíneo, Nietzsche
considerou o senhor das artes, o deus luminoso,
do esplendor solar, aspectos autenticas de Apelo .
mas parcíais e unilaterais . Outros aspectos do deus
ampliam seu significado e ligam-nc a esfera da
sabedoria. Antes de mais nada, uro elemento de
natureza terr ível, de ferocidade. A prápria etimo-
logia de Apolo, segundo os gregos, sugere o sen-
tido de "o destruidor total" . E sob essa figura
que o deus se apresenta no comecc da IlíaJa,
ande suas flechas levam a doenca e a fiarte ao
campo dos aqueus . Nao a fi arte imediata , direta,
mas a fiarte pela dcenca. Q atributo do deus.
o arco , arma asiática, alude a urna acéo indireta,
mediada , proteleda. Aquí toca-se o aspecto da
erueldade, ao qual se acenou a propósito da obs-
curidade do oráculo: a destruícáo. a violéncia
prorelada é típica de Apolo. E, com efeiro, entre
os epítetos de Apelo , encontramos o de " aquele
que golpcia a distancia", " aquele que age a dis-
tancia" , Por ora nño é clara a Iígacéo entre essas
características do deus - a<;:80 a distancia, des-
trutivídade, terri bilidade, cruelda de - e o con-
figurar-se da sabedoría grega. Mas a palavra de
Apolo é urna expressáo em que se manlfesta um
conhecimento: seguindo os modos como as pala-
14
vras da adívlnhacño na Grécia primitiva reúnem-
se em discursos, desenvolvem-se em dlscussóes,
elaboram-se no abstrato da razáo, será possível
entender esses aspectos da figura de Apolo como
símbolos iluminadores de todo o fenómeno da
sabedoria.
Outro elemento frágil na ínterpretecáo de
Nietzsche está em apresentar os impulsos apolí-
neo e dionisiaco como antitéticos. Os estudos mais
recentes sobre a religiáo grega ressaltaram urna
origem asiática e nórdica do culto de Apolo. Aqui
surge urna nova relacéo entre Apolo e a sabedo-
ria . Um fragmento de Aristóteles nos informa que
Pitágoras - justamente um sábio - foi deno-
minado pelos crotonía tas como Apolo hiperbóreo ,
Os hiperbóreos eram, para os gregos, um pavo
fabuloso do extremo norte. DaÍ parece provir o
caráter místico, extático, de Apolo, manifestando-
se no arrebatamento da pítia , nas pala vras deli-
rantes do oráculo délfico, Nas planicies nórdicas
e da Asia central atesta-se urna longa persistencia
do xamenismo, uma técnica particular de éxtase.
Os xemás atlngem urna exaltacño mística, uma
condlcéo extá tica, na qua l sao capazes de execu-
tar curas milagrosas, ver o futuro e profetizar .
Este é o pano de fundo do culto délfico de
Apolo. Urna passagem célebre e decisiva de Pla-
tao nos ilumina a esse respelto. Trata-se do dis-
curso sobre a "manis", sobre a loucura, que Só-
crates desenvolve no Fedro, Lago no início, con-
trapee-se a Ioucura a modere céo, ao eutocontrole,
15
e, numa inverséc pared oxal para n6s, modernos.
exalta-se a primeira como superior e divina. Diz
o texto : "os maiores denrre os bens chegam a
n6s por me:ioda Ioucura, que é concedida por uro
dom divino . .. de (ato, a profetisa de Delíos e a
sacerdotisa de Dodona , enquanto possuídas pela
loucura, proporcionaram a Grécía muitas e betas
ccísas, tanto para os individuos como para a
comun idade". Coloca-se em evidencia, portento,
desde o inicio, a ligacéc entre "mania" e Apelo.
Em seguida . distinguem-se quatro tipos de lou-
cura : a profética , a dos mlst érios. a poética e a
erótica, as duas últimas variantes das duas pri-
meiras. A loucura profética e a dos mistérios sao
inspiradas por Apolo ou por Dionisio (ainda que
este últ imo nao seja citado por Platéo). No
Fedro. em primeiro plan o está a "mania" profé-
tica, tan to que. para Platáo, a natureza divina e
decisiva da " manía" é atestada pelo fato de essa
manía constituir o fundamen to do culto délfico.
Platéo funda seu juízo numa etimologia : a "mán-
tica", isto é, a arte divinat6ria, deriva de " ma-
nia " e é sua expressáo mais autentica . Portante,
a perspectiva de: Nietzsche deve ser nao s6 amo
pliada, mas também modificada. Apolo nao é o
deus da medida , da harmonia , mas do arrebata-
mento, da loucura. Nietzsche considera a loucura
pertinente apenas a Dionfsio e, atém dísso, deli-
mita -a como embriaguez. Aqui, urna testemunha
com o peso de Platéc sugere-nos, pelo contrário,
que Apolo e Dionisia possuem uma afinidade
16
-
I
1
fund amental, justamente no terreno da "manía":
juntos, eles esgotam a esfera da Ioucura, e nao
faitam bases para formular a hipótese - atri-
buindo a palavra e o conhecimento a Apelo, e
a imediatez da vida a Dionisia - de que a lou-
cura poética é obra do prlmeiro, e a erótica. do
segundo.
Concluindo, se urna pesquisa sobre as ori-
gens da sabedoria na Grécia arcaica leva-nos em
direcáo ao oráculo délfico. ac significado como
plexo do deus Ape lo. a "m anía" mostra-se-nos
ainda mais primordial, pano de fundo do fenó-
meno da adivlnhecéo. A loucura é a matr iz. da
sabedoria .
17
II
A SENHORA DO
LABIRINTO
Existe algo que antecede a loucura: o mito
remete a urna origem mais remota. Aqu i o eme-
ranhado de símbolos é ínextrícével, e deve-se del-
xar de lado a pretensáo de descobri r urna deci-
fra~io univoca. A única abordagem do obscuro
problema é urna crít ica cronológica do mito, em
busca de uro fundo primordial. da raiz mais dis-
tante .desse pululan te manifestar-se de urna vida
nasceme dos deuses. Cinco séculcs antes que o
culto de Apelo fosse introduzido em Deifos, pouco
depois da rnetade do segundo milenio a .C., na-
quele lend ário mund o min óico-micénico alongado
em dir ecéo a Creta. deve-se procu rar, como recen-
temente se vem supondo coro urna insistencia
cada vez maiar, a origem do culto de Dionísio .
Pausánias (ala de uro Dionísio cretense, em cujo
recinto sagrado de Argos o pr6prio deus sepultou
Ariadne, 80 morrer .
19
Ariadne, portento, é mulher, mas tarnbém é
deusa, segund o um testemunho escrito realmente
primordial , "a senhora do Labiri nto" , Esta dupla
natureza, humana e divina , de Ariadne, esta sua
ambi güidade radical, atrai-nos para urna interpre-
tacéo simbó lica daquele que é, talvez, o mais ano
tigo mito grego, o mito cretense de Minos, Pesf-
fae, o Minotau ro, Dédalo, Teseu , Aria dne e Dio-
nísio. Ariadn e é a única figura feminina que o
mito grego em geral aprese nta ligada a Dion íslo
de modo explícito e díreto, como sua esposa, O
vínculo tem rafzes distan tes, e Hesíodo diz: " Dio-
nfsio dos cabelos de aura tomou como sua esposa
florescente a loura Ariadne, filha de Minos, que
o Crónida tomou imortal e sem velhíce", onde
també m se alude a duplicldade de Ariadn e, mu-
Iher e deusa . Dionísio está ligado a todas as mu-
Iheres, mas nunca a urna em particular, exceto
Ariadne. Em outro lugar, acena-se a relacño entre
Dlonísío e urna divindade feminina, mas apenas
de modo indireto e alusivo, para que nao trans-parece urna Itgacéo sexual. Assim, na tradicño
eleusina, Dionísio se apresenta ao lado de Kor é
(que nao é somente a filha de Demétria, mas
freqüentemente significa, nas fontes órficas, a
divindade femin ina virgem em geral , por exemplo
Palas Atena ou Artemis}, mas o víncu lo sexual
entre ambos deriva apenas de seu desdobramenlo
no mundo dos Inferos, ande Dionísío aparece
como Hades (assim declara Heráclito) e Kor é
como Perséfone . Had es desfruta Perséfone
20
atrav és do rapto, da violencia . No mito cretense,
ao contr ério, Dion isia é o esposo de Ariadne.
Mas, como se sabe, nao se trata de um matrimó-
nio pacífi co. Com efeito, diz Homero: "e viu a
filha de Minos insidioso, a bela Ariadne, que
urna vez Teseu conduziu de Creta a alta fortaleza
de Atenas protegida pelos deuses, mas nao a
desfrutou: Ar temis matou-a antes, baseada no
testemunho de Dionis ia , em Dia circundada pela
corrente marinha" . A passagem é decisiva pa ra
distinguir, de um lado, urna verséo mais recent e
do mito - dcsenvolvlda. por exemplo, por Catulo
- segundo a qua l Ariadne , aban donada por Teseu
em Naxos (Dia), é recolhida por Díorusío (ou,
em outra variante, é por ele raptada) , ou seja,
passa de urna vida humana a urna divina ; e, de
outro lado, urna verséo mais antiga - sustent ada
nao só por Homero e Hesíodo, como tamb érn pela
origem cretense do vínculo Dionísio-Arladne e
pela distante notícia sobre a poderosíssima natu-
reza divina desta última - , segundo a qual
Ariadne abandona Dionís io por amor a Teseu,
isto é, passa da vida divina a humana. Mas ao
fina l prevalece Dion ísío, sua acusa cáo rege o
castigo de Artemis: Ariadne marre como mulher
e nao é desfrutada por Teseu, vive como deusa.
Igualmen te ant igo é um outro elemento do
mito, o Labi rinto, cujo arquétipo pode ser egfp-
cio, mas cuja relevanci a simbólica na lenda cre-
tense é tipicamente grega . Aqu í, a todas as. inter-
pretacóes modernas preferimos urna referencia de
21
Ple téo, que no Eutidemo utiliza a expressño
" lancados dentro de um labirinto", a propósito
de urna inextricável complexidad e diel étice e ra-
cional. O Labirin to é obra de Déda lo, um ate-
nien se, personegem apolíneo para O qual conver-
gem, na esfera do mito. as capacidad es inventivas
do arteséc que é também artista (o pai da escul-
tur a, segundo a tradícáo), e da sabedoria técnica
que é também a prime ira fórmul a de um logos
ainda imerso no intuir na Imagem. Sua críacac
oscila entre o jogo artístico da beleza, estrenhc a
esfera do útil - lal é a referencia de Homero a
"um lugar para a denca semelhante ao que Dé-
dala, na ampla Cnossos , inventen e constru iu
para Ariadne dos belos cabelos" -, e o artificio
da mente, da razéo nascente, para resolver urna
sombría , mas concretissima, experiencia vita l.
Tal é a vaca de madeira que Dédalo construiu
para Pesííae, mulher de Minos. para que ela
pudesse satisfazer sua louca etrecso pelo touro
sagrado. Ou ainda o novelo de la, dado por D é-
dalo a Ariadne, com o qual Teseu póde sair do
Labirinto, após matar o Minotauro. Algo que 8 0
mesmo tempo manifesta jogo e violenci a é, aíinal,
a obra mais ilust re de Dédalo, o Lebirinto. O
frut o dos amores de Pasífae, o Mínotauro, foi lá
dentro encerrado por Minos. Que por trás da fi-
gura do Minota uro esconda-se Díonísío, é urna hi-
pótese já exposta : o Minotauro é representado
como uro homem com a cabeca de touro, e sabe-se
que Dionísio leve urna coníígurecjc taurina e
22
que nos cortejos dionisíacos o deus aparecía como
uro homem coro máscara de an imal , íreqüent e-
mente um touro.
O Labírinto, entáo. apresenta-se como criacéo
humana , do artista e do inventor, do homem do
conhecimento, do indiv íduo apolíneo, mas a ser-
vi~ de Dloníslo, do ani mal-deus , Minos é o
braco secular desee divindade bestial. A form a
geométrica do Labirínto, coro sua insondável como
plexidade, inventada por urn jogo bizarro e pero
verso do intelecto, alude a urna perdícñ o, a um
perigo mortal que insidia o homem, quando este
se arrisca a enfrenta r o deus-animal. Dionisia faz
com que o hornern construa urna armadilha, na
qual ele morreré justamente quando tern a ilusáo
de atacar a deus. Mais adiente, teremos ocasiño
de fajar do enigma, o equiva lente na esfera apo-
Ilnea do que é o Labirinto na esfera dionisiaca :
o conflita homem-deus, que na visibilidade é re-
presentado simbolicamente pelo Lebír into, na sua
transposi¡;:ao interi or e abstrata encontra seu sím-
bolo no enigma. Mas como arquétipo, como fenó-
meno primord ial , o Labirinto s6 pode prefigurar
o " legos", a rezéo. O que mals, além do " lagos".
é produto do homem , no qual ele se perde, vai a
ruína? O deus mandou constru ir o Labirinto para
dobrar a homem , para reconduzi-lo a animalida-
de; Teseu, porém, usará o Labirintc e o domínio
sobre o Labiri nto que Ihe oferece a mulher-deusa
para derrotar o animal-deus. Tuda isso pode ser
expresso nos termos de Schopenhauer : a rezéo
2)
está a servíeo da anlmalídade, da vontade de vi-
ver; mas pela razño alcance-se o conhecirnento
da dor e do meio de derrotar a dor, isto é, a ne-
ga~ao da vontade de viver.
Vários elementos da tradicáo associam Teseu
e Dédalo ao culto de Apelo, Iazem-ncs devotos do
deus délfico. Nao se pode deixar de notar que
urna relacáo coro Apolo - ainda que o deus
nunca seja nomeadc no mito - apresenta-se
justamente nos dois personagens comrapostos a
Dionísio, o deus remoto e silenciado a que se
referem os seus ministros. Minos e o Minotauro.
Se antes tentamos atenuar a polaridade entre
Apolo e Dionisia através do elemento, comum a
ambos. da "rnania", e na esfera da pelavra e do
conhecimento o segundo foi subordinado ao pri-
meiro, aqui, no mito cretense, pelo contrário,
reseurge urna aguda oposlcáo entre os dois deu-
ses. mas num sentido muito diferente do que
entendía Nietzsche. Aqui, Apolo aparece domi-
nado por Dionisia. na medida cm que a atmos-
fera da divindade em que está imerso o mito nao
é a do conhecimento, mas a da crua anirnalidade.
Encontramos um Dionisia sem brandura , sem
arnizade pelo homem, isto é, desprovido de urna
das características essenciais do Dionisia poste-
rior, deus que liberta e redime. O redentor, ao
contrarie. é Teseu, que em si nao tem nada de
dionisiaco, que concede ao hornero urna vida he-
réica, reivindicando o individuo contra a neture-
za, a cornpeticáo contra o instinto cego, a excelén-
24
cia da vitória contra a raivose, indiferenciada di-
vindade animal. Por trás dele está Apelo, cujo
arco, paradoxalmente, desta vez é benigno para
os hornens. E. de fato, Teseu, ao voltar para
Atenas, depois de ter perdido, ou abandonado.
Ariadne cm Naxos, desembarca em Delos - ilba
consagrada a Apolo -, sacrifica ao deus e cele-
bra a vit6ria sobre O Minotauro com urna dance
apolínea, de figuras tortuosas a maneira do Labi-
dn to, chamada "a grua" pelos habitantes de Delos,
que a praticavam ainda nos tempos de Plutarco.
Mas, se foi Teseu quem triunfou sobre o
Mínotauro. nao deveríamos dizer que o mito cre-
tense alude a um predominio de Apolo sobre
Dionisia? Essa aparencia é contrariada pelo sigo
niñeado profundo da personagem de Ariadne.
Unida a Dionisia como deusa labiríntica e obscu-
ramente primitiva, Ariadne reaparece no mito
como mulher, filha de Pasítae e irm á de Fedra
_ lago, expressáo da vtoléncia elementar e do
instinto animal. E também do caráter fragment é-
do e inconstante da vida imediate. visto que
Ariadne abandona o deus pelo hornem. O sim-
bolo que salva o homem é o fio do " logos", da
necessidade racional: justamente a descontinua
Ariadne renega a divindade animal que traz em
si mesma, fomecendo ao hecói a continuidade,
entregando-se ela mesma a continuidade, para
fazer triunfar o individuo permanente, para re-
dimir o hornero da ceguelre do deus-animal. O
triunfo do hornero é breve. porque os deuses
25
irnediatarnentedestroern qualquer preten séc de
continuidade do homem, tanto no mito rnais re-
cente, a trav és da paradoxal, evessa e rap idíssima
sociedade de Teseu com Ariadne, abandonada em
Nexos, quanto no mito primordial, pela interven-
9áo súbita e trágica de Artemis, que mata a muo
lher Ariadne e restitui a Dionisia - desfeita a
ilusao humana - a esposa imortal e sem velhice.
O deus-animal se mantém vencedor.
Assim como, veremos, Apolo etre¡ o homem
para a envolvente rede do enigma, Dionisia o
enreda - num [ogc inebriante - nos meandros
do Labirinto, emblema do "legos". Ero ambos
os casos, o jogo se transforma cm trágico desafio,
em perigo mortal do qual se: podem salvar, mas
sem arrogáncíe. apenas o s ébic e o herói.
Pessem-se alguns séculcs, desde o Cundo te-
nebroso do mito cretense, e abrenda-se a figura
de Dion ísic, estendendo-se mais benignamente em
direcác 1 esfera humana. A natureza do deus
continua cruel, mas, em vez de se manifestar
numa ferocidade imediata, ávida de sangue e de
posse animal, encontra também um semblante
que é apenas humano. no sentimento e na efuséc
mística, na música e na poesia. Esse abranda-
mento de Dionisia adota no mito o nome de
Orfeu. Mas, por tr és dessa mantrestacao musical
de Dionisia , está um acontecimento interior. ar-
rebatador , a alucinacño libertadora dos mistérios,
a grande conquista mística do homem grego aro
26
caico. Diz Píndaro dos mistérios eleusinos: " feliz
é o hornem que, tendo visto aquiJo , entra sob a
terra: conhece o fim da vida e conhece o princi-
pio dado por Zeus". Ouem revela "aquilo" -
o indizfvel objeto que nos misterios o homem
encontr é dentro de si - é Dionisia . Orfeu é
seu cantor. Os mais antigos documentos órficos,
papiros e tabuinhas funerárias dos séculos IV e
III a.C., sáo urna traducáo poética, acídental ,
nác-Iiteréria , do evento dos mistérios, cujo pro-
duzlr-se interior permaneceu oculto, subtrafdo a
qualquer tradi9ao. mas cujo quadro ceníco. com
os objetos rituais e os atas que o acompanhavam,
podia ser restituido pelas palavras delirantes de
uma poesle simbólica. Assombra a forma dramá-
tica assumida por alguns desses documentos órf i-
cos, quase como se, desde o principio, pertencesse
ao ritual dos mistérios, ou pelo menos o acampa-
nhasse urna a98.0 entre os persoaagens, urna re-
presentecéo sacra. Nas tabuinhas funerárias, en-
contramos um diálogo ent re o iniciado e o ini-
ciador aos mist érios: na prcgressáo desse diálogo,
projeta-se o reílexo da conquista da visáo supre-
ma. E talvez esse aspecto teatral, dram ático, dos
mistérios nos ofereca um outro caminho para
explorar a origem da tragédia grega. Coro tal hi-
pótese concorde , aliás muito bem, a noticia de
um processo contra Esquilo, por ter profanado
os mistérios eleusinos: como, a nao ser por meio
de suas tragédias , ter-lhe-ia sido possivel esta
irnpia dlvulgacéo?
27
Mediante a natureza dos símbolos que apa·
recem nesses documentos órficos, os atributos de
Dionisia , as imagens e os objetos que acompe-
nham o evento da ínícíacso. conseguimos chegar
a urna v isño mais benigna , redentora, de Dioní-
sio. Aquí. a alusáo é metafísica, paradcxalmente
referida sem nenhum instrumento abstrato. Dio-
nisia chama a si os hornens inutilizando o mundo
deles. esvaziando-c de qualquer consistencia cor-
pórea , de qualq uer peso, rigor, continuidade, re-
tirando qualquer realidade a indiv iduacéo e aos
flns dos individuos. E. nesses fragmentos órf icos,
Dionlsio é uro menino. Seus atributos sao brin-
quedos: a bola e o pláo . Urn elemento lúdico
rambém integra o modo como Apolo se manl-
resta aos hornens, nas cxpressóes da arte e da
sabedorla, mas o jogo apolíneo diz respeitc ac
intelecto. a palavra. ao signo; jé em Dionisia u
jcgo é imedia tez, espomaneidade animal que goza
de si mesma, e se cumpre na visibilidade, no m é-
ximc é conflenca no acaso, como sugere o outro
atr ibuto 6rfico dos dad os. Por fim, o símbolo
mals dificil e profundo. citado num papiro 6rfico
e reapre sentado. multes séculas depois , pelas fon-
tes neopla tónicas: o espelho. Estas. quando depu-
radas de suas perspectivas doutrinais, ajudam-nos
a decifrar o simbolo. Olhando-se no espelho, Dio-
nfslo, em vez de si mesmo. nele ve refletldo o
mundo. Portante, esse mundo. os homens e as
cclses dcsse mundo, nao tem urna realidade em
si. sao apenas urna visáo do deus. S6 Dionisio
28
existe. Dele tuda se anula: para víver, o hornero
deve volta r a ele. submergi r no divino passado.
E, de fato. nas labuinhas 6rficas díz-se do ini-
ciado que anseia pelo éxtase dos mistérios : "es·
tou ressequidc de sede e morro: mas déem-me
lago a fria égua que jorra do pantano de Mne-
mosine". Esta . a mcm6ria. sacia a sede do hornero.
dá-lhe a vida . liberte-e da sede ardente da mcrte.
Com a ajuda da mem ória, " serás um deus ao
invés de uro mortal". Memórla. vida. deus sao
as conquistas dos mistérios, contra o esqueci-
mento, a mcrte, o hornero, que pertencem a esse
mund o. Recuperando o abis mo do paseado, o
hornero se identifica corn Dionisia .
Mas Orfeu é também um devoto de Apelo.
e ao deus da lira remonta tuda o que na poesla
6rfica é teogonía. cosmogonía, imaginoso tecído
de mitos divin as . A tradíc áo mais antiga e mais
difundida sobre a mene de Orfeu narra-nos que
o cantor. após seu regresso do Hades. amargura-
do pela perda de Eurfdice, renegou o culto de
Dionisia . o deus que até en táo venerara. e diri-
giu-se a Apelo. O deus ofendido pun iu-o e fez
com que fosse dilacerado pelas Ménades. Assim
ressurge emblem áticamen te a polaridade en tre
Apelo e Dionisia : o dile ceremento de Orfeu alu-
de a essa duplicidade interior. a alma do poeta.
do s éblo, possuída e rasgada pelos dais deuses.
E. como no mito crete nse. aqui Dionisio também
prevalece sobre Apelo : a benignídade musical de
Dionisia cede a sua cruetdade de fundo. O desen-
29
L- - - - - ---"'-~
•
rolar do mito recebe um selo imperioso de Dioni-
sia , e em ambos os casos o fim é trágico, para a
mulhe r e para o cantor . Dionisia , por ém, como
dizem Hesíodo e Pinda ro, "d é muita alegria" ,
ele é , segundo Homero. " urna Ionte de exulracéo
para os mortais".
30
-
1II
O DEUS DA
ADlVINHA9AO
Se a pesqu isa sobre as origens da sabedoria
conduz a Apelo e se a manifestacáo do deus,
nessa esfera, da-se atrav és da "manis" , ent áo a
loucura deverá ser considerada intrínseca a sabe-
doria grega, desde seu prime iro surgimento no
fen ómeno da edlvinhecéo. E, de fato, é justa-
mente um sébio, Heráclito, quem enuncia tal vín-
culo: " a Sibila com boca ensan decida diz, atrav és
do deus, coisas sem sorriso, nem ornamento, nem
ungüento". Aqui se acentua o afastamento em
relacáo a perspectiva de Nietzsche: nao s ó a exal-
taeác , a embriaguez sao signos de Apolo, ainda
antes que de Dionisio, como tamb ém, al ém dís so,
as características da expresséo apolínea , "sem
somso, nem ornamento, nem ungüento", parecem
até anti téticas as postuladas por Nietzsche. Para
ele, a visác apolínea do mundo funda-se no sonho,
numa imagem ilus6ria , no véu multicolorido da
31
arte que esconde o horrendo abismo da vida. No
Apolo de Nietzsche há uro matiz decorativo, isto
é , alegria, ornamento, perfume, justamente a antÍ-
tese do que Heráclito atri buí a expresséo do deus.
E verdade, contudo, que Apelo i também
o deus da arte . O que escapcu a Nietzsche é a
dupticidade da natureza de Apelo, sugerida pelas
característ icas, já lembradas, de violencia prote-
lada, de deus que golpeia a distancia . Assim,
como o mito de Dion íslo dilacerado pelos Titas
é urna referencia a separacáo de natureza, a
heterogeneidade metafísica entre o mundo da
multip licidade e da índíviduacño - que é o
mundo do dilacerame nto e da insuficiencia - e
o mundo da unidade divina, também a duplici-
dade intrín seca A naturez a de Apelo atesta para-
lelamente, e numa representacéo mais abrangente,urna ruptura metafísica entre o mundo dos ho-
mens e o dos deuses. A palavra é o rneio: ela
vem da exaltacño e da loucura. é o ponto em
que a esfera divina, misteriosa e separada, entra
cm cornunicacáo com a humana , manifesta-se na
audibilidade, numa condicáo sensivel. De lá, a
palavra é projetada para este nosso mundo ilusó-
rio, trazendo a essa esfera heterogénea a mult í-
plice aIYao de Apelo, por uro lado como palavra
orecular , coro a carga de hostilidade de urna du ra
predicé o, de um conhec imento do áspero futuro .
e, pa r cutre lado. como man lfestec éc e tran sfi-
gura~o jucunda, que se impóe As imagens ter-
restres e entretece-as na magia da arte. Essa
32
projecao da palavra de Apalo em nosso mundo
é representada pelo mito grego com dais símbo-
los, com dais atribu tos do deus: o arco. que
designa sua aIYaO hostil. e a lira, designando sua
aIYao benigna.
A sabedoria grega é urna exegese da aIYao
hostil de Apelo. E a ruptura metafísica que está
na base do mito grego é comentada pelos sábios:
nosso mundo é a aparencia de um mundo oculto,
do mundo ande vívem os deuses. Herácli to nao
menciona Apelo , mas serve-se de seos atributos ,
o arco e a lira . para interp retar a natureza das
coisas. " Do arco o nome é a vida, a obra. a
mcrte". Em grego, o nome ..arco" tem o mesmo
som do nome "v ida ". Por lsso o símbolo de Apolo
é o símbolo da vida. A vida é interpretada como
vícléncla, como instrumento dcstru tívo: o arco
de Apelo produz a rnor te. E, num outro fragmen-
to, Heráclito associa a ecáo hostil do deus a sua
aIYáo benigna : "harmonía cont rastante como do
arco e da lira " . E difícil escapar a supo sicáo de
que Heráclito, ao citar esses dais atributos, pre-
tendeu referir-se a Ape lo. Tanto mais que o con-
ceitc de harmonia, evocado por Heráclito, reme-
te-se A intuieáo unificadora , quase um hier6glifo
comum, que está na base desse antitético mani-
festar-se de Apelo, isto é, da configuracáo mate-
rial do arco e da lira : na época em que surge o
mito . tais instrumentos eram fabricados segundo
urna linha curva semelhante e a partir do mesmc
material, os chifres de um bode , ligados em incli-
33
necscs diferentes. Port ante , as obras do deus do
arco e da lira, a rnort e e a belesa, provém de um
mesmo deus. exprlmem urna idéntica natureza
divina, simbolizada por um idéntico hieróglifo ,
e somente na perspecti va deformada, ilusória, de
nosso mundo da aparencia aprcscntam-se cer ne
fragmentacóes contraditórias.
A confirmar a perspectiva esboceda anterior-
men te, relativa seja a origem da sabedoria a
part ir da exauecso apolínea, seja a liga.,ao ent re
Ioucura divinatória e palavra oracular, isto é , a
uro vinculo que pressupóe e exprime urna funda-
mental he terogeneidede metafísica, citamos agora
urna passagem do Timeu de Pletéo: " Há aí um
sinal suficiente de que o deu s deu a adivinhacáo
A insensatez humana: de fato , ninguém que seja
dono de seus pensamentos alcance urna adiv inha-
~ao inspirada pelo deus e veríd ica. É preciso, ao
contrario. que a force de sua inteligencia seja
impedida pelo sono ou pela doenca, ou que ele
a desvíe, ao ser possuído por urn deus. Mas cabe
eo hornem sensato lembrar as coisas ditas no
sonhc ou na vigflia pela natureza divinatória e
ent usiástica , refletir sobre eles, discerni r com o
raciocinio toda s as visóes ent éc contempladas,
ver ande essas coleas recebem um significado e
a quem indicam um mal ou um bem, futuro ou
passado ou presente . A quem é possuido e, pelo
contrário , persiste nesse estado nao cabe julgar
as eparícóes e as palavras por ele mesmo dita s.
Esta sim é urna boa e velha máxima: s6 a quem
34
é sensato convém Iazer e conhecer o que Ihe diz
respeíto e conhecer a si mesmo. Daqui deriva a
lei de erigir a estirpe dos profetas a intérpretes
das adívínhacées inspiradas pelo deus. A esses
profetas, alguns chamam de adívínhos, ignorando
tota lmente que eles sao intérpretes das palavras
pron uncia das mediant e en igmas e daquelas ima-
gens, mas de forma alguma adivinhos. A coisa
mais car reta é chamá-los de profetas , isto é, intér-
pre tes do que foi ad ívinhado". Platác estabe1ece,
portento, urna distincéo essencial entre o homem
mámlco. possufdo, delirante , chamado de "adívi-
nho", e o " profeta", ou seja, o intérprete que
julga , reflete, raciocina , deslinda os enigmas, dá
um sentido as visOcs dos adivinhos. A passagem
nao serve apena s como confirmacáo, mas enri-
quece a perspectiva trecada. na medida em que
define melhor a a~ao host il de Apelo , que surge
de certa fonna ligada 80 impulso Interpre tativo
e, portento, a esfera da abstracáo e da razáo. O
arco e as flechas do dcus díri gem-se contra o
mundo huma no através do tecidc das palavras e
dos pensamentos. O sinal da passegem da esfera
divina A humana é a obscuridade do vaticinio,
isto é, o ponto cm que a palavra, manifestando-
se como enigmática, trai sua proven léncia de um
mundo desconhecido. Essa ambigüidade é urna
alusáo a ruptura metafísica, manifesta a hetero-
geneidade entre a sabedoria divina e sua expres-
sao em palavras.
Mas a sabcdoria humana precisa percorrer,
em todas as suas lmpllcecóes, a via da pelavra,
do discurso, do "lagos". Sigamos uma vez mais
a pista que nos é oferecida por um antigo sébio
grego, desta vez Empédoc1es. "Em seus membros
nao é provido de uma cebeca semclhante a do
homem, nem de seu tronco se despegam dais
ramos, nao tem pés ncm velozes joclhos nem
piloso sexo, mas semente um coracño sagrado e
indizível entéo se moveu, que com velozes pen-
samentos desfrec hando Ianca-se pelo mundo to-
do". As fontes nos dizem que, coro essas palavras,
Empédocles designa Apolo , aind a que o deus nao
seja por ele nomeado, como tampouco é nomeado
por Heráclito. Este fragmento apóia algumas su-
gest6es interp retat ivas apresentadas anteriormen-
te. Apolo é interioridade inexprimível e oculta,
"coracéo sagrado e índíz ível", isto é, a divindade
em sua separacño metafísica, e ao mcsmo tempo
é atividade dominadora e terrível no mundo hu-
mano, como atesta o final do fragmento. Além
do mais, Empédoc1es identifica explícitamente as
flechas de Apolo com os pensamentos e portan to
corrobora O comentário anteri or da passagem do
Tímeu platónico, que apontava no impulso da
razáo um aspecto fundam ental da ecso apolínea.
Voltemos ao fenómeno da ad ívinhacáo e
sua importancia central no ámbito da cívilízac ño
grega. Podemos extrair deste fato urna ulterior
ilumlnacño a rcspeito de um ju ízo global sobre
36
a vida por parte da antige sabedoria grega? Se
comparamos essa importancia da edlvinhacáo com
a furiosa paixáo política dos gregos, que se traduz
numa ininterrupt a série de lutas sangrentas, surge
em nós urna inevitável perplexidade. Em quem
está convencido de que o porvir é previsível , nor-
malmente o impulso a ecsc se esmorece: na
Gré cia. pelo cont r érío, descobrimos, paradoxal-
mente, que coexístem urna fé total na adivinha-
yao e urna cegueíra completa, na esfera polí tica,
cm relacño as conseqüéncias da acño, ou mesmo
uro furor desenfreado ao se enf rentarem empreen-
dimentos desesperados, contra as pre dicóes do
deus. E no entanto nossa perplexida de pode ser
superada se considerarmos que essa grandiosa
importancia do fenómeno da adivinhacác nao vem
necessariamente acompanhada de urna visác geral
do domin io único e absoluto da necessidade no
mundo. O conceito de destino, poderosíssimo para
os gregos, retirou-lhes tao pouco ° gasto pela
acáo, que uro insensato impulso de autodestru i-
yaO tom ou a história grega curtíssima, se compa-
rada as imensas forcas latentes nesse pavo.
Na verdade, a adlvinhacño do futuro nao
implica ° domínio exclusivo da necessidade. Se
algu ém an teve o q~e vai acontecer dali a um
minuto, ou dal¡ a mil anos, isso nao tem nada a
ver com a concetenacño dos fatos, ou dos obje-
tos , que produzirá esse futuro . A necessidade
indicauro certo modo de pensar essa concatena-
37
l
~o, mas previsibilidade nao significa necessidade.
Um futuro é previs ível nao porque exista um nexo
conrfnuo de fatos entre o presente e o porvir e
porque alguém, de algum modo misterioso, seja
capaz de ver antecipadamente esse nexo de neces-
sidade: é previsível porque é o reñexo, a expres-
sao, a manifestecác de urna realidade divina, que
desde sempre, ou melhor, fora de qualquer tempo,
traz em si o germe daquele acontecimento, para
nós, futuro. Portanto, esse accnteclmentc futuro
pode nao ser produzido por urna concatenaeáo
necessária, e ainda assirn ser igualmente previsí-
vel; pode resultar do acaso e da necessidade mes-
ciados e entretecidos, como parecem pensar alguns
sábios gregos - Heráclito, por exemplo. Essa
mesela condiz com a natureza de Apele e sua
duplicidade. A esfera da loucura, que pertence a
ele, nao é a esfera da necessidade, mas sim a do
arbit rio. Urna índícacáo semelhante provém da
arnbigüidade de seu manifestar-se: o alternar-se
entre urna B~O hostil e urna B¡;aO benigna sugere
mais o jogo do que a necessidade. E até sua pa·
lavra, o vaticínio oracular, eleva-se da obscuri-
dade da terre , manifesta-se na possessáo da Sibi-
la, em seu desconexo delirar , mas o que sai dessa
magmática interioridade, dessa indizível posses-
sao? Nao palavras distintas, nao alusOes descomo
postas, mas preceitos como "nada em excesso"
ou "conhece-te a ti mesmo". O deus acena ao
hornero que a esfera divina é ilimitada, insondá-
38
-
vel, caprichosa, louca, privada de necessidade,
arrogante, mas sua manífestacño na esfera hume-
na soa como urna imperiosa norma de modera-
cao, de controle, de limite, de sensatez, de neces-
sidade.
39
IV
O DESAFIO DO ENIGMA
Atrav és do oráculo. Apolo impóe ao hornero
a moderacéo, enquanto ele prépric é Imoderado :
excrte-o 80 controle de si. enqua nto ele se mani-
(esta através de uro "pathos" incontrolado -
coro isso o deus desafía o hornero. provoca-o.
quase o instiga a desobedece-lo. Tal ambigiiidade
se imprime na palavra do oráculo, faz dela uro
enigma. A assustedora obsc uridade do vaticínio
alude a discrepáncia en tre o mundo humano e o
divino. Os Upanishades indianos já diziam:
"porque os deuses amam o enigma. a eles repugna
o que é manifestó". Já se acenou 8 0 caráter de
terri bilidade e de crueldade que a tradicño reli-
giosa grega atribui a Apelo, a sua ayao hostil em
re la~o 80 mundo hum ano; o aspecto en igmático
da palavra de Apolo faz parte desse quadro. Para
os gregos, a form ulacéo de um enigma traz em
si urna tremenda carga de hostilidade. Urna pas-
41
sagem do Prometeu de Esquilo comprova-o in-
diretamente: "dlr-te-e¡ claramente tudc o que
qul seres saber. nao tecendo enigmas . mas com
discurso sincero, como é cerio dirigir a palavra
aos amigos".
Por cut re lado, o enigma tem urna grande
relevancia na civilízaeéo arcaica da Grécia e,
prin cipalmente em relacáo as origens da sabedo-
ria , tem urna importáncia autónoma que Ioge a
esfera estri tamente apolínea. O cio entre adiví-
nha cáo e enigma é, certamente, originário, como
parece sugeri r a parle final da passagem já meno
cionada do Timeu e como se confirma no Ban-
quete platón ico: " AqueJes que transcorrem a vida
inteira juntos . . . nao saberiam sequer o que que.
rem obter uro do c erro . Ninguém poderá acredi-
tar tratar-se do contare dos prazeres amorosos. . .
a alma de ambos quer algo mais que nao é capaz
de exprimir; daquilo que quer ... ela tem urna
edlvinhacáo, e fala por enigmas". Mas desde épo-
cas antiqü íssimas o enigma tende a se dissociar
da adívlnhaego. O exemplo mais célebre é fome.
cido pelo tenebroso milo tebano da Esfinge. Aqui
lambém o enigma surge da crueldade de um deus,
de sua malevolencia em relacéo .aos homens. A
Iradiyáo é incerta, se foi Hera ou Apelo que
mandou para Tebas a Esfinge, monstro híbrido
que simboliza o en tretecer-se, na vida humana,
de urna feroz anima lidade. A Esfinge impóe aos
teban os o desafio morta l do deus, formula o
enigma sobre as tres Idades do homem. Semente
42
quem soluciona o en igma pode salvar a si mes-
mo e a cidade: o conhecimenro é a instancia úl-
tima . em relacáo a qual trave-se a luta suprema
do homem. A arma decisiva é a sabedoria . E a
luta é mortal : quem nao soluciona o enigma é
devorado ou estrangu lado pela Esfinge; quem o
soluciona - apenas a Edipo cabe a vit éria -
leva a Esfinge a se precipitar no abismo. O rnais
amigo tcstemunho sobre esse mito. que ao mes-
mo lempo é a passagem mais antiga em que apa·
rece a palavra "enigma" , é um fragmento de
Píndaro: "o enigma que ressoa dos maxilares
ferozes da virgem". A cc nexéo entre crueldade
e enigma aqu i é sugerida imediatamente pelo
texto e nao precisa ser deduzida , como na paso
sagem lembrada do Promeleu.
Ainda na idade arcaica. o enigma apresenta-
se ulteriormente separado da esfera divina de
ond e prov ém. tende a se tomar objeto de urna
luta huma na pela sabedoria. A Ionte mais ant iga
a respeltc remonta ao século VII I, VII a.C.:
reencontramo-la na obra do geógrafo Estrabáo.
o qual. depois de falar de Efeso e Cóloíon. relata.
a propósito do santu ério de Claro , urna disputa
lendária entre sábios. "Narra-se que Celcante,
o adiv inho filho de Anfi arau (junto com Anfílo-
ca ), aquí chega a pé em seu regresso de Tr6ia,
e, tendo encont rado perlo de Claro um adivinho
supe rior a ele. Mopso. filho de Manto (fiIha de
Tlrésias). morreu de da r. Hesíodo elabora o mito
da seguinte forma, fazendo com que Calcan te
43
proponha a Mopso a seguinte qu est éo: 'Estou
estupefato em meu corecño pelo grande número
de frutos que traz aque ja figueira selvagem, mes-
mo senda tao pequena; sabe me dizer o número
dos figos?' . E Mopso respondeu : 'Sao dez mil em
número, a medida deles é um medimno, mas uro
desses figos está a mais e nao cabe na medida'.
Assim disse, e o núm ero da medida foi reconhe-
cido como verdedeirc, e entáo uro sano de morte
cobriu Calcante ". A seguir, Estrabño relata outras
versees do episédic, entre as quais a de Ferecides,
urn sábio do século VI, com urna Iormulacéo
diferente do enigma, e menciona o testemunho de
Sófocles, num a tragédia perdida, segundo o qual
um oráculo previra a Calcante que ele estava
destina do a morrer qua ndo encontrasse um adi-
vinho superior a ele.
O fato de serem dois adivinhos a beter-se
pela sabedoria evoca a matriz religiosa do enig-
ma, mesmo nessa sua fase humana. Um outro ele-
mento sugere essa perspectiva, a saber, o contraste
entre a banalidade, na forma e no conte üdo,
desses enigmas e a tragicidade de seu desfecho.
Analogamente, nota-se urn contraste frente eo
enigma da Esfinge, pela transpare ncia de sua so-
l u~áo . Esses elemen tos contrastantes da tradicáo
colocam em evidencia a Intervencéo do arbitrio
divino, a Inveséo , na esfera humana, de algo
pertu rbad or , Inexplicével, irracional, tragicamente
absurdo.
44
-
A seriedade e a importancia do enigma nessa
época arcaica poderi am ser sustentadas por ampla
dccumentacáo: num tempo um pouco mais recen-
te, nos séculas VII e VI a.C.• amplia-se a Iormu-
lalY30 ccntradítóría do enigma. e i S50 coincide
com a completa hum an izacác dessa esfera . Assim
encontram-se Iormulacóes de enigmas desde os
poemas homéricos e de Hesíodo, e posteriormente
na época dos Sete Sábios - ande a fama de
Cleóbulo. e principalmente de sua filha Cleobu-
linc, deve-se justamente a colctñneas de enigmas
_ e na pocsla lírica , de Teognides e Sim ónides.
Mais tarde, nas séculos V e IV, tuda isso
vai se atenuando gradetívamente . Depoi s de Herá-
clito, em cujo pensamento o enigma é central, os
sabios dírigem-se mais ao que resulta do enigma
do que ao próprio enigm a em si, A ele, em contra-
partida . entend ido como pano de fundo religlc-
so, a tragédia e a comédia rcferem-se com [re-
q üéncia . Ainda em Platáo. encont ram-sevestígios
claros, quase ressonáncies arcaicas, que nos pero
mitem urna reconstrucáo mais ampla do Ienómc-
no. Segundo urna passagem do Carmide, o enigma
surge quando "o obje to do pensamento certa-
mente nao é expresso pelo soro das pala vras".
Pressupóe-se. pois, urna condlcéo mística, em que
determinada experiencia mostra-se inexprimívcl:
neste caso, o enigma é a manifestacéo, na pala-
vra. daquil o que é divino, oculto, urna interiori-
dad e indizivel. A palavra é heterogénea em rela-
r;ao áqutlc que é entendido por quem fala, lago.
45
é necessariame nte obscura. Urna outra passagem
do Pédon associa o en igma a esfera mística e
misteriosa: "É possfvel que aqu eles que institu í-
raro para n6s OS mistérios nao lenham sido ho-
rnens mediocres, mas que na verdade se expres-
saram por multe lempo através de enigmas. indi-
cando que quem nao scja iniciado nos mistérios
e nao renha parti cipado deles, quando chegar ac
Hades, jazerá no lodo. enquanto aquele que se
puriflcou e foi iniciado nos mistérios, lá chcgen-
do. víve ré com os deuses. De fato. como dízem
aqueles que estebelcceram os míst éríos, 'os que
trazem o tirso sao mul tes, mas poucos os poss u í-
dos por Dionisio' . . . ". Essa últ ima citacso, de
sabor órfico , parece da mesma Icrrnulacáo de
um enigma. Nessas passagens de Plat áo . é not é-
vel a ep roxlmacáo do enigma a esfera de Dion í-
sio, mais do que a de Apolo; em todo caso, é
preciso lembrar a propósito a sugestéo feíta ante-
riormenre, isto é , considerar Apolo e Dionisia
como da is deuses fundamentalmente afins , ao
ínvés de nclcs ver urna contreposicáo de dais ins-
tintos estéticos e metafísicos, segundo a interpre-
tacáo de Nietzsche.
Numa cutre passagem, Platáo menciona o
aspecto maligno e trágico do enigma. quando, na
Apologia de Sócrates. compara a um enigma a
acusacáo de Melero a Sócrates : " Meleto tem o
ar de alguém que quis pór-me a prava , como que
propond o um enigma: 'Perceberá Sócra tes, o
s ébío, que eu escarnece dele e que contradigo
46
-
a mim mesmo? Ou conseguirei enge n é-lc, a ele
e aos outros que ouvem?'. De fato, ele me pa-
rece contradizer a si mesmo na acusa céo , como
se dissesse: 'Sócrates é culpado de nao acreditar
nos deuses, mas de acreditar nos deuses'. E istc
significa brincar" . Nessa última formulacéo enig-
mática, na qual SÓCrates traduz a acusacáo de
Melero, é inte ressante notar a forma cont radiré-
n a. característica , como se disse, da fase madura ,
humana do enigma. A contradicáo sugere enga-
nosamente um conte údo, a solucéo do enigma,
lsto é, a culpa de Sócrates. Melero conscgue en-
ganar, porque os juízes assim interpretario o
enigma e cc ndenaréo Sócrates, ao invés de des-
cobrir que a contradicáo era apenas urna contra-
di~áo, vazia de conteüdo, que era apenas Meleto
contradizendo a si mesmo. Ouem cai na armadi-
lha do enigma está fadado adestru lcéo. Como um
enigma, cnfim , talvez devam ser interpretadas as
últimas palavras que Sócrates pronuncia antes de
morrer, no Fédon platónico: " Devemos um galo
a Asclépio : paguem a divida , náo deixem de faze~
lo" . Multe se cscreveu para interpretar estas pa-
lavras, mas talvez mais importante do que a des-
coberta de seu significado recóndito seja a cons-
ta tacáo de que um contexto religioso e solene
Ireq üentemente acompanha, entre os gregos, o
aparecimento de palavras obscuras.
No decorrer do século IV a.C., essas resso-
náncias que o jovem Plat áo ainda percebla desa-
parecem de todo. O enigma passa a ser usado
47
como jogo de socledede, durante os banquetes.
ou ent áo é empregado com os jovens, com a fina.
Iidade de um treinamento elementar do intelecto .
Mas Aristóteles ainda Iala dele cm contextos sé-
ríos, na Retórica e na Poética. procurand o sua
Importánc ía na tradicéo. E imeressante sua def i-
ni~o, ainda que totalmente desligada de qual quer
fundo religioso e sapiencial: "o conceltc do enig-
ma é este: dizer coisas reais associando coisas
impossíveis". Visto que. para Aristóteles. associar
coisas impossíveis significa formular urna ce ntra-
di~iio. sua defini~iio quer dizer que o enigma é
urna contradíc éo que designa algo real. 80 invés
de nao indicar nada. como é de regra. Para que
isso ocorra. acrescente Aristóteles, nao se podern
assccle r os nemes em seu significado ordinario,
mas é necess ério que íntervenhe 8 metáfora. O
uso da metáfora estaría, portante , ligado a ori-
gem da sabedor¡e. Como se vé. o esvaziamento do
" pathos" origina l do enigma está assim, coro
Aristóteles, completo.
E útil. contudo, a indícacáo de que a formu -
l a~áo contrad it6ria é carac terística do enigma.
Voltemos a idade arcaica. Díssemos que com o
Ingresso do enigma na esfera huma na, com a
atenuacáo de sua proven léncia do deus. afirma-se
cada vez mais urna sua formulecáo contradit6ria.
Há um nexo entre os da is fenómenos? Antes de
examinar esse problema, é necessario ver como
se configura essa humanizacáo do enigma, o que
coincide coro o nasclmento dos séblos. Primeiro,
48
.
o deus inspira uro vaticínio oracular, e o " profe-
ta", para dizer como Plat áo. é um simples intér-
prete da palavra divina, pertence ainda totalmen-
te a esfera religiosa. Depois o deus, atrav és da
Esfinge, impóe um enigma morta l. e o hornero
sozinho deve solucion é-lo, sob risco de vida. Fi-
nalmente , dais ad ivinhos lutam entre si por um
enigma, Celcanre e Mopso: nao h é mais o deus,
permanece o pano de fundo religioso, mas inter-
vém uro elemento novo, o agonlsmo. que é aqui
urna Iuta pela vida e pela morte. Um passo mais,
ca¡ o pano de Cundo religioso , e aparece cm pri-
meiro plano o agonismo, a lula de dais homens
pelo conhecimento: nao sao mais adivlnhos, sao
séblos. ou melhor. combatem para conquistar o
título de s éblo.
49
v
o "PATHOS" DO OCULTO
Urna narrativa antiqüíssima , testemunhada
por várias fontes. é o documento fundamental
do nexo entre sabedoria e enigma. Trata-se de um
fíléc da literatura biográfica sobre Homero. re-
tomado no seguinte fragmento de Aristóteles:
.. . . . Homero ínterrogou o oráculo para saber
quem eram os seus pais e qual a sua p érria. e o
deus assim respondeu: •A ilha de lo é a p étria de
tua máe, e ela le acolher é morto: mas tu, previne-
te contra o enigma de jovens homens'. Nao muito
depois .. . chegou a lo. Lé, sentado num penedo,
viu alguns pescadores que se aproximavam da
praia e perguntou-lhes se tinham alguma coísa.
Eles, visto que nao haviam pescado nada, mas
catavam seus piolhos, pela falta de pesca, disse-
ram: 'O que pegamos deixamos, o que nao pega-
mos trazemos', aludindo coro uro enigma ao fato
de que mataram os piolhos que haviam catado e
51
deixaram-nos cair, e os que nao haviam catado
traziam-ncs nas roupas. Homero, nao senda capaz
de resolver o enigma. morreu de desgasto" .
O que surpreende de imedíato, nesse relato.
é o contraste entre a futilidade do conte údc do
enigma e o trágico desfecho por sua néo-resolu-
c;ao. Se os pescadores tivessem dirigido a exprés-
sao enigmática a um hornero qualquer, este certa-
mente nao teria marrido "de desgosto" , caso nao
soubesse captar o significado oculto. Mas. para o
sable, o enigma é um desafio mortal. Ouem se
destaca pelo intelecto deve mostrar-se invencível
nas coisas do intelecto. Neste quadro, é claro que
desapareceu qualquer fundo religioso: o enigma
é sempre um perigc extremo, mas seu terreno é
apenas um agonismo humano. Paralelamente. a
formulacño do enigma proposto a Homero é cla-
ramente contraditória, ou seja, para usar urna
expressáo maís precisa, dais pares de determina-
r;6cs contredltérlas, "pegamos - nao pegamos"
e "delxernos - trazcmos", estáo associados de
modo inverso 80 que a raziio esperarla, isto é ,
de modo inverso a Iormulacño: "o que pegamos
trazemos, o que nao pegamos deixamos". E: de se
lembrar a definic;ao aristotélica: o enigma é a
Iormulacáo de urna impossibilidaderacional que.
todavía. exprime uro objeto real. O sébio, que
domina a razáo, deve deslindar esse n6. Por isso
o enigma. ao entra r no agonlsmc da sebedoria.
deve assumir urna forma contradit6ria.
52
A narrativa sobre a morte de Homero ejuda-
nos a enfrentar a interpretacáo de um dos mais
obscuros fragmentos de Heráclito. Aquí, é um
sábio que alude ao enigma do qual foi vitima um
outro sábio. Diz Heráclito: " No que diz respeito
ao conhecimenro das coisas manifesras, os ho-
mens si o enganados de forma semelhante a H~
mero, que foi o mais sábio de todos os gregos.
Enganaram-no de fato os jovens que haviam es-
magado os píolhos, quando lhe disseram: 'aquilo
que vimos e pegamos deixamos; aquilo que nao
vimos nem pegamos trazemos' " . Aqui Heráclito
cala as premissas e o quadro do episódio referen-
te a Homero. provavelmente porque se tratava de
urna tradícáo muito conhecída: da mesma forma,
passcu em silencio o fato de que o fracesso de
Homero frente ao enigma tenha sido a causa de
sua morte. O tom do fragmento é desdenhoso em
relecéo a Homero: o sábio derrotado num desafio
a inteligencia deixa de ser sábio. e notável a
cerecter ízacño do enigma como tentativa de "en-
ganar": o que Heráclito considera digno de meno
r;ao nao é o triste fim de Homero. mas sim o fato
de um supasto sábio delxar-se enganar. Temos
essim. antes de mais nada, um testemunho antigo
que confirma a maldade do enigma e. em segun-
do lugar. urna implícita defin ir;ao de Heráclito
sobre o sábio como aquele que nao se deixa
engarrar.
Mas nesse fragmento há algo mais do que
urna alusác a uro célebre enigma da tradicéo: o
53
própric Heráclito aceita o terreno do enigma
como agonismo e lance com suas pala vras um
novo desafio a capacidade de compreensáo dos
homens. Tomando como base o enigma homé-
rico, Heráclito enu ncia, ele próprio, um enigma
sobre o enigma, isto é, exige urna outra solucáo ,
urna outra chave , que nao consista nos píolhos,
mais profunda; mais radical, a qual possa se
referir essa mesma formulacño dos pescadores.
Esta é a petra que nos pregou o antigo sébio: ele
ainda espera que alguém solucione o enigma , que
lhe tire o título de sábio. Nao podemos ter mais
pretensóes: podemos apenas anda r as apalpade-
las, em busca de alguma luz sobre as abordagens
desse prob lema, sobre as Intencóes de Heráclito .
Pode-se supor, antes de mais nada, urna ligecáo
entre as duas expressóes, " no que diz respei to
ao conhecirnento das coisas rnan ifestas" e "aqui-
Jo que vimos e pegamos" : assim como Homero
foi enganado no plano das coisas vistas e pegas,
isto é, os pioJhos, na medida em que nao sabia
do que se tratava, da mesma forma os homens
sao enganados no conhecimento das coisas mani-
festas, na medida em que nao sabem do que se
trata - por acreditarcm que elas sao reaís , por
exemplo, enquanto nao o sao. Neste caso, a pri-
meira parte da formulecéo do enigma, na exten-
sao universal da referencia de Heráclito, soaria:
" as coisas manifestas que pegamos ·deixamos" .
O que pode significar tal expresséo? E preciso
ter presente as passagcns de Heráclito que nc-
54
gam qualquer realidad e externa aos objetos do
mund o sensível : pareceria que é justamente deles
que se trata , ao se falar de "ccisas manifestas".
Lembrcmos os fragmentos: " o sol tem a largura
de um pé humano" , ondc parcce inevitável peno
sar numa recusa de qualquer realidade objet iva,
na reduc áo desse objeto a simples aparencia sen-
sorial; e ainda , "morte é tuda o que vemos quan-
do acordados". " As coisas manifestas que pega-
mos" poderia, entáo , significar a simples apreen-
sao sensível delas, aquilo em que consiste a ilusó-
ria realidade do mundo que nos circunda, nada
além de urna série de sensecócs . Mas por que
deíxamos essas coisas manifestas que pegamos?
Talvez Heráclito quei ra dizer que as coisas ma-
niíestas, corpó reas, induzern-nos ao engano e sus-
citam a ilusác de existirem fora de n6s e serem
reais, vivas , sobret udo porq ue as imaginamos pero
menentee. Nao que Heráclito critique as sensa-
croes. Pelo con trário, ele louva a visác e a eudicéo,
mas condena que se transforme a apreensño sen-
sorial em algo estéve l, existente fora de n6s. Cap-
tamos instantaneamente a experiencia dos sent i-
dos e entáo a deíxamos cair; se queremos fixé-Ia,
deté -la, nós a falsificamos. Este é o significado
dos fragmentos que tradicionalmente sao ínter-
pretados em apoio de urna suposta doutrina he-
racliti ana do devir . Heráclito nao eré que o
devír seja mais real do que o ser; acredita, sim-
plesmcntc, que toda "opiniáo é uma dcenca sa-
grada", ou seja, que toda elaboracéo das impres-
55
roes sensoriais, num mundo de objetos permanen-
tes, é ilus6ria. Por isso diz, por exemplo: " no
"mesmc rio, niío se pode ent rar duas vezes". Nao
há rio fora de n65, mas apenas urna fugaz sensa-
Cao em nos, ¡\ qual damos o nome de rio, de um
mesmo rio, quando outras vezes se apresenta a
n6s urna sensacác semelhante A prlmelra: a cada
vez. porém, nao há nada de concreto, a nao ser,
justamente, urna sensacño instant ánea, ¡\ qual nao
corresponde nada objetivo. Essas sensacóes, sobre-
tuda , nao documentam nada de permanente. ain-
da que sejam semelhantes; se queremos designar
cada urna delas com o nome de rio, podemos
fazé-Io, mas a cada vez tratar-se-á de um novo
rio.
Vallemos agora ao fragmento sobre o enig-
ma homérico. Se o que se disse pode interpretar
a primeira parte da tormutacsc do enigma, a
segunda parte ent éo signiCicará , na transposícéo
heraclitiana, aplicando urna antítese para lela ti
do epis6dio homérico: ..as coisas ocultas que nao
vimos nem pegamos trazemos", Oual pode ser a
sotucsc dessa segunda parte? Pode-se tenta r es-
clarecer a frase evocando dai s temas essenciais
do pensamento de Heráclito. O primeiro poderia
se chama r de " pathos" do oculto, isto é , a ten-
dencia a considerar o fundamento último do
mundo como algo escond ido. Este é o conceito
da divindade em Herácli to: " a unidade, a única
sabedoria quer e nao qucr ser chamada com o
nome de Zeus". O nome de Zeus é aceitável
56
como símbolo, como deslgnacáo humana do deus
supremo, mas nao é aceitáve! como deslgnacñc
edequada, justamente porque o deus supremo é
algo ocul to, inacessíve1. Ainda mais expllcltamen-
te outros dais fragmentos declaram a superío ri-
dade do que é oculto : " a natureza primordi al ama
ocultar-se", e "a harmonia oculta é mais forte
do que a manifesta". O segundo tema é a reivin-
dicacéo mística de um predominio da interíori-
dade em relayao A i1us6ria corporeidade do mun-
do externo . Em inúmeros fragmentos, Heráclito
parece até colocar a alma como princípio supremo
do mundo, e Arist6teles confirma essa interpre-
tacéo. Tal parece ser a alusáo do célebre frag-
mento "indaguei a miro mesmo"; díz Heráclito
mais explicitamente: "os confías da alma, carni-
nhando, nao poderás encontr é-los, mesmo perco r-
rendo ladas as estradas - tao profunda é a ex-
presséo deis", e ainda: " á alma pertence urna
expressso que acresce a si mesma". Os dais te-
mas mencionados acima mais parecem se unificar,
convergir numa única víséo básica. pela perspec-
tiva abissal, na diret;ao do oculto. ero que está
posta a alma. Se agora aplicamos essa temática
a segunda parle da formulacéo do enigma homé-
rico, parece abrir-se a possibilídade de urna reso-
lut;ao. A alma, o oculto, a unídade, a sabedoria,
sao o que nao vimos nem pegamos, mas trazemos
dentro de nós. Só a interioridade oculta é perma-
nente, e mais: ao se manifestar. " acresce a si
mesma".
57
o que foi ditc nao s6 confirm a a lmportán-
cia genérica do enigma nessa idade arcaica da
Grécia - e sua ínt ima liga¡;ao com a esfera da
sabedoria - . como, no par ticular, permitiu-nos
formular algumas hip6teses e tentar alguns esela-
recímentos a respelto do pensamento de um dos
sábios mais árduos e inacessíveis. v lu-se, atrav és
dainvestígacáo de urna única passagem, como é
possfvel propor a uniñc ecéo de decla racóes hera-
clitianas aparentemente dissociadas ou contras-
tan tes. Nao só isto, mas também um outro desses
temas fundamentais de Heráclito pode ser reto-
mado sob a perspectiva do enigma, de modo que.
30 final , apresenta-se a hip6tcse de que toda a
sabedoria de Heráclito seja uro tecido de enig-
mas que aludem a urna inscnd ável natureza divi-
na . Trata-se do tema da uni éc dos contrários.
Dissemos que a unid ade, o deus, o oculto , a sabe-
doria sao designacées do fundamento último do
mund o. Tal fundamen to é transcendente. Diz He-
ráclito: " Nenhum hornero, entre aquejes cujos
discursos ouvi, chega ao ponto de reconhecer
que a sabedoria está separada de todas as ccísas".
Mas entéo o enigma. ampliado a conceitc cósmi-
co, é a expresséo do oculto, do deus. Toda a
multiplicidade do mundo. sua ilusória corporei-
dade, é urna trama de enigmas. urna aparencia
do deus, assim como urna trama de enigmas
sao as palavras do séblo. man ifestacóes sensíveis
que sao o rastro do oculto. Mas, díssemos, o
enigma se formula contraditor iamente . Ora. He-
58
ráclito nao sé utiliza a Iormul aeño antitética na
maioria de seus fragmentos, como sustenta que
o pr6prio mundo que nos circunda nao é senéo
um tecído - i1us6rio - de contrários. Cada par
de corurários é uro enigma, cuja resolucáo é a
unidadc, o deus que está por trás. Coro efelto ,
diz Heráclito: "O deus é dia noite. inverno ve-
réo. guerra paz, saciedade fome" .
59
VI
MIS TICISM O E
DIALÉTICA
Se a origem da sabedoria grega está na
"man ia", na exaltacáo pítlca, numa experiencia
mística e dos mistérios, enráo como se explica a ,
passagem desse Cundo religioso para a eleboracéo
de um pensamento ebstrato, racional, discursivo?
No entente. na fase madura dessa ldade dos s é-
bias. encontramos urna razáo formada. articula-
da. urna lógica nao-elementar, um desenvolví-
mento teorético de aito nivel. O que possibilitou
tudo isso Coi a dia lética. Por essc termo nao se
entende, evidentemente, o que Dele inclufmos
nés, os modernos; a dialétic a é aquí empregada
no sentido original e pr6prio do termo, isto é, no
significado de arte real da dlscusséo, de urna dis-
cussác real entre duas ou mais pessoas vivas, nao
excoglradae por urna Invencéc Iiterária. Neste
sent ido. a dialética é um dos fen ómenos .culmi-
nantes da cultura grege, e um dos mais originais .
61
Seu grande desenvolvimemo uni táric cu mpre-se
com Aristóteles: coro efeito, numa obra de ju-
ventude, 05 Tópicos, ele olha retrospectivamente
lodo o materi al elaborado por essa arte, todos os
cemlnhos por ela percorridos, todas as formas,
as regras , os expedientes. as argumentacóes, os
artificios sofistas, para tentar construir sobre essa
base urna exposicéo sistemática da dialética, esta-
belecendo os princip ios gerais, as normas de urna
discussáo carreta, ord enando e c1assificando todo
esse material, montando urna teoría geral da de-
dUl;ao dial ética.
Mas se esta é a conclusáo. o olhar retros-
pc:ctivo, qual é o auge e a origem da dialética?
Quando compararnos as argumenta cóes dialéticas
de Platéo, Górgias, Zenáo , tentando julgé-las se-
gundo o critério do rigor lógico e da exceléncia
argumentativa , nao faltaro razóes para sustentar.
contra a opiniác dominante. urna superioridade
de Zenéo diante de Plat éo. E deixando de lado
o problema do auge da dialética, onde procurar
sua origem? O jovem Aristóteles sustenta que
Zenác fol o inventor da dialética. Todavia, se
comparamos os testemunhos sobre Zeniio com os
fragmentos de Parm énides, seu mestre , parece
inevitável admitir . já neste último, uro mesmo
dominio dialético dos conceitos mais ebstraros,
das categorías mais universai s. Mas ao prépric
Parménides será talvez possível atrib uir a lnven-
lfao de urna bagagem teorérica tao imponente, o
uso dos chamados principios aristotélicos da nao-
62
con tredicáo e do tercelrc excíuído, a toucdocac
de categorías que permenecem para sempre liga-
das ti Iinguagero filosófica, nao apenas do ser e
neo-ser. mas provavelmente também da necessi-
dade e da possibilidade? Seria mais natural
pensar numa tradicéo dialética que remonte ain-
da mais além de Parm énides, que tenha origem
justamente naquela idade arcaica da Grecia da
qual se falou.
A dialética nasce no terreno do agonismo.
Ouando o fundo religioso se afastou e o impulso
cognoscitivo nao precisa meis ser estimulado por
um desafio do dcus, quando urna disputa pelo
conhecirnento entre os hornens nao mais requer
que estes sejarn adivinhos, eis que aparece um
agonísmo apenas humano. Sobre uro conteúdo
cognoscitivo qualquer, um hornero desañe um
curro homem a responde r: discutindo sobre essa
resposta, ver-se-á qual dos dois possuí o maior
conhecimento. Na base dos Tópicos aristotélicos,
pode-se reconstru ir um esquema geral do anda-
mento de urna díscu sséo. mesmo que infinita-
mente variado em seu efetívo desenvolver. O in-
terrogante propóe urna pergunta em forma alter-
nativa. istc é, apresentando os deis termos de
urna ccntradícéo. O respondente adota um dos
dais termos , ou seja, afirma corn sua resposta
que este é verdadeí ro. faz urna eseolha. Essa res-
posta inicial é denominada a tese da discusséo:
a tarefa do interrogante é demonsrrar . deduzir a
proposicáo que contradiz a tese. Deste modo al-
63
canea a vit éria , pel e. ao prever ser verdadeira a
proposicño que cont radiz a tese. demonstra ao
mesmo tempo a falsidad e da tese. istc é , refuta
a aflrmacác do adversário, que esteva expressa
na resposta inicial. Para alcencar a vit6ria, é
necessér ío, portante, desenvolver a demonstrecéc :
esta . porém, nao é enunciada unilat eralmente pe-
lo interrogante. mas articula-se al ravés de urna
longa e complexa série de perguntas, cujas res-
pestes constituem cada um dos elos da demons-
tracéc . A Iigar;ao unitária en tre esses respostas
deve, justamen te. constituir o fio cc ntínuo da
deducño, ec cabo da quel , como conclusáo, reen-
centre-se a proposicso que cont radiz a tese. Nao
é necessario que o respondente perceba que a
série de suas respostas constitui um nexo demons-
trativo. O interrogan te procura, pelo contrário ,
impedir que o prop ósito de sua ergumente céo
seja visível. Por isso a sucessáo das perguntas
muitas vezes nao segue o fio da ergumentecáo,
e as vezes tambérn inte rvém demonstracóes inci-
dentais e subsidiárias . O importante é , justamen-
te, que cada resposta seja, a cada vez, a assertiva
de urna certa proposicso, que o interrogante apre-
senta como pergunta . Ao fina l. todas as respostas
serác cutres tantas aflrmecées do respondente:
se o nexo ent re elas refuta a tese, isto é, a res-
posta inicial do respondente, ficará claro que o
respond ente , através dos v érios eles da argurnen-
tacño, terá ele pr6prio refutado sua tese inicial.
Na dialética, nao sao necessérios juízes que de-
64
cidam quem é o vencedor: a vitória do interro-
gante resulta da própria dlscussáo, visto que é o
respóndeme que primeiro afirma a tese e depois
a refuta . Tem-se, porém, a vitória do respondcnte
quando ele consegue evitar a refu ta<¡:iio da tese.
Essa pr ática de discussñc Ioi o bcrco da ra-
zác em geral, da disciplina lógica , de todo o refi-
namentc discursivo. Coro eíeito, demonstrar urna
certa proposkéo, ens ina-nos Aristóteles. significa
encontrar uro médlo, isto é , uro conceito, um
universal. tal que se possa un ir a qualquer urn
dos dais termos da proposicéo, de modo que se
possa deduzir de tais nexos a própria proposícéo.
isto é . demonstr é-la. E visto que tal médic é mais
abstrato do que o sujeito da proposicéo a ser
demonstrada , a discussáo, como procura de rné-
dios, é urna procura de universais cada vez mais
abstratos, na medida em que o médio que de-
monst ra a proposlcéo dada precisará, por sua vez.
ser demonstrado. A dial ética fol.asslm, a disci-
plina que permitiu isolar as abstracóee mais eva-
nescentes que o hornem pensou : o famoso quadro
das categorías aristotélicas é fruto final da dialé-
rica, mas o emprego deseas categorías é vivo e
documentável na esfera dialética muito tempo
antes de Aristóteles. O mesmo vale para os prin-
cipios formais que regem o desenvolvimento coro
reto de urna discussác, a comecar pelo principio
do terce íro exclu ido que governa a rormotecao
da tese e sua refu tacáo: e também para as nc r-
mas da deducéo e as relacóes reciprocas entre os
65
termo: o enigma é a íntrusáo da ativídade hostil
do deus na esfera humana, o seu desafio, do
mesmo modo que a pergunt a inicial do ínrer ro-
gante é a abertura do desafio dial étlco, a pravo-
cecác A disputa. Além dísso. d íssemos v árias ve-
zes que a formulacüo do enigma, na maior parte
dos casos, é contradit6 ria, assi m como a pergunta
dialética prop5e explícitamente os da is termos de
urna contredlcáo. Esta última identidade formal
é simplesmente assombrosa (lembre-se o enigma
homérico de Heráclito) e impóe quase que a
certe za de um íntimo parentesco entre enigma e
dialética .
O emprego de inúmeros cerros termos con-
firma essa tese. O verbo "probálleín", que no
século V significa "propor um enigma". é empre-
gado por Pla téo tanto no sent ido enigmático [nu-
ma passagem do Carmide, o verbo é conjugado
explicitamente com o termo " enigma", e dlz-se
"Iencave a fren te um enigma") , como no sentido
diel érico. atestando urna un idade de fundo entre
as duas esferas: ora significa ainda " propor um
enigma", ora "propor urna pergun ta dialé tica " .
Lembremos também - usados ora em sentido
dialét ico , ora em sentido enigmático - os ter-
mas " Interrogecéo", "aporía", " busca", "pergun-
ta d üble".
O misticismo e o racionalismo na Grécia,
por tante , nao seriam ant itéticos, devendo antes
ser entendidos como duas fases sucessivas de um
fenómeno fundamental. A dialética intervém
material de
a silogística
nela aparecem,
do qual surgirá
vértos termos que
estudo e epllcecáo
ar istotélica.
Agora apre senta-se a n6s a possibilidade de
tentar urna explícecáo a rcspeitc do obscuro
problema da passagem do fundo religioso da adi-
vinhacéo e do enigma para a prirneira idade da
dialética. Do que se dissc já resulta um ponto
de cncomro entre os dois Ienémenos. isto é, a
esfera do agonisrno referente ao conhecimento e
11. sabedoria. De fato. ao se humanizar , o enigma
assume a figura agon ística. e a dial ética, por cu-
trc lado. surge do egonismo. Mas, aprofundando
a análise dos dois Ien émenos, examinando os
testemunhos mais amigos a respeito e comparan-
do a term inologia utilizada nos deis casos, pode-
mos supor urna relacéo mais intrínseca, um nexo
de eontinuidadc entre eles. Nessa perspectiva,
o enigma aparece como o fund o tenebroso, a
matriz da dialética. Aqui a term inologia é deci-
siva. O nome com que as fontes designam o enig-
ma é "problema", que originalmente e para os
trágicos significa obstáculo. algo que se projeta
a frente . E, de fato, o enigma é urna preva, um
desafio ao qual o deus expóe o homem. Mas o
rncsmc termo " próblema" permanece vivo e em
posicáo central na Iinguagem dia lética , a pon to
de significar, nos Tópicos de Arist6teles, a "for-
mulac áo de urna busca", designando a formula-
¡¡ao da pergunta dialética que inicia a discussáo.
E nao se trata semente de urna identidade do
66 67
quando a viseo do mundo grego tom a-se mais
amena. O áspero pano de fundo do enigma, a
crue ldade do deus em relacáo ao homem se ate-
nuam, sao substituidos por uro agonismo apenas
humano. Ouem responde a pergunta dialética já
nao se encontra mais num transtomo trágico: se
for derrotado. nao perderá a vida, como, pelo
contrário, acontecera a Homero. Além dísso, sua
resposra ao " problema" nao decide imediatamen-
te sua sorte , para o bem ou para o mal. O res-
pondente resolve a alternativa com sus tese, esse-
veranda algo que será posta a prava , mas que
por enquanto é aceito como verdadeíro. Ouem
devia responder ao enigma, ou calava-se e estava
imediatame nte derrotado, ou errava, e a sentenca
era proferida pelo deus ou pelo adivínho. Na dis-
cusséo, pelo centrar lo, o respondente pode defen-
der sua tese. Mas geralmente isto de poueo lhe
servirá . O perfeito dialético se encarna no inter-
rogante: ele coloca as perguntas, dirige a discus-
sao dissimulando armadilhas Ietais para o adver-
s érío, através de longos rodeios argumentativos,
solicitecées de anuencia sobre questóes óbvias e
aparentemente inofensivas, que acabaráo se reve-
lando essenciais para o desenvolvimento da refu-
tacéo. ~ de se lembrar o caráter de Apolo como
deus "que golpeia a distancia" , cuja a~¡o hostil
é protelada: isso se encarna tipicamente no inter-
rogante dialético, o qual, sabendo que vencerá,
adia, entegoza a vit6ria , ínterpondo as tramas
errantes de seu argumenta r. Desse ponto de vista,
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ainda resta um fundo religioso na esfera dialéti-
ca: a crueldade direta da Esfinge torna-se aquí
urna crueldade mediada, disfarcada , mas, nesse
sent ido, até mais apolínea . Há quase urna ri tua-
lidade no quadro do embale dialético, que nor-
malmente se desenvolve (rente a um público
silencioso. Ao final, se forem rcspeítedes as re-
gras, o respondente deve render-se como todos
esperam que deva sucumbir, como se fosse pa-
ra a realízacáo de uro sacrifício. Ali és, pode-
se até mesmo nao ter plena certeza de que, na
dial étlce. o risco nao fosse morta l. Para um
antigo, a humllhecáo da derrota era intoleráve1.
Caso César tivesse sido radicalmente derrotado
numa batelha . nao teria sobrev ivido. E talvez
Parménides, Zenéo, G6rgias nunca tenham sido
derrotados numa discussác pública, num verda-
deiro ágon.
69
VII
A RAZAO DESTRUTIVA
Multas geracóes de dialéticos elaborare na
Grécia urn sistema da rezéo, do " logos", como
fenómeno vivo, concreto, puramente oral. A ora-
Iidade, evidentemente. é urna característica es-
sencial da discussáo: urna díscusséo escrita, ver-
tida cm obra literaria, tal como encontramos em
Platáo , é uro pálid o sucedáneo do fenómeno ori-
ginal, tanto por lhe faltar qualquer imediatez
- a presen¡;:a dos interlocut ores, a inílexáo de
suas vozes, a aluséo de seus olhares - guante
por descrever urna disputa pensada por uro único
hornero, e somente pensada. portanto privada do
arbitrio, da novidade , do imprevisto que só po-
dern surgir do embate verbal de deis individuos
de carne e OS50.
Mas esse sistema do " lagos", assim elabo-
rado. é realmente um edificio? lsro é, além de
ser constituído pela en éllse das categorías abs-
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tratas e pelo desenvolvirnento de urna lógica de-
dutiva, ou seja, pela forrnulacác dos conceitos
maís universals a que pode chegar a cepacidade
de ab strec áo do homem . e pela determínacác das
normas gerais que regulara o proceder discursivo
dos raciocinios humanos, oferecera talvez, além
de tudo isso, um conteúdo doutrinal e dogmático
da razáo, um verdadeíro complexo construtivo.
um conjunto de proposlcóes concretas que se im-
póem a todos? A respost a é negativa: no préprio
fundamento da discussáo grega há urna Intencéo
destrut iva, e o exame dos testemunhos sobre o
fenómeno convence-nos de que tal Intenc áo Coi
realizada pela dialé tica . [ é foi ditc que , na dis-
cusséo , a tese do respond ente geralmente é refu-
tada pelo interrogante: neste caso, parecería haver,
porém . um resultado const rurívo, na medida em
que a demclicéo da tese coincide com a demons-
tracác da proposlcáo que a contradiz. Mas, para
o perfeitc dia lético, é indiferente a tese assumida
pelo respondente: na resposta inicial , ele pode
escolher um ou outro termo da comradkác pro-
pasta , e em ambos os casos inexorevelmente
seguir-se-á a refutacáo. Em out ras palavras, se o
respond ente adota urna tese, esta tese será demo-
lida pelo interrogan

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