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Excertos do artigo: O legado do jusnaturalismo moderno-iluminista para à positivação do direito, de Haide Maria Hupffer O Direito Natural manifesta-se como um conjunto mínimo de valores que têm como princípios essenciais a universalização e a imutabilidade dos conceitos extraídos das instituições jurídicas próprias, construídos pelo mais puro espírito do povo, orientados e ditados pelas exigências racionais da natureza humana universal, pela vontade de Deus, pela força da natureza e conservação da vida. Para Zagrebelsky (1997, p. 119), qualquer visão jusnaturalista autêntica assume a tríade: “verdadeiro, justo, obrigatório”. A partir do ser (o verdadeiro) chega-se ao dever- ser (o obrigatório) através do critério da justiça. O conteúdo do que é justo, ou seja, do que é verdadeiro tem sua origem e determinação na vontade divina emanada pela ordem criativa de Deus ou, ainda, pode advir da natureza das coisas, que pode ser concebida naturalista ou racionalmente, ou ainda, segundo o autor, de qualquer outro modo. Salienta que essas diferentes possibilidades não alteram a estrutura progressiva, “típico do direito natural, do mundo da realidade ao mundo da obrigatoriedade”. Essa perspectiva de ir do ser ao dever-ser é possível na concepção jusnaturalista porque a justiça é assumida como valor. Para o Direito Natural, a justiça é o imperativo máximo ou “a norma primeira pressuposta da qual deriva qualquer outra normatividade. As doutrinas de Direito Natural, portanto, não desmentem em absoluto a separação positivista. Tampouco seu ‘dever ser’ deriva exclusivamente do ‘ser’. Com efeito, que a justiça deve ser realizada não é em absoluto um fato, mas sim um valor, ainda que talvez seja o mais óbvio ou menos controvertido dos valores”. (...) Um dos principais teóricos da lei natural foi Tomás de Aquino. A tese por ele sustentada está em o Direito Natural conter primeiro a lei eterna e, em segundo lugar, a razão humana, que já se apresenta promulgada por Deus. Na análise de Goyard-Fabre (2003), Tomás de Aquino faz uma distinção rigorosa entre proposições da filosofia moral e política (que identificam e elaboram os princípios e as normas da lei natural) e, ainda, entre proposições que constituem as ciências da natureza; os princípios e as normas da lógica (ou “leis do pensamento”) e os princípios e as normas de toda técnica humana submetidos à vontade humana. A ordem natural é regida por leis eternas e imutáveis, de origem divina, deixando-se para a razão humana a função de redescobrir e criar essa ordem natural. (...) No século XVI ocorre a ruptura do “Direito Natural” construído historicamente a partir de fundamentos ontológico-teológicos alicerçados no ser[1] e na vontade de Deus para um jusnaturalismo baseado num modelo de racionalidade caracterizado pela excessiva confiança no poder da razão. Surge a Escola do Direito Natural com uma nova concepção do Direito que vai favorecer a laicização e a unificação do Direito. Por tais razões, Gilissen (1988) vai dizer que “esse direito natural laico é um direito racionalista (alemão: Vernunftrecht) que domina todas as relações entre os homens, seja qual for a sua raça e qualquer que seja a sua posição social”. Nos séculos XVII e XVIII, a ciência do Direito é dominada pela Escola de Direito Natural. (...) No século XVII, a nova ordem científica é ampliada e aprofundada, caracterizando-se fundamentalmente pela excessiva confiança no poder da razão, invadindo tanto os domínios da teoria como os da ação prática. O que impulsionou a ruptura radical foi a necessidade de elaborar as noções de método, de verdade e, a partir delas, as noções de ser e de ação. Representantes dessa nova ordem científica, como Descartes, Spinoza e Leibniz, constroem um método que objetiva produzir e tornar manifesta a unidade da ciência. (...) Dentre as ciências sociais, o Direito é a ciência que mais absorveu as teorias racionalistas dos séculos XVI e XVII. Ao intentar assegurar a ordem erigida pela sociedade ao longo da história, o Direito moderno passou a se constituir, na expressão de Santos (2000, p. 119), em “um racionalizador de segunda ordem da vida social, um substituto da cientificização da sociedade”, aproximando a ciência jurídica da matemática, através do exercício da razão e da observação, priorizando valores como a previsibilidade, a certeza e a seguridade jurídica em detrimento da justiça efetiva. Inicia- se, assim, a era das codificações, e o sistema passa a ser dominado pela legislação. A lei passa a ser a fonte principal, quase exclusiva do Direito, concebida num sistema rígido, lógico, formal e técnico-racional, concepção esta que ainda perdura nos dias atuais. (...) Não é desarrazoado afirmar com Ferraz Júnior (1997, p.24) que, em todas as suas expressões, o Direito Natural tendia a acentuar a teoria legitimada na “razão, mediante a exatidão da matemática e a concatenação de suas proposições”. Esse é o ponto que foi absorvido pelo positivismo nos séculos subsequentes. Sendo mais específico: de Aristótoles, a idéia da faculdade calculativa como a faculdade da parte da alma dotada de razão e o dualismo do saber prático e do saber teórico; de Grótius, seu esforço em proporcionar um método pelo qual o Direito Natural é reconhecido como um dictamen rationis e não apenas vinculado à vontade de Deus; de Pufendor, o conceito de moral social, introduzindo o princípio da sociabilidade como primeira expressão da lei natural; de Descartes, a tese de que a forma suficiente do conhecimento é a científica, que se propõe a explicar tudo a partir de padrões de racionalidade, como uma operação dedutiva, na busca de “verdades”; de Spinoza, a filosofia que “renovou os esplendores do humanismo revolucionário, pondo a humanidade e a natureza no lugar de Deus, transformando o mundo num território de prática e afirmando a democracia da multidão como a forma absoluta da política” (HARDT; NEGRI,2002, p. 95); de Leibniz, seu empenho em fazer do Direito uma “ciência”, sujeita aos mesmos princípios metodológicos utilizados pela matemática, aliado à preocupação com ideais de segurança e previsibilidade, delimitando definitivamente o domínio da razão suficiente. Esses diferentes olhares têm a finalidade de possibilitar uma leitura de que em suas expressões o Direito Natural caminhava para a construção de um Direito que tendia a acentuar o caráter de um saber científico, universalmente válido, alicerçado na racionalidade prático-dedutiva e cognoscitiva. Esse Direito não dependia da experiência e, sim, de demonstrações rigorosamente lógicas. Por isso para Ferraz Júnior (1997, p. 24) a redução das proposições a relações lógicas é pressuposição evidente da “formulação de ‘leis naturais’, universalmente válidas, a que se agrega o postulado antropológico, que vê no homem não um cidadão da Cidade de Deus ou (como no século XIX) do mundo histórico, mas um ser natural, um elemento de um mundo concebível segundo leis naturais”. Ao privilegiar a confiança excessiva do papel da razão, alicerçado na idéia de que o homem pode dominar todas as coisas, o jusnaturalismo moderno-iluminista recebe inúmeras críticas, pois foi o precursor na elaboração de um sistema de pensamento jurídico fechado em si mesmo, “dentro da concepção de um Direito supra-social, desligado das condições em que o homem efetivamente vive e se associa e, por isso mesmo, igualmente alienado da realidade social” (MARQUES NETO, 2001, p. 135). Para muitos autores,[2] o Direito Positivo tem seu fundamento no Direito Natural. Os que defendem essa postura amparam-se na convicção de que o Direito Natural oferece os pressupostos filosóficos da construção e estrutura ontológica do Direito Positivo. Villafañe é um dos autores que defende a idéia de que o Direito Natural é a primeira regra dejustiça, concebendo-o como princípio e raiz de toda legislação, indispensável para afirmar a ordem. Para tanto, a fim de remediar as deficiências do Direito Positivo, Villafañe (1967, p. 299) salienta, ainda, que o Direito Natural também tem a função de “dar um fundamento justificador e uma norma crítica às normas positivas vigentes, como a esperança de conquistar um ‘modelo objetivo’ da ordem jurídica”. Pela riqueza de seu conteúdo, Villafañe (1967, p. 305) vê no Direito Natural significações múltiplas na medida em que se refere às regras de um “valor universal concernente à conduta humana na sociedade e define os direitos e deveres do homem, compreende os princípios e as concepções que têm inspirado as legislações positivas”. É o que se depreende da linha de idéias apresentada por Castanheira Neves (2003, p. 24) quando salienta que a consumação da Filosofia do Direito se verificou principalmente com a evolução histórico-cultural ocorrida no início do século XIX, que “levou o ‘direito natural’ – melhor, o jusnaturalismo ou jusracionalismo moderno- iluminista – à positividade histórica do Direito por meio, sobretudo, da codificação, e simultaneamente converteu a juris naturalis scientia em filosofia do Direito”. A tendência predominante entre os juristas do final do século XIX e início do século XX foi a de reconhecer no Direito um cunho positivista, negando a possibilidade de conceder ao Direito Natural status de “Direito”. Bobbio (positivismo analítico), juntamente com Kelsen (normativismo), além de fazerem uma clara oposição a um Direito Natural, também negam que exista um sistema de valores imutáveis que possa derivar da ordem natural do mundo, ou seja, negam a possibilidade de um Direito Natural deontológico. Em seu trabalho “Alguns argumentos contra o Direito Natural”, Bobbio é um dos autores que melhor resume essa posição dizendo que o Direito Natural não é Direito como o é o Direito Positivo e, em segundo lugar, diz que o Direito Natural é um equívoco; portanto, não serve para fundamentar um acordo unânime sobre o que se entende por justo ou injusto. Seu fundamento está em que não há unanimidade sobre o que se conceitua como natural. Enfatizar essa questão significa para Bobbio (1995) uma forma de mostrar a impossibilidade de a sociedade ser regida por um sistema de legitimidade natural, ou seja, por um Direito Natural que tem como dogma valores naturais e imutáveis no tempo. Essa característica, para ele, não garante nem segurança, nem paz, principalmente porque carece do atributo da eficácia. Bobbio desenvolve alguns critérios que marcam a diferença profunda que há entre Direito Natural e Direito Positivo. Um deles é o modo como o Direito é conhecido, isto é, como chega a seus destinatários: “O direito natural é aquele que conhecemos através da nossa razão”. Esse critério vincula-se a uma “concepção racionalista da ética, segundo a qual os deveres morais podem ser conhecidos racionalmente”. Por outro lado, o Direito Positivo se dá através de uma declaração de vontade alheia, isto é, a partir da promulgação da lei pelo legislador. A partir desse delineamento, Bobbio (1995, p. 23) argumenta: “O direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo que é útil”. Bobbio não quer dar a impressão de que está diminuindo o papel do Direito Natural e sua função na história, muito menos pretende ignorar a existência de valores morais superiores às leis positivas e o conteúdo delas. Sua intenção é apenas mostrar que existem diferenças profundas entre o Direito Natural e o Direito Positivo, e que as dúvidas por ele apontadas não afetam de nenhum modo a existência de valores morais superiores às leis positivas, nem seu conteúdo, mas unicamente sua motivação. Kelsen empreendeu uma crítica ao Direito Natural em sua obra A Justiça e o Direito Natural, distanciando-se dele ao rejeitar que as normas possam corresponder aos atos de vontade transcendentais. Mostra sua divergência com a doutrina jusnaturalista quando ela acentua sua superioridade, ao considerar o Direito Positivo válido somente quando corresponde ao Direito Natural, ou, dito de outra forma, quando o jusnaturalismo advoga que as normas do Direito ideal, do Direito justo, isto é, do Direito Natural, são as únicas constitutivas de valor de justiça absoluta. Kelsen não concorda com esse argumento, pois, ao se dar ao Direito Natural a supremacia na tarefa de apreciação do Direito Positivo como justo ou injusto, como conseqüência sua validade só pode advir do fato de esta norma estar em conformidade com uma norma do Direito Natural. Kelsen discorda do fato de a natureza poder funcionar como a suprema autoridade legiferante, e diz que o principio do jusnaturalismo está assentado num erro fundamental: o que vale na norma do Direito Positivo é apenas o Direito Natural, e só o Direito Natural pode ser considerado válido. CONCLUSÃO Na tentativa de uma fusão de horizontes que aponte o jusnaturalismo moderno- iluminista como o precursor ao paradigma positivista, destaca-se: a) Lei como expressão da vontade do Estado – Para viver em sociedade, o ser humano transfere aos governantes de cada Nação a função de criar leis que vão disciplinar a vida em sociedade, delegando ao Estado o poder absoluto de criar o arcabouço jurídico legal. Preconizam, assim, uma nova técnica que vai dominar o século XIX e o século XX, que é a codificação. b) Esquecimento do ser – O Direito Natural moderno-iluminista esqueceu o ser enquanto ser-no-mundo. c) Dogma da certeza amparado nas verdades provenientes da matemática – Não há uma disposição pelo ser, e sim uma ordenação do conhecer. Os postulados da matemática aplicados ao Direito resultam em uma estrutura lógica, formal, tecnicista que depende de definições claras, objetivas e universais para proclamar suas “verdades eternas” que, são – como na matemática – verdadeiras ou falsas independente da realidade em que são aplicadas. d) O Direito só pode ser fundamentado após ter alcançado um critério fixo de verdade – A verdade está representada em enunciados descritivos na ordem do dever-ser, resultando em um Direito descritivo, conduzido pela razão suficiente que prioriza valores como a previsibilidade, a certeza e a segurança em detrimento da justiça efetiva. e) Conhecimento verdadeiro – É o que parte da causa para o efeito, a partir da valorização do método da dedução pura. f) Comparação da justiça com cálculos numéricos – Assim como algo é justo, mesmo que não haja quem exerça a justiça e nem sobre quem ela recai, de maneira semelhante os cálculos numéricos são verdadeiros, mesmo que não haja quem queira calcular. g) Doutrina da separação de Poderes – Poder Legislativo com a função de representar o povo e promulgar leis gerais; Poder Executivo e Federativo com a função de velar pela aplicação permanente das leis e pela segurança da sociedade política; Poder Judiciário subordinado ao Poder Legislativo com a função de ser apenas um prático do Direito, ou seja, aplicar a lei ao caso concreto, como uma função supletiva da atividade legislativa. A função do jurista é fundamentalmente a de descobrir a vontade da lei, que corresponde à vontade do legislador que elaborou regras justas a partir dos postulados da razão. h) Onipotência da razão – Amparado na teoria de um Direito absoluto, obrigatório e universalmente válido, onde a onipotência da razão oferece as bases doutrinárias para a criação de leis. i) Dominação jurídica racional que “é legitimada pelo sistema racional de leis universais e abstratas, emanadas do Estado, que presidem a uma administração burocratizada e profissional e que são aplicadas a toda a sociedade por um tipo de justiça baseado numa racionalidade lógico-formal” (SANTOS, 2000, p. 142). j) Primazia do direito do indivíduo em relação ao Direito Público,influindo na concretização de códigos e leis de índole liberal-individualista. k) Gradual separação do mundo jurídico do mundo dos fatos, lançando as bases do dualismo questão-de-direito e questão-de-fato e a identificação do Direito com a lei. A lei no século seguinte passa a ser a principal fonte de Direito. Essas perspectivas filosófico-jurídicas representam a idéia-força que se encontra na fundamentação normativista-legalista do positivismo jurídico, que começou a encontrar sua expressão a partir do século XIX, quando ocorre uma transição gradual do Jusnaturalismo para o Positivismo jurídico, e a lei jurídico-positiva acaba por assimilar um postulado antimetafísico, positivo-dogmático, estruturalmente formal e científico. Embora na atualidade muitos juristas pretendam ressuscitar o jusnaturalismo com nova roupagem, estamos de acordo com a afirmativa de Streck (2005, p. 157) de que “não é mais possível contrapor o jusnaturalismo a alguma teoria positivista ou pós-positivista”, e de que também não há mais “espaço para o jusnaturalismo nesta quadra do tempo”. O grande desafio da atualidade encontra-se, ainda, em encontrar uma justificativa que consiga interrogar o positivismo jurídico e enfrentar os seus problemas. Notas: [1] Martin Heidegger, no século XX, revoluciona a filosofia ao trazer de volta o questionamento sobre o ser, mostrando as insuficiências fundamentais da ontologia tradicional que se apoiava no ser-objeto. Uma de suas principais denúncias é contra o esquema sujeito-objeto, consciência e ser; de que o ser é objeto do conhecimento, reafirmando que o “ser é o verdadeiro e único tema da filosofia” a partir da diferença ontológica (Ontologische Differenz) entre ser e ente. [2] Como exemplo, cita-se Erik Wolf; Corts Grau, Emilio Serrano Villafañe, A. G. Ambrosetti, Bertrand de Jouvenel, G. Del Vecchio.
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