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PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 92 PARASITOLOGIA CLÍNICA Tema 3 Trypanosoma spp. (Trypanosoma cruzi e Trypanosoma brucei) PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 93 TEMA 3 TRYPANOSOMA SPP. (TRYPANOSOMA CRUZI E TRYPANOSOMA BRUCEI) 2.1.4. TRYPANOSOMA CRUZI 1. INTRODUÇÃO Fig 27 – Trypanosoma cruzi no meio de eritrócitos O médico Carlos Chagas descobriu a doença e descreveu praticamente todos os seus aspectos. Ao realizar uma campanha contra a malária, a norte de Minas Gerais, encontrou tripanosomas no sangue de uma menina doente. Após exame às fezes de insetos existentes na região e ao sangue de animais mamíferos, PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 94 constatou também a presença dos mesmos parasitas. Carlos Chagas pôde então, descrever o agente causador, o transmissor e o modo de transmissão da doença, assim como comprovar a existência de vertebrados que são reservatórios silvestres e domésticos do parasita, relatando assim os aspectos básicos da epidemiologia da doença. Fig 28 - A doença de Chagas ou Tripanosomíase Americana foi descoberta pelo médico Carlos Justiniano Ribeiro das Chagas – Carlos Chagas – em 1909. A doença de Chagas é um problema sério no Continente Americano. É causada por um protozoário, que surge nos humanos como um hemoflagelado e como parasita intracelular sem flagelo externo – Trypanosoma cruzi. Os vectores da doença são insetos hematófagos (percevejos), conhecidos como “percevejos do beijo”, pois ao atacar as pessoas enquanto dormem têm o hábito de fazer a sua refeição de sangue na zona em redor dos lábios, mas esta designação é exagerada, visto que os percevejos picam qualquer parte do corpo com pele PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 95 exposta. É responsável por enorme morbilidade e mortalidade na América Latina. É uma doença de evolução crónica, debilitante e que apresenta quadros clínicos com características e consequências muito variadas. O tratamento é controverso e a vacina é improvável, devido à possível indução de autoimunidade pelos antigénios do Trypanosoma cruzi. 2. CLASSIFICAÇÃO TAXONÓMICA O Trypanosoma cruzi é um protozoário cuja classificação científica se pode descrever da seguinte forma: Reino Protista; Filo Euglenozoa; Classe Kinetoplastea; Ordem Trypanosomatida; Família Trypanosomatidae; Género Trypanosoma; Espécie Trypanosoma cruzi. Este protozoário é assim um ser unicelular eucariota, flagelado e com uma estrutura proeminente, conhecida como cinetoplasto. Esta estrutura corresponde a uma condensação de DNA localizado no interior de uma mitocôndria única e ramificada por todo o corpo do protozoário. Dentro da família Trypanosomatidae, o género Trypanosoma é um dos mais importantes por incluir uma série de espécies causadoras de doenças humanas importantes, como o Trypanosoma cruzi, agente da Doença de Chagas. Como já referido anteriormente, com base no comportamento do parasita nos seus hospedeiros, principalmente no vector, o género Trypanosoma foi dividido em dois grupos. O T. cruzi foi incluído no grupo chamado Stercoraria, onde se englobam tripanosomas que se desenvolvem no tubo digestivo do vector, progredindo no sentido da porção intestinal com libertação de formas infestantes pelas fezes. A grande complexidade no comportamento biológico dos tripanosomatídeos do género Trypanosoma levou à criação de alguns subgéneros, pertencendo o T. cruzi ao subgénero Schizotrypanum. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 96 Quanto ao vector de transmissão, os membros da subfamília Triatominae são os que apresentam grande interesse porque são hematófagos e transmissores do T. cruzi. A classificação taxonomica destes insetos faz-se principalmente através do conceito morfológico tradicional, e a subfamília, considerada inicialmente um grupo monofilético, sabe-se hoje que engloba duas grandes linhagens filogenéticas (T. cruzi I e II). Os transmissores do agente etiológico da doença de Chagas são artrópodes com a seguinte taxonomia: Filo Arthropoda; Classe Insecta; Subclasse Pterygota; Ordem Hemíptera; Subordem Heteroptera; Família Reduviidae; Subfamília Triatominae. São deste modo, insetos de corpo e pernas segmentados, em que o corpo está dividido em cabeça, tórax e abdómen, apresentando sempre três pares de pernas articuladas e um par de antenas. Tal como os percevejos em geral, apresenta cabeça com rostro (conjunto lábio-estiletes bucais) trissegmentado e dois pares de asas; estes percevejos têm a cabeça fina e alongada, pescoço bem marcado, rostro longo e reto, alcançando o primeiro par de pernas, e aparelho bucal do tipo picador-sugador. Tanto as fêmeas como os machos são hematófagos. Sugam sangue em todas as fases do seu ciclo evolutivo e vivem em média entre um a dois anos, com evolução de ovo, ninfa e adulto, com grande capacidade de reprodução e, dependendo da espécie, com intensa resistência ao jejum. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 97 Fig 29 – Ovos de triatomídeo vector da doença de Chagas Fig 30 - Estadios evolutivos de ninfas de triatomídeo vector da doença de Chagas A = ninfa de primeiro estadio; B = ninfa de segundo estadio; C = ninfa de terceiro estadio; D = ninfa de quarto estadio; E = ninfa de quinto estadio. 3. CARACTERÍSTICAS MORFOLÓGICAS As células de Trypanosoma são pequenas e heterotróficas. A estrutura da célula tem um papel muito importante, permitindo que ela se possa apresentar em três formas diferentes (tripomastigota, epimastigota e amastigota) durante o seu ciclo de vida, dependendo da localização no hospedeiro. A localização do cinetoplasto em relação ao núcleo e ao flagelo determina em que fase o Trypanosoma se encontra. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 98 Fig 31 – Estadios evolutivos de Trypanosoma cruzi Fig 32 – Caracterização dos tripomastigotas de Trypanosoma cruzi PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 99 Fig 33 – Caracterização de epimastigotas e amastigotas de Trypanosomacruzi Quando analisada ao microscópio electrónico de transmissão, técnica utilizada para o estudo da organização celular, a superfície de todas as formas evolutivas do T. cruzi apresenta um discreto glicocálice com aproximadamente 7 nm de espessura. Este glicocálice é constituído pelos carboidratos que se projetam para o lado externo da célula e que estão associados às proteínas periféricas ou integrais, formando as glicoproteínas e os lipídos, ou seja, os glicolipídos. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 100 Fig 34 - Esquema geral da forma epimastigota do T. cruzi mostrando as estruturas celulares PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 101 A membrana plasmática que envolve as células tem um importante papel de separação entre o ambiente extracelular e o intracelular. Como em todas as células, a membrana plasmática do T. cruzi apresenta uma bicamada lipídica à qual as proteínas de diferentes naturezas se encontram associadas em diferentes graus. A análise das proteínas da membrana plasmática do T. cruzi permitiu demonstrar que existem vários domínios na membrana plasmática que envolve o T. cruzi bem como dos outros tripanosomatídeos e que existem significativas diferenças entre as várias formas evolutivas. A membrana que reveste as formas epimastigotas é muito mais rica em proteínas integrais do que a que reveste a forma amastigota e esta maior que a que reveste a forma tripomastigota. No caso das formas epimastigotas e amastigotas encontra-se noutro domínio de membrana altamente especializado, localizado na região anterior do corpo do parasita, próximo à abertura da bolsa flagelar. Esta região especial é denominada citóstoma e está envolvida na captação de macromoléculas do meio. Todos os membros da família Tripanosomatidae apresentam um flagelo que emerge de uma área de invaginação da membrana que reveste o corpo celular e forma a bolsa flagelar. Na forma amastigota, o flagelo é muito curto e permanece frequentemente no interior da bolsa flagelar, razão pela qual por vezes não é visto ao microscópio óptico (o que levou à criação do termo amastigota - sem flagelo). O flagelo do T. cruzi apresenta uma estrutura básica semelhante a outros flagelos, sendo envolvido por uma membrana flagelar e contendo um axonema típico, que apresenta um padrão de nove pares de microtúbulos periféricos e um par central. O flagelo encontra-se associado a um corpúsculo basal, estrutura firmemente associada ao citoplasma da célula e que se caracteriza por apresentar nove “triplets” periféricos de microtúbulos. Esta estrutura encontra-se firmemente associada à membrana mitocondrial externa, na zona onde ocorre a condensação de DNA e que é conhecida como cinetoplasto. Ao lado do axonema, o flagelo das PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 102 formas epimastigota e tripomastigota apresenta uma estrutura complexa chamada de corpo paraxial ou estrutura paraflagelar e uma parte deste encontra-se aderida ao corpo celular. O facto de existir esta firme associação faz com que haja certo movimento do corpo quando ocorre o batimento flagelar, o que confere a impressão da existência de uma membrana ondulante. Um papel importante do flagelo do T. cruzi é fazer com que ele se movimente e este movimento é fundamental no final do ciclo intracelular, quando as formas tripomastigotas são formadas e se movimentam intensamente no citoplasma da célula hospedeira. Esta movimentação é aparentemente responsável pelo rompimento da célula já alterada e pela libertação de formas tripomastigotas no espaço intercelular, que necessitam migrar para interagir com novas células ou atingir a corrente sanguínea. O T.cruzi, bem como todos os membros da família Tripanosomatidae, apresenta uma única mitocôndria que se ramifica por todo o corpo do protozoário. Como em todas as células eucarióticas, a mitocôndria dos tripanosomatídeos apresenta um DNA mitocondrial. No entanto, além de um DNA que corresponde àquele encontrado noutras mitocôndrias, há uma grande quantidade de um DNA que se organiza na forma de mini círculos e se concentra numa determinada região da mitocôndria, localizada logo abaixo do corpúsculo basal, dando origem a uma estrutura intramitocondrial chamada de cinetoplasto. A concentração de DNA encontrada num cinetoplasto pode representar cerca de 30% do DNA total da célula. Esta estrutura é basofílica, pelo que pode facilmente ser observada ao microscópio óptico, em preparações coradas pelo corante de Giemsa. A ultraestrutura do cinetoplasto do T. cruzi varia de acordo com o estádio do ciclo evolutivo. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 103 4. CICLO DE VIDA Fig 35 – Ciclo de vida de Trypanosoma cruzi O T. cruzi pode infectar mais de 100 espécies de mamíferos. Na natureza, o parasita existe em diferentes populações de hospedeiros vertebrados, tais como seres humanos, animais selvagens e domésticos, e invertebrados, como os insetos vectores. Apresenta variações morfológicas e funcionais, alternando entre estadios que sofrem divisão binária (epimastigotas no tubo digestivo do vector e amastigotas nas células de mamíferos) e formas não replicativas e infectantes (tripomastigotas metacíclicos nas fezes e urina do vector e tripomastigotas no sangue de mamíferos). PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 104 Fig 36 – Ciclo de vida de Trypanosoma cruzi segundo o CDC Durante a fase no hospedeiro invertebrado, o T. cruzi transforma-se em epimastigotas e então, no intestino posterior, estes se diferenciam em tripomastigotas metacíclicos (metaciclogénese) os quais, eliminados pelas fezes e urina do insecto vector, são capazes de infectar o hospedeiro vertebrado. O parasita não penetra na pele intacta, só infectando o hospedeiro por via mucosa ou através de um ferimento na pele (por exemplo, ao coçar devido à comichão resultante da picada). Nos mamíferos, os parasitas desenvolvem-se no interior das células, sendo libertados na corrente sanguínea após rompimento destas. Durante a alimentação do inseto, as formas tripomastigotas que se encontram no sangue do hospedeiro vertebrado infectado, são ingeridas pelo inseto. Alguns dias após, PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 105 os parasitas transformam-se em epimastigotas e esferomastigotas. Uma vez estabelecida a infecção no estômago do inseto, as formas epimastigotas dividem- se repetidamente por divisão binária e podem aderir às membranas das células intestinais. Ligam-se em grande número à cutícula retal, diferenciam-se em tripomastigotas metacíclicos, podendo assim ambas as formas, diferenciadas ou não, ser eliminadas pelas fezes ou urina. O ciclo no hospedeiro vertebrado inicia-sequando as formas infectantes eliminadas pelo inseto infectado entram em contato com mucosas ou regiões lesadas da pele destes hospedeiros. As formas tripomastigotas metacíclicas são altamente infectantes, podendo invadir os primeiros tipos celulares que encontram (macrófagos, fibroblastos ou células epiteliais, entre outras). Ao invadirem estas células ocorre proliferação intracelular e libertação de formas tripomastigotas, assim como algumas formas intermediárias e amastigotas (estas últimas em menor proporção) no espaço intercelular. Estas formas podem invadir novas células localizadas no local da infecção, mas se atingirem a corrente sanguínea, podem alcançar todos os tecidos do hospedeiro, onde vão invadir diferentes tipos celulares. A cinética de todo este processo evolutivo varia com a subespécie do T. cruzi, com o animal infectado e com o estabelecimento da infecção no inseto vector. No entanto, no sangue apresenta-se sempre como microrganismo unicelular com um flagelo (para se deslocar) e corpo alongado e curvo, afilando-se nas extremidades. Quando passa do sangue para as células dos tecidos, adopta a forma ovóide, cresce e reproduz-se rapidamente, inundando a célula invadida. Multiplica-se a ponto de destruir a célula e, rompendo-a, retorna à corrente sanguínea, onde reassume a forma alongada e se espalha por todo o organismo, invadindo novas células em qualquer parte do corpo, mas de preferência as fibras PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 106 musculares e, muito particularmente, os músculos cardíacos. A partir daqui o ciclo repete-se indefinidamente, servindo a forma alongada para locomoção e migração do parasita e a forma ovóide para assegurar a sua permanência e reprodução. 5. PATOLOGIA E SINTOMATOLOGIA O T. cruzi após ser depositado sobre a pele humana, pode ser introduzido no organismo por duas vias principais: Atravessando a pele, infecta o local da picada e passa para o sangue; Penetrando em qualquer mucosa (boca e olho principalmente). Se uma pessoa picada por um percevejo infectado, coçar o local da picada e depois passar os dedos infectados sobre os olhos, dias depois estará com a conjuntiva inflamada e as pálpebras inchadas de tal forma que não vai conseguir abri-las. Semanas mais tarde surgirão outros sintomas da infecção, como febre, mal-estar, fraqueza, palpitações e cansaço generalizado. Estes são os sintomas típicos da doença de Chagas. Nesta altura, diz-se que a doença está na sua forma aguda, e tanto pode ser fatal para o paciente, em consequência de uma inflamação difusa e intensa a nível cardíaco (miocardite), como também é possível que os sintomas regridam espontaneamente. Esta regressão pode durar semanas, meses ou até anos sem qualquer outra manifestação, passando esta doença a estar na forma crónica. Em geral, passado o período de cura aparente, surgem as manifestações da cardiopatia – tensão arterial baixa, taquicardia ou bradicardia, tonturas, falta de ar, inchaço nas pernas, podendo então o paciente morrer quer de forma repentina, quer lentamente. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 107 Fig 37 – A forma aguda da doença de Chagas - A, B: formas metaciclícas do Trypanosoma cruzi; C: chagoma cutâneo; D: miocardite aguda chagásica, com presença de ninhos de amastigotas do T. cruzi nos cardiomiócitos (hematoxilina e eosina, 100X); E: Conjuntiva inflamada. Normalmente, o período de incubação desta parasitose varia de 5 - 14 dias após a transmissão pelo percevejo e 30 - 40 dias para infecções por transfusão sanguínea. A descoberta da doença nesta fase inicial é extremamente importante, pois os recursos para tratamento disponíveis hoje em dia, podem proporcionar a cura total da infecção, especialmente se o medicamento for dado adequada e precocemente. Passada esta fase aguda, as manifestações da doença vão depender de vários fatores, como a capacidade de defesa do organismo e a intensidade agressora do tripanosoma. Quando passa à fase crónica pode afetar vários órgãos, sendo o coração e o sistema nervoso os mais críticos. Enquanto a infecção se estende, a outros tecidos e a parasitemia aumenta, a resposta imune começa a ser montada com a produção de anticorpos e intensa reatividade celular no local de inoculação. Caso esta resposta se torne mais intensa e eficaz, o número de parasitas circulantes diminui progressivamente até que sejam PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 108 completamente eliminados da circulação, caracterizando o fim da fase aguda da doença. Com o fim da fase aguda, os tripanosomas que não foram eliminados pela resposta humoral, podem permanecer viáveis no interior das células infectadas. A partir daqui começa a fase crónica da doença, que se pode tornar oligossintomática ou não revelar manifestações evidentes da doença, a não ser a reação serológica. Nas formas sintomáticas mais graves, ocorre dilatação das cavidades: cardiopatia crónica, megaesófago e megacólon. Os parasitas ao se multiplicarem (no coração, por ex.), ocupam o maior eixo do músculo e formam grandes aglomerados, autênticos ninhos. A lesão predominante é sobre o miocárdio, mas são atingidos também o pericárdio, o endocárdio e as artérias coronárias. Nas fibras musculares, eles alteram a disposição em camadas, que é a principal característica das fibras normais. No sistema nervoso originam encefalites e mielites. No sistema sanguíneo, provocam uma linfocitose precoce e persistente. A transmissão desta doença pode ocorrer também durante a gravidez, de mãe para filho, ou através de transfusão sanguínea. A gravidez ao provocar depressão transitória da imunidade mediada por células, para não haver rejeição do feto, pode induzir uma maior susceptibilidade à infecção. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 109 Fig 38 - Forma crónica cardíaca da doença de Chagas - A: lesão anatómica característica da miocardite crónica chagásica (aneurisma da ponta do ventrículo esquerdo do coração); B: aspecto microscópico da miocardite crónica chagásica (hematoxilina e eosina, 100X); C: sistema de condução do coração. Fibrose e inflamação crónica (Tricrómico de Masson, 100X); D: traçado eletrocardiográfico mostrando sucessivas paragens sinusais. Fig 39 – Megacólon: uma das patologias mais drásticas na doença de Chagas PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 110 A reativação da doença de Chagas em pacientes imunodeprimidos mostra que o parasita está presente na fase crónica da doença, provavelmente na forma latente e sob constante vigilância imunológica. Durante a imunodepressão, a ruptura da vigilância imunológica causa uma intensa proliferação do parasita e invasão tecidual, de forma semelhante ao que ocorre na fase aguda. Fig 40 – Cardiopatiadevida à infecção com Trypanosoma cruzi Vários estudos evidenciam que o T. cruzi, da mesma forma que muitos outros agentes infecciosos parasitários, induz alterações no sistema imune do hospedeiro que lhe permitem evadir-se dos ataques imunológicos durante e após a entrada nas suas células. Ocorre supressão da imunidade mediada por células T e aumento da apoptose de linfócitos, o que pode contribuir para a persistência do parasita no hospedeiro. O T. cruzi diminui a expressão das moléculas CD3+, CD4+ e CD8+ da superfície dos linfócitos. A miocardite crónica chagásica tem predominância de células T CD8+ que por outro lado são as células que aumentam na presença de PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 111 antigénios do T. cruzi, enquanto o número de células T CD4+ permanece consistentemente baixo. 6. EPIDEMIOLOGIA E DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA Fig. 41 – Áreas de preferência do barbeiro O Trypanosoma cruzi é o agente responsável pela tripanosomíase americana, sendo por isso encontrado em numerosos países no continente americano. O seu habitat varia consoante a espécie, sendo os fatores ambientais determinantes na sua distribuição. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 112 Fig. 42 – Mapa com a distribuição da Tripanossomíase americana ou doença de Chagas (a vermelho) As formas correntes de transmissão da doença de Chagas humana são as ligadas diretamente ao vector, à transfusão de sangue, à via congénita, e mais recentemente, as que ocorrem via oral, pela ingestão de alimentos contaminados. Os mecanismos menos comuns envolvem acidentes de laboratório, manuseamento de animais infectados, transplante de órgãos e pelo leite materno. Uma via teoricamente possível, mas extremamente rara, é a transmissão sexual. A doença de Chagas passou a constituir um problema de saúde pública, após a domiciliação dos vetores, provocada pela desagregação ambiental. Deve ser considerado o mecanismo primário de difusão da doença, pois dele dependem as outras formas de transmissão. Das várias espécies de insetos vetores, todas da subfamília Triatominae, cerca de 12 espécies são as de maior interesse na infecção humana, pela sua capacidade de invadirem e procriarem dentro das casas. Dentre elas destacam-se, o Triatoma infestans ao sul e o Rhodnius prolixus e Triatoma dimidiata, ao norte da linha do Equador. Quanto à distribuição epidemiológica dos grupos T. cruzi I e T. cruzi II verifica-se que as linhagens do grupo T. cruzi I predominam no ciclo silvestre e as linhagens PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 113 do grupo T. cruzi II predominam no ciclo doméstico da transmissão do parasita. A ligação entre os dois ciclos é feita pelos vectores que albergam o T. cruzi II e que invadem os domicílios. Em países do norte da América do Sul e na América Central e México, a Doença de Chagas é provocada por linhagens do grupo T. cruzi I. Fig 43 – Ciclo silvestre e ciclo doméstico de Trypanossoma cruzi. Em países do Sul, isolados do grupo T. cruzi II originam diferentes apresentações clínicas da doença de Chagas. Desta forma, parece claro que a patogénese da Doença de Chagas resulta da inter-relação entre as características genéticas (e, portanto, biológicas) dos isolados do parasita e as características imunogenéticas do hospedeiro humano. Atualmente, estes marcadores genéticos estão a ser ativamente pesquisados, uma vez que têm um valor preditivo para a evolução da doença e, consequentemente, serão úteis para a adopção de procedimentos terapêuticos no âmbito do Sistema de Saúde. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 114 A possibilidade de infecção pela transfusão de sangue depende de vários fatores, como a presença de parasitemia no momento da dádiva, o volume de sangue transfundido, o estado imunológico do receptor, a prevalência da infecção pelo T. cruzi entre os candidatos a dadores de sangue e da qualidade do sangue transfundido. Com exceção do plasma liofilizado e dos derivados sanguíneos expostos a procedimentos físico-químicos de esterilização (albumina, gamaglobulina), todos os componentes sanguíneos são infectantes. O T. cruzi permanece viável a 4°C por 18 dias e até 250 dias, se mantido à temperatura ambiente. A principal via da transmissão vertical é a transplacentária e pode ocorrer em qualquer fase da doença materna (aguda indeterminada ou crónica). A transmissão também pode ocorrer em qualquer época da gestação, sendo mais provável no último trimestre, ou ocorrer na passagem no canal do parto, pelo contato das mucosas do feto com o sangue da mãe infectada. Os fatores relacionados com a transmissão congénita da doença de Chagas ainda são pouco conhecidos, mas sabe-se que a mãe pode transmitir o parasita numa gestação e não transmitir na gestação seguinte. O grau de parasitemia e as características da população do parasita nas mães infectadas, fatores placentários, obstétricos, imunitários e de nutrição materna podem estar relacionados com esse mecanismo de transmissão. As formas crónicas da doença, particularmente as formas cardíacas, não dispõem de tratamento específico, pelo que se procede à Vigilância Epidemiológica. Os objetivos da vigilância epidemiológica da Doença das Chagas são: Detectar todos os casos agudos, para adopção das medidas de controlo; PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 115 Realizar inquéritos, para conhecer as áreas onde continua a transmissão vectorial; Programa de controlo de vectores domiciliares; Impedir a transmissão por transfusão; Impedir a expansão da doença. Todos os casos agudos devem ser notificados, visando uma investigação rápida e adopção de medidas de controlo. Os inquéritos devem ser realizados nas áreas endémicas, para avaliar os resultados da ação vectorial e orientar quanto à necessidade ou não de intensificação das ações de controlo dos triatomídeos domiciliares. Os triatomídeos têm ampla distribuição geográfica na América, desde o sul dos Estados Unidos até ao Chile e Argentina. Das 137 espécies conhecidas, a grande maioria é americana. Todas as espécies são potenciais vetores para o T. cruzi, mas sete são as de maior importância epidemiológica na América do Sul, onde esta doença figura entre as quatro principais endemias: Triatoma infestans, T. brasiliensis, T. dimidiata, T. pseudomaculata, T. sordida, Panstrongylus megistus e Rhodnius prolixus. Fig 44 – Exemplos de triatomídeos PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 116 Fig 45 – Locais preferenciais para os barbeiros A doença estava primitivamente limitadaaos pequenos mamíferos das matas e campos da América, desde a Patagónia até ao sul dos Estados Unidos. Esses animais (tatus, gambas, roedores) conviviam com percevejos silvestres, e através de uma intervenção biológica, o T. cruzi circulava entre eles. Com a chegada do Homem e os processos de colonização, em muitos locais ocorreram desequilíbrios ecológicos (desmatamentos, queimadas) e os percevejos foram desalojados, invadindo as habitações rústicas e pobres dos lavradores e colonos. Estas casas, com reboco defeituoso e sem forro, servem de habitat para o percevejo, que dorme de dia nas ranhuras das paredes e sai à noite para sugar o sangue de que se alimenta, defecando ao mesmo tempo e ocorrendo então a transmissão do parasita através das suas fezes. Deste modo, a doença chegou ao Homem e aos mamíferos domésticos. Actualmente supõe-se que existam 18 milhões de pessoas infectadas pelo T. cruzi e que morram cerca de 20000 PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 117 por ano. Existem já relatados casos de Doença de Chagas tanto a norte como a sul da América do Norte. Pensa-se que os imigrantes da América Central e do México são a causa da migração da doença para norte 7. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL O diagnóstico da infeção pelo Trypanosoma cruzi, agente causal da doença de Chagas, tem como base três parâmetros: As manifestações clínicas que, se presentes, permitem ao médico suspeitar da infecção; Os antecedentes epidemiológicos, que também induzem o clínico à suspeita; E os métodos de diagnóstico, em geral laboratoriais, que permitem confirmar ou excluir a suspeita diagnóstica na maioria das situações. Caberá ao clínico, na posse destas informações, decidir se o indivíduo está infetado ou não. Na infecção pelo T. cruzi, mais da metade dos infectados não apresenta cardiopatia, nem megaesófago ou megacólon, as principais manifestações da doença de Chagas. Nestes casos em particular, o diagnóstico é sugerido pelos antecedentes epidemiológicos e confirmado ou excluído pelo resultado dos exames laboratoriais. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 118 Os primeiros métodos desenvolvidos foram os parasitológicos e, passado quase um século, o diagnóstico continua a ser realizado da mesma forma, com a pesquisa direta do T. cruzi no sangue periférico. Outros testes foram utilizados, tais como a detecção de antígeno circulante, antigenúria e testes de hipersensibilidade tardia, porém não foram incorporados na rotina e não são utilizados. Inúmeras tentativas de utilização de testes serológicos empregando outros métodos (testes de precipitação, de aglutinação de látex, de floculação) não frutificaram, ora pela baixa eficiência ora pelos custos elevados. Em 1962, Cerisola e colaboradores descreveram a utilização do teste de hemaglutinação indireta (HAI) para o diagnóstico serológico desta infecção. Este teste, de fácil execução e bom desempenho, é utilizado até hoje, embora apresente sensibilidade menor que os testes de imunofluorescência e de ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay). Por esta razão, não é recomendado para exclusão de dadores de sangue. Pouco tempo depois (1966) Camargo aperfeiçoou a utilização do teste de imunofluorescência indireta, já descrito por Fife e Muschel. Dada a sua elevada sensibilidade, é ideal para estudos epidemiológicos, assim como para diagnóstico, embora apresente reações cruzadas, em particular com leishmanioses. O mesmo continua a ser usado até hoje, simultaneamente com a HAI e a ELISA, constituindo os três os chamados testes convencionais, com os quais há grande experiência em todos os países da América Latina. Em 1975, Voller e colaboradores descreveram o teste imune enzimático de ELISA em amostras de papel-filtro, método que foi aperfeiçoado e que é atualmente utilizado na rotina diagnóstica dos serviços de hemoterapia e de diagnóstico. De 1976 até ao presente, a biologia molecular aprimorou os métodos existentes e desenvolveu outros. Na década de 1990, os estudos dirigiram-se para a amplificação de ácidos nucléicos do próprio parasita, para diagnóstico PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 119 parasitológico, pela amplificação por reação da polimerase em cadeia (PCR). Hoje em dia, é possível verificar a presença de um parasita em 20 ml de sangue. Atualmente, na fase aguda e nas formas crónicas da doença de Chagas o diagnóstico etiológico pode ser realizado pela detecção do parasita através de métodos parasitológicos (diretos ou indiretos) e pela presença de anticorpos no soro, através de testes serológicos. Os mais utilizados são a imunofluorescência indireta (IFI), HAI e ELISA. Testes de maiores complexidades como o teste molecular, utilizando PCR acoplado à hibridização com sondas moleculares, e o Western blot (WB) têm sido utilizados como testes confirmatórios tanto na fase aguda como nas formas crónicas da doença. Na fase aguda da doença de Chagas o diagnóstico laboratorial é, principalmente, baseado na observação do parasita presente no sangue dos indivíduos infectados, através de testes parasitológicos diretos como exame de sangue a fresco, esfregaço e gota espessa. O teste direto a fresco é mais sensível que o esfregaço corado e deve ser o método de escolha para a fase aguda. Fig. 46 - Formas tripomastigotas sanguíneas do Trypanosoma cruzi em esfregaços corados pelo Giemsa. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 120 Fig. 47 - Formas epimastigotas de cultura do Trypanosoma cruzi corados pelo Giemsa. Na fase crónica da doença o diagnóstico parasitológico direto torna-se difícil devido à ausência de parasitémia. Assim, o diagnóstico na fase crónica é essencialmente serológico e deve ser realizado utilizando dois testes de princípios metodológicos diferentes: Um teste de elevada sensibilidade (ELISA com antígeno total ou fracções semi-purificadas do parasita ou a IFI); E outro de alta especificidade (ELISA, utilizando antígenos recombinantes específicos do T. cruzi). PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 121 Fig. 48 - Fluxograma para a realização de testes laboratoriais para a doença de Chagas na fase crónica. PCR=Polymerase Chain Reaction; WB=Western Blot. Desde o início de 2007, o teste para despiste da doença de Chagas é obrigatório nos bancos de sangue americanos. 8. TRATAMENTO E RESISTÊNCIA A recuperação de uma infeção requer a geração de uma resposta imunológica eficiente que possa eliminar, ou pelo menos controlar, o patógeno infectante. Os componentes clássicos da imunidade inata, como células dendríticas (DC), macrófagos e células NK parecem ter um papel crucial na imunidade anti-T. cruzi. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAULJ S SANTOS – 2017 Página 122 No sistema imune inato, uma classe de receptores de reconhecimento de padrões (os PRRs) é expressa nas células apresentadoras de antígenos (APC), macrófagos e DC, que reconhecem estruturas denominadas de padrões moleculares associados a patógenos (os PAMPs). Entre os diversos PRRs, os receptores tipo Toll (TLR) são os melhor estudados. Cada membro dessa família reconhece um componente essencial dos diversos microrganismos e, atuando em conjunto, esses receptores reconhecem a maioria dos patógenos. Na infeção foi demonstrada a diminuição da atividade migratória e do processo de maturação de DC, bem como da apresentação antigénica via MHC (complexo principal de histocompatibilidade) de classe I. Juntos, estes dados sugerem que esta desregulação poderá comprometer a resposta celular, facilitando a permanência do parasita em órgãos-alvo da infecção. Além da susceptibilidade genética diferencial do hospedeiro, é possível que mecanismos imunológicos envolvidos na interação conjunta de células do sistema imune gerem uma patologia altamente complexa, dificultando o desenvolvimento de vacinas e imunoterapias eficientes. O desenvolvimento de estratégias terapêuticas que visam a regulação da funcionalidade celular e da modulação de componentes inflamatórios, associado às drogas antiparasitárias, seriam alvos importantes no tratamento da doença de Chagas. A medicação é dada sob acompanhamento médico nos hospitais, devido aos efeitos colaterais que provoca, e deve ser mantida, no mínimo, por um mês. O efeito do medicamento costuma ser satisfatório na fase aguda da doença, enquanto o parasita está na corrente sanguínea. Na fase crónica, não compensa utilizá-lo e o tratamento é direcionado às manifestações da doença a fim de controlar os sintomas e evitar as complicações. O nifurtimox e o benzonidazol foram introduzidos na clínica nas décadas de 60-70. Nenhum destes compostos é ideal por vários fatores: PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 123 o Não são ativos durante a fase crónica da doença e apresentam sérios efeitos colaterais; o Requerem administração por longos períodos de tempo sob supervisão médica; o Há grande variação na susceptibilidade de isolados do parasita à ação destas drogas; o Populações de parasitas resistentes a ambos compostos têm sido relatadas; o Apresentam elevado custo; o E não há formulações pediátricas, apesar das crianças até aos 12 anos terem maiores chances de beneficiar com o tratamento, por não apresentarem ainda a sintomatologia crónica da doença. Ambos os compostos têm sido utilizados, nomeadamente no tratamento de pacientes agudos e crónicos recentes, nos quais se observam resultados positivos, principalmente em crianças ( 15 anos). Calcula-se uma média de cura de cerca de 80%, no tratamento de infecções congénitas, transplantes de órgãos de dadores infectados e quadros de re-agudização de pacientes imunodeprimidos. Apesar da maioria dos estudos revelarem uma baixa eficiência destes fármacos durante a terapia de pacientes crónicos, avaliações recentes têm sugerido o tratamento de modo a retardar ou mesmo evitar a evolução da doença crónica. O conhecimento sobre a síntese de esteróis em fungos levou à possibilidade de interferência nesta via, culminando com o desenvolvimento de uma gama de drogas para o tratamento de micoses superficiais e sistémicas. O T. cruzi, à semelhança dos fungos, sintetiza ergosterol, e não colesterol, e assim, neste parasita, etapas da biossíntese de esteróis que são divergentes em relação à síntese realizada por células de mamíferos têm sido intensamente estudadas como PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 124 alvo quimioterápico. A lovastatina em combinação com cetoconazol ou a alilamina terbinafina mostraram-se ativas in vitro e in vivo sobre o parasita. Também drogas que contêm nitrogénio (bifosfonatos) e que bloqueiam a síntese de esteróis se têm mostrado eficazes, como pamidronato e risedronato. Novos azóis têm também sido estudados, alguns dos quais com bons resultados, como albaconazol (sobre amastigotas intracelulares e epimastigotas) e posaconazol (sobre epimastigotas, inibindo a síntese de ergosterol). Este último age em sinergia com a amiodarona (composto antiarrítmico frequentemente prescrito para o tratamento da Doença de Chagas sintomática). As diaminas têm sido estudadas, por se complexarem com o DNA, levando à inibição seletiva de enzimas e/ou à inibição direta da transcrição. No entanto, apenas alopurinol, itraconazol, fluconazol e posoconazol foram submetidos a ensaios clínicos desde a introdução do nifurtimox e do benzonidazol. Este facto deve-se, em muitos casos, à inexistência de indicação forte do efeito curativo, ao potencial efeito tóxico e/ou teratogénico (em geral somente analisado em modelos in vitro), realçando a necessidade do desenvolvimento de modelos experimentais mais adequados, bem como a padronização de protocolos de ensaio in vitro. Se tal não se verificar, continuar-se-á a dispender muito esforço em estudos experimentais sem se chegar a uma droga que possa ser posteriormente submetida a ensaios clínicos. Com o conhecimento acumulado sobre a biologia e a bioquímica de T. cruzi, é urgente a agregação e convergência de esforços dirigidos à compreensão do mecanismo de ação de potenciais compostos contra este parasita. Outra linha atualmente em desenvolvimento diz respeito à elaboração de diferentes formulações de drogas que possam ser direcionadas para sítios adequados. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 125 9. CONTROLO E PREVENÇÃO Apesar de muitas pesquisas e de grandes progressos alcançados no estudo da doença de Chagas, o seu tratamento apresenta, ainda hoje, muitos problemas. Novos medicamentos estão a ser investigados, mas as lesões do coração e outros órgãos, que já estiverem presentes, são irreversíveis e não serão curadas com a eliminação do parasita. Não existindo vacina contra esta doença, a melhor forma de enfrentá-la é através da prevenção e controlo. Devido ao ciclo de transmissão, as medidas de controlo são dirigidas ao combate do vector e ao controlo de qualidade do sangue transfundido. Controlo da transmissão vectorial: Melhoria das habitações; Controlo químico: utilização de inseticidas nas habitações infestadas. Se a espécie é estritamente domiciliária, o objetivo é a sua eliminação, como é o caso do T. infestans. No caso do Panstrongylus megistus, T. brasiliensis, T. pseudomaculata e T. sordida, o controlo pretendido é a manutenção dos intradomicílios livres de colónias, visto que a existência de focos silvestres possibilita a reinfestação das habitações; PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 126 Fig. 49 - Controlo químico: utilização de inseticidas nas habitações infestadas Controlo biológico: o uso de inibidores do crescimento, feromonas, microrganismos patogénicos e esterilização induzida estão em estudo, masa utilização sistemática destes métodos não é aplicável na prática. O controlo da transmissão por transfusão consiste na fiscalização das unidades de hemoterapia, fazendo o controlo de qualidade do sangue. Portadores do parasita, mesmo que assintomáticos, não podem doar sangue. O controlo da transmissão em laboratório deve ser feito através de rigoroso uso das normas de biossegurança. A transmissão pelo leite materno, apesar de descrita, não tem significado epidemiológico. Não existe prevenção da forma congénita. 10. PANORAMA GERAL DA DOENÇA NO BRASIL (2013) No Brasil, atualmente predominam os casos crônicos de doença de Chagas decorrentes de infecções adquiridas no passado. No entanto, nos últimos anos, a PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 127 ocorrência de doença de Chagas aguda (DCA) tem sido observada nos estados da Amazônia Legal, com ocorrência de casos isolados em outros estados. No passado, a área endêmica, ou seja, com risco de transmissão da doença de Chagas pela presença de vetores infectados, conhecida no final dos anos 70, incluía 18 estados e mais de 2,2 mil municípios, nos quais se comprovou a presença de triatomíneos e destes 711 com presença do Triatoma infestans, principal vetor estritamente domiciliar no Brasil. Ações sistematizadas de controle químico foram instituídas a partir de 1975 mantidas em caráter regular, e desde então levaram a uma expressiva redução da presença de T. infestans e, simultaneamente, da sua transmissão às pessoas. Em reconhecimento, o Brasil recebeu em 2006 a certificação internacional de interrupção da transmissão da doença pelo T. infestans, concedida pela Organização Panamericana da Saúde e Organização Mundial da Saúde. Com o sucesso do controle do mecanismo majoritário de transmissão os mecanismos minoritários passaram a ter importância em saúde pública. Hoje, o perfil epidemiológico da doença apresenta um novo cenário com a ocorrência de casos e surtos na Amazônia Legal por transmissão oral e vetorial (sem colonização e extradomiciliar). Com isso, evidenciam-se duas áreas geográficas onde os padrões de transmissão são diferenciados: a) a região originalmente de risco para a transmissão vetorial, onde ações de vigilância epidemiológica, entomológica e ambiental devem ser concentradas, com vistas à manutenção e sustentabilidade da interrupção da transmissão da doença pelo T. infestans e por outros vetores passíveis de domiciliação; b) a região da Amazônia Legal, onde a doença de Chagas não era reconhecida como problema de saúde pública, as ações de vigilância devem ser estruturadas e executadas de forma extensiva e regular na região por meio de: detecção de casos febris, apoiada na PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 128 vigilância da malária; identificação e mapeamento de marcadores ambientais, a partir do reconhecimento das áreas preferenciais das diferentes espécies de vetores prevalentes e na investigação de situações em que há evidências ou suspeita de domiciliação de alguns vetores. Surtos de doença de Chagas aguda relacionados à ingestão de alimentos contaminados (caldo de cana, açaí, bacaba, entre outros) e casos isolados por transmissão vetorial extradomiciliar vem ocorrendo especialmente na Amazônia Legal. No período de 2000 a 2011 foram registrados mais de mil e duzentos casos, 70% por transmissão oral, 7% por transmissão vetorial e 22% sem identificação do modo de transmissão. A alteração do quadro epidemiológico da doença de Chagas no Brasil promoveu a mudança nas ações e estratégias de vigilância, prevenção e controle, por meio da adoção de um novo modelo de vigilância epidemiológica, de acordo com os padrões de transmissão da área geográfica: 1. Regiões originalmente de risco para a transmissão vetorial (AL, BA, CE, DF, GO, MA, MG, MS, MT, PB, PE, PI, PR, RN, RS, SE, SP, TO): vigilância epidemiológica visa detectar a presença e prevenir a formação de colônias domiciliares do vetor; atenção integral aos portadores crônicos da infecção. 2. Amazônia Legal (AC, AM, AP, RO, RR, PA, parte do TO, MA e do MT): vigilância centrada na detecção precoce de casos agudos e surtos e apoiada na Vigilância Epidemiológica da Malária, pela capacitação de microscopistas para identificação de T. cruzi nas lâminas para diagnóstico da malária e nas ações preventivas da vigilância sanitária sobre as cadeias produtivas de alimentos. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 129 Fig. 50 – A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), através do Programa de Melhoria Habitacional para o Controle da Doença de Chagas (MHCDCh) considerou os municípios classificados (a vermelho) como sendo de Alto Risco para a transmissão da doença por isso prioritários para a construção de novas habitações. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 130 2.1.5. TRYPANOSOMA BRUCEI DOENÇA DO SONO Fig 51 – Tripanossomas á volta de eritrócitos (micrografia electrónica) 1. INTRODUÇÃO A Tripanosomíase Africana Humana (HAT) também conhecida por doença do sono é uma doença causada por um grupo de parasitas designado por tripanossomas. Existem 2 subespécies de Trypanossoma brucei, o protozoário causador da HAT: T. brucei gambiense e o T. brucei rhodesiense. Enquanto a infecção causada tanto pelo T. b. gambiense e T. b. rhodesiense têm como resultado final a HAT, as manifestações clínicas da infecção, o tratamento, a distribuição geográfica do parasita, a epidemiologia, a transmissão e as opções de controlo diferem significativamente. Assim, cada forma de HAT é de facto uma doença diferente. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 131 O aumento exponencial da prevalência de Tripanosomíase Africana Humana no inicio do século XX é um dos melhores exemplos de uma infecção emergente. Registos de comerciantes árabes sugerem que a doença do sono existiu durante centenas de anos em focos limitados e discretos no lago Chad e na base do Congo, contudo com o inicio da era colonial nos primeiros anos de 1800, a distribuição geográfica da HAT difundiu-se até à região subsariana. A HAT é a única doença parasitária transmitida por vector cuja distribuição geográfica está confinada ao continente africano. Registaram-se três epidemias graves: uma no fim do Século XIX, a segunda nos anos 1920 e a terceira desde os anos 70 até ao presente. A doença evolui-se em duas fases, às quais se segue um período assintomático de várias semanas ou meses. A fase inicial caracteriza-se normalmente por sintomas idênticos aos do paludismo, incluindo, fadiga, dor de cabeça, febre recorrente e inchaço dos nódulos linfáticos. Nas fases avançadas, a doença afecta o sistema nervoso central, causando graves perturbações neurológicas e mentais e deixandoos pacientes na dependência de outrem. Os indivíduos infectados ficam debilitados, às vezes por muitos anos, o que causa perdas económicas, pobreza e miséria social. Quando não tratada, a Tripanosomíase Humana Africana é absolutamente fatal. Nos dias de hoje a Tripanosomíase Africana Humana é considerada uma das doenças mais negligenciadas, em termos do desenvolvimento de fármacos e continua a infectar África. Dada a re-emergência da tripanosomíase, tanto humana como animal, o seu potencial epidémico, a taxa elevada de mortalidade e o seu impacto negativo no PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 132 desenvolvimento sócio-económico de muitos países a tripanosomíase representa um grave problema de saúde pública na região africana. HAT tem maior impacto sobre a saúde e desenvolvimento num largo número de pessoas marginalizadas, e coincide com as populações mais pobres do planeta. Fig 52 - A infecção contribui mais para a pobreza através dos seu efeitos no gado do que em humanos. Nos animais, a tripanossomíase africana causa perdas económicas na ordem dos 4,5 biliões de dólares todos os anos. A presença da mosca de tsetse limita efectivamente a produção de carne em vastas regiões, contribuindo para o aumento da pobreza. 2.TAXONOMIA E BIOLOGIA O T. brucei pertence ao género Trypanosoma na família dos Trypanosomatidae, um amplo grupo de parasitas protozoários unicelulares. Com base no seu modo de transmissão, dois sistematas, Hoare e Losos concordaram na divisão do género PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 133 Trypanosoma em duas secções: “Salivaria” e “Stercoraria”. Os tripanosomas da secção Salivaria são aqueles transmitidos através das glândulas salivares (inoculativa), e os Stercoraria aqueles que são transmitidos por meio das fezes dos insectos vectores (contaminativa). O T. brucei pertence à secção “Salivaria”. Fig 53 - Representação esquemática da filogenia do Tripanosoma brucei (adaptado de www.biomedcentral.com) As formas tripomastigotas encontradas na corrente sanguínea são basicamente lancetadas, o corpo é alongado e achatado. Ao corte transversal apresenta-se elíptico ou oval e as suas extremidades são afiladas. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 134 Fig 54 – Formas que o trypanossoma pode assumir Fig 55 – Estrutura de Trypanossoma brucei A extremidade pela qual o parasita avança durante a locomoção é normalmente descrita como anterior final. Ela termina tipicamente num fino ponto, enquanto o final da extremidade posterior varia na forma, mas geralmente é mais larga, afilando mais abruptamente ou terminando numa forma rombuda. As dimensões PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 135 do corpo variam entre 20 a 30 e 1.5 a 3.5 µm de largura, com um flagelo único. O flagelo emerge da terminação posterior, desenvolvendo-se ao longo da membrana celular, a qual está ligada por uma membrana ondulante e estende-se para além da parte anterior da célula. A base do flagelo está associada ao cinetoplasto, uma grande vesícula contendo o DNA da única mitocôndria. O tripomastigote é a única forma observada no mamífero hospedeiro, enquanto a forma epimastigote ocorre durante o seu desenvolvimento da mosca tsetse. Durante o seu ciclo de vida, as células T. brucei multiplicam-se por fissão binária e é considerado um organismo exclusivamente extracelular. 3.DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA A mosca de tsetse vive na vegetação da savana e das florestas da África equatorial. Assim a doença do sono encontra-se limitada a uma região perfeitamente definida. As taxas de tripanosomiase africana são superiores nas regiões da África central, onde existe a coexistência da mosca e humanos. O tipo específico de T. brucei que infecta os hospedeiros mosca de tsetse/humanos varia entre as regiões: T. b. rhodesiense que se encontra, sobretudo na África oriental (Botswana, Etiópia, Quénia, Malawi, Tanzânia, Uganda, Zaire e Zimbabwe), enquanto que T. b. gambiense encontra-se nas áreas da África ocidental e central. O Trypanosoma brucei gambiense encontra-se na África central e ocidental, causando uma infecção crónica - uma pessoa pode-se encontrar infectada durante meses, e ate mesmo anos sem se desenvolverem sintomas - a qual emerge apenas quando a doença atinge a fase final. O T. b. rhodesiense, encontra-se na África austral, causa uma infecção aguda que emerge em poucas semanas, é mais virulenta do que o T. b. gambiense. Os animais domésticos e selvagens são PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 136 conhecidos como os maiores reservatórios do T. b. rhodesiense, mas o seu papel ainda não é claro. Fig. 56 - Endemicidade da tripanossomíase humana africana na região Africana (www.med.nyu.edu) 4.CICLO DE VIDA O Trypanosoma brucei possui um ciclo de vida complexo que envolve o desenvolvimento no hospedeiro mamífero e a transmissão através de um vector, a mosca tsetse. T.brucei desenvolveu diversos mecanismos que permitem a sua sobrevivência nestes diferentes ambientes. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 137 A forma tripomastigote do T. brucei multiplica-se no intestino médio do insecto, onde ao fim dos 10 dias os tripomastigotes começam a migrar até às glândulas salivares, onde se converte na forma epimastigote e se ligam às células do lúmen reproduzindo-se assexualmente. Transforma-se depois em tripomastigote metaciclico, esta é a única fase no vector que é patogénica para o vertebrado. Ao se alimentar, o inseto inocula a forma metacíclica transferindo milhares de parasitas. Fig. 57 - Representação esquemática do ciclo de vida do T. brucei em humanos e na mosca tsetse. (adaptado de Alexander e Melanie Moser, Centers for Disease Control Public Health Image Library). A Infecção do mamífero hospedeiro começa com a mordedura da mosca tsetse (Glossina spp.), a qual injeta a forma tripomastigote metaciclica do parasita presente na saliva antes da sua refeição de sangue. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 138 Fig 58 – Mosca tsé-tsé (Glossina morsitans), em micrografia electrónica (á esquerda) e em tamanho normal (á direita). Os tripanossomas multiplicam-se localmente no local da mordedura alguns dias antes de entrar no sistema linfático e na corrente sanguínea. Através do qual atingem outros tecidos e órgãos incluindo o sistemanervo central (CNS). Fig 59 – Ciclo de vida na mosca tsé-tsé PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 139 Duas diferentes formas de tripomastigote podem ser observadas no mamífero: uma longa e fina, a forma proliferativa, e uma forma curta e não proliferativa. Ambas existem na mosca tsetse, mas só a última tem a capacidade de um ciclo de vida complexo que dura 2 a 3 semanas na mosca. Um pequeno número de T. brucei existe também na forma não proliferativa em humanos, durante esta forma, o parasita pode ser transmitido ao vector perpetuando o ciclo entre vector e o homem. Fig. 60 - Ciclo de vida do Tripanossoma brucei segundo (El-Sayed NM.) PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 140 A presença de flagelo longo e fino na forma do T. brucei é essencial para a viabilidade do parasita na corrente sanguínea do homem. No hospedeiro, a célula tripomastigote é completamente coberta por uma densa monocamada de glicoproteinas idênticas que protegem o parasita contra a lise pelo complemento. O parasita só é destruído quando é reconhecido pelos anticorpos. Graças a um impressionante mecanismo de variação antigénica contínua, a qual foi estudada extensivamente em modelos animais, a pequena fracção da população de parasitas é capaz de invadir a resposta imunitária humoral do mamífero e proliferar ate que a nova superfície antigénica seja reconhecida por uma nova geração de anticorpos específicos, principalmente IgM. Fig. 61 – Gráfico representando a variação antigénica em Trypanosoma brucei. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 141 Cerca de 1,000 genes diferentes codificam a variação das glicoproteinas de superfície no genoma do T. brucei. Este fenómeno explica o número flutuante de tripanosomas em circulação do sangue dos pacientes, a qual contribui para os limitados métodos na detecção do parasita na prática clínica. 5.PATOLOGIA O T. brucei invade o sistema imunitário através de um complexo sistema de variação antigénica geneticamente programado. Quando um parasita atravessa a barreira epitelial através da mordedura de uma mosca tsetse infectada, a resposta do sistema imunitário inato ao invasor é a inflamação e a dor. Contudo, quando os mecanismos inatos, não específicos não são suficientes para eliminar o patogénico (o que é frequente nos humanos), o parasita desenvolve-se e multiplica-se na corrente sanguínea, enquanto a resposta imune adaptativa primária é montada. Fig. 62 – Trypanossoma brucei rodeado de eritrócitos e células do sistema imunitário. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 142 A resposta adaptativa é evidenciada pelo aparecimento de rubor e prurido no local da infecção 1 a 2 semanas depois da picada da mosca. As glicoproteinas de superfície variáveis ou VSGs do parasita são reconhecidos como antigénios “não self” por receptores específicos. Geralmente, ocorre uma resposta por anticorpos mediada por células B altamente específicas contra os epitopes dos VSG. A resposta imune adaptativa pode eventualmente destruir todos os clones do parasita original. Contudo, alguns parasitas alteram espontaneamente as VSG, alterando o gene VSG que é expresso. Este processo é conhecido como conversão de genes. Existem 806 genes diferentes que codificam VSGs. Cada gene VSG codifica VSGs estruturalmente muito semelhantes, mas únicos. De tal forma que os VSGs são suficientemente distintos para que o sistema imunitário o reconheça como um novo patogénico, uma nova resposta imune adaptativa primaria tem de ser gerada para eliminar os parasitas com novos VSGs. O tempo necessário para que esta nova resposta seja montada permite que o parasita se divida, multiplique, e altere os VSG de superfície novamente. Assim, apesar de teoricamente o sistema imunitário humano poder eliminar todos T. brucei, as alterações espontâneas que envolvem a expressão de VSG permitem que o parasita esteja sempre um passo à frente do sistema imunitário. O progresso da doença através destes ciclos conduz a uma inflamação crónica, febre e construção de imuno-complexos. Alem disso, danos graves, e muitas vezes irreversíveis neurológicos ocorrem quando o parasita atinge zonas internas e menos protegidas do corpo, como o cérebro. A fadiga é o resultado provável de o corpo mobilizar tantos recursos para combater uma infecção constante e interminável. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 143 6.SINTOMATOLOGIA A apresentação clínica do T. b. gambiense e T. b. rhodesiense no HAT são notavelmente diferentes. Fig. 63 – A – Úlcera típica formada no local de mordedura da mosca tsé-tsé – B – Trypanossoma deslocando-se por entre eritrócitos. Enquanto HAT originada por T. b. gambiense é geralmente uma doença crónica que se prolonga durante anos, a HAT por T. b. rhodesiense apresenta-se habitualmente como uma doença febril aguda, fatal em semanas ou meses se não for tratada. Doenças como a malária, febre entérica, meningite tuberculosa e infecção HIV podem imitar ou até coexistir com a HAT. Assim, as suspeitas têm de ser sempre confirmadas laboratorialmente. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 144 Fig. 64 - Os parasitas proliferam no local da mordedura e 5 a 15 dias depois, ocasionalmente forma-se um nódulo ou ulcera que desaparece espontaneamente nalgumas semanas. Nos pacientes africanos a úlcera geralmente encontra-se ausente durante o diagnóstico da doença. Isto contrasta com a elevada prevalência de úlcera observada em pacientes europeus, em particular naqueles infectados pelo T. b. rhodesiense. Doença originada pelo T. b. gambiense Após um longo e variável período assintomático, os pacientes com HAT T. b. gambiense podem apresentar sintomas intermitentes não específicos tais como febre, fadiga, enxaquecas, artralgia e prurido. Pode ocorrer edema, onde se formam grandes nódulos linfáticos indolores no triângulo cervical posterior. No entanto, o aumento dos nódulos linfáticos cervicais está ausente em mais de 50% dos pacientes. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 145 Fig. 65 – Estes nódulos, de Witerbottom, foram reconhecidos como um sinal de alerta da HAT pela primeira vez por Sir Thomas Winterbottom, que utilizava a palpação do pescoço como indicador de sonolência e comportamentoanormal em escravos indesejáveis no século XVII. Esplenomegalia é outro sinal não específico e mais comum do que hepatomegalia. Este quadro clínico corresponde à primeira fase da doença, a fase hemolinfatica. Na fase secundária da doença ocorrem sinais e sintomas neuropsiquiatricos, devido à invasão do CNS pelos tripanosomas e resultantes da resposta imunitária. Gradualmente estes sinais tornam-se mais promitentes. O intervalo entre o inicio da infecção e o segundo estado neuronal é da ordem de meses ou anos. Os sintomas clínicos da neuropatogenese do segundo estado da HAT podem ser agrupados em categorias, tais como psiquiátrica, motor, sensorial e anomalias no sono. Os distúrbios mentais podem incluir irritabilidade, enxaqueca, alterações de PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 146 personalidade e outras apresentações psiquiátricas, tais como psicose. Rigidez e tremores, disarteria e ataxia são desordens comuns. Pode-se também registar um aumento da sensação da dor (sinal de Kerandel). Fig. 66 – Segundo as autoridades do seu país, este doente com HAT está amarrado para ser protegido dos seus ataques de origem neurológica. É típica uma alteração do ciclo do sono, com sonolência de dia e insónias noturnas. É também queixas frequentes a perda de peso e anomalias endócrinas, tais como amenoreia e impotência. Se não forem tratados os pacientes morrem devido a consequências de disfunções do sistema imunitário, coma profundo, e tonturas causado por infecções bacterianas como pneumonia ou meningite. PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 147 HAT causada pelo T. b. rhodesiense A HAT causada pela infecção do T. b. rhodesiense manifesta-se como uma doença febril aguda (por vezes fulminante). Tem inicio 1 a 3 semanas após a mordedura infecciosa, não pode ser clinicamente diferenciada de outras febres tropicais como a malária, febre entérica e meningite bacteriana. Comparada com a infecção causada pelo T. b. gambiense, os episódios febris são mais pronunciados e frequentes, generalizando-se uma linfoadenopatia. Já foi observado conjuntivite e queratite. Há uma menor demarcação entre o primeiro e o segundo estado da doença, e o envolvimento do CNS pode ser limitado clinicamente a tonturas e tremores. Fig. 67 – Doente em estado avançado com HAT PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 148 Figura 68 - Relação entre a conversão de genes das VSG do T. brucei e os ciclos crónicos de infecção. Pancardite com ataque cardíaco congestivo, arritmia, e efusão pericardial podem matar o doente antes do envolvimento pronunciado do CNS se tornar evidente. A maioria das mortes (80%) ocorre durante os primeiros 6 meses da doença. Os sintomas da fase hemolinfática incluem: nódulo inflamado, de cor vermelha e doloroso no lugar da picada da mosca, gânglios linfáticos inflamados em todo o corpo: os nódulos linfáticos inflamados e congestionados no tronco e pernas. Estes nódulos são conhecidos como sinal de Winterbotom. Quando o tripomastigote se está a reproduzir, ocasiona febre alta, dor de cabeça, febre e transpiração. 7.IMUNOPATOLOGIA A resposta local na pele corresponde à primeira protecção desenvolvida pelo hospedeiro. Após a inoculação do T. brucei no hospedeiro mamífero, pela mosca tsetse, é induzida uma reacção local na pele causada pela proliferação do parasita. Os tripanosomas são detectados na linfa 1 a 2 dias antes após o aparecimento da úlcera. O seu número declina depois durante o desenvolvimento da úlcera (6 dias) e torna a aumentar posteriormente. A superfície dos parasitas T. brucei é coberta por uma fina camada de glicoproteinas designadas por glicoproteinas de superfície variáveis (VSGs), tratam-se de heteropolimeros de polisacarideos ligados a proteínas ancorados à membrana plasmática. Usualmente, num determinado momento é apenas expressa uma PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 149 VSG específica na superfície do parasita. As VSGs evitam que o hospedeiro possa atingir directamente a membrana plasmática do parasita e providencia um meio para variação antigénica. Durante o primeiro estado da doença, os tripanosomas expressam antigénios variáveis, os quais são alterados alguns dias depois. Uma resposta por anticorpos específicos a estas VSGs acontece primeiro na linfa e posteriormente no plasma . Fig. 69 - Representação esquemática das VSGs ancoradas às proteínas da membrana plasmática. Reações mediadas pelo Complemento A ativação do complemento na HAT ocorre pelas duas vias. A via alternativa, independente de anticorpos específicos, que induz a lise dos tripanosomas. O soro só induz a lise dos parasitas em tripanosomas que não se encontrem revestidos por VSG, isto é durante a forma prociclica. Contudo, o aparecimento de VSG no parasita evita a sua destruição. A via clássica, mediada por anticorpos específicos contra os tripanosomas, pode estar envolvida na clearance do parasita através de anticorpos que medeiam a lise e/ou por opsonisaçao, nos estágios em que o T.b. brucei se encontra revestido por PARASITOLOGIA CLÍNICA – MEDICINA - UNIT – SAUL J S SANTOS – 2017 Página 150 VSG. Contudo durante a activação do complementa, o aparecimento de fragmentos solúveis, incluindo anafilatoxinas C3a e C5a e o complexo C567, pode induzir, por um lado a quimiotaxis de neutrofilos e monocitos, e por outro lado a libertação de aminas envolvidas na vasoconstrição e aumento da permeabilidade vascular, participando assim na resposta inflamatória inicial da úlcera. Reações mediadas por células T Estudos iniciais demonstraram alterações nas funções das células T na tripanosomiase. Exames histológicos revelaram uma expansão massiva das células B nos nódulos linfáticos e baço. Estas alterações ocorrem durante os primeiros 7 dias depois da infecção e persistem durante os 70 dias seguintes. Em diversos estudos, verificou-se uma resposta de células T transitiva e proliferativa provocada pelos antigénios tripanosomais durante os primeiros dias da infecção. As proteínas cinetoplastidas da membrana dos tripanosomas são um potente estimulador da proliferação dos linfocitos T. Assim, apesar das células T especificas não atuarem da mesma forma que as células T citotoxicas, elas alteram as respostas imunes, especialmente pela secreção de citoquinas. Actuam alterando as funções das células B (síntese de anticorpos, alteração de isótipos) e macrofagos (apresentação dos antigénios e mecanismos efectores). Células B Na tripanosomiase Africana, a principal alteração a nível do sistema imunitário é o aumento dramático dos níveis de imunoglobulinas (especialmente IgM), incluindo
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