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Vozes da Educação 0 Volume I 1 VOZES DA EDUCAÇÃO Volume I Ivanio Dickmann (organizador) Vozes da Educação 2 CONSELHO EDITORIAL Ivanio Dickmann - Editor Chefe - Brasil Aline Mendonça dos Santos - Brasil Fausto Franco Martinez - Espanha Jorge Alejandro Santos - Argentina Miguel Escobar Guerrero - México Carla Luciane Blum Vestena - Brasil Ivo Dickmann - Brasil José Eustáquio Romão - Brasil Enise Barth Teixeira - Brasil FICHA CATALOGRÁFICA ________________________________________________________ D553v Dickmann, Ivanio v.1 Vozes da educação, volume I / Ivanio Dickmann (org). – São Paulo: Dialogar, 2018. (Coleção Vozes da Educação, 1) 8 volumes. ISBN 9788593711138 1. Educação. 2. Metodologias da educação. 3. Teorias da educação. I. Título. CDD 370.1 ________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056 EDITORA DIALOGAR dialogar.contato@gmail.com Volume I 3 Ivanio Dickmann [organizador] VOZES DA EDUCAÇÃO Volume I Dialogar São Paulo – SP 2018 Vozes da Educação 4 ÍNDICE APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 7 REFLEXÕES SOBRE SOCIODIVERSIDADE, MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO A PARTIR DE GRIGNON, SANTOMÉ E SANTOS & NUNES Adan Renê Pereira da Silva, Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas, Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel ............................................................... 9 A NEGAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO, SAÚDE, SEGURANÇA E LAZER, PREVISTOS NO CAPUT DO ARTIGO 227, DA CF/1988 E SEUS IMPACTOS NA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Adão Aparecido Xavier, Rosa Elena Bueno, Araci Assinelli da Luz ............... 24 CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: DESAFIOS, CONTRADIÇÕES E PERSPECTIVAS Adelson da Cruz, Maria Romana Gonçalves Reis, Georgina Negrão Kalife Cordeiro ............................................................................................................. 40 APRENDIZAGEM ESCOLAR: CAMINHOS POSSÍVEIS PARA REVERTER O PROCESSO DE FRACASSO Adriana da Silva Lopes ................................................................................... 57 TECNOLOGIAS DIGITAIS E INOVAÇÃO NO ENSINO DE MATEMÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA DE INICIAÇÃO À DOCÊNCIA A PARTIR DO PIBID/PEDAGOGIA/UECE. Alane de Morais dos Santos, Josivando Ferreira da Cruz , Ivanildo Costa dos Santos, Tainá Salmito Cruz de Lima, Tânia Serra Azul Machado Bezerra ................... 71 O NEURÓTICO E O CANALHA COMO PERSONAGENS NO MOVIMENTO ESCOLA SEM: NEGAÇÕES, GENERALIZAÇÕES E ESQUECIMENTOS? Alexandre Luiz Polizel, Moises Alves de Oliveira .............................................. 82 GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA COMO POLÍTICA PÚBLICA: CONCEITOS E LEGISLAÇÕES Aline da Silva Serpa, Oto João Petry ............................................................... 100 Volume I 5 DANÇA COMO ÁREA DE CONHECIMENTO: DOS PCNs A SUA IMPLEMENTAÇÃO NO SISTEMA EDUCACIONAL MUNICIPAL DE MANAUS Amanda da Silva Pinto .................................................................................. 116 PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA (PNAIC): O PAPEL DO PROFESSOR ALFABETIZADOR NA GARANTIA DOS DIREITOS DE APRENDIZAGEM DAS CRIANÇAS NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO Ana Paula da Silva Santos ............................................................................ 138 CURRÍCULO OCULTO: UMA ABORDAGEM DISCIPLINAR DO ENSINO FUNDAMENTAL II Ana Paula do Nascimento Rodrigues .............................................................. 151 EDUCAÇÃO E EQUIDADE: QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA Ana Quesado Sombra .................................................................................... 167 A DOCÊNCIA E O PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM: AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA ENQUANTO BASE TEÓRICA NA FORMAÇÃO DE PEDAGOGOS Ana Sara Castaman, Mario Luiz Junges Junior .............................................. 182 AVALIAÇÃO ESCOLAR: UMA DISCUSSÃO SOBRE O PROCESSO DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM Andréia Cadorin Schiavini, Luciana Rita Bellincanta Salvi, Marilane Maria Wolff Paim ............................................................................................................ 199 DA ALFABETIZAÇÃO AO LETRAMENTO AMBIENTAL: UM CAMINHO POSSÍVEL? Andressa Queiroz Souza ................................................................................ 217 DA LEI DA LIBRAS À PRÁTICA: DIREITOS DOS SURDOS E DEFICIENTES AUDITIVOS NO ENSINO EDUCACIONAL – UMA PROPOSTA EFICAZ DE INCLUSÃO Antônio Eugenio Ramos da Silva, Francisca Mayra da Silva Pereira, Francisca Gizeli Santos da Silva .................................................................................... 231 Vozes da Educação 6 TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE: CONCEITOS NEUROBIOLÓGICOS E POSSÍVEIS MANEJOS EM SALA DE AULA PARA DESENVOLVER A APRENDIZAGEM Ariana Barbosa Viana .................................................................................. 248 FORMAÇÃO DO (A) PROFESOR (A) PARA USO DA TECNOLOGIA DIGITAL NUMA PERSPECTIVA CURRICULAR MULTIRREFERENCIAL NA CONTEMPORANEIDADE Gelton Santos da Cruz, Jonilson Lima da Silva Albino, Naiara Santana Souza ..................................................................................................................... 271 SER PROFESSOR, PARA IR ALÉM DO QUE ESTÁ POSTO Edinei Messias Alecrim ................................................................................. 285 LITERATURA INFANTIL NO COMBATE AO BULLYING ESCOLAR: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL I – SÉRIES INICIAIS Eduardo Dias da Silva, Robson Coelho Tinoco ................................................. 299 PROMETEMOS NÃO CHORAR: A INTERTEXTUALIDADE APRESENTADA NA LINGUAGEM TEATRAL Wellington Costa da Cruz .............................................................................. 309 Volume I 7 APRESENTAÇÃO Dar voz a educadores e educadoras de todo o Brasil que se dedicam a produzir reflexões sobre seus espaços pedagógicos, sejam eles formais ou informais: este é o objetivo desta coleção de livros que acolhe a escrita de homens e mulheres comprometidos e comprometidas com a educação. Uma coletânea que abre espaço para quem escreve materializar e compartilhar seus saberes. Nossa editora tem como missão criar um caminho para este grupo de pesquisadores e estudantes que fazem o esforço de colocar em palavras suas análises sobre os mais diversos campos da educação e desejam dialogar com seus leitores e leitoras sobre suas palavras. Suas palavras que estão abertas a crítica para avançar, que querem contribuir para uma visão madura dos espaços educativos, dos métodos pedagógicos e, assim, construir uma comunidade que debate dia a dia o fazer dos educadores e educadoras. Quando iniciamos a mobilização para esta coletânea imaginávamos que iríamos receber alguns textos, e que, da união deles faríamos um livro para compartilhar. Para nossa surpresa a adesão dos interessados foi tanta que resultaram oito livros e isso demonstrou como ainda faltam espaços acessíveis para a publicação da produção acadêmica no nosso país. Esperamos que nossos livros sejam uma luz paramais pessoas produzirem seus textos e imprimirem de forma coletiva suas obras. Recebemos textos de todas as regiões do Brasil. Então, o que você tem nas mãos reflete também a diversidade cultural e regional do nosso amado país e as lutas dos educadores e educadoras para transformar e dinamizar os espaços pedagógicos de norte a sul, de leste a oeste. E isso enriquece esta coletânea, pois, pluralizamos as visões da forma de educar em diferentes culturas e em diferentes condições sociais e econômicas. Vozes da Educação 8 Temos textos sobre a educação indígena, educação em sala de aula, fora da sala de aula, enfim, uma pluralidade que pode ajudar a dar uma nova dinâmica no jeito de educar de cada um que tiver contato com estes artigos que compõe estes livros. É importante ressaltar que a educação tem esta multiplicidade de lugares, de jeitos e, de certa forma, nossa coleção contempla este elemento. Oxalá possamos exercitar os ensinamentos compartilhados e tornar mais dinâmicos nossos espaços pedagógicos. A distribuição gratuita dos e-books desta coletânea visa dar visibilidade a cada autor e autora destes artigos e, também, disseminar o conhecimento partilhado em cada obra. A autoridade de cada escritor e escritora aumenta a cada publicação e, desta forma, nossa editora se sente orgulhosa de contribuir com a melhoria contínua dos currículos de cada uma e cada um dos participantes destes livros que preparamos com tanto cuidado e carinho para que seja utilizado em seleções de Mestrado e Doutorado, na participação em eventos ou, até mesmo, em seleções de trabalho. Um livro faz a diferença! A cópia impressa desta coletânea pode ser adquirida junto a nossa editora e com os autores e autoras. Para mais informações sobre como adquirir seu exemplar impresso de um dos livros ou de toda a coleção basta entrar em contato conosco através dos telefones e e-mails na orelha deste livro. Bem-vindos e bem-vindas a coletânea VOZES DA EDUCAÇÃO! Desejamos a todos e todas bons estudos e boa leitura! Com carinho. Ivanio Dickmann Volume I 9 REFLEXÕES SOBRE SOCIODIVERSIDADE, MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO A PARTIR DE GRIGNON, SANTOMÉ E SANTOS & NUNES Adan Renê Pereira da Silva1 Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas2 Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel3 RESUMO O capítulo trata de discutir relações entre sociodiversidade, multiculturalismo e educação a partir de três fundamentações - Grignon, Santomé, Santos & Nunes -, com ênfase nas contribuições para formação e trabalho docente, objetivo da linha de pesquisa “Formação e Práxis do Educador”, a que estão vinculados os pesquisadores, objetivando-se articulá-los ao contexto amazônico pela práxis. Pode-se dizer que os autores contribuíram para repensar a educação local, por intermédio de uma reflexão teórico-prática articulada ao contexto supracitado. Palavras-chave:Educação; Sociodiversidade; Multiculturalismo; Amazônia. ABSTRACT The chapter tries to discuss relations between sociodiversity, multiculturalism and education from three foundations - Grignon, Santomé, Santos & Nunes -, with emphasis on contributions to training and teaching work, the objective of the research line "Educator Training and Praxis", to which researchers are linked, aiming to articulate them to the Amazonian context by praxis. It can be said that the authors contributed to rethinking local education, through a theoretical-practical reflection articulated to the aforementioned context. Keywords: Education; Sociodiversity; Multiculturalism; Amazon. 1Psicólogo. Mestre em Psicologia. Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas. 2Graduada em Pedagogia - Supervisão escolar e magistério; Doutora em Diagnóstico e avaliação educativa- psicopedagogia. Pós-doutora; Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas. 3Possui graduação em Letras e Artes, mestre em Educação e doutora em Ciências Sociais (Antropologia); Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas. Vozes da Educação 10 A presente discussão foi escrita a partir das reflexões geradas por uma disciplina do doutorado4 acerca de possíveis debates em torno do eixo “sociodiversidade, multiculturalismo e educação”, no que tange ao auxílio da formação e trabalho docente. Trata-se de uma produção de caráter bibliográfico, de natureza propedêutica, em que se intenta investigar as contribuições de autores que trataram desse tema, quais sejam, Grignon, Santomé e Santos & Nunes. Assim, focalizam-se aqui as contribuições dos autores em uma perspectiva macro, para, a partir de um trabalho de práxis, aplicá-las ao contexto amazônico. Enfatizando pontos diferentes e que, ao mesmo tempo dialogam, os autores ajudam-nos a pensar algumas das principais questões que permeiam a questão educativa no atual contexto capitalista. Minorias, conceitos, formato da escola em uma leitura crítica, termos que necessitam ser “repisados”, porque sempre moldando-se aos diferentes contextos históricos em que se apresentam e em diferentes ideologias. É necessário um processo dialógico e dialético entre os diferentes atores que encenam a prática: professores, alunos, família e comunidade. Nesse sentido, além de atual, a temática pode ser repensada a partir das propostas desses eminentes autores. Dessarte, o estudo aqui empreendido objetiva pensar as contribuições desses autores para repensarmos práticas, valores e objetivos educativos, com foco na formação e práxis do educador. Para tanto, propõe-se dois movimentos: um primeiro, em que se apresenta um panorama do pensamento dos autores em conformidade com os textos analisados e, um segundo, onde se apresenta uma reflexão desses pensamentos no recorte amazônico. Grignon, Santomé e Boaventura & Santos e a sociodiversidade, o multiculturalismo e a educação Iniciamos nosso trajeto com Grignon (1995), em capítulo intitulado “Cultura dominante, cultura escolar e multiculturalismo popular”. Contrapondo cultura popular à cultura dominante, o autor salienta que a diversidade é uma das características essenciais das culturas 4A disciplina em questão denomina-se Educação, Culturas e Desafios Amazônicos, ministrada pela professora Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel, do Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal do Amazonas. Volume I 11 populares. Porém, com casos particulares oferecendo contraexemplos, a diversidade tende a ficar escamoteada, sendo uma realidade histórica. Entretanto, a escola acaba por reduzir, em parte, essa diversidade, mas não o suficiente para apagá-la dentro do ambiente escolar. Para defender esse pensamento, o autor recorre a Max Weber, clássico da sociologia, para quem as culturas dominantes se caracterizam, na realidade, por uma tendência profunda à uniformização da vida, que em nossos dias se manifestaria através do interesse do capitalismo pela padronização da produção. Percebe-se o interesse ideológico da referida “cultura dominante” em manter seu status quo no ambiente escolar. Oferecendo um quadro comparativo entre culturas populares e culturas dominantes, Grignon nos mostra a discrepância entre elas e a opção feita pela escola: conduzir ao monoculturalismo, contribuindo diretamente para o reforço das características uniformes e uniformizantes da cultura dominante e ao enfraquecimentocorrelativo dos princípios de diversificação das culturas populares. Para ratificar seu pensamento, apresentam-se dois argumentos para pensarmos a escola como o local que: 1. Populariza o escrito e consagra sua supremacia sobre as culturas locais; 2. Ensina a leitura e as letras inseparavelmente da imposição de regras em matéria de gramática, de léxico, de ortografia, de pronúncia, de estilo, a partir de uma perspectiva legitimista (ou seja, “esse é o modo certo”); Assim, a escolarização obrigatória no âmbito do ensino primário tem sido, conforme o autor, o principal agente da imposição da língua nacional e do desaparecimento das línguas regionais e dos dialetos locais. Também o ensino elementar do cálculo, da matemática, das ciências e das técnicas faz, sem dúvida, parte dos instrumentos privilegiados da função de integração lógica desempenhada pela escola; tais instrumentos acabam por levar a uma interiorização da ideia de superioridades dos saberes gerais/universais sobre os particulares, da teoria sobre a cultura prática, do pensamento abstrato sobre a experiência concreta. A própria noção do tempo é vista como a comum às elites, através de seus horários estritos, de sanções que penalizam os alunos Vozes da Educação 12 irregulares (atrasados, ausentes). Isso tudo nos leva a pensar a redução da autonomia das culturas populares e na conversão da cultura dominante em referência, em cultura padrão. Para o autor, a questão estaria em saber em que medida se pode contrariar essa tendência espontânea e reconverter a escola, se não ao multiculturalismo, ao menos ao relativismo cultural. Esse projeto seria obstaculizado por excelência, apresentando contradições e riscos de desvio que comprometeriam sua realização e sobre os quais Grignon passa a debruçar-se. Refletindo sobre a autonomia intelectual das classes dominadas enquanto nicho de convivialidade ou gueto, o autor percebe que as culturas populares têm autonomia simbólica, isto é, capacidade para engendrar seus próprios sistemas de significações. Entretanto, para aqueles que provêm das classes dominadas, a diversidade é, com frequência, o que Grignon chama de “handicap”, uma deficiência. Sua experiência, seus saberes, sua “cultura” têm uma amplitude limitada, um valor local; não são reconhecidos ou o são em pequena medida fora de seu meio social profissional e geográfico de origem. Assim, parafraseando Richard Hoggart, Grignon conclui que nicho de convivialidade, nesse contexto, seria também um gueto. Além disso, nas relações entre cultura culta e cultura dominante, haveria outra ambivalência. Essa ambivalência será evidenciada a partir de algumas reflexões e contrapontos, como a da sociologia crítica que tem como uma de suas principais conquistas no campo da educação ter mostrado que a transmissão dos saberes não se realiza nunca em estado bruto, de forma independente daquilo ao qual estes atos estão associados, do que veiculam, do que se passa na forma como são transmitidos e o contexto em que se dá tal transmissão. Há um conteúdo explícito (como no caso das línguas) e um conteúdo implícito (como no caso dos chamados saberes técnicos e científicos). No caso dessas últimas, há uma aculturação lógica acompanhada da interiorização das hierarquias escolares, das hierarquias intelectuais e das hierarquias sociais, a aprendizagem da matemática, da física ou do desenho industrial é inseparável da hierarquia escolar, dos níveis de ensino, das disciplinas, dos títulos e das aptidões intelectuais. Volume I 13 Para o autor, é preciso trabalhar para ressaltar e reforçar as especificidades, a autonomia da cultura em relação à ideologia e à cultura dominante. Sua proposta é de que “a cultura culta poderia possivelmente, então, ser apropriada pelas crianças procedentes das classes dominadas sem que essa apropriação as exigisse ou implicasse delas, automaticamente, uma ruptura com sua cultura de origem e uma conversão à cultura dominante” (p. 186). Como conclusão, deve-se perceber a necessidade de uma pedagogia relativista, sem incorrer nos desvios populistas. É necessário admitir e reconhecer o multiculturalismo, isto é, a existência de culturas diferentes da cultura culta, legítima ou dominante. Isso porque, ao negar as culturas populares, a chamada “escola meritocrática-legalista” se mostra exigente e injusta para com as crianças oriundas das classes populares, desclassifica-as e não as compreende. Há etnocentrismo dentro da escola, conduzindo ao fracasso escolar as crianças oriundas das classes dominadas. No que tange ao perigo do desvio populista, este ameaça as pedagogias relativistas, porquanto, sob o pretexto de reconhecer a alteridade cultural, o direito à diferença das crianças provenientes das classes populares e das “minorias”, esquece-se ou nega a existência da hierarquia social (e da hierarquia escolar) existente entre as culturas, o que leva a certo utopismo. Uma pedagogia populista também corre o risco de encerrar as crianças provenientes das classes dominadas em sua classe de origem, em sua “identidade”, em suas “raízes”, e negar-lhes o acesso à cultura culta, à cultura teórica, aos saberes de alcance geral e universal. O autor acautela-nos de que acondicionar nichos culturais de convivialidade separados, os quais têm muita possibilidade de desempenhar uma função de gueto, pode ser uma maneira de segregar e excluir as novas “classes perigosas” da sociedade e da civilização. Por sua vez, Santomé (1995), analisando o contexto escolar, diz- nos que uma das finalidades fundamentais de toda intervenção curricular é preparar os alunos para serem cidadãos críticos e ativos, membros solidários e democráticos de uma sociedade solidária e democrática. Uma meta desse tipo exige, para o autor, que a seleção dos conteúdos do currículo, os recursos e as experiências cotidianas do ensino e da Vozes da Educação 14 aprendizagem que caracterizam a vida nas salas de aula, as formas de avaliação e os modelos organizativos promovam a construção dos conhecimentos, destrezas, atitudes, normas e valores necessários para ser bom cidadão. Os alunos devem ter capacidade de participar das ações da sociedade, por meio de um pensamento crítico. Assim, o planejamento do currículo deveria passar longe do modelo fordista, deixando de ser acumulativo, bancário, de conteúdos para serem adquiridos pelos estudantes, como se esses fossem gravadores de som. Afinal, no trabalho de formação de pessoas críticas, ativas e solidárias e de ajuda na reconstrução da realidade, é imprescindível prestar uma atenção prioritária aos conteúdos culturais, assim como, naturalmente, às estratégias de ensino e aprendizagem e avaliação para levar a cabo tal missão. Entretanto, alguns pontos merecem maior atenção para o autor. Um deles é o de que o professorado atual é fruto de modelos de socialização profissional que não considerava objeto de sua incumbência a seleção explícita de conteúdos culturais, dando seu papel aos livros didáticos. Também deve ser um ponto de atenção as vozes ausentes na seleção da cultura escolar: há uma arrasadora presença das culturas chamadas de hegemônicas nas propostas curriculares, sendo as demais silenciadas. Entre as culturas ausentes, o autor destaca: as culturas da nação do Estado espanhol, as culturas infantis, juvenis e de terceira idade, as etnias minoritárias ou sem poder, o mundo feminino, as sexualidades lésbica e homossexual, a classe trabalhadora e mundo das pessoas pobres, o mundo rural e litorâneo, as pessoas com deficiências físicas e/ou psíquicase as vozes do Terceiro Mundo. O autor discorre sobre algumas delas: As culturas das nações do Estado espanhol: ligado ao período ditatorial com o intuito de “reconstruir” o conceito de nação espanhola acabou trazendo posturas racistas, por negar o espaço onde se forja a identidade social dos diferentes grupos humanos; As culturas infantis, juvenis e da terceira idade: o adultocentrismo da cultura leva a uma ignorância realmente grande acerca do mundo Volume I 15 idiossincrático da infância e da juventude. A adoção da filosofia da “infância ingênua” silencia outras mais reais; As etnias minoritárias ou sem poder: é necessário refletir sobre o verdadeiro significado das diferentes culturas das raças ou etnias, sendo esta uma das principais lacunas que ainda existem. As crenças etnocêntricas são reproduzidas durante a socialização das crianças, sob o pretenso manto de uma postura neutra do educador; No que tange ao mundo feminino, a presença, embora com avanços significativos, deve prosseguir de maneira especial se tivermos presente que está ocorrendo uma forte “remasculinização” da sociedade, para o autor. Isso traz estigmas femininos, como a mulher romantizada em busca de um homem de determinadas obras. O sistema educacional deveria contribuir para situar a mulher no mundo, o que implicaria redescobrir sua História e recuperar sua voz perdida. Como respostas curriculares diante da diversidade e da marginalização, o autor diz-nos que a contraproposta seria a de um currículo que todos os dias do ano letivo, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recursos didáticos, torne presentes as culturas silenciadas aqui expostas. O que ocorre é que geralmente essas culturas passam a ser “contempladas”, caindo-se no que o autor chama de “currículo turístico”. Para efetivar o explicado, geralmente a “contemplação” dá-se mediante as seguintes estratégias: 1. Trivialização: estudo feito sobre tais culturas com grande superficialidade/banalidade; 2. Souvenir: apresentação das culturas silenciadas por meio de uma viagem turística, exótica, com presença quantitativa inexpressiva; 3. Desconexão: desconectam-se tais culturas de situações diversas no cotidiano das salas de aula; 4. Estereotipagem: apresentam-se imagens estereotipadas das pessoas e situações pertencentes a esses coletivos diferentes; 5. Tergiversação: aparece como estratégia de deformar e/ou ocultar a história e as origens dessas comunidades objeto de marginalização e/ou xenofobia (uma das estratégias para obter a tergiversação é a chamada psicologização dos problemas raciais e sociais, ou seja, ao invés de uma análise da conjuntura social e histórica, as Vozes da Educação 16 explicações recaem em comportamentos individuais, explicados por uma subjetivação dos problemas). Para o autor, essas modalidades de currículo turístico reproduzem a marginalização e negam a existência de outras culturas. Hoje são numerosas as pessoas que deixaram de ver as instituições escolares como lugares para compensar a desigualdade, que perdem sua confiança nas possibilidades da educação como instrumento de democratização. As mulheres, as minorias étnicas, os grupos de lésbicas e gays, a juventude denunciam constantemente como sua realidade continua sendo negada e/ou desvirtuada. Portanto, é preciso construir de maneira coletiva, com a participação de toda a comunidade educacional e, claro, dos grupos sociais desfavorecidos e marginalizados, por meio de uma pedagogia crítica e libertadora. As instituições escolares são lugares de luta e a pedagogia pode e tem que ser uma forma de luta político-cultural. As escolas como instituições de socialização têm como missão expandir as capacidades humanas, favorecer análises e processos de reflexão em comum da realidade, desenvolver nas alunas e nos alunos os procedimentos e destrezas imprescindíveis para sua atuação responsável, crítica, democrática e solidária na sociedade. A educação obrigatória deve recuperar uma de suas razões centrais: a de ser um espaço onde as novas gerações se capacitem para adquirir e analisar criticamente o legado cultural da sociedade. As salas de aula não podem continuar sendo um lugar para a memorização de informações descontextualizada. É preciso que o alunado possa compreender bem quais são as diferentes concepções do mundo que se ocultam sob cada uma delas e os principais problemas da sociedade a que pertencem. É preciso, concluindo com o autor, chegar a níveis maiores de reflexão em torno dos pressupostos das normas e dos procedimentos que subjazem às práticas e conteúdos escolares. Finalmente, Santos & Nunes (2003), em “Para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade”, apresentam-nos termos como multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos e cidadanias plurais no contexto de jogo com as tensões entre a diferença e Volume I 17 a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Para tanto, recorrem a uma “sociologia das ausências”, capaz de identificar os silêncios e as ignorâncias que definem as incompletudes das culturas, das experiências e dos saberes e de uma “teoria da tradução”, que permita criar inteligibilidades mútuas e articular diferenças e equivalências entre experiências, culturas, formas de opressão e de resistência. Os autores começam apresentando um conceito mais clássico do multiculturalismo: a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades “modernas”. Há muitos sentidos para o termo. Ele é descrição (múltiplas culturas coexistindo e que se interfluenciam) e um projeto (um deles no sentido emancipatório) e desemboca em uma série de reflexões e críticas. Essas reflexões e críticas nos ensinam que a expressão pode continuar a ser associada a conteúdos e projetos emancipatórios e contra- hegemônicos ou a modos de regulação das diferenças no quadro do exercício da hegemonia nos Estados-nação ou em escala global. As versões emancipatórias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além das diferenças de vários tipos. Os autores visam debater a ideia de uma cidadania cosmopolita baseada no reconhecimento da diferença e na criação de políticas sociais voltadas para a redução das desigualdades, à redistribuição de recursos e à inclusão. Assim, entra-se no sentido de projeto emancipatório proposto pelos autores para o multiculturalismo. Torna-se importante identificar configurações históricas particulares em cada contexto, que podem não necessariamente obedecer a diferenciações clássicas, mas apresentar outras formas de diferenciação associadas a modos de dominação e resistências específicos. É o reconhecimento dessa diversidade que permite a emergência de novos espaços de resistência e de luta e de novas políticas públicas. Os processos culturais são constitutivos de dinâmicas que, implícita ou explicitamente, redefinem formas de poder social. Desta forma, o processo contribui para a transformação das culturas políticas e das definições daquilo que, em um dado contexto, conta como “político”. Vozes da Educação 18 Assim, são concebíveis propostas de “política multicultural”. Elas abrangem o conjunto de iniciativas e formas de mobilização e de luta que ocupam o espaço “entre a resistência e a mobilização”. Tanto a sociologia das ausências quanto a teoria da tradução são recursos essenciais para evitar que a reconstruçãode discursos e práticas emancipatórias caia na armadilha de reproduzir, de forma ampliada, concepções e preocupações eurocêntricas, abarcando a ideia de “cidadania multicultural” como espaço privilegiado de luta pela articulação e potencialização mútuas do reconhecimento e da redistribuição. Outro ponto de destaque debatido pelos autores é sobre as cinco teses acerca do multiculturalismo emancipatório e escalas de luta contra a dominação. Para eles, os estudos de caso reunidos na obra em análise permitiram contribuir para mais discussões, a partir do conjunto dessas cinco teses. São elas: 1. Diferentes coletivos humanos produzem formas diversas de ver e dividir o mundo, que não obedecem necessariamente às diferenciações eurocêntricas; 2. Diferentes formas de opressão ou de dominação geram formas de resistência, de mobilização, de subjetividade e de identidades coletivas também distintas, que invocam noções de justiça diferentes. Nessas resistências e em suas articulações locais/globais reside o impulso da globalização contra-hegemônica; 3. A incompletude das culturas e das concepções da dignidade humana, do direito e da justiça exige o desenvolvimento de formas de diálogo que promovam a ampliação dos círculos de reciprocidade; 4. As políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias jogam-se no terreno da tensão entre igualdade e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperativo de redistribuição; 5. O sucesso das lutas emancipatórias depende das alianças que os seus protagonistas são capazes de forjar. No início do século XXI, essas alianças têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e têm de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de opressão. Volume I 19 Aplicabilidade teórica em contexto amazônico: um exercício de práxis. Entendendo-se práxis em um sentido marxista, como prática refletida, no sentido de alteração da natureza por meio da conduta e enquanto repensar da teoria, pretende-se tecer algumas implicações práticas do acima discutido no com foco no espaço amazônico. O viés principal para traçar esse percurso é o multiculturalismo, uma vez que esse conceito destaca-se no contexto amazônico, onde se consegue perceber grande miscigenação étnica e cultural e as decorrências de tal miscigenação, além de minorias (enquanto conceito sociológico), presentes na região e também invisibilizadas. Assim, concordando com Grignon (1995), percebe-se a sobreposição da cultura dominante sobre a cultura popular. Falta muito para o currículo escolar abranger questões pertinentes de nossa realidade, como as especificidades das populações ribeirinhas, dos caboclos, dos indígenas, dos quilombolas, das relações entre local e global e da diversidade sexual. Também na realidade amazônica a escola continua conduzindo ao monoculturalismo, para o reforço das características uniformes e uniformizantes da cultura dominante e ao enfraquecimento correlativo dos princípios de diversificação das culturas populares. Recentemente sancionada na Câmara Municipal de Manaus, o debate sobre gênero foi proibido nas escolas municipais, com direito a postagem do vereador, orgulhando-se de ser pai de família e reduzindo a questão de gênero a meros cromossomos. Também o uso de livros didáticos que generalizam o conhecimento e a busca por preparar os alunos para grandes exames nacionais como o ENEM tornam o conhecimento generalista e acrítico. Os livros de educação infantil trazem figuras de leões, zebras, pinheiros, por exemplo, para explicar fauna e flora, animais que crianças amazônidas pouco têm contato, a não ser pela mídia. Faltam o boto, a onça-pintada, faltam nossos mitos e lendas, do Mapinguari, do Curupira, para falarmos a partir de nossas realidades sobre produção de conhecimento. Também concordamos com Grignon (1995) quando se diz que o ensino do cálculo, da matemática, da leitura, das letras encontram-se em uma “perspectiva legitimista”, sendo apenas reproduzidos a partir de sua internalização acrítica. Torna-se complicado formar cidadãos para pensar Vozes da Educação 20 democraticamente em uma sociedade também democrática, já que não há troca de idéias: como também salientado pelo autor, o que deveria se tornar um nicho de convivialidade torna-se gueto. Forçoso concluir a necessidade da citada “pedagogia relativista” proposta pelo teórico, já que imprescindível reconhecer o multiculturalismo, a existência de culturas diferentes da cultura culta, legítima ou dominante. A escola, enquanto arena também política, precisa ser inclusiva. Afinal, concordando com Santomé (1995), os alunos devem ter capacidade de participar da sociedade, por meio de um pensamento crítico. Como fazê-lo a partir da invisibilização e/ou negação de quilombolas, dos ribeirinhos, dos indígenas, da diversidade sexual que também constituem nossa realidade local? Santomé (1995) também nos aponta possíveis entraves nesse percurso inclusivo. O que mais chama a atenção é exatamente o fato de vivenciarmos o modelo fordista dentro da escola: o conhecimento torna- se acumulativo, bancário, de conteúdos para serem adquiridos pelos estudantes, como gravadores de som. Assim, não há tempo para pensar conteúdos culturais, porque os estudantes, dentro dessa acriticidade, percebem na escola apenas essa função e nem notam a necessidade de formar/pensar dialeticamente a realidade circundante. Ainda seguindo Santomé, poderíamos atualizar sua lista de culturas negadas e silenciadas. No contexto local, faltam discussões sobre cultura brasileira e, principalmente, cultura amazônica, também as culturas infantis, juvenis e da terceira idade são julgadas a partir da ótica “adultocêntrica”, as etnias minoritárias ou sem poder seguem estigmatizadas, em nosso caso, índios, quilombolas, caboclos e comunidade LGBT. Índios continuam sendo julgados como “preguiçosos” e, no Amazonas, ser chamado assim é considerado ofensa para muitas pessoas, quilombolas são negados, mesmo tendo havido fenômenos históricos como a Cabanagem que evidenciaram o protagonismo negro na realidade amazônica e havendo presença desse grupo em todo o estado, caboclos são ligados ao matuto, a um estilo de vida pejorativo de quem não alcançou o saber e a comunidade LGBT continua sendo marginalizada, por ter sua existência negada no ambiente escolar. Volume I 21 O mundo feminino, a classe trabalhadora e o mundo das pessoas pobres, o mundo fora da cidade, as pessoas com deficiências físicas e/ou problemas psíquicos seguem a marcha atual: todos sofrem posturas de silenciamento. E, assim como trabalha teoricamente o autor, pode-se perceber que a trivialização, o souvenir, o desconectar, a estereotipagem e a tergiversação seguem, de mãos dadas e imbricadamente, trabalhando para a morte simbólica (e real, muitas vezes) do “diferente”. Precisamos entender a conclusão de Santomé e executá-la: a educação obrigatória tem que recuperar uma de suas razões de ser – um espaço onde as novas gerações se capacitem para adquirir e analisar criticamente o legado cultural da sociedade. As salas de aula não podem continuar sendo locais de informações fora de contexto. O alunado precisa saber bem quais são as diferentes concepções do mundo que se ocultam sob cada uma delas e os principais problemas da sociedade a que pertencem. É preciso também, acompanhando agora Santos & Nunes (2003), pensar termos como “multiculturalismo”, “direitos coletivos”, “cidadanias plurais” como um jogo com as tensões entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimentoda diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Pensar multiculturalismo enquanto projeto emancipatório é uma das saídas que temos para conquistar a equidade, um campo material de relações sociais mais isonômicas, efetivando o projeto de sociedade democrática previsto legalmente. As cinco teses sobre multiculturalismo trabalhadas pelos autores ajudam a pensar a tensão existente entre o local amazônico e o global capitalista, oferecendo-nos instrumentos para trabalhar a realidade longe da ideológica ideia de “neutralidade”, conforme, especialmente, a quarta tese, a qual nos relata que as políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias jogam-se no terreno da tensão entre igualdade e diferença, entre a exigência de reconhecimento e o imperativo da redistribuição. Considerações finais Este texto propôs-se refletir sobre sociodiversidade, multiculturalismo e educação com foco em trabalhos de Grignos, Santomé Vozes da Educação 22 e Santos & Nunes, com ênfase nas contribuições para formação e trabalho docente, objetivo da linha de pesquisa “Formação e Práxis do Educador”, a que estão vinculados os pesquisadores. Objetivou-se articular a discussão ao contexto amazônico por intermédio do exercício da práxis. Após a leitura e exposição aqui empreendidas, percebeu-se que só houve possibilidade de exercitar a práxis por nos propormos seguir a postura de criticidade trazida à tona pelos autores de referência, além da própria vivência no contexto amazônico, no modo como a educação é efetivada e ofertada ao alunado. A partir do objetivo inicial pensado, notou-se que a prática educativa no contexto amazônico precisa ser repensada a partir de uma leitura aprofundada de nossa realidade. Ao reproduzir exclusão, invisibilização do “diferente”, estigmatiza-se esse “diferente” ainda mais, retirando-o do ambiente escolar, simbólica e/ou fisicamente. A escola precisa ser reconhecida enquanto arena política, de múltiplas vozes, saindo do modelo fordista e adquirindo, verdadeiramente, uma pedagogia crítica, bastante apregoada e pouco vivida. Dessarte, os termos discutidos – multiculturalismo, sociodiversidade e educação – levaram-nos a ressignificar como estão ligados e quais as consequências de tal ligação, principalmente a partir do aprofundamento teórico dos autores. Ficou patente a necessidade de sairmos apenas do campo conceitual do multiculturalismo e efetivá-lo enquanto projeto emancipatório, também patente ficou a necessidade de evidenciarmos a sociodiversidade para dar a ela vez e voz e reconheceu-se o campo educativo como lócus privilegiado para esse debate/prática, tendo em vista que a escola deve ser compreendida em seu papel de agente socializador. O acima relatado é um desafio, especialmente quando se pensa na incipiência dessa discussão no contexto amazônico aqui afunilado. É preciso sair apenas do discurso da necessidade de envolvimento de estudantes, professores, família e comunidade. Essa questão parece ser “chão repisado”. É necessário dar os primeiros passos em busca da efetividade do discurso. Por fim, concluiu-se que o objetivo proposto neste capítulo foi alcançado, mas deixa-se a sugestão, para futuras pesquisas, de maior aprofundamento nas discussões, para que outras realidades também Volume I 23 possam ser contextualizadas e pesquisas empíricas sejam realizadas nas inúmeras instituições de ensino espalhadas pelo país, em suas diferentes regiões, com suas especificidades culturais, para que haja maior conexão entre teoria e prática de uma perspectiva crítica e problematizadora. Referências Bibliográficas GRIGNON, C. Cultura dominante, cultura escolar e multiculturalismo popular. In: SILVA, T. T. da (Org.). Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. SANTOMÉ, J.T. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, T. T. da (Org.). Alienígenas em sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. SANTOS, B. de S; NUNES, J. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de S (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Vozes da Educação 24 A NEGAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO, SAÚDE, SEGURANÇA E LAZER, PREVISTOS NO CAPUT DO ARTIGO 227, DA CF/1988 E SEUS IMPACTOS NA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE. Adão Aparecido Xavier.5 Rosa Elena Bueno6 Araci Assinelli da Luz7 Dedicado a todos/as que lutam a favor da vida e liberdade dos nossos/as alunos/as das periferias. RESUMO Este artigo busca promover reflexões sobre em que me medida o não cumprimento do Caput do artigo 227, da CF/1988 afeta a construção histórica, sociocultural e afetiva dos sujeitos que cumprem penas de privação de liberdade, em uma delegacia situada na Região Metropolitana de Curitiba. Para tanto, foi elaborado um questionário, contendo algumas questões, dentre estas, referentes a artigos infringidos, locais onde moravam antes da prisão, se havia área de lazer nas proximidades do local de residência, como ocorreu o processo de escolarização, renda per capta familiar, qualidade das interações entre os entes parentais. Após investigações, é possível inferir que o projeto de educação em período integral, o direito à convivência familiar, à moradia, lazer, alimentação, saúde, higiene e educação básica, creche em período integral, conjugados, estes componentes refletem na redução de atos infracionais. Em se tratando das experiências na educação formal, propõe-se que os profissionais da educação e demais áreas atuantes na formação humana, aprofundem o debate sobre violação de direitos e as implicações no desenvolvimento do organismo individual e social. Palavras chave: Art. 227 CF/1988; Violações e Violências; Educação e Constructo Humano; Privação de Liberdade. 5Adão Aparecido Xavier é formado em Filosofia, especialista em Filosofia Política (UFPR); mestre em Educação Profissional (UFPR). Professor PDE 2008.SEED. Atualmente é diretor Col. Est. Helena Kolody – JD Monza – Colombo /PR. adaoaxavier@gmail.com 6Doutoranda em Cognição e Aprendizagem pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. É professora de Língua Portuguesa e Inglês na rede pública do Estado do Paraná, no Colégio Estadual Helena Kolody, JD Monza – Colombo/PR. E- mail: rosaelbueno@yahoo.com.br 7 Doutora em Educação, mestra em educação, Graduada em História natural, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (acadêmico e Profissional) da Universidade Federal do Paraná. Membro do NEPS, NIED e NEAS da UFPR. Vice coordenadora da Linha Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. araciasinelli@hotmail.com Volume I 25 ABSTRACT This article seeks to promote reflections on the extent to which the non- compliance with the Caput of article 227 of CF / 1988 affects the historical, sociocultural and affective construction of the subjects who are serving prison sentences at a police station located in the Metropolitan Region of Curitiba . For this purpose, a questionnaire was prepared, containing some questions, among them, concerning articles that were infringed, places where they lived before the arrest, whether there was a leisure area near the place of residence, such as the schooling process, per capita family income , quality of interactions among parental entities. After investigations,it is possible to infer that the project of full- time education, the right to family coexistence, housing, leisure, food, health, hygiene and basic education, full-time nursery, conjugated, these components reflect in the reduction of infractions . In the case of experiences in formal education, it is proposed that educational professionals and other areas active in human formation, deepen the debate about violation of rights and implications in the development of individual and social organism. Keywords: Art. 227 CF / 1988; Violations and Violations; Education and Human Construct; Deprivation of Liberty. Introdução Como pode ser verificado em reuniões pedagógicas, cursos de formação continuada, realizados nas escolas da rede de educação básica, há uma necessidade de aprofundar-se o debate a respeito das legislações que norteiam o trabalho educativo. É perceptível a carência de fundamentos da educação, especialmente quando se percebe equívocos epistemológicos básicos, com relação ao significado de indisciplina e ao que se configuraria ato infracional. É comum relato de professores, pedagogos e diretores, quando expressam uma certa indecisão sobre o que fazer quando ocorrem conflitos cotidianos no chão da escola. Desde agressões verbais, gestuais, a ameaças de agressões físicas, e até mesmo à concretização destas, fica nítida a falta de subsídios teóricos, metodológicos que instrumentalizem-nos para uma prática assertiva e efetiva, na qual se respeite os direitos fundamentais à educação de qualidade, enquanto possibilidade de transformação da sociedade que todos e todas queremos. A forma como a situação conflituosa pode ser abordada é de crucial importância para que a repercussão do encaminhamento orientado pela equipe de profissionais da educação seja avassaladora ou acolhedora. Vozes da Educação 26 Como produto das ações engendradas, pode-se contribuir para que se torne o conflito em mais um ponto de partida rumo à uma prática significativamente educativa e pacificadora, ou para acentuar o fenômeno da violência, da exclusão, da discriminação e da evasão escolar. Assim, cabe propor que sejam ressignificadas as considerações sobre o que seria de fato um ato de infração, para cujo tratamento se faça realmente necessário recorrer a outras instâncias extra-escolares como conselho tutelar, polícia militar, DA (delegacia do adolescente) ou outra instituição. Propõe-se uma análise com prudência e cautela sobre as relações construídas no ambiente educativo, no qual muitas situações adversas oriundas das interações poderiam receber um tratamento do ponto de vista disciplinar, pois dependendo da situação, em que medida não seria eticamente formativo encarar a materialidade do ato conflituoso enquanto passível de solução no ambiente interno da instituição, para cuja solução pedagógica seria aconselhável buscar o apoio da equipe pedagógica e diretiva, de outros colegas professores, e, especialmente, da família. Ressalte-se que o conceito de família utilizado neste artigo prima por uma conotação semântica na qual se reconsidere a estrutura familiar que se constitui no século XXI, na qual o modelo tradicional nuclear de pai, mãe e filhos já não são tão recorrentes nas sociedades pós- contemporâneas, pois há de se reinterpretar os conceitos de gênero e diversidade, bem como o livre arbítrio dos sujeitos para a busca de realizações existenciais, considerada a efemeridade e a transitoriedade da vida e dos fenômenos dela provenientes. Isto posto, convém considerar o contexto bioecológico de desenvolvimento humano, o quanto as macroestruturas políticas, econômica, geográficas e socioculturais afetam e são interdependentes das inter-relações pessoais nas quais se constroem as subjetividades. Nas palavras do professor Adão Aparecido Xavier e Wanirley Pedroso Guelfi, no artigo “Violência versus Rendimento Escolar”: Conhecer a legislação e estratégias pedagógicas e didáticas mais eficazes é uma das condições para uma boa prática e em consequência estratégia de combate à indisciplina e à violência que afeta o âmbito escolar; diferenciando violência no crivo da sociologia que trabalha com seus aspectos de causas e efeito nas sociedades urbanas e outras. Entender no aspecto antropológico a manifestação e os ritos com aspectos da violência encontrados nas diversas Volume I 27 comunidades humanas em todos os tempos e lugares. (XAVIER; GUELFI, 2008) Diante do exposto, este artigo pretende demonstrar os efeitos do não cumprimento do artigo supra citado nos atos de infrações cometidos pelo jovens, considerando-se as implicações da vida escolar, das inúmeras ações de violação de direitos e do abandono gerado pela falta de tolerância e compreensão dos fenômenos macros que interferem nas microrrelações e são determinantes das trajetórias a serem percorridas por crianças e adolescentes até culminarem na privação total e/ou parcial da liberdade. As implicações da implementação do Artigo 227 da CF/1988 no cerceamento da liberdade do indivíduo Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) A partir de uma leitura mais atenta dos elementos presentes neste artigo, cabe indagações sobre o que realmente tem sido feito para sua implementação, qual seria a responsabilidade de cada segmento social e por que após vinte e três anos de sua publicação se faz necessário rediscuti- lo. Quantas áreas de lazer para crianças, adolescentes e jovens têm sido construídas nas periferias e nos centros rurais e urbanos? Os detentos, na pesquisa feita, na quase totalidade, informaram não ter tido acesso ao lazer. Nas ciências que tratam sobre o desenvolvimento humano, é recorrente a defesa da importância do lúdico para um desenvolvimento saudável. Dessa forma, uma das questões constantes no questionário da pesquisa se refere a quais atividades de lazer eram oportunizadas na infância. Nas respostas elaboradas por eles, cabe ressaltar que a maioria não menciona a existência de parques, pistas de skates, quadras poliesportivas, para não falar em acesso a cinema, teatro, outras atividades culturais. Cultura aqui utilizada a partir de seu sentido etmológico de cultivar, semear para um crescimento qualitativamente produtivo e saudável. Vozes da Educação 28 Quando em um dos relatos da pesquisa, o informante ao relembrar sua infância, narra que brincava de roubar e matar, como recentemente apareceu num jornal da RPC uma reportagem na qual o irmão de aproximadamente 15 anos, juntamente com um colega, brinca de assaltar, e coloca na mão do irmãozinho de 11 meses o revólver calibre 38, dizendo: “Pega aí o ferro”...”Na boca não!”. Isso causa estranheza e inquietação, especialmente quando se pensa na proposta piagetiana dos esquemas representacionais mentais que o indivíduo cognoscente vai construindo no aparato cognitivo. Embora ao ver a reportagem, seja emergente um choque de valores, não se percebe o mesmo efeito quando se estruturam em grandes Shoping Centers áreas de jogos digitais construídas com pseudoarmas nas quais os jogadores literalmente empunham a arma apontada para uma tela virtual e desfere tiros visandoa um algo que é outro humano. Outro exemplo significativo que contribui no constructo das representações assimiláveis pelo indivíduo se refere ao “Painting Ball” – no qual ocorre uma simulação de verdadeiros campos de batalha, os integrantes da equipe se vestem com estilizadas e, de posse de uma arma cuja munição são bolas com tintas, vence o grupo que comete um número maior de “homicídios”. E quais efeitos devastadores são desencadeados por períodos de quatro a oito horas diárias de jogos virtuais? Retornando ao início da discussão proposta no parágrafo anterior, ao analisar a resposta constante no questionário onde o detento relata as brincadeiras de assalto quando criança, ocorreu, num primeiro momento, a possibilidade da falta de honestidade na resposta, por ironia, sarcasmo, revolta, enfim.... Nas palavras do próprio pesquisado á seguinte questão: Onde você cresceu existia lugar para brincar (área de lazer)? Volume I 29 Embora se questione a veracidade da resposta, após as reflexões supra mencionadas, percebe-se que é possível verificar em várias esferas de lazer situações similares e institucionalizadas como “normais”. A importância de se pensar em uma formação saudável perpassa pela infraestrutura possível para que a qualidade bioecológica da construção da vida se efetive com dignidade. Dessa forma, há de se refletir sobre programas de governo como “Minha casa, minha vida”, na medida em que viabiliza, ainda que a passos lentos, a concretização de um dos elementos previstos no Caput do artigo 227. Além da privacidade necessária, é de mister importância espaços destinados a momentos de convivência familiar, pois a interação inter- psíquica que ocorre nas trocas inter-subjetivas é o passo inicial para que o indivíduo internalize princípios e valores construídos historicamente pelos seus antepassados. As relações sociointeracionistas permitem que o plano de representações externas ao sujeito seja captado pelos sentidos, a partir dos quais os indivíduos passam a re/constituir os recursos internos, o plano intrapsíquico, reflexão muito bem pontuada por Vygotsky em suas concepções sobre os processo de internalização dos saberes. A moradia como elemento contemplado no artigo 227/CF/1988, remete a espaços residências, no qual o direito à interação parental deveria ser concretizado. Dessa forma, o lar seria construído por, além de quartos separados por gênero, ressalvadas as considerações sobre a diversidade, do quarto privativo do casal. É de mister importância uma sala ambiente que propicie momentos de convivência familiar, para além dos horários que deveriam existir cronometrados para as refeições nas quais toda a família se reunisse, pelo menos em uma das refeições diárias, não somente para saciar a fome, mas para que valores sejam construídos nas trocas existenciais. A proposta de fortalecer os laços dentro do lar é imprescindível para que os membros de uma família possam se conhecer mutuamente, compreender as singularidades do outro, estabelecer relações empáticas, na medida em que desenvolvam a habilidade altruísta de mergulhar no universo psicológico do “não-eu” e buscar compreender-lhes as angústias, os êxitos, as necessidades. Esta convivência saudável refletirá, de forma significativa, na vida da pessoa em todos os momentos de sua existência. Vozes da Educação 30 Sabemos que há todo um jogo de manipulação psicológica nas relações humanas e numa pesquisa tais elementos precisam ser levados em conta. Desta forma, dentre os 51 questionários respondidos, a importância da família se reflete em alguns discursos carregados de arrependimento e desejo de mudanças, como é o exemplo abaixo na resposta dada á questão sobre as expectativas de vida ao término de cumprimento da pena: Ressalvadas as dissimulações possíveis encontradas nas respostas a esta questão, no sentido do inter-locutor se valer da retórica aristotélica, ou seja, de dizer ao outro o que acredita atender-lhe a expectativa, verifica- se alguns elementos que mostram como o recluso acima sente a fragilidade familiar ao considerar que se tivesse a presença do pai, de um convivência familiar parceira na sua edificação, sua “sorte” poderia ter sido outra. Isso fica claro no seguinte enunciado: “Tudo começou a partir disso” – da ausência de uma figura parental que lhe conduzisse numa vida justa, que Volume I 31 lhe pusesse limites e o preparasse para uma vida saudável. Fica perceptível o reconhecimento da construção da identidade infratora a partir da ausência de relações familiares interventivas, e a consciência por parte do pesquisado de que não quer reproduzir a mesma formação adversa em seu filho. Perfil do prisioneiro da delegacia pesquisada versus o perfil dos detentos brasileiros: violações e violências! “É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões”. Dostoievski, Livro: "Crime e castigo" Verificando in loco a situação carcerária numa pesquisa, não há como se manter na indiferença e não tentar, pelo menos, buscar elementos Vozes da Educação 32 que provoquem reflexões e possibilidades de mudanças nesta realidade. Respeitado o direito de veiculação de imagens, apenas são mostrados dois detalhes fotográficos acima como ilustração ratificadora da pesquisa. Nelas é possível que o leitor se atente para o aspecto sombrio e horrendo que se constrói no ambiente carcerário, cujas nuances físicas estruturais não deixam margem para dúvidas do quanto o espaço por eles ocupado afeta e angustia a sensibilidade humana. Trata-se de um lócus cultural horripilante, pela falta de manutenção da pintura, de iluminação, pela falta de janelas, ainda que com grades, pela falta de ventilação, dentre outros aspectos adversos à edificação humana. As celas medindo aproximadamente 3X2, contendo dez indivíduos cada uma, um corredor cujo cumprimento e largura permite o uso estreito de uma colchonete, constitui-se num espaço que divide quatro camas em cada lado, enfileiradas em formato de beliche. A altura que separa uma cama e outra não permite àqueles com 1,70m sentar-se com a coluna reta. O excesso de pessoas provoca um clima ainda mais quente e abafado. Ao se entrar no corredor que divide as celas, chamadas de “X”, é impossível não experimentar no olfato o cheiro pérfido e misto de alimento azedo, urina, fezes, dentre outros odores presentificados pela carência de higiene. Esta descrição se refere à ambientação na qual se desenvolvem seres encarcerados e em constante processo de aquisição cognitiva, dado o incessante devir existencial e a re/construção subjetiva que ocorre a cada interação com o meio físico e social. O filósofo Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e Punir” suscita a seguinte reflexão: Para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica continuamente denuncia? Serve para a delinquência, indução em reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente habitual, organização de um meio fechado de delinquência. (Focault, 2006, p76 ) Ao se refletir sobre estas palavras que traduzem há décadas o funcionamento do sistema prisional, emerge então a necessidade de propor alternativas, estratégias que possibilitem uma amenização mínima das adversidades constantes no sistema educacional e prisional. Trata-se de um desafio árduo e trabalhoso, que requer atitude altruísta, empática e de reconhecimento da alteridade e seus multicondicionantes. O que já foi apontadono século passado pelo filósofo Foucault no Vigiar e Punir entre outras obras, continua inspirando pesquisas Volume I 33 acadêmicas, porém as mudanças são ainda bem insipientes. No artigo “Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo”, publicado no site do CNJ, Terça, 28 de Setembro de 2010 é estarrecedor, pois naquele ano a população carcerária chegava a 494.598 presos, desta forma o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, menor apenas da dos Estados Unidos e da China. Estes dados foram apresentados pelo juiz Luciano Losekann8 no dia 23/09/2010, no Seminário Justiça em Números. A postura do juiz Losekann é de crítica em relação à Justiça Criminal e sua atuação dentro do Judiciário brasileiro, afirma: “(Justiça Criminal) é como o primo pobre da jurisdição”. “É uma área negligenciada, sobretudo pela Justiça Estadual. Os tribunais precisam planejar de forma mais efetiva o funcionamento da Justiça Criminal”. Na pesquisa realizada numa delegacia da Região Metropolitana de Curitiba, verificamos uma realidade semelhante à apresentada por Losekann no Seminário de 2010, supra citado. No mesmo o juiz afirmou que 57.195 pessoas estavam cumprindo pena em delegacias, que não contam com infraestrutura adequada. Na nossa pesquisa in loco, só constatamos no micro universo de nossa atuação um recorte da macro realidade nacional: superlotação, doenças, condições sub-humanas de vida, alimentação precária, morosidade nos julgamentos, detentos cumprindo penas há quase três anos na delegacia, por falta de vagas nas penitenciárias, etc. Ao traçar o perfil dos detentos brasileiros, Losekann destacou que o tráfico de drogas, artigo 33 do Código Penal, responde por 22% dos crimes cometidos pelos presidiários, na nossa pesquisa o índice foi de 24%, e o artigo mais citado foi o 157 – roubo – com 26%, seguido pelo artigo 121 ( homicídio), com 14%. Foram citados outros artigos (171, 289, 155, 129,14, 250, 16, 312, 159, 124, etc). A questão material, como se percebe em números de infrações é bem relevante, tanto no nível macro, como no micro, foco da nossa pesquisa. O argumento de Foucault, já citado: “(...) transformação do infrator ocasional em delinquente habitual, organização de um meio fechado de delinquência”. (FOUCAULT, 2006 8Juiz (naquele ano) coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Vozes da Educação 34 p. 76) confirma em nossa pesquisa, pois o número de reincidentes nos mesmos artigos em novos foi grande. Repensar o sistema prisional é uma proposta antiga e não só em nosso país, mas não bastam discursos, pois a mudança não é somente neste sistema, mas dada a magnitude de sua repercussão, constitui-se um fenômeno a ser estudado numa perspectiva multidimensional, na distribuição de renda, na educação, no campo das políticas públicas de modo especial. Na questão sobre quais as expectativas ao sair da prisão, a maioria demonstrou sensibilidade cristã e religiosa, seguida de arrependimento e desejo de mudança para uma vida justa, honesta e ética. No entanto, chama a atenção o texto escrito por um dos detentos abaixo escaneado, pois revela o quanto sua indignação para com a vida fora e dentro da prisão é substanciada com o sentimento de revolta e desejo de vingança, o que remete ao ser instintivo do id, quando o sujeito deixa se sobrepor em sua racionalidade, seu superego, a configuração de uma obsessão que se constitui no uso de estruturas cerebrais primitivas e irracionais: Volume I 35 Skinner propõe uma reflexão sobre o Reforçamento do Condicionamento Operante Positivo. As propostas do behaviourista para se pensar como repertórios comportamentais são reforçados, permitem inferir que, pelo relato do detento, S. que foi citado acima, ratifica-se as concepções apresentadas por Skinner, quando este reconhece sua identidade infratora a partir dos bens e do olhar de admiração conquistado por meio de ações criminosas, consideradas por ele como imprescindíveis para a concretização de seus sonhos. Curioso também é o fato do apenado expressar sua expectativa com relação ao que pretende fazer quando pagar sua dívida com a sociedade, ao se mostrar consciente da necessidade de continuar no mundo do crime para ter o financiamento de seus desejos de realização, ainda que o preço para tanto seja a liberdade. A vingança também aparece nitidamente expressa, pois como primeiro objetivo S. revela a intenção de, quando liberto, matar aqueles que o fizeram mal, que contribuíram para que estivesse na prisão. É possível, na escola e na sociedade, promover nos educandos o desenvolvimento da construção do sujeito autônomo e emancipado. No entanto, para que se atinja a este patamar de emancipação, há de se auto-questionar quais podem ser os reflexões de atitudes desrespeitosas como berros constantes nos corredores das escolas e presentes nas ações parentais e familiares no lar dos sujeitos. O despertar na crença do poder de transformação de atitudes requer primeiramente que os educadores revejam suas práticas e condutas violentas. Considere-se neste contexto educadores todos os adultos que servem como modelos reflexos aos comportamentos dos mais jovens. Assim esta reflexão é proposta a pais, mães, tios e tias, avôs e avós, professores e professoras, policiais, e a todos os atores que atuam cotidianamente na modelagem de repertórios comportamentais humanos. Refletir sobre estas questões podem contribuir par que se evite o surgimento de outros indivíduos edificados em contingentes circunstanciais similares ao do recluso citado anteriormente, cujo codinome optou-se por ser identificado apenas pela inicial “S” neste trabalho. O Caput do artigo 227 CF/1988 é enfático na defesa dos direitos à saúde, educação, segurança, lazer, entre outros e na nossa pesquisa entre Vozes da Educação 36 as 51 respostas, menos de 10 disseram ter tido alguma área de lazer e quando tinha era apenas uma pequena cancha de areia que é de uso compartilhado com adultos. O autor de texto acima no quesito área de lazer afirma que brincava de roubar, bater, usar drogas e matar. Violências e violações de direitos estão correlacionados. Como tem-se tentado demonstrar ao longo deste artigo. As falhas nas macroestruturas políticas e econômicas interferem diretamente no microcosmo de relações nas quais os sujeitos se desenvolvem. Desta forma, as violações de inúmeros direitos fundamentais para o desenvolvimento humano potencializam a reincidência das múltiplas violências que se autoamplificam por meio de ações muitas vezes inconsequentes, de protesto e/ou rebeldia, ou até mesmo como uma possibilidade de sobrevivência. O estímulo ao consumo exagerado é pernicioso. Afeta com maior intensidade as crianças e os adolescentes, pois ainda não estão preparados para ter uma postura reflexiva com maior criticidade a respeito de suas reais necessidades, assim como muitos adultos que se entregam aos apelos do consumismo manipulado pelas mídias a serviço dos ideais presentes no Capitalismo. O impulso consumista se intensifica nesta fase de formação da subjetividade. As condições materiais que possibilitam a sensação ilusória e momentânea de realização e da conquista faz com que acabem buscando a promessa de felicidade no produto obtido por meio de alternativas muitas vezes ilegais. Daí emerge a necessidade de se engajar em grupos para se fortalecerem mutuamente em planos de assalto, roubo, tráfico,etc. A pesquisa mostrou esta realidade, pois o maior percentual de crimes está relacionado a infrações tipificadas nos artigos 33 e 157 do Código Penal, que se referem respectivamente a tráfico de entorpencentes e roubos. As penalidades aplicadas em consonância ao atual aparato jurídico, tais como os atos de aprisionar, matar, torturar para, na sequência, devolver estes sujeito apenados com vistas à tentativa de ressocializá-los, tem minimizado o problema da violência? A pesquisa revela que a maioria dos reclusos são reincidentes. Como acreditar na readaptação social e na possibilidade de estes sujeitos virem a praticar interações sociais voltadas para o constructo de uma sociedade de paz, no contexto interativo propiciado pelos sistemas prisionais que estão colocados hoje na realidade brutal e concreta? Volume I 37 Uma das indagações que devem se presentificar constantemente no discurso educativo se refere à reflexão suscitada a partir de se questionar como o papel ativo de cada educador tem afetado a edificação de crianças, adolescentes e jovens. Os sociointeracionistas defendem que ninguém nasce com um gene da violência como parte constituinte de seu DNA. Padrões comportamentais de repostas aos estímulos do meio são construídos por meio do observar como estas relações se estabelecem no meio social. O controle da impulsividade reptiliana precisa ser trabalhado para que os sujeitos aprendam a lidar de forma resiliente com as adversidades. A construção de limites requer ações planejadas por parte de pais e educadores, que precisam primeiramente aprender a disciplinarizar-se no exercício constante de reflexão e ação interventiva, sem excessos de permissividade, para que não confundam agir democraticamente como sinônimo de atitude anárquica de libertinagem. O ato de construir valores é uma tarefa difícil e exigente e constante e se temos uma sociedade com uma enorme crise de valores essenciais a uma boa convivência humana entre os adultos, as consequências não poderiam ser outras entre os jovens e adolescentes. A ausência de referenciais responsáveis, com condições de oferecer uma educação ética e justa, não pode ser compensada com uma licenciosidade descomedida onde se pode tudo. Pontua o educador Paulo Freire: “A mim me dá pena e preocupação quando convivo com famílias que experimentam a “tirania da liberdade” em que crianças podem tudo: gritam, riscam as paredes, ameaçam as visitas em face da autoridade complacente dos pais que se pensam ainda campeões da liberdade.”9 (FREIRE, 1997, p. 29) A construção de limites não é uma tarefa fácil e não há como delegá-la somente à escola, cada segmento deve assumir a sua responsabilidade e, quando não o faz, incorre na possibilidade de arcar com consequências por vezes irreversíveis. Os adolescentes quando infringem as leis e normas podem ser penalizados, caso haja representação de queixa-crime, a ser registrada na delegacia local, por parte da(s) vítima(s). Para cada ato considerado infracional, está prevista uma medida sócio educativa no ECA. Art. 115 9 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. Editora UNESP. São Paulo. 2000 Vozes da Educação 38 Da advertência; Art. 116 Da Obrigação de Reparar o Dano; Art. 117 Da Prestação de Serviços à Comunidade; Art. 118 Da Liberdade Assistida. Estes artigos estão no capítulo IV do ECA, com o título Das Medidas Socioeducativas. E sua devida aplicação precisa contar com uma promotoria consciente e atuante, um Conselho Tutelar bem instrumentalizado e uma escola que conheça bem o ECA e outras legislações pertinentes à educação. Considerações finais Nas famílias, nas escolas e em todos os outros ambientes de convivência humana as diversas manifestações de violência que ocorrem precisam ser tratadas de forma adequada e com reflexão que anteceda a ação interventiva e transformadora; profissionais da educação e dos demais segmentos vinculados às políticas públicas responsáveis pela implementação do Caput do Artigo 227 CF/1988 e toda a legislação que versa sobre a formação humana de crianças, adolescentes e jovens devem levantar a bandeira em busca de sensibilizar para uma prática cidadã, que prime por cumprir com deveres e, por meio de pequenas ações cotidianas a cada interação social, criar padrões comportamentais disseminadores da paz, da solução pacífica dos conflitos, que reflitam o papel educativo de cada um. Para tanto, as escolas, enquanto instituições privilegiadas de disseminação de valores humanos, devem contar com equipes diretivas e pedagógicas que estejam cientes do papel transformador que têm nas mãos, para cuja execução precisam planejar coletivamente projetos políticos e pedagógicos que contemplem reuniões periódicas com educandos e comunidade, fora do espaço da sala de aula, em outros ambientes alternativos, visando a suscitarem o debate sobre as diversas violações. Em sala de aula, os professores devem buscar a realização de um trabalho intenso e efetivo, transdisciplinar, que ultrapasse a concepção conteudista de saberes fragmentados, promotor da dialogicidade e sensibilizador dos educandos e, por extensão, de todos os atores sociais para perceberem os danos ao organismo individual e social causados por meio das violências simbólicas explícita ou implícita, verbal, física, gestual, que ocorre a partir da expressão do olhar preconceituoso e desacolhedor que discrimina e exclui. Volume I 39 Referências Bibliográficas BRASIL. Congresso Nacional. LEI de Execução Penal (LEP): lei n°7.210 de 11/07/1984. BRASIL. Congresso Nacional. Constituição Federal. 38ª ed. S. Paulo: Saraiva, 2010. BRAGA. Mariana. Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. Disponível em: http://www.gerivaldoneiva.com/2010/09/em- prisoes-o-brasil-so-perde-para-eua-e.html (acesso dia 05 de abril de 2012) FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. Editora UNESP. São Paulo. 2000 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2006. GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961. XAVIER, Adão A.; GUELFI, Wanirley P. Violência e Indisciplina Versus Rendimento Escolar. Curitiba, SEED (Secretaria de Estado da Educação), 2008. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1400- 8.pdf (Acesso dia 13 de março de 2018). WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. SKINNER, B. F. Questões recentes na análise comportamental. Campinas, SP: Papirus. (1991). RacionaisMC’s Diário de um detento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VRXxNHSKMLU (Acesso dia 13 de março de 2018. Vozes da Educação 40 CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: DESAFIOS, CONTRADIÇÕES E PERSPECTIVAS Adelson da Cruz¹ Maria Romana Gonçalves Reis² Georgina Negrão Kalife Cordeiro³ RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão sobre Currículo na Educação de Jovens e Adultos como sinônimo de poder ou construção de conhecimentos. Está dividido em momentos complementares: primeiro realizamos uma análise sobre a Educação de Jovens e Adultos a partir de aspectos históricos e conceituais, posteriormente é efetivado uma abordagem sobre as definições de currículo enquanto sinônimo de poder, lista de conteúdos e rol de disciplinas e finalizamos constituindo uma análise da proposta curricular da EJA da Secretaria Municipal de Educaçãodo município de Augusto Corrêa-Pará no período de 2010 a 2016. O trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica com auxílio de fontes orais que realizamos em função de atividades de pesquisa no Grupo Universitário de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos – GUEJA/UFPA, desenvolvida nos anos de 2015 e 2016. Para fundamentá-lo teoricamente trabalharemos com autores como Lima (2008), Moraes (2006), Silva (2003), Souza (2003), Young (2014) e dispositivos legais em vigor no Brasil e a Proposta Curricular da EJA do município em foco. Palavras Chave: Educação de jovens e Adultos, currículo, poder, conhecimento. ABSTRACT This work proposes a reflection on Curriculum in Youth and Adult Education as synonymous with power or knowledge construction. It is divided into complementary moments: we first carry out an analysis of Youth and Adult Education based on historical and conceptual aspects, and then an approach is taken on the definitions of curriculum as a synonym for power, list of contents and disciplinary roles, and we end up constituting an analysis of the curriculum proposal of the EJA of the Municipal Department of Education of the municipality of Augusto Corrêa-Pará from 2010 to 2016. The work is the result of a bibliographic research with the help of oral sources that we carry out as a function of research activities in the University Group of Studies and Research in Youth and Adult Education - GUEJA / UFPA, developed in the years of 2015 and 2016. To base it theoretically we will work with authors such as Lima (2008), Moraes (2006), Silva (2003), Souza (2003) ), Young (2014) and legal provisions in force in Brazil and the EJA Curricular Proposal of the municipality in focus. Keywords: Youth and Adult Education, curriculum, power, knowledge. Volume I 41 Introdução O desenvolvimento do capitalismo em sua fase globalizada tem reconfigurado o Estado brasileiro e suas dinâmicas essas ações tem proporcionado consolidação de políticas neoliberais. Essa reconfiguração tem afetado de forma sistemática a educação fazendo com que os organismos multilaterais passem a demandar reformas educacionais em função do capital. Na contramão do estatuto capitalista, nós professores devemos pensar a educação como um processo que emancipa sujeitos, tornando-os seres humanos críticos e reflexivos. Porém, havemos de considerar que para se formar esse novo sujeito é preciso pensar no tipo de educação que estamos desenvolvendo no chão das escolas. É necessário pensar em práticas curriculares que valorize o saber popular e histórico, as práticas sociais e culturais dos educandos. Não há dúvidas que uma proposta curricular focada nesses aspectos há de ser um dos pressupostos basilar para consolidar uma educação libertadora. Pensando nisso propomos desenvolver este trabalho em função da seguinte questão, Currículo na Educação de Jovens e Adultos é sinônimo de poder ou conhecimento?. Essas duas categorias são fundamentais para a análise deste texto, pois segundo Young (2014), currículo pode ser entendido como “conhecimento dos poderosos” ou um conjunto complexo de conhecimento especializado que está relacionado ao saber e é capaz de prover os alunos de recursos para explicações e para pensar alternativas, qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização. Está dividido em momentos complementares. Primeiro faremos uma análise da Educação de Jovens e Adultos em seus aspectos históricos, conceituais e legais com fundamentação teórica dos autores Lima (2008) e Moraes (2006), que fornecem subsídios para a compreensão das particularidades da EJA, assim como, a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394/96 e as Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (2010), que consolidaram a obrigatoriedade e a redirecionaram como modalidade de ensino. Vozes da Educação 42 Em seguida, buscaremos compreender o currículo a partir de definições conceituais mais comuns, tais como: sinônimo de poder, lista de conteúdos e rol de disciplinas tendo como referência os autores Silva (2003), Souza (2003), Moreira e Candau (2008). Utilizaremos também os Cadernos do Governo Federal de Indagações sobre Currículo: Diversidade e Currículo, Currículo e Avaliação, Currículo e Desenvolvimento Humano e Currículo e Conhecimento Humano. No terceiro momento, enfatizaremos o currículo na EJA para além das práticas escolares, incorporando a ideia de que a vida cotidiana tem seus próprios currículos que são expressos nas práticas diárias de aprendizagem que permeiam toda nossa condição humana de estar no mundo. Um currículo que a escola precisa saber lidar para consolidar sua identidade, pois tem vida, saberes e conhecimentos. As análises de Lima (2005) e Vilar e Anjos (2014) são referenciais que ajudarão a compreender esse processo. As abordagens construídas sobre a EJA e currículo tem por objetivo dar subsídios teóricos para estabelecer uma análise da Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação de Augusto Correa na perspectiva de melhor compreendê-la, apontando equívocos, mas também direcionamentos. Educação de jovens e adultos: Conceitos e Diretrizes A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, assegurou aos jovens e adultos o direito público subjetivo ao ensino fundamental público e gratuito, garantido nos artigos: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Outro dispositivo governamental que deu destaque a Educação de Jovens e Adultos foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Volume I 43 Lei nº 9394/96, sendo mais específica, pois destacou toda a seção V para esta modalidade de ensino. Art. 37º. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1º. Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames. § 2º. O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si. Art. 38º. Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. § 1º. Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão: I - no nível de conclusão do ensino fundamental, para os maiores de quinze anos; II - no nível de conclusão do ensino médio, para os maiores de dezoito anos. [...]. § 2º. Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames. Seguindoa lógica de garantia de direitos as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a EJA, o parecer 11/2000 e a resolução 01/2000 do Conselho Nacional de Educação, redirecionaram as ações desta modalidade através de estratégias que vislumbraram a melhoraria da qualidade do ensino, situando o educando enquanto sujeito de direitos e obrigando o Estado a custear sua vida educacional. Pode-se dizer que esse redirecionamento foi uma conquista para uma parcela da sociedade que teve sua condição educacional desprovida pelo Estado. Constitui-se numa vitória popular, sobretudo por se tratar de um país que tem sua formação étnico-social amparada em processos de exploração do homem pelo homem, encravada numa estrutura escravocrata, hierárquica tendo como premissa básica que os trabalhadores precisavam apenas de instruções mínimas, posto que sua finalidade era apenas para formar mão-de-obra para o mercado do trabalho, priorizando a educação não como direito, mas sim como compensação. Considerando o que propõe as DCN (2000), esta concepção compensatória para ser mudada necessita que os marcos legais da EJA sejam materializados, tornando seus educandos, realmente sujeitos de Vozes da Educação 44 direitos. Quando isso acontecer, acredita-se que essa ideia será substituída pela de reparação e equidade, consubstanciando-se numa educação permanente a serviço do pleno desenvolvimento do educando. O Governo Federal na perspectiva de constituir um novo paradigma educacional para a EJA promulga, em 2010, as Diretrizes Operacionais, ratificando as Diretrizes Curriculares do ano 2000. Esse documento instituiu novos aspectos relativos: à duração dos cursos e idade mínima para ingresso nos cursos de EJA; idade mínima e certificação nos exames de EJA e; Educação de Jovens e Adultos desenvolvida por meio da Educação a Distância. Nesse sentido o Art. 2º destaca que é necessário: [...] a institucionalizar um sistema educacional público de Educação Básica de jovens e adultos, como política pública de Estado e não apenas de governo, assumindo a gestão democrática, contemplando a diversidade de sujeitos aprendizes, proporcionando a conjugação de políticas públicas setoriais e fortalecendo sua vocação como instrumento para a educação ao longo da vida. Esse processo histórico vislumbrou uma transformação da visão reducionista voltada apenas para o ato de alfabetizar para um processo de educação para a vida toda. Dessa forma, a EJA passa a ser vista como uma modalidade de ensino constituída de peculiaridades próprias. Percebe-se que ao menos no campo teórico mudanças significativas aconteceram, porém estas precisam chegar ao “chão da escola”, ao mundo do educando, sendo necessário, para tanto, repensar o currículo, sua materialidade e aplicabilidade para contemplar a realidade dos sujeitos da EJA. Tecendo Algumas Considerações sobre Currículo Falar de currículo escolar é entrar em uma vertente educacional bastante complexa para muitos profissionais da educação. Muito se ouve falar, porém quando se tenta socializar oralmente ou sistematizá-lo aparecem inúmeras definições, tais como: seleção de conteúdos, rol de disciplinas, listagem de conteúdos, a verdade é que não sabemos muito de currículo, pois nem sequer sabemos onde ele é materializado: Plano de Ensino elaborado pelas Secretarias de Educação, Projeto Político Pedagógico das escolas, conteúdos dos planejamentos de aulas desenvolvido pelos professores. Transcendendo a essa visão reducionista Silva (2003), argumenta que currículo escolar é um mecanismo de transmissão de conhecimentos, Volume I 45 um instrumento de transformação, de valorização e respeito a diversidade cultural, de construção de novas aprendizagens, de conflitos e socialização de ideias coletivas, sendo o diálogo o elemento a mediador de todo o processo. Para Souza (2003, p. 15 e 16), [...] o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez podemos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é uma questão de identidade. Como nos mostra o autor, o currículo é um importante instrumento na construção de nossa identidade, sendo que esta é moldada diariamente através dos conhecimentos apreendidos. Tais características fazem do currículo um objeto com definições conceituais antagônicas. Se por um lado currículo é concebido numa perspectiva crítica e emancipatória tendo como ponto focal a construção de novos conhecimentos, por outro, numa perspectiva conservadora, é fortemente permeado por relações coercitivas, instituindo-se assim enquanto sinônimo de poder por impor uma cultura a ser ensinada para garantir a hegemonia da classe dominante. Historicamente o que vem predominando é essa uma visão vertical de currículo que prima por um processo classificatório e excludente e determina quais conhecimentos serão úteis e quais serão descartados, quais grupos sociais serão incluídos e quais serão excluídos, sendo capaz de reproduzir e reforçar ideias de divisões de gênero, classe, cultura, estabelecendo padrões e modelos sociais a serem seguidos. (SILVA; 2003). Essa é uma concepção tradicional centrada na figura do professor, na cultura global, na transmissão de conteúdos e nas disciplinas que se materializa num currículo elitizado e humanista que impõe e decide o que o será ensinado aos educandos, negando a história, a cultura e os saberes da maioria dos educandos que são os menos favorecidos social e economicamente. Dentro dessa perspectiva são introduzidos nas escolas, posicionamentos políticos, modelos de sujeitos e de sociedade a serem formados, onde o currículo se efetiva a partir de uma intencionalidade que reflete o modelo sociocultural vigente. Vozes da Educação 46 Apesar da definição de currículo ser plural o objeto de sua existência é o educando e está diretamente ligado ao processo de ensino- aprendizagem, definindo o tipo de educando a se formar e o que a ele será ensinado. Portanto, pode servir como instrumento de alienação ou transformação. Convencionalmente, as escolas brasileiras seguem um padrão curricular estabelecido pelo governo que se ratifica através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394/96; Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. Na educação básica todos os níveis de ensino devem obedecer a Base Nacional Comum do Currículo além de garantir o estabelecimento de uma parte diversificada com características locais e regionais. Apesar da padronização as escolas têm autonomia para desenvolver uma proposta curricular de acordo com a concepção por elas adotadas. Vilar e Anjos (2014), enfatizam que o tema currículo, apresenta a ideia de que se constrói no movimento híbrido entre o que é proposto através de documentos oficiais para a escola e o professor concretizando na prática docente aos educandos, envolvendo assim a questão prescritiva das orientações legais e as subjetividades do fazer docente. Portanto, o currículo da escola não é a representação dos documentos oficiais nem tampouco uma decisão pessoal de educador, mas sim de ações coletivas. Breves considerações sobre currículo na EJA Um dos grandes desafios enfrentados pelos atores que vivenciam a realidadeda EJA está na organização dos currículos tendo em vistas o cumprimento das metas educacionais demandadas para essa modalidade de ensino e a garantia do direito à educação para todos os cidadãos. Segundo os documentos oficiais o currículo da EJA deve responder as necessidades das pessoas que não tiveram oportunidade para finalizar seus estudos, encontrando-se em desnível idade/ano. A reentrada no sistema escolar desses sujeitos que tiveram uma interrupção forçada, seja pela repetência ou pela evasão, pelas desiguais oportunidades de permanência, deve ser saudada como uma reparação corretiva, ainda que Volume I 47 tardia dos indivíduos ao mundo do trabalho, na vida social, nos espaços da estética e na abertura dos canais de participação. (DCN; 2000). Para Moraes (2006, p.5) O aluno da EJA apresenta um conjunto de características muito peculiar que envolve o retorno à escola como sendo a via possível para se alcançar postos mais elevados no mercado de trabalho, ou ainda, para as mulheres – donas de casa, em especifico uma oportunidade de vivenciarem uma atividade produtiva diferente das realizadas no interior do próprio lar. Em geral, esse aluno chega à escola com grande receio de não conseguir cumprir com as exigências institucionais e, ao mesmo tempo, apresenta uma visão de escola completamente atrelada à perspectiva empirista de educação. Isto a leva a refretar quaisquer propostas de ensino que sejam distintas do conhecido e “clássico” modelo de uma aula transmitida via quadro de giz com pouco diálogo muita cópia de exercícios repetitivos para que o aluno execute. Diante desses cenários, o professor depara-se frente a uma dualidade, entre o que ele acredita trabalhar em sala de aula e o que o currículo programado e materializado através de propostas pedagógicas determina que seja cumprido. É comum professores da EJA, assinalarem que o currículo é extenso, pré-determinado e que está fora da realidade de suas escolas e alunos, colocando-os em dilemas entre ensinar o que consideram importante para a aquisição do conhecimento do aluno e o que as célebres “grades” curriculares sugerem. De acordo com Lima (2008), os conteúdos escolhidos para o currículo desenvolvem papel importante na construção de identidades, pois é através dele que se dará a formação humana na escola. Portanto, as atividades para conseguir alcançar os objetivos esperados necessitam estar adequadas às estratégias de envolvimento e participação dos sujeitos, ou seja, é preciso trabalhar a realidade vivida pelo educando em suas funções simbólica, perceptiva, memória e imaginação. De tal modo um dos objetivos da educação tende a ser a inserção de todos no mundo letrado. Assim o desenho curricular da EJA precisa dar conta da dinâmica sociocultural de seus educandos e contemplar conhecimentos que possam qualificá-los ao mundo do trabalho. Dessa forma, o currículo da EJA deve contemplar as diferentes dimensões do educando, sobretudo a formação humana, devendo envolver suas relações multiculturais. Na visão de Vilar e Anjos (2014) no currículo da EJA não devem ser desconsideradas as diferentes dimensões da cultura, da emoção, da subjetividade e da própria história de vida dos Vozes da Educação 48 alunos, mas valorizado o potencial humano permitindo o desenvolvimento das dimensões unilaterais desses sujeitos. Diante desse contexto é importante considerar que, apesar da predominância de uma concepção arcaica de currículo na realidade educacional brasileira e em particular na EJA, há um grande esforço de movimentos de educação popular e educadores em discutir um currículo buscando compreendê-lo, não como uma lista de conteúdos a serem ministrados a determinados grupos, mas como criação cotidiana daqueles que fazem da escola, um espaço de ensino-aprendizagem, envolvendo sujeitos interlaçados por saberes populares e conhecimentos científicos. Para tanto, é preciso entendê-lo a partir de uma visão para além das práticas escolares, incorporando a ideia de que a vida cotidiana tem seus próprios currículos expressos nos processos de aprendizagem não formal que permeiam toda a condição humana de estar no mundo. Um currículo que tem vida, saberes e produção de conhecimentos que constituem aspectos com os quais a escola precisa saber lidar. A elaboração de um currículo da EJA, portanto, deve ser pautada na realidade do educando e tem que ter a capacidade de dialogar entre os sujeitos educativos e seus saberes. Para tanto é necessário constituir uma ação coletiva que possibilite o diálogo entre os membros da comunidade escolar, professores, gestores, pais e alunos. Dilemas e contradições das propostas curriculares da secretaria Municipal de Educação de Augusto Correa para a EJA. Conforme mencionamos, o currículo da Educação de Jovens e Adultos deve valorizar a diversidade cultural do aluno, respeitando suas vivências, seu espaço social, seus saberes e costumes cotidianos. Nesse contexto, caberia a escola, enquanto, instituição social socializar e sistematizar os saberes contidos no currículo visando garantir a socialização dos conhecimentos “científicos, filosóficos e artísticos”, possibilitando transcender do conhecimento espontâneo ao conhecimento elaborado. (MALANCHEN; 2014). Young (2014) em uma análise sobre teorias curricular destaca que os currículos escolares são formas de conhecimento educacional especializado e costumam definir o tipo de educação recebida pelos educandos, conhecimentos que se entende como a capacidade de Volume I 49 vislumbrar alternativas, seja em literatura, química ou qualquer outra área do saber. Nesse sentido, entendemos que o currículo não pode nunca ser definido por resultados, habilidades ou avaliações, pois se for será incapaz de prover tais conhecimentos. Com base nessas premissas destacamos algumas apreensões da pesquisa realizada na Secretaria Municipal de Educação de Augusto Corrêa sobre como este órgão tem tratado o currículo na Educação de Jovens e Adultos a partir das acepções teórico-prático de suas propostas pedagógicas. A análise das propostas nos permitiu constituir um conjunto de categorias de análises que possibilitou compreender qual concepção curricular norteou a Educação de Jovens e Adultos no município de Augusto Correa-Pará no período de 2010 a 2016. Destaca-se que nesse recorte temporal da pesquisa encontramos duas propostas curriculares, sendo uma com vigência de 2010 a 2013 e outra de 2014 a 2016. Assim, nosso olhar se postulou a analisa-las a partir de suas concepções teóricas, sendo que isso só nos foi possível devido estarmos referendadas numa acepção curricular histórico-crítico e de uma educação libertadora. Através de Young (2014, p. 200), compreendemos currículo como: Um sistema de relações sociais e de poder com uma história específica; isso está relacionado com a ideia de que o currículo pode ser entendido como “conhecimento dos poderosos”. Sempre é também um corpo complexo de conhecimento especializado e está relacionado a saber se e em que medida um currículo representa “conhecimento poderoso” – em outras palavras, é capaz de prover os alunos de recursos para explicações e para pensar alternativas, qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização. Com base em estudos histórico-crítico sobre currículo e em referenciais teóricos da educação libertadora, observamos que a proposta curricular que predominou no primeiro período estava alicerçada numa visão limitada e simplista de educação que valoriza a hierarquização, dividindo os conteúdos e as disciplinas a serem ensinados aos educandos. O currículo foiconcebido numa concepção tradicional representado por uma sucessão de disciplinas com conteúdos, métodos, procedimentos, objetivos e regras avaliativas pré-estabelecidos por técnicos educacionais da secretaria de educação. Vozes da Educação 50 Esse paradigma curricular é reflexo das reformas impostas pelos organismos internacionais aos países em desenvolvimento. No caso do Brasil esse processo vai ser impulsionado a partir da década de 90, quando os governos brasileiros, em consonância com estes organismos adotam o modelo neoliberal para gerir o Estado. A educação irá sofrer mudanças mais sistemáticas mediante as reiteradas tentativas de implantação de um modelo gerencial que tem por finalidade qualificar mão-de-obra para o mercado de trabalho. Chaves, Neto e Nascimento (2009, p. 43), destacam que este modelo gerencial estar em consonância com a dinâmica empresarial e ao mercado competitivo, adotando visões instrumentais/funcionais de autonomia e de participação. A esfera privada através de múltiplos dispositivos, constitui-se numa fonte de inspiração privilegiada e, nas suas versões mais puras, a fórmula apregoada para a superação da crise de legitimidade pela qual passa a escola aparece associando-a “a uma imagem de moderna estação de serviços, funcionalmente adaptada às exigências do mercado e às necessidades dos seus clientes e consumidores. Assim, nota-se que esse quadro repercutiu na organização da proposta curricular da EJA no município, pois sua formulação não acompanhou as mudanças que as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos provocaram nesta modalidade de ensino. Portanto, o que se ver é uma acepção educacional e curricular que volta suas orientações para um sujeito que necessita desenvolver habilidades básicas para o mercado de trabalho, carecendo apenas de instruções, muitas vezes técnicas. Cabe concluir, então, que essa proposta curricular não abrigou os anseios, os dilemas e as problemáticas do processo ensino- aprendizagem dos educadores e educandos da EJA, uma vez que segundo relatos de educadores sua elaboração se deu através de técnicos da secretaria de educação. Acreditamos que por faltar a participação dos sujeitos que materializam o processo ensino-aprendizagem é que está representa uma listagem de conteúdos. Conforme nos demonstra Cunha (2005), é uma prática curricular com um paradigma epistemológico positivista, o qual se configura por aspectos de um saber pronto e acabado em si mesmo, organizado de forma disciplinar, distribuído de forma sequencial e transmitido, na Volume I 51 maioria das vezes, de forma verbal pelo professor. É importante refletir sobre esse modelo curricular pelo fato de estarmos vivendo em tempos pós-modernos, cujo desenvolvimento de novas tecnologias devem auxiliar o processo ensino-aprendizagem, o que significa dizer que necessitamos de modelos e práticas que tenham por base outro paradigma, ou seja, que concebam os conhecimentos e os processos de formação como espaços que constroem novos saberes. Na pesquisa também tivemos contato com a proposta que começou a ser elaborada a partir de 2014. Segundo relatos da Secretária Municipal de Educação, nesse período começaram a ser realizados encontros entre educadores e técnicos da SEMED para reformular a Proposta Curricular da EJA, porém notaram que a mesma não contemplava a diversidade que era a EJA no município. De tal modo a nova proposta precisava dar conta da multiculturalidade do território Augusto Correense, diante de tal desafio passaram a estabelecer parceria com a Universidade Federal do Pará através do Grupo de Estudo e Pesquisa da Educação de Jovens e Adultos da Amazônia (GUEAJA). E, ainda disserta. Tínhamos clareza que o objetivo nessa modalidade seria priorizar um trabalho educativo que respeitasse as diferenças individuais e os conhecimentos informais dos alunos. Era preciso pensar uma concepção de educação ao longo da vida, uma educação como instrumento de emancipação dos sujeitos, mas também tínhamos clareza dos problemas que interferiam na qualidade do processo educativo dentre os quais a questão do currículo. Segundo a Coordenadora Municipal de EJA, a elaboração desta proposta curricular emergiu de um projeto de Formação Permanente para os educadores desta modalidade de ensino. Tinha por objetivo fomentar nos educadores a possibilidade de construção de um currículo vivo, numa perspectiva freireana. Precisávamos de uma proposta curricular que tivesse ligação direta com o mundo do trabalho do aluno, sendo que no nosso caso são educandos estão submergidos numa diversidade territorial: de pescadores, caranguejeiros, marisqueiros e trabalhadores da agricultura familiar. Ainda argumenta que: Essa proposta teve como finalidade possibilitar aos professores a construção de um referencial teórico sobre o currículo crítico a partir dos princípios freireanos, sempre considerando a realidade local dos alunos no desenvolvimento de práticas curriculares. Isso por que Vozes da Educação 52 pensamos em visibilizar os saberes e as histórias de vida destes alunos com a perspectiva de potencializar suas reflexões críticas e suas inserções sociais. Em vista do que foi exposto é possível inferir que essa proposta fundamentou-se numa perspectiva histórico-crítico de currículo, pautada na relação entre os conhecimentos científicos e saberes das práticas cotidianas dos educandos a partir de um processo dialético que valoriza a ressignificação de conhecimentos socioculturais. Dessa forma, proporciona um processo ensino-aprendizagem que conduz ao desenvolvimento de competências e de conhecimentos necessários para a formação sociocultural plena do educando da EJA. (GONÇALVES, ABREU & OLIEIRA; 2013). Como os próprios autores enfatizam, esse paradigma nos mostra que a desenvolvimento de um currículo não envolve apenas elementos técnicos, mas também elementos políticos, culturais e sociais. Para Moreira e Silva (1995, p. 7). O currículo há muito tempo deixou de ser apenas uma área meramente técnica, voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas, métodos. Já se pode falar agora em uma tradição crítica do currículo, guiada por questões sociológicas, políticas, epistemológicas. Assim sendo, a referido proposta contempla muitos aspectos de um currículo crítico, sobretudo por ser fruto da participação de educadores e educandos envolvidos no processo educacional estão mais próximos da realidade vivida dos educandos. Aliás, para que um currículo atenda as particularidades dos educandos e os anseios dos educadores é necessário que esteja conectado a dimensão histórica, cultural, social e político da sociedade globalizada. Currículo na educação de jovens e adultos é sinônimo de poder ou conhecimento? Havemos de considerar que todo currículo carrega uma intencionalidade, pois é fruto de decisões políticas-administrativas de homens e mulheres que definem o que irá ser ensinado aos educandos. Seu conjunto também reflete os paradigmas das sociedades e de governos que estão no poder, dependendo da opção política dos governantes podemos encontrar currículos que ajuízam sinônimo de poder e submissão do conhecimento de uma classe social sobre a outra, mas Volume I 53 também podemos encontrar currículos que buscam a emancipação do ser humano. Como nos diz Young (2014), esse fenômeno marcou demasiadamente o currículo como “conhecimento dos poderosos” – um sistema concebido para manter as desigualdades educacionais – e negligenciou o currículo como “conhecimento poderoso”, mas também havemos de considerar práticascurriculares que fundamentam-se em pressupostos que buscam a transformação sociocultural dos educandos. As análises empreendidas nas duas propostas curriculares pautam-se em concepções de currículo que conjecturam modelos de sociedade. A primeira, fundamenta-se em instrumentos norteadores impostos por organismos internacionais na perspectiva de forma mão-de- obra, ou seja, o educando necessita instrumentaliza-se de competências técnicas para o mercado de trabalho. É materializado através de numa sucessão de disciplinas, caracterizando-se assim, como sinônimo de poder. Carrega o estereótipo de sinônimo de poder, por que orienta-se a partir da visão dominante de exploração do homem sobre o homem, uma educação de caráter propedêutico, terminal, que visa não visa a libertação do ser humano, sendo seu papel instrumentalizar os educadores de conteúdos sistematizados e que não tem relação com a vivencia do educando. A segunda proposta possui uma visão crítica de currículo e estar fundamentado numa assertiva histórico crítico, sendo este um importante instrumento na construção de novos conhecimentos para os educandos. Ilustra e representa os diversos territórios e sujeitos que estão envolvidos na Educação de Jovens e Adultos em Augusto Correa, abrigando as diversas concepções de vida dos sujeitos. O desafio de construir uma proposta curricular para EJA dentro do território amazônico, tal qual foi empreendido em Augusto Correa, que tenha por finalidade construir conhecimentos é que os sujeitos da EJA são invisibilizados, imaginemos os sujeitos da EJA da Amazônia. Assim, faz- se necessário um processo continuo de inserção social nos territórios para que se possa dar visibilidade não só aos sujeitos, mas também seus saberes e culturas. Em resumo, o currículo da EJA é o espelho do tipo de governo e a relação que este estabelece com a sociedade capitalista, sendo que pode Vozes da Educação 54 servir para emancipar o educando ou transformá-la em reprodutores do sistema capitalista. Assim sendo, depende muito do tipo de escola e de educadores que a sociedade quer ter e formar, ou seja, depende das escolhas de quem irá participar da elaboração das propostas curriculares. Breve dissertação a nível de considerações finais A Lei de Diretrizes e Bases da Educação enfatiza que a Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade de ensino voltada para pessoas que não tiveram acesso, por algum motivo, em sua vida educacional, ao ensino regular na idade apropriada. Propõe atender um público ao qual foi negado o direito à educação durante a infância ou adolescência seja pela oferta irregular de vagas, pela inadequação do sistema de ensino ou pelas condições socioeconômicas desfavoráveis. O que se viu, por muito tempo, foi a ideia de que os educandos da EJA precisavam apenas serem alfabetizados. Porém, com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9394/94, houve um redirecionamento, em função de essas leis assegurarem o acesso à educação para todos. Da mesma forma as Diretrizes Curriculares Nacionais e as Diretrizes Operacionais para EJA deram um novo sentido a essa modalidade de ensino. No entanto, há necessidade das escolas se adequarem, a começar pelo currículo, posto que é essencial que correspondam às especificidades dos alunos considerando seus interesses, sua faixa etária e sua condição socioeconômica e cultural. Sobre isso Lopes e Sousa (2005), destacam que é preciso que a sociedade compreenda que alunos da EJA vivenciam problemas como preconceito, vergonha, discriminação, críticas, dentre tantos outros e que tais questões são vivenciadas tanto no cotidiano familiar como na vida em comunidade. O aluno da EJA tem que ser visto em seu aspecto global, respeitando sempre a particularidade de cada educando. Oliveira (2004), diz que dentro da faixa etária da EJA, configura- se uma diferença de interesses posto que a sala de aula dessa modalidade de ensino é multicultural. Isso traz para o universo das práticas pedagógicas, vivências, relações de interesses, estímulos e diversos modos de ensinar e aprender e diferentes perspectivas com relação ao que desejam da educação. Volume I 55 A escola da EJA tem que compreender que o tempo do adulto é diferente da criança. O adulto está interessado na vida profissional, na sua inserção no mercado de trabalho. Ele olha para sua situação de vida presente. A escola tem que ensinar conhecimentos uteis para o seu dia-a- dia, caso contrário, corre-se o risco desse aluno evadir novamente. A EJA tem que ter esse olhar para o futuro, nas transformações sociais, nas inovações tecnológicas, ou seja, a escola, o professor da EJA tem que acompanhar às mudanças que ocorrem na sociedade, transmitindo conhecimento que os forme para o mundo do trabalho. O educando da EJA, traz consigo as marcas da maturidade juvenil, da busca pelo novo, e a visão de que ainda tem bastante tempo para desfrutar de sua juventude vai desaparecendo conforme os jovens vão arrumando família. Os mais idosos vêm o tempo como adversário, pois já carreados de responsabilidades tem a ideia que o tempo sempre é curto. É por isso que a escola da EJA necessita ser um espaço agradável, onde o aluno posso falar, ser ouvido, acolhido e representado. Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília,1988. _______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional. Brasília: MEC, 1996. _______. Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, 2000. _______. Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, 2010. BEAUCHAMP, Janete. PAGEL, Denise & NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Básica, 2008. 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Deste modo, percebe-se que é extremamente importante transformar o espaço escolar em um novo ambiente de aprendizagem; mais acolhedor, mais inclusivo e motivador, onde se atua preventivamente nos aspectos que podem levar ao fracasso. Para fundamentar as discussões ora apresentadas, adotou-se pesquisa bibliográfica em Freire (1996), Weiss e Weiss (2011), Luckesi (2011), entre outros e também observações feitas no espaço escolar em período de atividade laborativa. Palavras chave: Fracasso Escolar. Aprendizagem. Aluno. Professor. ABSTRACT The aim of this study is to explore learning difficulties and their relationship with students’ failing at school. In addition, it investigate the importance of affection and self – evaluation of teachers and teaching institutions, considering the substantial number of students who face obstacles to the development of new knowledge. These obstacles may very from disorders and deficiencies to teachers’ practice and the organization of the curriculum and academic space/time. In conclusion, it is crucially important to transform the school space into a new learning environment – a more welcoming, inclusive, motivating place, where the aspects leading to failure are managed. To base the discussions presented herein, a bibliographical study was conducted considering studies by Freire (1996), Weiss and Weiss (2011), and Luckesi (2011), among others, as well as notes taken within the school space during work activities. Keywords: School Failure. Learning. Student. Teacher. 10Graduada em Lic. em Pedagogia pela UERJ. Pós – graduanda em Psicopedagogia pelo Instituto de Ed. Sup. Sinapses. Atuou no Projeto Agentes de Inclusão Escolar do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência em Parceria com a Sec. Mun. de Ed. do Rio de Janeiro de 2014 a 2017. Vozes da Educação 58 Introdução “ – Me deixa mãe. Vai embora. Eu vou estudar agora.” (Nicolas, 4 anos) Ao ingressar na escola, a criança leva sobre si não só a ansiedade de saber como será o ambiente escolar, leva também suas expectativas e a dos pais em relação ao seu sucesso na vida acadêmica. Tudo é muito novo, fascinante e muitas vezes intimidador. Por outro lado, a sensação de que se está crescendo e assu-mindo responsabilidades pode ser igualmente assustadora. Muitos alcançam o sonhado êxito escolar, mas há aqueles que enfrentam dificuldades neste percurso e não chegam a concluir o Ensino Fundamental. Assim, o aluno ao chegar na escola com uma grande aspiração em acertar, se depara com grandes dificulda-des, não consegue se sentir parte daquele meio, se vê inapto a realizar os sonhos dos pais e cumprir com as obrigações escolares gerando grande frustração. É com base neste cenário que iremos refletir sobre a influência dos aspectos pedagógicos da sistematização da escola, os aspectos sociais e emocionais na organização do pensamento e consequente construção ou não de conhecimentos novos, buscando um entendimento mais profundo a respeito do processo ensino- aprendizagem, bem como do papel do professor e da instituição escolar. Entender os motivos que levam ao fracasso e a consequente evasão auxilia a remodelação da prática docente, bem como a reestruturação do espaço escolar e dos currículos, assim a escola tem a possibilidade de modificar sua realidade educacional, evitando o fracasso do aluno e o fracasso da própria instituição. Definição de aprendizagem e possíveis motivos para a não aquisição de novos conhecimentos. De acordo com o dicionário Michaelis (2017), aprendizagem é o ato ou efeito de aprender um ofício, uma arte ou ciência. É ainda o tempo empregado no processo de construção de novos conhecimentos, é também o nome que se dá a mudanças permanentes resultantes de treino ou experiência anterior. Ainda de acordo com o Volume I 59 dicionário, a aprendizagem significativa é o encadeamento de novas informações que são adicionadas à estrutura cognitiva do indivíduo, por se conectar a um ou mais conceitos relevantes dessa estrutura. Esse novo objeto de conheci-mento poderá modificar aquele conteúdo já existente, dando-lhe outros sentidos, ou seja, a aprendizagem amplia a visão de mundo do indivíduo implicando em uma mudança de comportamento. Sendo um processo, entendemos que a aprendizagem é dinâmica, portan-to, não é um processo de absorção passiva; ela é contínua, ou seja, se dá por toda a vida do sujeito; é global, portanto inclui aspectos motores, emocionais e ideativos ou mentais; a aprendizagem é pessoal, porque ninguém pode aprender no lugar de outra pessoa; é gradativa, porque vai se construindo com base em conheci-mentos prévios e por fim, ela é cumulativa, de progressão contínua, adaptada por meio de interações sociais. Sendo assim, quais os motivos levariam um indivíduo a ter dificuldades nesse processo? Há várias condições que podem influenciar diretamente na aquisição de conhecimentos novos que vão desde de deficiências, distúrbios e transtornos, problemas emocionais e psíquicos, até a má condução da atividade docente e a organização escolar. Sobre a conduta docente diante de um aluno com Dificuldade de Aprendizagem (DA) é preciso observar o que dizem Weiss e Weiss: Chamamos a atenção para a necessidade de o professor dar acolhimento à criança que está vivendo uma situação “emocionalmente difícil para ela” e entender que o problema no momento da execução de uma tarefa escolar não é “preguiça, malandragem, burrice etc”, mas uma impossibi-lidade emocional de concentrar a sua atenção, de mobilizar sua inteligência para a tarefa escolar, o que leva a erros seguidos que podem ser vistos por ângulo negativo. Pequenos fracassos iniciais viram sempre “bola de neve” e, se não forem compreendidos em tempo hábil pelo professor, poderão causar grandes dificuldades em curto prazo. (WEISS e WEISS, 2011, p. 33-34) O termo dificuldades de aprendizagem possui um conceito complexo, porém podemos entendê-lo como bloqueios, impedimentos e desordens psíquicas ou não (que podem ser temporários ou não) e que impossibilitam o indivíduo construir seus conhecimentos. Com isso deve-se levar em consideração os aspectos orgânicos, cognitivos, emocionais, sociais, afetivos e pedagógicos. Vozes da Educação 60 Se de um lado há um educando enfrentando problemas, de origens diversas, para aprender, de outro temos um professor com dificuldades, de origem tambémdiversa, para ensinar. E nesse sentido a formação docente, a experiência ou a falta dela, além da estrutura emocional e física do educador fazem toda a diferença. É preciso ter um olhar diferenciado sobre docentes e discentes para que possamos entender os motivos do fracasso e buscar meios para reverter o encade-amento de situações que levam a este processo. Assim como numa pirâmide, o sistema educacional se apresenta não só hierarquicamente organizado, mas também dividido em aspectos que se somam e abalam o processo ensino-aprendizagem. Para orientar nosso olhar nesta direção, analisemos os fatores externos e internos que criam um ciclo de impactos diretos e indiretos nas aprendizagens dos educandos e sobre a prática dos educadores demonstrados nos esquemas abaixo: Escola Consequência: A unidade escolar não atinge as metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Fatores externos como violência e dificuldade de acesso são problemas que a escola por si só não consegue resolver. Estes são fatores que impactam as aprendizagens no sentido de dificultar a permanência dos educandos na escola e não raro, o fechamento da UNIDADE ESCOLAR VIOLÊNCIA COBRANÇAS DO SISTEMA ESCOLAR METODOLOGIAS DE ENSINO VISÕES NEGATIVAS POR PARTE DA COMUNIDADE EM RELAÇÃO À ESCOLA DIFICULDADES DE ACESSO TURMAS MUITO CHEIAS CARÊNCIA DE RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS GESTÃO Volume I 61 unidade escolar em dias de confronto violento no seu entorno. Desta forma, a intermitência do trabalho educativo provoca defasagens e consequente queda na qualidade do ensino. As políticas públicas em segurança são importantes e necessárias, pois ga-rantem condições à escola de cumprir o seu papel e isto nos remete a Paulo Freire quando diz: “Se a educação sozinha não muda a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” A questão da violência no entorno ou dentro das escolas brasileiras, sobretudo as que estão em áreas conflagradas pela violência, precisa ser analisada com seriedade pelas autoridades para que o direito à educação seja verdadeiramente garantido a todos. Professor: Consequência: A eficiência do trabalho pedagógico cai e o educador tem sua autoestima abalada. A missão de educar os alunos de modo a despertar neles uma consciência crítica da realidade passa, em primeiro lugar, pelo bem estar físico e mental do pro-fessor. Sua formação e valorização profissional também são muito importantes nesse sentido. Quem cuida do educador? É justo desqualificar a atuação pedagógica de um professor que está visivelmente fatigado? Como resgatar a motivação deste profissional? São questionamentos importantes que precisam ser feitos pela gestão escolar e que na maioria das vezes ficam sem resposta. Diante do esquema acima percebemos que vários aspectos impactam a atividade docente e entendemos que o fracasso escolar também passa por este caminho, no entanto, tais fatores não eximem a PROFESSOR ESGOTAME NTO FÍSICO E MENTAL MOTIVAÇÃ O/DESMOT IVAÇÃO REMUNERA ÇÃO PLANO DE CARREIRA TRAÇOS DA PERSONALI DADE RELACIONA MENTO INTERPESS OAL COBRANÇAS DA GESTÃO DA UNIDADE ESCOLAR FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUAD A ABORDAGEM PEDAGÓGIA E METODOLOGI AS Vozes da Educação 62 escola de suas responsabilidades com as aprendizagens do alunado. Deste modo, a forma como direcionamos nosso olhar para o educador vai ampliar nosso entendimento e nos dizer muito sobre como a escola percebe este profissional. Criar uma cultura de cuidado de uns pelos outros é diferente de corporativis-mo. Entendemos que todos na escola estão sob pressão, mas é possível estabelecer entre os profissionais que atuam na unidade escolar uma convivência mais leve e harmoniosa baseada no respeito e na ajuda mútua. A crença popular prega que as mais profundas e verdadeiras mudanças ocorrem de dentro para fora, aceitamos este pensamento como legítimo. As mudanças que ocorrem no interior da escola, gradativamente ultrapassa seus muros e começa a mudar a realidade ao redor, começando pelas visões que a comunidade passa ter em relação ao atendimento da escola. Aluno Consequências: O educando pode desenvolver dificuldades para aprender que podem ser passageiras ou não. Agora chegamos à base da pirâmide, o aluno. Todos os aspectos relacionados à estrutura da metodologia e organização escolar somam-se aos aspectos que influenciam diretamente o processo pessoal de aprendizagem do sujeito e todos eles juntos pesam sobre os resultados acadêmicos do mesmo. Este é um ciclo que se repete constantemente. Os fenômenos que desencadeiam o processo de fracasso estão imbricados uns nos outros de forma que se temos o ALUNO FALTA DE LIMITES/INDIS CIPLINA PROBLEMAS FAMILIARES SOFRE ABUSO/VIOLÊ NCIA METODOLOGI A DE ENSINO DO PROFESSOR TRAÇOS DA PERSONALIDA DE COBRANÇAS DA FAMÍLIA E DA ESCOLA DIFICULDADES EMOCIONAIS, PSICOLÓGICAS E/OU RELACIONAIS PROBLEMAS ORGÂNICOS Volume I 63 inverso as consequências sobre as aprendizagens dos educandos serão positivas, ou seja, o sucesso. As questões relacionadas a distúrbios psíquicos, emocionais e/ou orgânicos não são de competência do professor, mas ele pode aos menos proporcionar expe-riências de interações sociais afetivas positivas no ambiente de aprendizagem, nesse sentido a boa comunicação e as ações de autoridade bem conduzidas tam-bém são muito importantes. Até aqui podemos perceber que o fracasso escolar está intimamente ligado com as falhas do processo ensino-aprendizagem. Este é também um fenômeno que acontece por “desconhecimento”, por parte do sistema educativo, das ques-tões cruciais da realidade social e emocional em que se encontram alunos e docentes. Acontece também devido a questões em que se baseiam o aprovei-tamento acadêmico. E nesse aspecto Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1999) já evidenciavam que a evasão escolar está mais relacionada a “seleção social” do sistema educativo, ou seja, a “expulsão velada”, do que com males endêmicos e vontades individuais. Corroborando com a ideia de ação expulsiva do sistema, Fer-nandez (2008) diz: “O fracasso na escolarização da maioria deles é um problema reativo a um sistema que não os aceita, que não reconhece seu saber e os obriga a acumular conhecimentos.” (FERNANDEZ, 2008, p. 88). Deste modo, entendemos que por mais difícil que seja o meio onde a escola se encontra ou por maiores que sejam as pressões que esteja sofrendo, esta pode se tornar um ambiente mais acolhedor e motivador partindo do pressuposto de que ¨no mundo (...) constato não para me adaptar, mas para mudar. FREIRE (1996). Mudanças são difíceis, exigem conhecimento, planejamento, boa vontade e empenho de todos, porém é possível, porque o fracasso escolar pode ser evitado com ações preventivas e corretivas. Ações Preventivas e Corretivas – Escola e Professor “ – Eu não sei porque você perde tanto tempo comigo, eu não vou aprender mesmo!” (Larissa, 9 anos) Vozes da Educação 64 Autoavaliação e Abordagem Pedagógica: Toda e qualquer dificuldade encontrada no processo de aquisição do conhecimento causa sofrimento emocional no educando, preocupação nos pais e desapontamento nos professores. Desta forma, é preciso que a escola e o professor se reavaliem todo o tempo e toda avaliação, segundo Luckesi (2011) resulta em uma tomada de decisão. A escola pode e deve atuar de forma pre-ventiva e neste aspecto é importante que a instituição escolar tenha um olhar atento atodos os aspectos que incidem na aprendizagem, considerando-os e incluindo- os no Projeto Político Pedagógico juntamente com as ações preventivas planejadas. A avaliação do professor e da instituição escolar é um fator de suma importância e influencia diretamente na aprendizagem, estando também ligada ao fator emocional de cada aluno tenha ele dificuldades ou não. Ainda em conformi-dade com Luckesi (2011), “entendemos que observar a nossa própria prática pode se tornar uma grande oportunidade de aprender”. Sendo assim, a autoavaliação é um instrumento que deve servir de subsídio ao trabalho docente de forma a garantir a aprendizagem do aluno. É fundamental entender ainda que não é preciso somente se autoavaliar, a escola também precisa saber o que fazer com o resul-tado da autoavaliação e tomar as decisões e atitudes necessárias. Longe de ser um processo fácil, a reestruturação do sistema escolar demanda tempo, pois seus resultados serão vistos a médio e longo prazo. A abordagem do professor, a introdução de competências socioemocionais, como sociabilidade, empatia, autoconfiança, assertividade, autocontrole dentre tantas outras como componente importante da parte diversificada do currículo e a reorganização do espaço/tempo escolar são fatores muito importantes para que o aluno faça aquisição de conhecimentos significativos, pois a prática docente produz um impacto relevante no saber de cada aluno. De acordo com Paulo Freire (1996), a responsabilidade do professor é muito grande e nem sempre nos damos conta disso, portanto, se o educando não está alcançando a aprendizagem desejada, se faz necessário analisar em primeiro lugar se há algum fator na prática pedagógica impedindo a Volume I 65 construção de conhecimentos ou gerando dificuldades. É neste momento que a autoavaliação amplia os olhares sobre a práxis. Assim, passamos a entender que a forma como a escola vê o aluno com dificuldade para aprender pode estar relacionada com o sistema de ensino e o tratamento que se dá à questão da “não aprendizagem”. Segundo Paulo Freire (1996), “qualquer forma de discriminação é imoral e portanto deve ser combatida”. Assim, as comparações de desempenho de professores e alunos devem ser evita-das, pois produzem a baixa autoestima e desestimula tanto o aluno quanto o professor, posto que assim como o aluno precisa de acolhimento, o professor de igual forma necessita ser acolhido, apoiado e orientado. É importante salientar também que em toda a ação da escola e do professor em relação ao educando com dificuldade de aprendizagem, estas devem ser pautadas na ética, no respeito à individualidade, às limitações e condições emo-cionais do momento. Desta forma o papel do educador e da instituição escolar será sempre o de agregar, incluir e aceitar. Isso não abrange somente a adaptação do currículo, e da avaliação escolar, que são fatores importantíssimos no processo ensino-aprendizagem, mas incide também na afetividade e no relacionamento com o aluno e seus pais, no apoio da gestão escolar ao docente e na capacitação do professor. De acordo com Luckesi (2011), “devemos investir na construção dos resultados desejados”, ou seja, a escola deve proporcionar ao alunado experiên-cias significativas de relacionamento social e resgate da autovalorização; deve ainda qualificar bem o corpo docente e cuidar para que o espaço escolar seja cordial e agradável, como consequência haverá avanços nas aprendizagens. Com relação ao trato com os pais, deve haver por parte da escola e do profissional de educação uma conduta ética e respeitosa, porque incluir vai além de garantir a presença e permanência do educando na sala de aula. Incluir é dar suporte a este estudante e sua família para que ele construa saberes de forma significativa e assim prossiga em seus estudos. É essencial que a prática pedagógica privilegie uma avaliação do aluno com dificuldades construída com base nas aquisições feitas por ele ao longo do período da unidade de estudos, porém o que parece Vozes da Educação 66 óbvio em muitos casos não ocorre, haja vista as avaliações padronizadas do sistema. Deve-se observar quais aprendi-zagens este educando ainda não conseguiu alcançar e adaptá-las ao seu nível de entendimento, sendo assim, o professor precisa ser um mediador, e para isso, é fundamental que: tenha compromisso com a aprendizagem desse aluno e faça as intervenções no exato momento em que a dificuldade se apresenta. É necessário que o educador seja um pesquisador, deve preocupar-se com sua formação continuada independente das capacitações promovidas pelo sistema educativo, pois é imprescindível investir na formação e o mais importante: acreditar no aluno sempre, acreditar que a aprendizagem é possível por mais difícil que seja, respeitar as limitações e incentivar o educando a prosseguir no processo de aquisição do conhecimento. Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamen-te a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário a reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. (FREIRE, 1996, p.39) Entendemos que a avaliação não deve ser instrumento de reprovação e exclusão nem do professor e nem do aluno. Quando um educando é reprovado, na verdade, é o trabalho do educador e da escola que estão passando por reprovação; ou seja, quando reprova um aluno, a escola reprova a si mesma. Reprovação não garante a qualidade do ensino, esta garantia vem por meio do trabalho pedagógico preventivo. Ações Pedagógicas Preventivas Muitos fatores incidem na reprovação de um aluno, porém a atuação preven-tiva da escola traz resultados permanentes de reconquista. Não é preciso esperar que um educando encontre dificuldades para aprender para só depois agir, não é preciso esperar os resultados das primeiras avaliações bimestrais para perceber as dificuldades do aluno. Um professor atento percebe facilmente as primeiras manifestações de embaraços na aquisição de conhecimentos por meios diversos. Isto nos remete mais uma vez ao que dizem Weiss e Weiss (2011): “Pequenos fracassos iniciais viram sempre “bola de neve” e, se não forem compreendidos em tempo hábil pelo professor, poderão causar grandes dificuldades em curto prazo.” (Weiss e Weiss, 201, p. 34). Volume I 67 Falar em ações preventivas não se refere a “reforço escolar”, que não raro é visto, muitas vezes, como carro-chefe no processo ou plano “estratégico” para evitar repetências na escola. Na verdade, o reforço escolar é uma forma, muitas vezes, equivocada de remediar problemas que se originam na própria condução da prática pedagógica. Quando se fala em ações preventivas às dificuldades de aprendizagem, o que se busca é o olhar pedagógico na condução de ações corretivas da organi-zação do pensamento do sujeito; ou seja, o que se busca é o encaminhamento de intervenções e mediações específicas para situações distintas no exato momento do “desvio” ou erro e estas ações devem ser feitas por professor regente. Todos podem aprender. Não podemos impor limites para a aprendizagem de quem quer que seja, um exemplo disto é a fala de uma aluna do 2º ano do Ensino Funda-mental: “ – A professora sempre diz: Quem não sabe fica quieto! (Ana Clara, 7 anos). Ao adotar esta atitude o educador intimida o desejo pelo conhecimento e poda muitas oportunidades de aprender e ensinar. De acordo com Weiss e Weiss (2011), “o contexto de vivência das crianças comDificuldades de Aprendizagem as conduzem facilmente ao fracasso escolar e após as primeiras derrotas nos anos iniciais da escolaridade a criança tende a ficar marginalizada na escola o que ocasiona a evasão escolar”. A escola pode intervir de modo significativo na história acadêmica destes alunos a partir do momento em que acolhe tanto professores, ajudando-os em suas dificuldades para ensinar, quanto aos próprios alunos quando os oportuniza vivências afetivas positivas no ambiente de aprendizagem. Portanto, na organização escolar e no fazer educativo, é muito importante reestruturar e adaptar o tempo e o currículo, incluindo as competências socioemo- cionais como componente importante; adaptar materiais pedagógicos e as avaliações às necessidades do aluno. É imprescindível que a instituição escolar entenda que a não aprendizagem de um aluno pode angustiar o docente levando-o a baixa autoestima. Para que o aluno se sinta mais seguro é importante ter um profissional não só bem capacitado, mas também um profissional automotivado. “Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor” (FREIRE, 1996). Daí podemos Vozes da Educação 68 perceber o quanto é importante a afetividade e o respeito pelas diferenças na sala de aula e no ambiente escolar como um todo. A escola precisa ser um lugar mais acolhedor. O educando passa boa parte do seu tempo na unidade escolar e precisa gostar de estar neste espaço, pois seu grau de envolvimento com as atividades ali realizadas vai depender muito do quan-to este ambiente lhe é favorável, o sistema precisa entender isso e se remodelar para atender os educandos. As emoções negativas ou positivas estão imbricadas na organização do pensamento e no consequente processo de aprendizagem. Segundo Ferreira e Acioly-Régnier (2010) “ a experiência indica que o afeto influencia as relações e os processos de aprendizagem, requerendo visões inclusivas e capazes de resgatar a dimensão de cuidado necessária ao processo educativo”. Quebrar o ciclo do fracasso escolar é difícil e nesse processo não temos que tentar encontrar culpados, mas tratar as causas do problema e principalmente evitar situações que fatalmente leva-rão a este processo. Sabemos que este assunto não se esgota aqui, há também outras questões relacionadas ao ciclo de fracasso que precisam ser estudadas, corroborando com este pensamento Magda Soares (2015) diz: O fracasso escolar em alfabetização não se explica, apenas, pela complexidade da natureza do processo; caso contrário, não se justificaria a predominante incidência desse fracasso nas crianças das classes populares. (SOARES, 2015, p.21) Considerações finais As reflexões sobre as dificuldades de aprendizagem nos levam a entender que o fracasso escolar e consequente evasão nem sempre estão relacionados com algum tipo de problema orgânico, há várias questões envolvidas, como as condições sociais, familiares e emocionais do sujeito. A atividade docente e a organização escolar também incidem sobremaneira sobre a aprendizagem ou não aprendizagem de um indivíduo, e em grande parte dos casos é nesse ponto que as dificuldades começam, assim como no relacio-namento professor/aluno. Volume I 69 A instituição escolar precisa se autoavaliar e se reestruturar sempre que for preciso, pois deve propiciar um ambiente acolhedor e inclusivo a educadores e educandos. Os educadores precisam se capacitar e agir de forma preventiva em relação a possíveis fracassos e a parceria com a gestão da unidade escolar e com a família se torna importante nesse sentido. A participação dos pais na vida acadêmica dos filhos é um ponto relevante nesse processo, bem como o respeito da instituição escolar ao tratar os problemas de aprendizagem. Estas questões se constituem em meios importantes para reverter o quadro de fracasso, mas não são as únicas. Não se deve recorrer à ações para remediar problemas somente quando a não aprendizagem está causando angústia, mas deve-se atuar preventivamente avaliando toda a metodologia empregada no fazer educativo. Reverter o quadro de fracasso escolar não é um processo imediato e simples, envolve muito raciocínio, mas é factível. Precisamos entender que não há receitas prontas. As soluções não são fáceis nem tampouco rápidas, elas serão sempre complexas para situações complexas, “não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis (René Descartes). Encontrar as respostas exige empenho, compromisso com a aprendizagem, planejamento estratégico e conhecimento, porém as relações de afetividade positiva, a autoavaliação e o respeito mútuo em todo o processo de condução das ações educativas abrem caminhos possíveis para o sucesso escolar. Referências Bibliográficas FARIA, Grazyelle Iaccino. Afetividade na Sala de Aula: O olhar Walloniano sobre a relação professor - aluno na educação infantil. 2010. Disponível em: <http://www.unifan.edu.br/files/pesquisa/AFETIVIDADE NA SALA DE AULA o olhar Walloniano sobre a relação professor-aluno na educação infantil - GRAZYELLE FARIA.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2017. FERNANDEZ, Alícia. A Inteligência Aprisionada: Trad. Iara Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. Vozes da Educação 70 FERREIRA, Aurino Lima; ACIOLY-RÉGNIER, Nadja Maria. Contribuições de Henri Wallon à relação cognição e afetividade na educação. 2010. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/1550/155015820003/>. Acesso em: 30 jun. 2017. FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. (Edição comemorativa dos 20 anos de publicação). Originalmente publicado em espanhol sob o título Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários À Prática Docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem Escolar: Estudos e Proposições. 22. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011. MELLO, Tágides; RUBIO, Juliana de Alcântara Silveira. Importância da Afetividade na Relação Professor/Aluno no Processo de Ensino/Aprendizagem na Educação Infanti l. 2013. Disponível em: <http://docs.uninove.br/arte/fac/publicacoes/pdf/v4-n1- 2013/Tagides.pdf>. 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Alane de Morais dos Santos11 Josivando Ferreira da Cruz12 Ivanildo Costa dos Santos13 Tainá Salmito Cruz de Lima14 Tânia Serra Azul Machado Bezerra15 RESUMO Este artigo é resultante de experiências vivenciadas no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID, o objetivo deste trabalho é descrever a experiência na iniciação a docência dentro do projeto desenvolvido pelo programa. O caminho metodológico escolhido é do tipo qualitativo e exploratório; desenvolvido a partir de referenciais, artigos e livros. O projeto obteve excelentes resultados e contribuiu para a melhoria do processo de ensino aprendizagem dos alunos envolvidos. A conclusão a que se chega é queapesar do uso das tecnologias digitais motivarem e incentivarem os alunos a construírem conhecimento de forma inovadora, alguns docentes ainda possuem receio em utilizá-las em suas práticas, ou as utilizam de forma inadequada. Palavras-chave: PIBID; Ensino de Matemática; Tecnologias Digitais; Iniciação a Docência. ABSTRACT This article is the result of experiences experienced in Institutional Scholarship Program initiation into Teaching-PIBID, the aim of this paper is to describe the experience in teaching initiation within the project developed by the program. The methodological path chosen is qualitative and exploratory type; developed from references, articles and books. The project has obtained excellent results and has contributed to the improvement of the teaching learning process of the students. 11Universidade Estadual do Ceará; Estudante do Curso de Pedagogia; Bolsista do Programa de Monitoria Acadêmica (PROMAC); E-mail: alane.morais@aluno.uece.br. 12 Universidade Estadual do Ceará; Estudante do Curso de Pedagogia; Bolsista do Programa de Iniciação Artística (IA), E-mail: josivando10@gmail.com. 13Universidade Estadual do Ceará; Estudante do Curso de Pedagogia; E-mail: ivanildo.costa@aluno.uece.br. 14Universidade Estadual do Ceará; Estudante do Curso de Pedagogia; E-mail: taina.salmito@aluno.uece.br; 15Universidade Estadual do Ceará; Professora do Curso de Pedagogia (UECE); E-mail: taniasamb@yahoo.com.br. Vozes da Educação 72 The conclusion we reach is that despite the use of digital technologies to motivate and encourage students to build knowledge in an innovative way, some teachers still have fear in using them in their practices, or about using them inappropriately. Keywords: PIBID; Teaching of mathematics; Digital Technologies; Initiation to Teaching. Introdução Neste texto trataremos de relatar, analiticamente, uma experiência no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência- PIBID/Pedagogia, desenvolvida em uma escola pública do município de Fortaleza-Ce, a partir do projeto “Tecnologias Digitais no Contexto da Aprendizagem e do Desenvolvimento da Matemática”. Referida vivência pedagógica, objetivou inserir crianças do 3º e 4º ano do Ensino Fundamental no universo digital através de ferramentas tecnológicas, desenvolvendo práticas pedagógicas de ensino de Matemática e contribuindo com o processo de ensino e aprendizagem dos educandos. Ao tempo em que possibilitou inovação e criatividade para cenário escolar, proporcionou aos alunos licenciandos do curso de Pedagogia/PIBID envolvidos, experiências efetivas relativas a iniciação docência, bem como a participação em situações de planejamento e execução de atividades didático-pedagógicas que enriquecem o universo educacional. Além disso, o projeto consolidou uma práxis pedagógica comprometida com a melhoria dos processos educativos realizados na escola envolvendo, sobretudo, uma perspectiva de aprendizagem prenhe de sentidos e significados sociais e emocionais que direcionam-se à vida em comunidade dos educandos contemplados com as ações do PIBID/Pedagogia/UECE. Antes de executar as atividades do projeto, na etapa de planejamento, o grupo de bolsistas (ID) participou de algumas formações sobre as Tecnologias Digitais e Ensino de Matemática, bem como seu uso pedagógico no ambiente educacional numa perspectiva de inovação. Após a participação dos bolsistas nas formações deu-se início a execução das atividades do projeto, vivenciando um planejamento flexível e adaptável a singularidade de cada turma, a fim de integrar o uso de recursos Volume I 73 tecnológicos às práticas de Ensino de Matemática. Foram desenvolvidas diversas atividades de matemática com os alunos integrando recursos de imagem, vídeo, som e até redes sociais (blog) com o intuito de socializar/registrar planejamentos e fotos/filmagens de atividades realizadas durante o projeto. A partir de tais experiências foi possível perceber elementos pertinentes à prática docente que foram vivenciados em sala de aula através do projeto, entre os quais iremos destacar neste relato de experiência, a colaboração dos recursos tecnológicos como facilitadores do processo de construção e inovação de conhecimentos na área de Matemática. Por meio de aulas dialogadas e cooperativas, através de rodas de conversas e avaliações coletivas sistemáticas, foram realizadas atividades com as crianças, em que estas apresentavam e socializavam experiências numérica, relacionando-as com o que entendiam/conheciam sobre as tecnologias digitais e matemática e, a partir disso, colaboravam com o planejamento das próximas atividades, através de um sistema de aprendizagem colaborativa. A este respeito contribui Niza: O que distingue fundamentalmente a aprendizagem cooperativa é o facto de que o sucesso de um aluno contribui para o sucesso do conjunto dos membros do grupo. Este mecanismo de facilitação social adquire tanto maior eficácia quanto mais conscientes forem os membros cooperantes desta regra estrutural que os une. (1998, p. 4). É de suma importância que os docentes compreendam que desde a formação inicial até a formação continuada, no que se refere ao cenário escolar, é importante a escuta e a participação ativa e direta das crianças em todos os processos da aula: planejamento, avaliação e execução das atividades. Para que se esteja comprometido com uma educação para a emancipação humana (FREIRE, 1996), faz-se necessária a construção coletiva e colaborativa da autonomia pautada na consciência dos aprendentes, ou seja, na participação autônoma dos mesmos nos diversos espaços/tempos de aprendizagem. A troca de experiências e a resolução de problemas cotidianos, levando-se em consideração a vida em comunidade ajudam a superação dos desafios e barreiras que estão presentes no ambiente escolar. Por isso, participar de vivências como as que o PIBID proporciona aos licenciandos é uma oportunidade de associar experiências pedagógicas inovadoras com diversificadas formas de entender a sala de aula como um espaço de Vozes da Educação 74 construção de conhecimento e troca de saberes, fundamentais para o processo de formação, tanto dos docentes quanto dos educandos envolvidos. De acordo com Bonilla e Pretto (2016) um dos pontos mais críticos para a estruturação de um modo horizontal de organização do trabalho escolar e da educação brasileira diz respeito à formação de professores. Isto se dá no sentido de superação da ideia de treinamento e condicionamento, ao tempo em que se pensa a formação como um produto final e aligeirado, visando a mera preparação técnica para o uso, por exemplo, de novas tecnologias, para, no máximo, servir como certificação para promoção da carreira dos docentes. No que se refere a implementação das TIC na escola e na formação de professores afirma Trindade (2014): O protagonismo pedagógico dos alunos é um objetivo mais complexo que depende não tanto da atividade em si, mas dos pressupostos, dos objetivos e das condições que norteiam essa atividade. (P. 21). E ainda: Nesta reflexão, como em qualquer outra reflexão pedagógica, não se trata de saber quais as estratégias mais eficazes, mas tão somente de identificar aquelas que são as mais interessantes, do ponto de vista do que pretendemos com o nosso envolvimento, enquanto docentes, num ato de formação. (P. 21). Sendo assim, é preciso que os professores tenham uma concepção que os levem a refletir, sistematicamente, sobre suas práticas pedagógicas, assim como, os objetivose as compromissos sociais e educacionais das mesmas frente a uma formação comprometida com a autonomia dos sujeitos. Referida reflexão auxilia na construção de uma aprendizagem cooperativa e significativa direcionada a aprendizes que protagonizam suas experiências formativas, transformando-as em vida prática e social, vez que estas devem partir das necessidades dos mesmos. Sobre a formação de professores para o uso de tecnologias reflete Kenski: A formação de qualidade dos docentes deve ser vista em um amplo quadro de complementação às tradicionais disciplinas pedagógicas e que inclui, entre outros, um razoável conhecimento de uso do computador, das redes e de demais suportes midiáticos [...] em variadas e diferenciadas atividades de aprendizagem. É preciso saber utilizá-los adequadamente. Identificar quais as melhores maneiras de usar as tecnologias para abordar um determinado tema ou projeto específico ou refletir sobre eles, de maneira a aliar as especificidades Volume I 75 do “suporte” pedagógico [...] ao objetivo maior da qualidade de aprendizagem dos alunos (KENSKI, 2007, p.106). Muitas vezes os professores na sua formação em nível de graduação não possuem acesso perspectivas de inovação didático- pedagógicas que possibilitem dinamizar suas aulas, no sentido, por exemplo, de integrar as tecnologias digitais como ferramentas que auxiliem o processo de aprendizagem dos educandos. No que se refere ao Ensino da Matemática, a aprendizagem dos estudantes depende de ações que caracterizem experimentação, interpretação e demonstração, que podem ser desenvolvidas através da interação dos alunos com tecnologias digitais, como os jogos digitais, considerados fortes ferramentas de apoio pedagógico. Tecnologias Digitais e Inovação Pedagógica No que se referem aos aspectos metodológicos que delinearam as ações do projeto, cabe destacar que a opção se deu pelas análises e intervenções qualitativas, tendo como suporte um levantamento bibliográfico sobre as categorias centrais – Tecnologias Digitais; Ensino de Matemática; Inovação Pedagógica; Aprendizagem Cooperativa; Iniciação à Docência -, bem como as formações no âmbito do PIBID e o registro seguido de análises de cada ação desenvolvida em sala de aula. Neste contexto, destaca-se a experiência com práticas pedagógicas a partir do uso de tecnologias digitais no Ensino de Matemática em busca de uma aprendizagem significativa. Diante da observação/participação direta dos bolsistas em cada etapa do projeto observou-se sensível avanço na participação das crianças, bem como o protagonismo das mesmas na escolha dos conteúdos, temáticas e estratégias de ensino utilizadas. O processo de autonomia e construção colaborativa das aprendizagens são pontos marcantes e que merecem destaque vez que constituem elementos impulsionadores de sentidos e significados sociais e cognitivos. Sobre a aprendizagem nessa perspectiva destaca VYgotsky (1977, p. 241): a característica essencial da aprendizagem é que engendra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e activa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no decurso das interacções com os outros que, progressivamente, são absorvidos pelo curso interior do desenvolvimento e se convertem em aquisições internas das crianças. Vozes da Educação 76 Como explica Vygotsky acima, as diversas formas de interação e socialização, partindo de conhecimentos prévios e experiências cotidianas, impulsionam de forma complexa a consolidação das múltiplas aprendizagens na infância. Dessa forma, através de rodas de conversas e momentos de debates, realizou-se o levantamento dos conhecimentos prévios relevantes das crianças sobre cada temática a ser trabalhada. Em diversos momentos de interação coletiva, foram estimuladas na tomada de decisões e partilha de experiências, diante de problematização oral, por meio dos quais se deu espaço para que colocassem e contribuíssem com as atividades. Em seguida uma das bolsistas apresentou a história das tecnologias e como se deu seu contexto histórico, a partir disso a proposta do projeto foi apresentada para as crianças que se mostraram interessadas e cúmplices. Durante o projeto foram realizadas as seguintes atividades: confecção de gráficos peso e altura dos alunos, mural de tangram, medidas das mãos e dos pés, receita de leite ninho, boliche matemático, confecção de sólidos geométricos, tapete geométrico, jogos de adição e subtração online utilizando os laptops disponibilizados pela escola, bingo matemático, confecção de figuras geométricas no word paint utilizando os computadores do Laboratório de Informática e por último a criação de um blog para registrar e socializar os planejamentos e atividades realizadas. Figura 1: Imagens de algumas atividades criadas em sala de aula. Fonte: PIBID/Pedagogia/UECE. Todas as atividades foram fotografadas e filmadas pelas próprias crianças e posteriormente os bolsistas fizeram a edição criando um filme que constituiu síntese das diversas experiências, este foi assistido pelo grupo em um “cineminha” na própria sala de aula, transformada em uma Volume I 77 sala temática. Metodologicamente houve a participação semanal dos bolsistas (ID) na escola, registrando e mediando limites e possibilidades de cada ação, como também em participação ativa na mediação necessária para que as atividades contribuíssem de forma significativa para o processo de ensino aprendizagem. Resultados e Discussão O projeto obteve resultados satisfatórios no que se refere à contribuição com o Ensino de Matemática através das tecnologias digitais, as atividades planejadas foram realizadas com sucesso, a escola mostrou- se acessível ao projeto e contribuiu com a realização do mesmo. Importa ressaltar que a escola em que o projeto foi realizado possui equipamentos necessários às tecnologias digitais, a mesma dispõe de computadores, laptops, tablet, TV, lousa digital, projetores e notebooks, materiais que facilitaram a execução das ações. Todavia, a qualidade da internet significou obstáculo em vários momentos das vivências. Mesmo com algumas limitações, foi possível realizar as atividades planejadas que necessitavam deste recurso, como por exemplo, os jogos online. No início do projeto houve certa resistência por parte dos professores supervisores, por não sentirem-se preparados para utilizar tais recursos em suas aulas e também por estarem engessados num modelo de prática pedagógica tradicionalista, até mesmo os educandos envolvidos não estavam adaptados a fazer uso das ferramentas para a realização atividades mediadas. Observou-se, no contexto escolar observado, a utilização inadequada dos recursos tecnológicos disponíveis. As crianças faziam uso do Laboratório de Informática quando estavam ociosas, como uma forma de passar o tempo, e quando os laptops eram levados para a sala de aula o professor não fazia qualquer mediação daquela ferramenta. Sabe-se que, mesmo reconhecendo-se a importância do tempo livre e autônomo, as ferramentas precisam também ser mediadas para que seu uso possua objetivo pedagógico e constituam contribuição com planejamento das diversas ações de ensino e aprendizagem dos conteúdos escolares. Sobre isso Kenski nos diz que: A formação de profissionais docentes para atuar em projetos educacionais na atualidade é algo amplo, complexo e diferenciado dos Vozes da Educação 78 programas tradicionais de formação de professores. Envolve mudanças estruturais para a incorporação de uma nova postura profissional, outra cultura, novos conceitos e novas práticaspedagógicas. (2013, p. 95). E complementa: A mudança que se deseja em educação, com apropriação da nova lógica mediada, não se dá apenas no plano da aquisição e da compreensão das possibilidades dos novos meios. As mudanças são profundas e englobam hábitos, posicionamentos, tratamentos diferenciados da informação e novos papéis para professores e alunos. O foco se desloca para a interação, a comunicação, a aprendizagem, a colaboração entre todos os participantes do ato educativo. (2013, p. 95-96). Após a realização do projeto na escola, foi possível observar nos professores uma mudança significativa na utilização de ferramentas tecnológicas em sala de aula, os mesmos passaram a ter outra abordagem a partir das tecnologias digitais no ambiente escolar. Isto demonstra a escola enquanto espaço de formação humana omnilateral (GRAMSCI, 1989) que se organiza para promover ações de ampliação cultural e social no exercício pleno da emancipação e conscientização. Contemporaneamente, vivencia-se a velocidade de informações e mudanças rápidas de conceitos e hábitos, a sociedade procura a melhoraria na qualidade de vida e a possibilidade de domínio do conhecimento, e buscam isso, entre outros, no espaço escolar. Como nos diz Kenski: [...] na ação do professor na sala de aula e no uso que ele faz dos suportes tecnológicos que se encontram à sua disposição, são novamente definidas as relações entre o conhecimento a ser ensinado, o poder do professor e a forma de exploração das tecnologias disponíveis para garantir melhor aprendizagem para os alunos. (2007, p.19). E completa: A escola representa na sociedade moderna o espaço de formação não apenas das gerações jovens, mas de todas as pessoas. Em um momento caracterizado por mudanças velozes, as pessoas procuram na educação escolar a garantia de formação que lhes possibilite o domínio de conhecimentos e melhor qualidade de vida. Essa educação escolar, no entanto, aliada ao poder governamental, detém para si o poder de definir e organizar os conteúdos que considera socialmente válidos para que as pessoas possam exercer determinadas profissões ou alcançar maior aprofundamento da área do saber. Assim, a definição dos currículos dos cursos em todos os níveis e modalidades de ensino é uma forma de poder em relação à Volume I 79 informação e aos conhecimentos válidos para que uma pessoa possa exercer função ativa na sociedade. (2007, p.19). A tecnologia deve ser compreendida como instrumento de inclusão social, atualmente isso tem adquirido novo contorno, não apenas como incorporação ao mercado, mas também como incorporação à cidadania, garantindo acesso à informação e barateando os custos dos meios de produção multimídia através das novas ferramentas que ampliam que podem ampliar o potencial crítico e o acesso à cultura ampla. O projeto desenvolvido pelo PIBID foi de grande importância para o crescimento acadêmico dos envolvidos, constituindo espaço/tempo de formação inicial e continuada e possibilitou o contato com uma área de conhecimento indispensável para o currículo. A experiência adquirida ampliou entre outros aspectos: entendimento sobre as tecnologias digitais e sua forma de uso na escola, aprendizagem colaborativa, ensino de matemática e construção coletiva do conhecimento. Segundo Kenski (2007) estamos diante de uma sociedade de consumidores, emissores e receptores de saberes e informações, seres ao mesmo tempo autônomos e conectados em redes, constituindo nova forma de coletividade e a escola assume espaço/tempo preponderante nesse contexto. Vale destacar que diversos setores sociais, independente das condições socioeconômicas de suas famílias, já vivenciam, direta ou indiretamente, o contexto da cultura digital. Os resultados apontados mostram a importância de um trabalho contextualizado na sala de aula, que traga consigo práticas de ensino inovadoras, e não apenas o uso de uma ferramenta por ela mesma. Assim, podemos observar que o planejamento e elaboração de atividades didáticas para o ensino de Matemática foi executado com êxito durante o projeto e teve suas contribuições para aprendizagem dos educandos, utilizando as tecnologias digitais de forma lúdica e com toda a mediação necessária. Conclusões Com a realização do projeto “Tecnologias Digitais no Contexto da Aprendizagem e do Desenvolvimento da Matemática”, a conclusão que se chega é que a utilização das tecnologias na sala de aula é enriquecedora, Vozes da Educação 80 pois insere os alunos em uma cultura digital já existente na sociedade. Preparando-os para viver em uma sociedade moderna e acompanhar com o mínimo de domínio as redes de informações e comunicações. A metodologia aplicada foi produtiva e despertou o interesse dos alunos. Todos se envolveram nas atividades, sugerindo ações e participando ativamente do projeto. As atividades permitiram trabalhos individuais e em grupo, o exercício de colaboração e de construção do próprio conhecimento, instigando a criatividade e a autonomia. O PIBID nos proporcionou uma rica experiência agregando em nossa formação práticas de ensino inovadoras que possibilitam novas metodologias de ensino da matemática, para alunos de uma escola pública que assim como os bolsistas (ID) foram contemplados com as ações deste projeto e tiveram a oportunidade de construir conhecimentos matemáticos a partir da inserção pedagógica das tecnologias digitais na escola. Nos espaços do PIBID muitas discussões, intervenções, reflexões, pesquisas e questionamentos vêm se tornando cada vez mais fortes, possibilitando o pensamento crítico das escolas envolvidas. Referências Bibliográficas BONILLA, Maria. Helena. Escola Aprendente: para além da sociedade da informação. Rio de Janeiro: Quartet, 2005. BONILLA, Maria Helena; PRETTO, Nelson de Luca. 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Vemos pós 2014, uma grande milícia ressentida organizar-se nas redes de associações que se (auto)identifica como: Escola sem Partido. Nosso objetivo neste ensaio é apresentar considerações sobre como o modus operanti do movimento Escola sem Partido tem se valido via dispositivos de: Negação, Generalização e Esquecimento para expansão de sua rede, via convencimentos agenciados. Palavras-chave: Educação. Escola sem Partido. Negação. Ressentimento. Generalização ABSTRACT In the perspective of contemporary cultural analysis education is a territory of disputes, struggles, tensions, conflicts and controversies. In the rubble of this scenario, between survivors and obituaries, fertile ground emerges for the proliferation of fear. Fear is the father of morality and morality, the mother of resentful militias, neuroses and wiles. We see post 2014, a great resentful militia organize itself in the networks of associations that (self) identifies as: School without Party. Our objective in this essay is to present considerations about how the modus operanti of the School without Party movement has been validated through devices of: Denial, Generalization and Oblivion for the expansion of its network, through negotiated conventions. Keywords: Education. School without Party. Denial. Resentment. Generalization 16Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Maringá e em Filosofia pelo Centro Universitário de Araras. Mestrando no Programa de pós graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da Universidade Estadual de Londrina. Membro do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e Educações - GECCE. E-mail: alexandre_polizel@hotmail.com 17Professor do Departamento de Química na Universidade Estadual de Londrina. Orienta no Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da Universidade Estadual de Londrina. É coordenador do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e Educações - GECCE. E-mail: moises@uel.br Volume I 83 Notas introdutórias18,19 O medo é o pai da moralidade –Friedrich Nietzsche Na análises cultural, o cenário educacional mostra-se um território de disputas, lutas, conflitos, guerras, sobreviventes e obituários preenchidos. A pontuação de Nietzsche nunca foi tão incisiva em uma possibilidade de seu uso como chave de leitura, como em nossos fenômenos educacionais contemporâneos. O medo de fato é o pai da moralidade e, a moralidade, um eixo cerne nas disputas pelas educações e pedagogias. Isto por que é no tornar-se um sujeito da moralidade, que torna-se também um sujeito existente de acordo com um conjunto de codificações que elegem sua existência como sujeito válido ou não (NIETZSCHE, 1996). É com este conceito – o da moralidade – que movimentos impelidos pelo desejo “cidadãos de bem” tem operado nas disputas pelas educações. Destaca-se o ganho de espaço no cenário contemporâneo pelo movimento Escola sem Partido (EsP). Movimento que emerge em 2004 e, sem ter uma atenção combativa a ele, se esparsa e hibridiza com outros desejos para ganhar força e legitimidade, como: “Cristãos contra a ideologia de gênero”, “No indocrination”, “Pró-vida, Pró-família”, “Bancadas da bíblia, da bala e do boi”; entre outros conglomerados que podem ser resumidos por ditar-se conservadores, contra a “ditadura comunista” e contra movimentos sociais minoritários. Neste cenário demarcamos o insurgir de dois personagens que funcionarão como fio condutor para a compreensão do movimento EsP: O Neurótico e o Canalha. O Neurótico é uma categoria psicanalítica, como aquele que tem perturbações, interrupções e interdições em seu 18A produção deste manuscrito emerge de um compromisso político e ético, inspirado nas contribuições do professor Fernando Penna, demarcando em especial sua fala apresentada no município de Tubarão-SC. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=3674qvNDGk4&t=680s>. Acesso em 10 de novembro de 2017 19Este texto é uma ampliação do trabalho apresentado no evento técnico-ciêntifico VI Seminário Integrado de Pesquisas em Ciências Sociais e, encontra-se disponível também nos anais do evento.Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/ppgsoc/pages/arquivos/ANAIS_VI_SIPECS_GERAL_1.pdf>. Acesso em 19 de março de 2018 Vozes da Educação 84 desenvolvimento e, utiliza de distorções, mas também é uma categoria ética, à medida que se manifesta na linguagem. O neurótico distorce à medida que interpreta, e, sua desonestidade-interpretação se dá de modo inconsciente – o que aqui trataremos como alguém que teve suas vontades agenciadas. O canalha também distorce, age como o neurótico, com a diferença que este tem sua manifestação na esfera da consciência. O canalha quer, intencionalmente, agenciar a vontade de rebanhos neuróticos (TIBURI, 2016). Ambos, o neurótico e o canalha agem por interesses. Como diria Bruno Latour (2012), se inclinam a produção de alianças e, as alianças realizadas derivam-se no desejo de constituir-se como fatos que direcionam as existências, formando redes e produzindo efeitos. Efeitos interligados diretamente ao modus operanti desta rede. Neste ensaio traçamos o objetivo de apresentar considerações sobre três modos de operação que funcionam como dispositivos: Generalização, Negação e Esquecimento. Estes dispositivos fazem emergir performances desenvolvidas pelos personagens Neuróticos e Canalhas no interior do movimento Escola sem Partido que tem mostrado potencial de expansão de suas redes de convencimento. Tecnologias do olhar e as generalizações O pensamento conservador sabe a importância de convencer –Marcia Tiburi O filósofo Michel Foucault por vezes toma o conceito de Dispositivos, no sentido de [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (Foucault, 2000, p. 244) Para os propósitos desse texto faremos uma apropriação do conceito de dispositivo fazendo-o funcionar articulado ao conceito de tecnologias. Tecnologias no sentido de modos de constituição, produção, dominação e negociação. Desta forma, trataremos os operantes do movimento EsP como dispositivos-tecnologias. Iniciemos o uso dessa ferramenta para olhar as práticas de Generalização no movimento EsP. Volume I 85 “Olhem isto”, “estamos de olho”, “flagrando o doutrinador”... Palavras corriqueiramente faladas pelos vigilantes – os apeladores a uma tecnologia do olhar. Arriscamos dizer que uma das principais pautas do movimento “Escola sem Partido” é vigiar os possíveis doutrinadores, os perturbadores da ordem. Em última análise: os professores. Trata-se de movimento de instauração de um panóptico, que focaliza as lentes para: a) uma outra arquitetura escolar, anexando cartazes de “deveres dos professores”; b) disponibilização de materiais escolares, realizando uma caça aos livros didáticos, retirando conteúdos e, disponibilizando material gráfico “subversivo para imprimir e distribuir na escola para distribuição na sua escola ou na escola de seu filho”20; c) no olhar para currículo como um produto de consumo,que tem o estudante e os pais como clientes; d) no professor como um possível perturbador da ordem, que deve ser continuamente vigiado e punido. Trata-se, portanto, de uma apelativa para angariar múltiplos “olhos”, que requerem a um poder inquisitorial de julgamento e punibilidade do outro – o outro docente (CARVALHO; POLIZEL; MAIO, 2017). No atuar do movimento Escola sem Partido, agenciando visões e milícias, a captura da óptica são voltadas às simulações e dissimulações. Ambas produtoras de sentidos no imagético social, via (im)posturas orquestradas. As simulações constituem em agenciamentos de discursos onde as fronteiras do real e do imaginário são borradas, assim, características flutuantes são adicionadas afim de instaurar uma ordem outra. Vê-se, por exemplo, o instaurar da ideia de que todo professor é um possível perturbador da norma via doutrinação ideológica. A dissimulação, na coadunação de narrativas que via um esquecimento seletivo deixa de lado aspectos de um fenômeno, produzindo significados outros. Apoiados em Jean Baudrillard (1981), sugerimos que a simulação seria considerar que determinado acontecimento possui algo que é um hibrido do 20Por mais que o movimento se situe como um defensor da não intervenção política no espaço escolar, este propõe a disseminação de folhetos informativos sobre o Projeto Escola sem Partido no espaço escolar, afim de angariar apoio. Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/artigos-top/653-material-subversivo-para- imprimir-e-distribuir-na-sua-escola-ou-na-escola-do-seu-filho>. Acesso em 8 de novembro de 2017 Vozes da Educação 86 fenômeno presente-imaginário, a dissimulação o fingimento de que neste acontecimento não se tem movimentações que mostravam-se presentes. Identificamos esta simulação e dissimulação atuando juntamente com outro agir, ou melhor, como produtor de um agir do coletivo: a generalização. A generalização utiliza um pequeno número de casos específicos e extrapola-os para considera-los como um exemplo do todo. Desta forma, a operação do movimento Escola sem Partido, na constituição de uma tecnologia do olhar, volta-se ao entorno de generalizações simuladas e de generalizações dissimuladas, ou melhor, o movimento produz um agir via generalizações (dis)simuladas. Evidenciamos alguns exemplos destas generalizações (dis)simuladas, elegendo do universo de acontecimentos alguns poucos casos, retirados interessadamente do contexto e colocados a funcionar nesse texto como “vias de fato”. Os excertos a seguir foram obtidos do próprio site do movimento.21 No site o Movimento Escola sem Partido (EsP) posta uma série de informativos: A apresentação do movimento e seu projeto, quem são os idealizadores e quais seus objetivos. Há ainda uma biblioteca nominada de “politicamente incorreta” (que indica apenas três livros – Professor não é educador; Por uma crítica da geografia crítica e Guia politicamente incorreto da história do brasil), Além de modelos de petições, link para a página do facebook. Quando decidimos “stlakear”22 os espaços a serem vasculhados nos deparamos com múltiplas estratégias de generalizações (dis)simuladas. Nosso trabalho foi inicialmente buscar, à moda de uma etnógrafo, encontrar um fio condutor, um padrão nas generalizações nos seis links disponibilizados como populares – por serem os mais acessados. Analisando detidamente as postagens propomos quatro passagens em que operam dispositivos de generalização: 21Site disponível em: <http://www.escolasempartido.org>. Acesso em 22 de março de 2018 22Gíria dos internautas para quem navega pelos sites de outras pessoas ou entidades tentando descobrir quem são, o que fazem, quem são seus amigos, seus interesses, seus hobbies e outros assuntos. Stalkear é acompanhar virtualmente alguém, querer saber sobre a vida dessas pessoas ou entidades. Vigiar os seus passos virtuais. O termo deriva do inglês “to stalk” (perseguir). Esse tratamento nos serve à perfeição, pois ao mesmo tempo que traduz um modelo de estudos de caso, também dá uma dimensão de nossos interesses políticos nesse texto. Volume I 87 a) Ataque e inversão as teorizações no campo das educações (re)conhecidos internacionalmente: Em um dos links23 enquadrados como “Popular”, apresenta o título: Paulo Freire e a educação bancária ideologizada, sob a autoria de Luiz Lopes Diniz Filho24. O texto levanta críticas às teorizações produzidas por Paulo Freire, sendo colocado que os seguidores de Paulo Freire, “usam para nos fazer acreditar que esse sujeito era um educador preocupado com liberdade e autonomia do indivíduo, quando ele não passava de um doutrinador ideológico dogmático e autoritário”. Aqui é pontuado que a pedagogia de Freire é uma tentativa de “camuflar” a doutrinação, travestida de diálogo – visto que não oferece acesso a diferentes teorias cientificas para o professor ter o poder de criticá-las. Um alerta. Não estamos preocupados, nesse texto, em tecer críticas ao argumento do autor, mas de evidenciar como opera o dispositivo de generalização (dis)simulada. A tentativa da depreciação, distorção-inversão dos ensinamentos de Paulo Freire25 e outros autores – como Karl Marx, Antonio Gramsci, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche e as produções bibliográficas de Universidades Públicas do Brasil (FIGURA 1). 23Disponível em: <http://www.escolasempartido.org/artigos-top/382-paulo-freire-e-a-educacao- bancaria-ideologizada>. Acesso em 22 de março de 2018 24O texto encontra-se disponível em: <http://www.escolasempartido.org/artigos-top/382-paulo- freire-e-a-educacao-bancaria-ideologizada>. Acesso em 10 de novembro de 2017 25Temos por exemplo a tentativa de retirada do título de “Patrono da Educação Brasileira” concebido à Paulo Freire – disponível em:<http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/proposta- retira-de-paulo-freire-o-titulo-de-patrono-da-educacao-brasileira-d1vvgoq7qwiylouov98mnl0c4>; – bem como a tentativa de proibitiva de estudos de gênero como previsto nos Projetos de Leis dedicados ao movimento Escola sem Partido. Vozes da Educação 88 Figura 1. Caça a epistemologias Tais autores são lidos pelo movimento EsP como alinhados a políticas “comunistas”, “ideológicos”, não científicos e que não deveriam ser ensinados no espaço escolar. b) A produção do professor como um militante, doutrinador, perturbador da ordem a ser combatido: Um outro arquitetar da generalização (dis)simulada consiste na busca de criação imagética sobre o ser professores como possível “doutrinador”. Na matéria intitulada: Professores se revelam no facebook26, sem autoria declarada é um hipertexto com uma diversidade de prints, trazendo relatos e posicionamentos de professores. Seja de sua perspectiva teórico-política ou até mesmo de narrativas que afirmam o uso da sala de aula como um espaço político. Em outras postagens é possível visualizar também vídeos gravados de aula ou de professores no espaço escolar, que relacionam-se a um suposto posicionamento político dos mesmos. O uso de imagens – prints e audiogravações – busca estabelecer uma ideia de fidedignidade, 26O texto encontra-se disponível em:<http://www.escolasempartido.org/corpo-de-delito- categoria/603-professores-se-revelam-no-facebook>. Aceso em 10 de novembro de 2017 Volume I 89 entretanto consiste em recortes e traduções que apontam ao que deve ser visto: “Olhem isto” (FIGURA 2). Figura 2. Narraivasde professores apresentadas pelo movimento EsP 27 c) um ideal de aceitação coletiva e clamores pelo projeto: Para além da depreciação de pensadores e professores, o movimento EsP busca firmar-se positivando-se, via mensagens de apoio e estabelecimento jurídico-legislativo. Assim, no texto “Mensagens de apoio”28, sem autoria, são trazidos um pequeno número de mensagens de apoio aos idealizadores do movimento EsP no que diz respeito ao processo judicial movido pelo sistema COC de ensino para com o movimento. A generalização (dis)simulada aqui, consiste na tentativa de mostrar que as “pessoas comuns” preocupadas com as crianças e educação de qualidade, apoiam o projeto – enquanto os outros, que seriam contra o projeto, seriam a favor de uma escola com partido, com doutrinação ideológica (FIGURA 3). 27Fizemos a retirada dos nomes e fotografias em nosso recorte, todavia o movimento EsP apresenta as postagens na integra – identificando os autores das publicações. 28O texto, também categorizado como “Popular”, encontra-se disponível em: <http://www.escolasempartido.org/9-caso-coc/322-mensagens-de-apoio-4>. Vozes da Educação 90 Figura 3. Mensagem de apoiadores ao EsP29 d) Um apelo a seus sucessos-consolidações legislativas- jurídicas. Por fim, podemos ver nos outros três escritos “Populares” um apelo aos sucessos e consolidações nas estancias legislativas e (extra)jurídicas, nos textos: Modelo de notificação extrajudicial – arma das famílias contra a doutrinação nas escolas30; Dia histórico – o projeto de lei que institui o Programa Escola sem Partido é apresentado na Câmara dos Deputados31; e, A sanha do caso COC para calar a crítica32, os três sem autoria declarada. Evidencia-se aqui é um agenciamento das instâncias jurídicas e legislativas, busca mostrar que: a) Os pais e mães podem intim(id)ar professores-escolas com notificações extrajudiciais; b) O projeto encontra-se em tramitação em vários Municípios, Estados, Câmara dos Deputados e Senado, sendo usado até mesmo como bandeira 29Os nomes dos apoiadores foram retirados afim de resguardar a identidade dos sujeitos. 30O texto encontra-se disponível em: <http://www.escolasempartido.org/artigos-top/552-modelo- de-notificacao-extrajudicial-arma-das-familias-contra-a-doutrinacao-nas-escolas>. Acesso em 10 de novembro de 2017 31O Texto encontra-se disponível em: <http://www.escolasempartido.org/o-papel-do-governo- categoria/539-dia-historico-projeto-de-lei-que-institui-o-programa-escola-sem-partido-e- apresentado-na-camara-dos-deputados>. Acesso em 10 de novembro de 2017 32O texto encontra-se disponível em: <http://www.escolasempartido.org/9-caso-coc/1-a-sanha-do- coc-para-calar-a-critica>. Acesso em 10 de novembro de 2017 Volume I 91 política por alguns representantes do legislativo; e c) que o movimento tem obtivo sucesso em alguns processos que enfrentam na esfera judiciaria, como por exemplo o arquivamento do processo movido pelo sistema COC de ensino. A tentativa de generalização aqui é mostrar que tem aporte legislativo e judiciário (FIGURA 4). Figura 4. Associações juridico-legislativas Assim, demarcamos estes quatro processos de generalização (dis)simulada, que consistem em ações de distorção-inversão, sendo sempre manipulações do dizer do Outro. Marcia Tiburi (2016, p. 59) pontua que a distorção consiste no “Captar algo dito pelo outro e usá-lo para provar algo completamente diferente”, ou seja, utilizar de uma narrativa, um recorte, como processo de agenciamento publicitário para a explanação de suas ideias. O neurótico faz este uso associativo de recortes, retiradas de contextos, de forma inconsciente. A inversão consiste no “colocar uma coisa no lugar da outra”, também de forma associativa, sob a autoria da categoria política do canalha. Dois desejos-personagens agenciados pelo modus operanti do EsP – o neurótico e o canalha. Desta forma, as generalizações (dis)simuladas – teóricos ideológicos, professores doutrinadores, apoio da população, ganhos Vozes da Educação 92 contra processos jurídicos e o firmar-se legislativamente – são constituídas por meio dos jogos de linguagem e tem sido um dos modos de operar que o EsP se vale. Aqui tratamos estes movimentos como modos de agenciamento, onde fragmentos de caso são utilizados, apresentados, publicizados com a finalidade de gerar um convencimento: como se estes fragmentos representassem o todo – uma nova gestão de visibilidades. Sobre o dizer não: o dispositivo-tecnologia da negação A propaganda é o método que sustenta a negação do outro –Marcia Tiburi O cenário educacional na contemporânea análise cultural é compreendido como um território de disputas, de lutas por significados. Isso, por si, já garante o reconhecimento da potencialidade e centralidade do sistema educacional e seus reflexos na produção de modos específicos de sociedade. Desta forma, toda produção curricular é uma tentativa de produção de escola e, por derivas, na produção de sociedades. Assim a escola é instrumentalizada via um conjunto de dispositivos que elegem suas máquinas de organização arquitetônicas, administrativas, bem como fazem funcionar os discursos que estarão aptos a circular neste espaço e quais saberes serão eleitos como formativos ou não. Ou seja, uma rede de elementos que constituem o espaço escolar. Esta rede opera com tecnologias empregadas para produzir coisas, sentidos, significados, linguagens e até mesmo para produzir a si própria. Neste sentido, a instituição escola opera via dispositivos-tecnologias. Qualquer intervenção curricular, é também um deslocar para um dispositivo-tecnologia outro (FOUCAULT, 2000). Ora, o movimento EsP propõe-se em modificações no espaço escolar, dentre eles o (re)estabelecimento de deveres atribuídos ao professor em sua função. Dentre os muitos dispositivos, propomos olhar a questão da negação na proposição dos cartazes de 70 centímetros de altura por 50 centímetros de comprimento a serem fixados nas escolas (BRASIL, 2015). Dentre os deveres citados vamos nos ater nas diretrizes e funções do professor em seu exercício: Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor: I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária; Volume I 93 II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito; V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções; VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula. (BRASIL, 2015, p. 3, grifus meus) No mesmo projeto de Lei, proposto no Senado sob nº 193/2016 (BRASIL, 2016), é incluída ainda a vedação do ensino de teorias relacionadas a questão de gênero e sexualidades. Assim, algo que nos levanta uma certa estranheza, para além da força do olhar supracitado, a do: dizer “Não”. Fica evidente na escrita do projeto de lei, um novo direcionamento da ação docente, todo delineado de um dispositivo- tecnologia da negação, quearquitetada pelo movimento EsP, busca no modelo administrativo-judiciário, opera pela negação-restrição (FOUCAULT, 2000). Aqui, a dispositivo-tecnologia do olhar funde-se a dispositivo-tecnologia do dizer “Não”: a fixação do cartaz é muito semelhante a utilizada por programas da saúde, visando identificar focos de contaminação para eliminá-los. Vemos este dizer não, de duas formas: a) Sob o olhar dos sistemas de exclusão discursiva descrito por Michel Foucault (2014); e, b) Sob uma moralidade escrava dos animais de rebanho, pontuados por Nietzsche (1996). Michel Foucault (2014), nos pontua que existe um sistema de controle, seleção, organização, regulamentação e exclusão dos fluxos discursivos, ou seja, dos discursos que são colocados em circulação, reverberando-se ou rarefazendo-se. O filósofo destaca três mecanismos atuantes no sistema de exclusão: a) a interdição, constituindo no ato do impedir que se fale algo, no não direito de dizer tudo, no que não pode-se falar (visto que pode ser considerado um tabu do objeto, requerido um ritual da circunstancia e/ou um direito privilegiado para falar sobre); b) a separação e a rejeição, de modo que seleciona-se o espaço que determinado discurso pode circular, mas que é rejeitado ao ouvido do Vozes da Educação 94 outro – Foucault utiliza do exemplo da loucura, no deslocamento deste para instituições psiquiátricas e, com suas falas consideradas balbuciares sem significado; e c) a vontade da verdade, de modo que elege-se o que é verdadeiro ou não e, apenas o verdadeiro é passível de ser anunciado. Aspectos de exclusão discursiva que são evidenciados no dizer “Não” do movimento EsP, de modo que este elege temáticas dadas como doutrinatórias, ideológicas, não neutras – como visto acima – podemos destacar por exemplo referenciais teóricos influenciados por Freire, Marx, Gramsci, Butler, Derrida, e busca exclui-las (FIGURA 1). Conteúdos atrelados a perspectivas sociais e humanitárias. Estes são interditados, proibidos, não atendem à circunstancia e ao direito privilegiado de ser falado. São separados e rejeitados do espaço da escola, visto sua eleição como ideológicos e não científicos. Por serem ideológicos não fornecem uma verdade, então não devem ser enunciados, tampouco ensinados. O movimento EsP, em seu instaurar de dispositivo-tecnologia do dizer “Não”, consegue articular interdição, separação, rejeição e vontade de verdade. Todavia, são sistemas difíceis de manter operando juntamente, assim, recorre-se a outra apelativa para fundamentar o dizer não: o respeito a moralidade dos pais. É nesta ponderação que vemos a possibilidade de recorrer às contribuições de Friedrich Nietzsche (1996) e, sua relação entre moralidade e o dizer “Não”. Nietzsche aponta para dois tipos de moralidades que fundam as perspectivas de bem e mal. Para Nietzsche os produtores do bem e do mal seriam os “virtuosos”, sujeitos aristotélicos, guerreadores, valentes, dançarinos, cantores, ativo que dizem “Sim” a si mesmo. Estabelecem para si uma localização como sujeito maior e, para isto delimitam o que é bom e ruim, bem e mal, verdadeiro e falso... A fim de manter-se em localidade privilegiada. Todavia, existiria outro personagem, o “ressentido”, sendo este mantenedor de uma moralidade servil, escrava, de rebanho, os que dizem “Não” a si e não a tudo. Os ressentidos utilizam da dissimulação e da inversão via uma “revolta escrava” para apropriar-se de valores produzidos pelos virtuosos. Se apropriam de tais valores pois, por dizer “Não” a tudo, não conseguem criar nada e, assim, precisam inverter instrumentais do Outro instrumentos, (dis)torce-los, dissimula-los, para manter-se sobrevivendo no mundo. Os valores furtados pelos ressentidos, são disseminados por Volume I 95 seus sacerdotes, a fim de ordenar o mundo de uma forma única, de bruma tóxica e padronizada, pois não conseguiriam viver em outra atmosfera. As veiculações discursivas do movimento EsP enfatizam um agir de moralidade ressentida. Diz “Não” para delinear funções docentes, diz “Não” a pensadores reconhecidos internacionalmente justamente por posicionarem-se à margem das hegemonias culturas. Diz “Não” a conteúdos ensinados no espaço escolar via classificação destes como doutrinatórios-ideológicos, diz “Não”... Assim, um segundo eixo da maquinaria do movimento EsP é um agir por um dispositivo-tecnologia da negação, que busca firmar-se como instrumento jurídico-legislativo, agenciar desejos neuróticos-canalhas, da produção de animais de rebanho que ajudem a vigiar e a enunciar múltiplos “Nãos”. O esquecimento calado Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma “verdade” no grau acima designado. –Friedrich Nietzsche Quando iniciamos este manuscrito, surgiram dúvidas se esta unidade deveria integrar juntamente as generalizações (dis)simuladas, ou se deveria dedicar a esta um subtítulo próprio. Decidimos então pela separata, mas demarcamos aqui que este esquecimento calado do qual escrevemos, bem como o dispositivo-tecnologia da negação e as generalizações (dis)simuladas operam conjuntamente e, este operar é o que tem garantido sucesso no arrebatamento de aliados pelo movimento EsP. Friedrich Nietzsche (1996) pontua que a busca pela verdade considerada de um grau mais elevado, a que é eleita para reger a tudo e a todos, é operada por meio do esquecimento. Este esquecimento é sempre seletivo, ele esquece as singularidades dos fenômenos e das coisas para que seja possível estabelecer categorizações, identificações, demarcações sobre estas – inclusive o do que é verdadeiro ou não. Essas demarcações são, para Bruno Latour (2012) a produção de fatos. Fatos que emergem das arregimentações necessárias à produção de redes, constituídas por alianças eternamente negociadas de acordo com interessamentos de atores que se aliam e, ao se aliarem, produzem derivas. A medida que o recrutamento de um maior número de aliados torna-se efetiva, a rede estende-se, fortifica-se, torna-se verdadeiro. A verdade é, portanto, a versão Vozes da Educação 96 fortificada das ações necessárias para mantê-lo em funcionamento. Todavia, este grupo é instável e é necessária constante negociação dos interesses e das derivas para manter a rede unida em torno de uma “verdade”. Para dar o aspecto publicizado de estabilidade, utiliza-se então da tentativa de esconder a rastreabilidade das controvérsias (LATOUR, 2012) ou do esquecimento destas (NIETZSCHE, 1996). Assim, o esquecimento tem sido uma potente engrenagem no constituir do EsP. Demarcamos aqui dois esquecimentos seletivos: a) O esquecimento de uma hierarquia legislativa e aportes anteriormente conquistados; b) O esquecimento de documentos suplementares. O Projeto Legislativo de Lei Escola sem Partido, em seu artigo 2º busca delinear os parâmetros que a legislação educacional deve atender, demarcando: Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência; IV - liberdade de crença; V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença; VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (BRASIL, 2015, p. 2) O projeto opera um sutil esquecimento em relaçãoa Constituição Federal (BRASIL, 1988) em seu artigo 206º que delineia os parâmetros de legislação educacional. Como a Constituição consiste em uma lei maior em comparação com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – na qual o projeto de lei EsP tenta anexar-se. No artigo 206º. Na Constituição Federal, no Artigo 206º, os itens supracitados aparecem como: Artigo 216. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. (BRASIL, 1988, s/p/) Estrategicamente a formulação do projeto legislativo da EsP suprime do parágrafo II do Artigo 216 a redação “concepções pedagógicas”. Sutilmente operam no esquecimento da hierarquia Volume I 97 constituinte do parâmetro legislativo, mas também operam no apagamento da diversidade e do contraditório da prática pedagógica. Em última análise interditam a função do professor como agente criativo e transformador. O EsP busca a contramão da criatividade ao apagar a diversidade de concepções pedagógicas torna o corpo - os órgãos do professor novamente visíveis e rastreáveis. O órgão é sempre instrumento de controle. Ele remete a algo para além dele mesmo, neste caso, o argumento do EsP da moral do social, da família, dos sujeitos de Bem. E assim nos tornamos presos, fracos, infelizes... tão ressentidos quanto eles. O EsP vai na contramão dos corpos sem órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Para além do esquecimento de uma codificação legislativa regida por uma hierarquia constituinte, bem como de princípios para educação já estabelecidos, o movimento EsP apresenta também o esquecimento de documentos suplementares. Temos por exemplo um dos cernes do movimento EsP ser a apropriação do artigo 12º IV do Pacto de São José da Costa Rica, via Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992, sendo: “4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.” (BRASIL, 2015, p. 21). Este tem sido o substratum para o arquitetar do projeto de lei, visando que nenhum conhecimento ensinado na escola poderia ferir e moralidade dos pais e, assim, os pais tendo total direito no que os filhos poderiam ou não aprender, fazem derivar ao controle. Numa cultura de fortes tendências neopositivistas como é a brasileira, o EsP parece vislumbrar melhores oportunidades de controle do coletivo se mantiver esquecida e isolada a função criativa do professor. O EsP quer nos fazer esquecer que este artigo consiste em um direito de primeira geração, ou seja, do âmbito do privado e, o acesso e parâmetros educacionais consistem em um direito de segunda geração, ou seja, do âmbito do público. Vê-se o esquecimento também de um documento suplementar ao Pacto de São José da Costa Rica, estabelecido também na Convenção Americana de Direitos humanos, que estipula as Vozes da Educação 98 diretrizes para a educação, sendo o Protocolo de São Salvador33, que estabelece em seu artigo 13º o direito a educação, demarco: 2. Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz. Fazer esquecer este documento suplementar é uma movimentação estratégica, visto que este pontua a educação como aspecto do âmbito público, coletivo, plural e que seja aberto as diversidades, desestabilizando o discurso da educação norteada pela neutralidade. Os esquecimentos são também ferramentas de produção de factualidades e, tem sido um dos estratagemas para o convencimento e extensão da rede produzida pelo movimento EsP. Considerações Percebemos que o movimento EsP tem-se estruturado como uma rede, utilizando estratégias para convencer e arrebatar aliados com base no desejo ressentido da conquista e usurpação da noção da verdade e do Bem. Buscamos pontuar alguns dos atores dessa rede e como são suas ações em três dispositivos de operação: generalização, negação e esquecimento. O projeto age por meio do que aqui tratamos como uma “Generalização (dis)simulante, de modo que faz recortes e os costura, cria patchworks, criando uma sensação ao mesmo tempo de representação do todo (por esta parte recortada) bem como agenciando as tecnologias do olhar, conclamando, “Olhem para”: a) pensadores e epistemes a serem combatidas; b) professores como possíveis perturbadores da norma, contraventores, “monstros”; c) um apoio e aceitação popular do projeto de lei em tramitação a partir das pautas do movimento; e d) um aporte jurídico-legislativo de suas ações. Organizando-se em torno do dizer 33O texto encontra-se disponível em: <http://www.cidh.org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm >. Acesso em 10 de novembro de 2017 Volume I 99 “Não” a práticas docentes, a diversidade, a liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar pensamento, arte e o saber; dizendo “Não” ao pluralismo de concepções pedagógicas; dizendo “Não” a existência de documentos oficiais, a epistemes contemporâneas e da pluralidade de conhecimentos no espaço escolar. E juntamente com a generalização e negação, instaura- se também um esquecimento: de hierarquizações legislativas, leis já existentes, documentação complementar, moções de repudio e posicionamento de instituições de ensino e pesquisa reconhecidos. Três operações, que tem conferido ao movimento EsP uma perigosa expansão de sua rede. Referências Bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Tradutora Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio D‟água, 1981. BRASIL. Projeto Legislativo de Lei – PL 193/2016 BRASIL. Projeto Legislativo de Lei – PL 867/2015. BRASIL. Constituição Federal da República. 1988 CARVALHO, Fabiana Aparecida de; POLIZEL, Alexandre Luiz; MAIO, Eliane Rose. Uma escola sem partido: discursividade, currículos e movimentos sociais. Rev. Semina: Ciências sociais e humanas, v. 37, n. 2, 2017, p. 193-210. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil-platôs – capitalismo e esquizofrenia vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000 LATOUR, Bruno, Reagregando o Social: Uma introdução a teoria ator- rede. Salvador: EDUFBA, 2012 NIETZSCHE, Friederich. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996 TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2016 Vozes da Educação 100 GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA COMO POLÍTICA PÚBLICA: CONCEITOS E LEGISLAÇÕES Aline da Silva Serpa34 Oto João Petry35 RESUMO O presente artigo tem como objetivo contribuir com as discussões sobre a gestão escolar democrática em uma perspectiva das políticas públicas deEstado. Para fundamentar o texto serão analisadas algumas das bases legais que amparam esse modelo de gestão, assim como outras categorias de estudo que permeiam o âmbito da gestão democrática, com a contribuição de autores como (LIBÂNEO, et al, 2012), (CURY, 2002), (PARO, 2016), que direcionam suas análises aos princípios mais amplos da gestão. Considerada ainda como um processo em construção, a gestão democrática demonstra-se em caminho para sua plena efetivação na prática. Palavra-chave: Gestão escolar democrática.Políticas públicas. Legislação ABSTRACT This article aims to contribute to the discussions about democratic school management from a state public policy perspective. In order to justify the text, we will analyze some of the legal bases that support this management model, as well as other categories of study that permeate the scope of democratic management, with the contribution of authors such as (LIBÂNEO, et al, 2012), (CURY, 2002), (PARO, 2016), which direct their analyzes to the broader principles of management. Considered still as a process under construction, democratic management is on the way to its full realization in practice. Palavras-chave: Gestão escolar democrática. Políticas públicas. Legislações. Keywords: Democratic school management. Public policy. Legislation. 34Mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPGE) Mestrado em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. Bolsista CAPES (DS). Membra do grupo de Pesquisa em Gestão e Inovação Educacional (GPEGIE). Email: alinesilvaserpa@hotmail.com. 35Doutor em Educação pela PUCRS. Professor do Magistério Superior e coordenador do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus Chapecó- SC. Email: oto.petry@uffs.edu.br. Volume I 101 Introdução O presente escrito é resultado de estudo empírico e tem como objetivo analisar a gestão democrática no âmbito das políticas públicas educacionais. Durante os estudos, foi realizada uma breve retomada histórica para auxiliar na compreensão de como surgiram as políticas públicas, e como a gestão democrática ganhou espaço frente a essas políticas. Na composição do escrito foram analisadas a Constituição Federal do Brasil de 1988, que foi o primeiro documento oficial a mencionar em seu texto a condição da gestão democrática na educação, a LDB 9394 de 1996, e o PNE de 2014/2024, os quais farão parte do referencial de estudo, junto dos conceitos e princípios de gestão democrática, apresentados por autores como (CURY, 2002), (LIBÂNEO, et al, 2012) e (PARO, 2016). Através deste escrito busca-se compreender que relação pode ser estabelecida entre a gestão escolar democrática e as políticas educacionais implementadas pelo Estado, a fim de compreender quais os caminhos e desafios enfrentados para que se efetive na prática o que está posto na teoria e contemplado pelas bases legais. Para tratar da gestão democrática como uma política pública, é necessário ainda que se compreenda o que são políticas públicas, quais os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais estão presentes nesse termo, como podem envolver a sociedade como um todo, e como se caracterizam em políticas de Estado ou de Governo. Outro fator importante a se destacar, é que ao abordarmos a gestão como democrática adentramos em outras categorias que contemplam esse princípio, como por exemplo, a autonomia, a participação da comunidade e a organização escolar. Ao longo do texto propõem-se então, abordar sucintamente essas categorias, na busca pelo entendimento do processo de democratização da gestão. A relevância deste estudo está na visível ampliação das discussões e debates que o tema vem ganhando, o qual, busca a compreensão da aplicabilidade das políticas públicas educacionais voltadas à gestão, suas críticas e reflexões para a efetividade na prática. Em critérios de organização do artigo apresentam-se três tópicos, primeiramente referenciando algumas das bases legais da gestão Vozes da Educação 102 democrática como uma política pública, seguindo da contextualização da gestão escolar democrática e suas principais categorias, e posteriormente abordando o processo de democratização da gestão na dualidade entre as políticas de Estado e as políticas de governo e, por fim, as considerações, que farão um apanhado do que foi discutido ao longo do texto. Gestão escolar democrática como política pública: um olhar acerca das bases legais Ao abordarmos a gestão escolar democrática no eixo das políticas públicas educacionais, observa-se que o tema que foi ganhando maior visibilidade a partir de suas discussões na década de 1980, período em que o país saía de um regime ditatorial. Porém, em termos de legislação só passou a ser reconhecida legalmente a partir da Constituição Federal de 1988. Em decorrência dos primeiros passos propostos pela Constituição, faz-se importante no estudo da gestão democrática na escola pública, uma retomada histórica, que permite olhar sob as condições políticas, econômicas e sociais, instigando uma reflexão crítica do processo de ressignificação que a educação brasileira passou ao longo desse período. Desta forma, o que se pretende nessa sessão é realizar uma breve retomada histórica, a fim de compreender quais foram as políticas públicas norteadoras desse processo de implementação da gestão escolar democrática, e como ocorreu sua abordagem nas legislações vigentes no país. Para isso, serão analisadas algumas das bases legais que contemplam em seu texto a gestão escolar democrática, como a Constituição de 1988, a LDB 9394/96 e o PNE de 2014. Tomaremos então, como um recorte histórico o período da década de 1980 até a implementação do PNE de 2014, para contextualizar questões sociais, políticas, econômicas e educacionais que permearam essas décadas. Considerando primeiramente os interesses neoliberais e as lutas de classes como dois fatores importantes desse contexto histórico, que propagaram as políticas públicas nesse cenário de início de discussão sobre a gestão democrática. Primeiramente, aponta-se como referência para as discussões, os interesses neoliberais, que compuseram o cenário socioeconômico brasileiro da década de 1980, e buscavam fazer das ressignificações dos conceitos de autonomia, participação e descentralização um importante Volume I 103 mecanismo de manobra das elites dominantes, diante do processo de democratização do Estado Brasileiro. Por outro lado, a ascensão dos grupos defensores da democratização do acesso à educação vinha ganhando valorização nos embates, enfatizando que a luta pela gestão democrática na educação estaria interligada à luta das classes sociais, ao estabelecer uma relação dialética com a realidade e compreender o homem como um ser histórico, capaz de intervir em sua própria história. Nesta perspectiva, a gestão democrática vem com a intenção de criar meios para efetiva participação, considerando todos os limites que a sociedade neoliberal impõe. No contexto político-econômico de sua elaboração, a gestão democrática ganha seu espaço pela primeira vez nas bases legais com a Constituição Federal de 1988, mesmo tendo sido alvo de discussão anteriormente. Mas, devido ao contexto ditatorial em que o país passava, foi somente através desse documento que a bandeira de lutas já empunhada tornou-se um dos objetivos da educação. Representada por princípios fundamentais como a autonomia, a descentralização e a participação da comunidade escolar, inclusive nas questões das políticaseducacionais, assim como apresenta em seu no Art. 206, inciso VI36, a gestão escolar democrática passa a ser amparada pela lei. Todavia, mesmo estando posto na Constituição, os princípios de gestão democrática foram sendo influenciados pelos ideais neoliberais, que eram fundamentados em agências internacionais. Temos então, de um lado uma conquista das lutas de classes, que se consolidou na Constituição Federal, e do outro, políticas neoliberais tentando usufruir desses princípios para manter as estruturas de desigualdade e exclusão social, econômica, cultural, etc., utilizando-se de novas mudanças necessárias à educação. Compreendendo que, “as políticas públicas propagadas nesse novo discurso estão em articulação com os interesses e princípios neoliberais e não com a perspectiva de transformação oriundas das lutas populares, que compuseram o cenário sócio-econômico brasileiro de 1980” (MIRANDA; PASQUINI, 2012, p. 1419). 36Art. 206. VI - Gestão democrática do ensino público, na forma da lei. – Constituição Federal de 1988. Vozes da Educação 104 Essas lutas populares enfatizavam as mudanças e os trabalhos que deveriam ser realizados na escola pública, objetivando a formação humana e emancipadora. Sobretudo, o que ocorria ainda era uma luta de interesses, na qual a elite tentava ressignificar os ideais ao seu favor, enquanto as classes sociais populares se utilizavam das legislações para reclamar seus direitos. Posteriormente, através da abertura proporcionada pela Constituição Federal de 1988, passou-se a ampliar as discussões acerca do tema, e em seguida iniciaram-se os estudos para construção dos textos da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que só viria a se efetivar na legislação em 1996. Com base nos princípios de gestão democrática, será referenciado a seguir o que apresenta a LDB de 1996 já inicialmente em seu Artigo 3, inciso VIII37, sobre a gestão democrática do ensino público. Reforçando posteriormente, os princípios de autonomia e participação da comunidade escolar em seus Artigos 14 e 15. Para (CURY, 2002), faz-se necessário considerar ainda os Artigos 12 e 13 que implicam no trabalho de equipe da comunidade escolar, e por fim, o Artigo 6438 da LDB/96 que aponta para os requisitos de formação dos profissionais que atuarão na gestão escolar. Mesmo com as bases legais efetivadas na teoria, a prática era outra, a educação ainda estava sendo pensada com base na economia, no capital e no mercado de trabalho, assim como destaca (BRASLAVSKY, 2002), poderíamos pautar dois modelos de educação, principalmente no que diz respeito à educação secundária (ensino médio), a qual seria preparatória ou profissionalizante ao mercado de trabalho destinada as classes populares, e formativa para o ingresso no ensino superior, direcionada às elites. Porém, mesmo com todas as reformas e ressignificações que haviam se iniciado nas diferentes modalidades de ensino e estrutura da educação, ainda haviam muitas rupturas no currículo, 37Art. 3.O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino. – LDB 9394/96. 38Art. 64. A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional. LDB 9394/96. Volume I 105 nas áreas do conhecimento (disciplinas), na formação e valorização do professor, e no modelo de educação que se pretendia implantar espelhando-se em outros países. Segundo Miranda e Pasquini, Em meio à reestruturação que se firmava na Europa e Estados Unidos, os países em desenvolvimento tiveram sua economia devastada pelo financiamento do capital externo. Longe de promover e assegurar os direitos fundamentais aos “cidadãos”, a política neoliberal agravou intensamente os problemas sociais brasileiros. (2012, p. 1421). Em meio a esta realidade de um período de intervenção internacional, em que Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional participavam do pensar para a educação, abriam-se brechas para novas conquistas que partiam das lutas populares. A gestão democrática nos mais diversos níveis e sistemas de ensino tornou-se uma das bandeiras levantadas nessas lutas e movimentos educacionais, contemplando um novo ciclo de discussões e propostas sobre encaminhamentos administrativos e organizacionais das escolar brasileiras. A partir daí, e através das aberturas proporcionadas pelos documentos anteriores (CF de 1988 e LDB de 1996), teceram-se outros debates que culminariam na elaboração do Plano Nacional de Educação, resultante da Lei 10.127 de 9 de janeiro de 2001. O primeiro Plano Nacional de Educação se estabeleceria entre os anos de 2001 a 2010. Após esse período, seria reelaborado para entrar em vigor em 2011 e permanecer até 2020, mas, como continha algumas lacunas em seu projeto de ação que determinaria diretrizes, metas e estratégias para as políticas educacionais durante um período de dez anos, o documento ficou durante quatro anos aguardando modificações que levassem à sua aprovação. Segundo o site oficial do Ministério da Educação (MEC), A Emenda Constitucional nº 59/2009 mudou a condição do Plano Nacional de Educação (PNE), que passou de uma disposição transitória da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) para uma exigência constitucional com periodicidade decenal, o que significa que planos plurianuais devem tomá-lo como referência. O plano também passou a ser considerado o articulador do Sistema Nacional de Educação, com previsão do percentual do Produto Interno Bruto (PIB) para o seu financiamento. Os planos estaduais, distrital e municipais devem ser construídos e aprovados em consonância com o PNE. (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014). Vozes da Educação 106 Após essa reestruturação pela qual passou o PNE, que resultou em um texto contendo diretrizes, vinte metas e suas respectivas estratégias para a educação no período de 2014 a 2024, destacaremos algumas questões referentes à gestão escolar democrática presentes no plano. O PNE contempla primeiramente em seu Artigo 239 no eixo das diretrizes, o princípio de gestão democrática. Posteriormente, em sua sétima meta que se refere ao fomento da qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, a melhoria na aprendizagem e no alcance das médias desejadas para o Ideb no ensino fundamental e médio, também se inclui o ideal de gestão democrática no item 7.1640. Para ampliar as propostas sobre gestão escolar democrática o PNE destina uma de suas metas especificamente para tratar do assunto. Propondo: Meta 19: assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto. (BRASIL, LEI 13.005 de 25/06/14). Nesse sentido, a Meta 19, é criada com o intuito de instituir em um prazo de dois anos, ou seja, até 2016 as condições necessárias para a efetivação da gestão escolar democrática, estabelecendo a participação da comunidade escolar e recebendo os devidos recursos da União. Contando com a elaboração de oito estratégias para que auxiliem no alcance da meta descrita anteriormente, odocumento do PNE recebe algumas críticas pelas visíveis falhas já encontradas. Apesar de todo amparo das bases legais, a gestão escolar democrática ainda não se efetivou totalmente na prática, e tem um longo caminho pela frente, a começar pelas mudanças necessárias no modo de pensar a educação. Considerando que em muitos dos documentos elaborados, retoma-se o caráter instrumental de qualidade da gestão, associado a princípios de rentabilidade, produtividade e competitividade, que na visão de alguns autores também se fazem presentes no PNE. Assim como para Cabral Neto e Silva: 39Art. 2. “VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública”. – PNE, 2014. 407.16) apoiar técnica e financeiramente a gestão escolar mediante transferência direta de recursos financeiros à escola, garantindo a participação da comunidade escolar no planejamento e na aplicação dos recursos, visando à ampliação da transparência e ao efetivo desenvolvimento da gestão democrática; (BRASIL, LEI 13.005 de 25/06/14). Volume I 107 Dentro dessa perspectiva, a escola passa a ser entendida como uma empresa e os professores, alunos e dirigentes transformam-se em trabalhadores que precisam se empenhar, ao máximo, para atingir a excelência proclamada. Partindo dessa premissa, os referidos trabalhadores da educação passam a ser responsabilizados pelo baixo rendimento acadêmico da escola, ausentando a parcela de responsabilidade do poder público. (2001, p.15). É nesse sentido que a crítica se estabelece, pois, mesmo os escritos de alguns documentos apresentam um viés fora da perspectiva emancipatória que se espera, assim como destacaram os autores acima, em alguns momentos a escola ainda passa a ser vista como uma empresa, o que fere os princípios anteriores postos nas demais legislações. Compreendemos que as bases legais foram os primeiros passos a serem dados com relação às mudanças significativas da educação, e, portanto, da gestão democrática. O pensar dessa modalidade de gestão foi fruto das lutas populares, e firmou-se através das políticas públicas educacionais, propostas para suprir as lacunas deixadas pela desigualdade do mundo capitalista. Porém, a teoria ainda é diferente da prática, e a evolução dessa política pública que é a gestão escolar democrática requer a análise de alguns de seus conceitos fundamentais e a permanência do seu tema nos debates centrais da educação. Conceitualizando a Gestão Escolar Democrática e suas Principais Categorias Ao tratarmos da gestão escolar não podemos analisá-la de maneira isolada, pois, situada no campo das políticas públicas educacionais, é uma das áreas que envolve outros eixos ao seu entorno, sobretudo, porque constitui um conjunto de condições e meios utilizados para assegurar o bom funcionamento da instituição, buscando alcançar os objetivos educacionais esperados. É dentro da gestão escolar que se estabelecem um conjunto de normas, diretrizes, estrutura organizacional, bem como ações e procedimentos que reúnam, articulem, e integrem atividades e pessoas que atuam na escola com objetivos comuns. À gestão está designada ainda funções como planejar, organizar, dirigir e avaliar, colocando em ação (funcionamento) um sistema organizacional, mediante vários procedimentos. (LIBÂNEO, et.al, 2012). Vozes da Educação 108 Para que a gestão possa desenvolver suas funções e organizações, é necessário que a instituição ofereça condições e meios, provendo recursos e métodos para o bom funcionamento da escola e do trabalho em sala, promovendo e acompanhando o envolvimento das pessoas, por meio da participação, do fazer e da avaliação, na busca pela aprendizagem de todos os sujeitos. A gestão, é então, a atividade pela qual são mobilizados meios e procedimentos visando o alcance dos objetivos escolares, envolvendo aspectos gerenciais, técnico-administrativos e pedagógicos. Porém, mesmo sendo proposta por políticas de Estado, a gestão escolar sofre outras influências, destacadas por (HÖFLING, 2001), como “questões de fundo” que compreendem basicamente, as decisões tomadas pelo governo, (que não será necessariamente aquele que criou a política) as escolhas, os caminhos percorridos e os modelos de avaliações aplicados. É, ainda através dessas relações entre o Estado e as políticas sociais que se encontram fatores de diferentes naturezas, mas, que são determinantes para construção e aplicação de tais políticas. Assim como no caso da gestão, essa ação designada pode ser proposta em diferentes perspectivas, como por exemplo, em sua concepção autoritária ou democrática, de acordo com os conceitos de cada governo. Apesar da gestão escolar abranger outras concepções em seu entorno, ou ainda ganhar diferentes ressignificações aos seus ideais como no caso da gestão democrática, em nosso estudo tomaremos como referência o princípio proposto por (LIBÂNEO, et al, 2012), que destaca três conceitos inseridos no modelo democrático, cada um com algumas características específicas. Primeiramente, ele aborda a concepção autogestionária, que se baseia na responsabilidade coletiva, na descentralização da direção e na acentuação da participação direta e igualitária de todos os membros da instituição. Negando o exercício de autoridade e valorizando elementos instituintes como a capacidade do grupo em criar suas próprias normas e regras. Já na concepção de gestão democrática interpretativa, prevalecem nos processos de gestão, os significados subjetivos, as intenções e interações das pessoas. Nessa perspectiva as práticas organizativas são vistas como uma construção social, baseadas nas experiências subjetivas e interações sociais dos indivíduos. A última concepção que faz parte da gestão democrática é a Volume I 109 democrático-participativa, que se baseia na relação orgânica entre a direção e a participação de toda a equipe escolar, no alcance dos objetivos comuns assumidos por todos, defendendo a forma coletiva de tomada de decisões. Nessa concepção, após a tomada de decisões no coletivo, cada membro assume sua função, colaborando com a coordenação e avaliação sistemática do que foi deliberado. Essas três concepções de gestão inseridas na perspectiva de gestão democrática se relacionam entre sim através de alguns aspectos em comum, como a participação dos membros da instituição e da comunidade escolar, e a oposição às formas de autoritarismo e centralização do poder. Nessa perspectiva considera-se ainda importante o envolvimento com o contexto social, político e econômico em que a escola está inserida, a construção das relações sociais e a valorização do trabalho coletivo e participativo, ressaltando que o modo de organização e atuação da escola deve estar de acordo com a realidade local. Desta forma, ainda na percepção de (LIBÂNEO, et.al, 2012), a gestão democrática é vista como a forma mais adequada de organização escolar, pois, permite a participação dos agentes que nela estão inseridos, culminando no princípio da autonomia escolar. Ao abordar o princípio de autonomia, permanecemos nas ideias apresentadas por (LIBÂNEO, et al, 2012), que fará uma breve conceitualização dos eixos que estão envolvidos na gestão democrática. Para isso, ele destaca que o princípio de autonomia tem seu significado na capacidade que as pessoas e os grupos encontram para a livre condução de si próprios, através do conceito de participação, se opondo as formas autoritárias de tomada de decisões. Dentro das instituições se faz presente através da participação na livre escolha de objetivos e processos detrabalho, e na construção coletiva do ambiente escolar. Essa participação significativa ocorre através do envolvimento dos profissionais da educação, pais, alunos e demais membros da comunidade escolar na gestão (organização) da escola. Contudo, muitas vezes os princípios de gestão democrática estão direcionados apenas à eleição de gestores das escolas públicas, fazendo parte de Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, assim como destaca (CURY, 2002). Mas, ao descrever o conceito de gestão ampliam- se as possibilidades de análise, ao se tratar de um termo que tem sua origem Vozes da Educação 110 etimológica do verbo latino “gero, gessi, gestum, gerere e significa: levar sobre si, carregar, chamar a si, executar, exercer, gerar. Trata-se de algo que implica o sujeito”. (CURY, 2002, p.164). Portanto, a reflexão que se busca fazer é ainda mais ampla, e envolve os diferentes processos administrativos, organizacionais e pedagógicos presentes em uma escola. É compreensível que as significações dos conceitos citados acima possam se modificar de acordo com o período histórico ou a perspectiva de determinado autor que os aborda. Porém, o que vem acontecendo muitas vezes são as ressignificações desses conceitos através dos ideais neoliberais, na tentativa de usufruir de uma conquista das lutas populares para tomarem a seu favor as questões norteadoras da educação brasileira. Sabemos ainda, que muito já se caminhou e conquistou em termos de políticas públicas educacionais, mas, ainda é longo o caminho a ser percorrido para que tenhamos uma universalização e efetivação desses ideais nos diferentes níveis e eixos da educação, fazendo com que as políticas de Governo se tornem políticas de Estado, e assumam efetivamente seu papel na redução das desigualdades e não no aumento delas. Políticas Públicas e suas Definições acerca da Democratização da Gestão Escolar Ao iniciarmos as discussões sobre as políticas públicas de Estado ou Governo, é importante compreendermos como surgem e qual a finalidade dessas políticas. Segundo (SOUZA, 2006), a concepção de Política Pública surge nos Estado Unidos, mas, é na Europa que ela tem seus desdobramentos baseados em teorias explicativas sobre o papel do Estado e do Governo. Tem suas raízes como disciplina de subárea na ciência política, e em sua finalidade busca entender como e porque os governantes optam por algumas ações e não outras. As políticas públicas podem ganhar diferentes definições, como por exemplo: o estudo da política que analisa o governo frente as questões públicas; um conjunto de ações do governo que irão produzir diferentes efeitos específicos; ou ainda, a soma dessas atividades e ações, aquilo que o governo escolhe ou não fazer. Essas definições, muitas vezes estão diretamente ligadas as soluções de problemas, e acabam deixando de lado questões que poderiam envolver a participação e cooperação de outros Volume I 111 grupos sociais ou instituições, voltando-se somente as análises do governo. É, a partir daí, que passam a serem vistas hora como Políticas de Estado e hora como Políticas de Governo. Segundo (ESPINOZA, 2009) política pode ser entendida como um conjunto de decisões inter- relacionadas por um ator ou grupos de atores políticos, que envolvem a definição de metas e medidas para a realização de uma situação em particular. Nessa perspectiva, observa-se que muitas políticas acabam por se tornar somente do governo que as implantou, pois, naquele determinado momento se faziam necessárias diante da realidade vigente. Porém, com as trocas de governos muitas delas acabam por serem deixadas de lado, sem sequer se efetivarem como Políticas de Estado. Essas políticas estão presentes em áreas como: saúde, segurança, educação, bem-estar, previsão social, entre outros, e correspondem as ações praticadas pelo governo em função de algumas necessidades encontrada em determinado momento na sociedade. Com base nas políticas públicas educacionais voltadas à gestão escolar democrática, que está fundamentada nas bases legais, mas que ainda não se efetivou por completo na prática enquanto uma política de Estado. A gestão democrática vem sendo amparada desde a Constituição Federal de 1988, a qual deu abertura para posteriores legislações como a LDB de 1996 e o PNE de 2014 aprofundarem em seus textos a política educacional desse modelo de gestão. Porém, mesmo como todo esse amparo legal, e com base na conceitualização que alguns autores utilizam para diferenciar esses dois modos de políticas, pode-se dizer que a gestão democrática ainda precisa de uma maior efetivação e implementação a nível de país, para se tornar de fato uma Política de Estado. Ao pensarmos na gestão democrática como uma política bem- sucedida devemos analisar quatro etapas: origem, desenho, gestão e evolução, que segundo (PARADA, 2006) são características para uma política pública de excelência. Mas, como no caso a gestão ainda é uma política que está sendo implantada, é importante que sejam seguidas essas etapas, para que se obtenha uma avaliação positiva, mediante a participação da comunidade. Essa participação, é um modo privilegiado dos cidadãos e das organizações as quais pertencem fazerem valer suas opiniões no período que vai de uma eleição a outra. É uma maneira em Vozes da Educação 112 que a sociedade se reconhece em si mesma (PARADA, 2006). Assim sendo, tanto na gestão democrática quanto nos outros temas das políticas públicas, faz-se necessário a participação dos sujeitos, para que aos poucos possam garantir cada vez mais a permanência e a ampliação de seus direitos. Sempre que se pensar nessa democratização enquanto política pública, é importante que tenhamos em mente uma concepção ampla de gestão escolar democrática da escola pública, que envolva a efetiva participação dos pais, educadores, alunos, funcionários da escola e membros da comunidade, mesmo que isso seja considerado como uma utopia, segundo (PARO, 2016). Pois, sendo utopia, na medida que ainda não existe plenamente, se coloca ao mesmo tempo como algo de valor, que se deseja alcançar, na tentativa de buscar soluções para os problemas escolares, através da viabilização de um projeto de democratização das relações no interior da escola. Assim, considerando a evolução que se teve com a implementação dessas políticas públicas e o amparo pelas bases legais, é possível afirmar que muito se caminhou no que diz respeito a democratização da gestão escolar. Contudo, ainda é preciso seguir no caminho, pois, encontram-se inúmeras lacunas em sua efetivação na prática. Na medida em que um dos ideais esperados é que se pense mais nas políticas enquanto Estado, consolidadas a longo prazo, que não se esgotem ou enfraqueçam a cada troca de governo. Seguindo nesse contexto em que se está inserido, com novas oportunidades de estudos e reflexões, será possível então, aproximar-se cada vez mais da tão desejada utopia. Considerações Finais No decorrer do presente artigo procurou-se destacar alguns dos conceitos que envolvem a gestão escolar democrática, bem como as políticas públicas de constituição e as bases legais que amparam esse modelo de gestão. Foram retomadas ainda questões históricas, na tentativa de compreender como ocorreu o surgimento desse processo de democratização e sua implementação nas bases legais. Uma conquista que ocorreu a partir das lutas sociais, e contou com a abertura deixada pela Constituição Federal de 1988. Mas, foi Volume I 113 somente em 1996 com a reestruturação da LDB, que a gestão democrática passa a ganharmaior visibilidade no campo da educação. Posteriormente, seu espaço de discussão aumenta através dos textos do PNE de 2014, que a descreve como uma meta para a educação no período de dez anos. A partir desse levantamento dos documentos oficiais, é possível perceber que a gestão escolar democrática como uma política pública está bem amparada pelas legislações, e vem se constituindo cada vez mais com debates no campo educacional. Porém, sua efetivação na prática do cotidiano escolar ainda é pouca, vista muitas vezes somente como uma eleição direta para escolha dos dirigentes da escola, a gestão democrática tem seu significado reduzido, perdendo forças para sua plena implementação. Assim como as reivindicações por políticas públicas demandaram lutas populares, o reconhecimento da gestão democrática como princípio da educação também requer a participação da comunidade e de todos os membros nela envolvidos, para que se efetive na prática os princípios democráticos que já estão postos na teoria. Assim sendo, a gestão escolar democrática vem gradativamente ganhando novos espaços em meio aos debates e discussões que estão sendo propostos no âmbito da educação. Por se tratar de um tema relativamente recente, tanto em pesquisas quanto nos textos legais, a democratização da gestão envolve em seu entorno questões como a autonomia, a participação, a coletividade e o envolvimento com a realidade social. Trazendo em seus princípios a oposição ao autoritarismo e a individualização dos setores escolares, prezando por uma organização em rede, que aproxime os diferentes ambientes e sujeitos da escola, na busca pelos mesmos objetivos do processo educativo. Por fim, o percurso pelo qual está passando esse modelo de gestão desenhado sob uma perspectiva democrática, vem emancipando os horizontes do meio em que se insere. Tem ganhado cada vez mais força com políticas e legislações locais, que caminham para a implementação e melhoria desta proposta. O sentido aqui atribuído a gestão democrática refere-se então a sua capacidade de promover a autonomia e participação na escola, que mesmo se tratando de um processo em construção, já aponta para aspectos positivos em seus estudos. Vozes da Educação 114 Referências Bibliográficas BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006. BRASIL. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. p. 27894. BRASIL. Lei n. 10.172, de 9 janeiro de 2001. Institui o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. 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Desentendimentos sobre Dança no senso comum e palavras que a caracterizam dentro do documento são o foco da presente análise. Palavras-Chave: Dança, Escola, Parâmetros Curriculares Nacionais, Proposta Curricular. ABSTRACT Dance as knowledge area in the understanding of the Public Politic Educational of Manaus city is the concern of the present study. With reference to the Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), we intend to analyze the Curricular Proposal for Dance of the Secretaria de Educação Municipal de Manaus (SEMED) regarding the location of the field of knowledge interested (Dance), as well as the concepts to weigh up for its explication, in which one can perceive many dualistic understandings, damaging the effectiveness educational of the Dance. Disagreements about dance in common sense and words that characterize it in the document are the focus of the present analysis. Key words: Dance, School, Parâmetros Curriculares Nacionais, Proposta Curricular 41Professora do Curso de Dança da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e Arte- Educadora da rede SEDUC, Mestra em Dança pela UFBA e Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP – email: amandapinto44@gmail.com Volume I 117 Introdução Estudos contemporâneos no que se refere às Ciências Cognitivas, à Educação e à Arte na Escola têm apresentado nos últimos anos uma transformação em suas visões no que diz respeito às relações da pessoa com o mundo. Esses estudos do corpo42 apontam para uma visão diferente para essa pessoa, a qual é corponectiva (mente e corpo trazidos juntos), não dualista, de enlaces e teias complexas com o ambiente. Essas questões presentes no corpo, que esses estudos têm trazido, precisam estar na escola, pois é possível afirmar que sua contribuição vai auxiliar para olhares que foquem o corpo, a pessoa, como ocorrem seus processos de pensamento e como se desenvolve no processo ensino/aprendizagem. A Dança, como área de conhecimento,em diálogo com esses saberes acerca do corpo, traz para a escola uma possibilidade deste olhar, porque busca entender o aluno na sua complexidade de ser e de apreender o mundo, de não dissociar o seu fazer e o seu pensar. Preocupado com os rumos da educação da Dança na Escola traçados até então no Brasil (focando na realidade do município de Manaus/AM) no nível de suas práticas educativas que confluem com o saber de senso comum, é que este estudo vem tratar da proposição do campo de conhecimento Dança na Escola na Proposta Curricular (PC) do Sistema Educacional Municipal de Manaus, referenciando-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para a Dança, tendo em vista que este é ainda o documento prático de referência nas Escolas, estando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ainda em andamento de efetivação. A Proposta Curricular é, segundo Celso Vasconcelos (2009), um componente do Projeto Político Pedagógico (PPP), o qual ele chama de “Proposta de Ação” ou “Programação”. Essa Proposta de Ação seria a terceira e última fase da elaboração do PPP43, na qual constam as ações ou linhas de ação que a Escola irá executar para suprir suas necessidades, as 42O corpo que é uma pessoa, uma criança. É um conceito que tem vida, que é alguém. 43Celso Vasconcelos (2009) é doutor em Didática, mestre em Filosofia, Professor Pesquisador em Educação e Membro do Conselho Editorial da Revista de Educação da AEC e responsável pelo Libertad. Segundo este autor, a elaboração do PPP consiste de três grandes fases: 1) Marco Referencial (o que queremos alcançar?); 2) Diagnóstico (o que nos falta para ser o que desejamos?); 3) Programação ou Proposta de Ação (o que faremos concretamente para suprir tal falta?). Vozes da Educação 118 quais foram detectadas na Fase Diagnóstico (segunda fase) e comparadas com o Marco Referencial (primeira fase). Dessa forma, a Proposta Curricular (PC) é uma proposta de ação que irá diminuir a distância entre a realidade da Escola (fase diagnóstica) e os ideais de ensino (marco referencial). Em virtude de as escolas municipais de Manaus/AM utilizarem a Proposta Curricular para o Ensino Fundamental (documento gerado pela Secretaria Municipal) como referência para seu planejamento interno, este estudo se constitui na análise da Proposta Curricular (PC) especificada, para entender o que possivelmente falta para a proposição da Dança no próprio documento. Com referência nos PCNs, os quais tratam a Dança como campo específico de conhecimento, é que se busca identificar as lacunas teóricas presentes entre seus pressupostos e a PC do Sistema Educacional de Manaus, além das lacunas entre as teorias vigentes (Estudos Contemporâneos do Corpo, Ciências Cognitivas, Educação e Arte na Escola) em ambos os documentos. Considera-se que é um problema de compreensão das Políticas Públicas de que a Dança seja parte da Educação Escolar. Autores referências para esta pesquisa como Santos (2002), Rengel (2007), Marques (1999), Barbosa (2008), Churchland (2004) e Katz (2005). A abordagem metodológica é de caráter qualitativo, utilizando a pesquisa documental como referência. Para uma crítica reflexiva, o método da “Análise do Discurso” (DEUSDARÁ e ROCHA, 2005) fez-se necessário, estendendo-se à técnica de “Análise de Expressão”, a qual permite investigar as palavras, como: “expressão”, “comunicação”, “linguagem” e “dança improvisada” em seus contextos. As expressões elencadas foram aquelas que apareceram com maior frequência na Proposta Curricular. A pesquisa se pautou em três momentos básicos: o primeiro, o aporte teórico mencionado, juntamente com a localização do campo de conhecimento Dança dentro da Escola e no saber geral. O segundo, a Análise de Expressão dos conteúdos da PC, nos quais é possível perceber muitos entendimentos dualistas, que se opõem às teorias vigentes. O terceiro, a situação destes entendimentos sobre corpo e Dança na Educação Manauara e Brasileira, considerando o contexto da concepção dos documentos PC e PCNs. É neste caminho de corroborar com a área Volume I 119 de conhecimento Dança que este estudo se inscreve, não no sentido de descobri-la como tal, mas contribuir para a sua difusão ao saber geral, comum, visto que cultural e historicamente este campo é de conhecimento restrito. Dança como Área de Conhecimento na Escola Breve histórico dos parâmetros curriculares nacionais Os Parâmetros Curriculares Nacionais tiveram sua publicação em 1997, pelo Ministério de Educação e Desporto, via Secretaria de Educação Fundamental, impulsionada por um acordo feito em 1990 na Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien (Tailândia), convocada pela UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial, com o objetivo de assumir “... posições consensuais na luta pela satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos, capazes de tornar universal a educação fundamental...” (BRASIL, PCNs-introdução, 1997, p.14). Esse acordo, haja vista a realidade da Educação Brasileira, resultou em primeira instância no Plano Decenal de Educação para Todos, um conjunto de diretrizes educacionais que, concomitantemente à Constituição de 1988, obriga o Estado a elaborar parâmetros que norteiem “...as ações educativas do ensino obrigatório, de forma a adequá-los aos ideais democráticos...” (BRASIL, PCNs-introdução, 1997, p.14). A Lei aprovada em 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9.394) reforça a obrigação do poder público para com uma formação no Ensino Fundamental comum a todos os brasileiros. Os artigos 9º, 10 e 11 da LDB 9.394 regem quanto à função da União, Estados e Municípios. Todavia, se os Parâmetros foram concebidos a fim de atender a uma necessidade educacional básica e comum a todos os brasileiros (o que foi confirmado em acordo internacional e em lei nacional), as Secretarias em contrapartida deveriam seguir suas diretrizes (como algumas de fato o fazem), visto que são elas que irão efetivar o compromisso firmado em 1990. Sendo assim, esta investigação compreende que os Parâmetros deveriam servir como indicações a serem seguidas pelas Secretarias, tendo em vista o contexto em que e para que foram desenvolvidos. Os PCNs para Dança tiveram sua publicação dentro deste documento, desde 1997, devendo, a partir dessa data, tornar-se referência Vozes da Educação 120 para o ensino dessa área de conhecimento nas escolas, em todo o território nacional. Entenda-se como referência, os pressupostos e conteúdos básicos nele encontrados no que se refere à Dança, assim como a definição de onde esta área de conhecimento deve ser versada e atuada no percurso do Ensino Fundamental, ou seja, no campo das Artes, e devendo ser abordada no período correspondente a um ano letivo entre o 1º e o 5º anos e outro ano letivo entre o 6º e 9º anos. Para a elaboração da PC, a SEMED possui especialistas para cada área de conhecimento específico como propositores/planejadores. Vejamos o que este documento nos informa como planejamento para a Dança. Transversalmente a essas informações serão feitas algumas inferências, tomando como referência os PCNs para a Dança. Dança no currículo escolar Historicamente, segundo os PCNs (1997), a Dança “entra” na escola de forma ilustrativa, para as festividades escolares. Em geral, o que era considerado Arte na escola eram as Artes Plásticas e o Desenho. Strazzacappa (2006) aponta que o Desenho sempre foi a principal linguagem artística nas escolas, visto que atendia aos ideais positivistas que entendiam ser essa a linguagem educadorada “mente”, contribuindo para o estudo das ciências. Para os liberais, contribuía para a preparação do povo ao trabalho. Posteriormente, reconheceu-se a Música, já em meados da década de 60, a qual serviu mais tarde para inserir a expressão corporal em suas aulas, pois passou-se a entender que a música poderia ser tocada, cantada e dançada. A presença da Dança nas escolas era na forma de divertimento (como na ginástica, no Ensino Normal Primário) e com caráter lúdico ou como “passatempo”, o que acarreta até hoje uma das formas restritas de se entender a Dança. A Dança é considerada enquanto área de conhecimento pelos PCNs (1997), sendo esta a primeira vez que é reconhecida oficialmente enquanto currículo escolar na história das artes brasileiras (PEREGRINO, 2001)44, sendo somente em 2016 incluída enquanto conteúdo obrigatório 44Em seu artigo “Dançando na Escola: a conquista de espaço para a arte do movimento”, Yara Rosas R. Peregrino trata da análise dos PCNs para a Dança. Esse artigo é parte de um livro fruto de um grupo de pesquisa existente há dez anos (publicado em 2001), do qual esta autora faz parte, da Universidade Federal da Paraíba. Volume I 121 nas escolas brasileiras pela Lei 13.278. Portanto, ela é assim definida, por deter seus conteúdos específicos dentro das linguagens artísticas para fazer parte da educação do aluno. Para tanto, esta ainda sofre um alijamento escolar, visto que não é efetivada na maioria das escolas da cidade de Manaus, nem enquanto disciplina nem enquanto conteúdo das Artes. Observando o documento da PC manauara, a qual trata os segmentos em regime seriado, 1º ao 5º ano e 6º ao 9º ano - nos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, a Dança não aparece enquanto área específica no currículo de Artes. Aparece somente como área de conhecimento no 4º e 5º anos. Até então o documento corresponde à orientação dos Parâmetros (que divide os segmentos escolares em ciclos) que é a de que, duas das quatro linguagens artísticas devem ser trabalhadas no primeiro ciclo e as outras duas no segundo ciclo (BRASIL, PCNs-arte I, 1997, p. 71). A Dança enquanto área de conhecimento aparece pelo menos uma vez dentre os quatro primeiros anos escolares. Portanto, quanto a esta colocação da Dança na PC, o documento corresponde ao que propõem os PCNs. Do 6º ao 9º ano (que correspondem ao 3º e 4º ciclos), a Dança não é apresentada enquanto área de conhecimento. Além de não seguir os mesmos padrões, em termos de itens especificados, das primeiras séries, os conteúdos de Artes focalizam os das Artes Plásticas, aparecendo em todas as séries especificamente somente Música e Teatro. Apesar de o documento não ter um padrão de escrita para todas as disciplinas, percebe- se a ausência da Dança enquanto área de conhecimento por aparecer, dentro das Artes, no item “Conteúdo”, as linguagens “Música” e “Teatro” bem delimitadas, em detrimento da Dança, além dos conteúdos das Artes Plásticas corresponderem à maior parte desse item. Marques (2007) afirma que é de senso comum no nosso país um “desentendimento” sobre esse campo de conhecimento, comparado às demais disciplinas escolares, no que diz respeito aos seus conteúdos, importância e imprescindibilidade no âmbito escolar/educacional. Porém os PCNs já estão publicados e em vigor há mais de vinte anos, evidenciando que a Dança tem que estar no currículo escolar, assim como traz a proposta da nova BNCC. Os PCNs informam, ainda, que a Dança deve aparecer pelo menos uma vez (entenda-se em um ano) dentre as quatro séries iniciais e outra vez nas quatro séries seguintes. Vozes da Educação 122 Segundo a LDB 9.394 (1996), o Sistema Educacional pode se organizar em série anuais, períodos semestrais ou em ciclos. O Sistema Educacional de Manaus é organizado em séries anuais (os conteúdos são divididos por ano, e, no caso de repetência, o aluno pode repetir a série anualmente). Já os PCNs se organizam em ciclos (cada ciclo contempla duas séries anuais, e, no caso de repetência, o aluno pode repetir de dois em dois anos). O regime de ciclos fica assim dividido: 1º e 2º ciclos, os quais correspondem, no regime seriado, à 1ª até 4ª séries; e os 3º e 4º ciclos, que correspondem, no regime seriado, à 5ª até 8ª séries. Com a entrada da Lei 11.274/16, a qual inclui a alfabetização como 1o ano do Ensino Fundamental, este segmento passa a ter 9 anos de duração, e se faz necessário esclarecer a correspondência dos PCNs com a PC do Sistema Educacional de Manaus: os 1º e 2º ciclos do PCN correspondem ao 1º ao 5º anos do novo Ensino Fundamental e os 3º e 4º ciclos correspondem ao 6º ao 9º anos. Sendo assim, é possível considerar que a PC opere com a seguinte lógica: os PCNs (que dividem os segmentos escolares em ciclo) definem que deve haver Dança em uma das séries do 1º e 2º ciclo (1ª a 4ª série) e também em uma das séries do 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries). Então suponhamos que a PC queira afirmar que já possui Dança nos dois segmentos (de 1ª a 4ª e de 5ª a 8ª), pois propõe-na nos 4º e 5º anos. Porém não podemos nos deixar confundir, visto que o 5º ano (PC) corresponde a 4ª série do sistema de ciclos (PCNs). Portanto, no segundo segmento (de 5ª a 8ª série, conforme os PCNs) do Ensino Fundamental não há nesta PC Dança como área de conhecimento. Sendo esta pesquisa uma análise do sistema de ensino numa abrangência municipal, a Dança não será observada neste segundo segmento (de 6º ao 9º ano), pois, além de no planejamento da SEMED não aparecer a Dança no currículo de Artes como área específica, esta Secretaria não é responsável por esse segmento, o qual se encontra sob a responsabilidade da Secretaria de Estado. Dança como área de conhecimento: alguns desentendimentos... Como expõe Marques (2007) e os PCNs-Arte II (1997) sobre o senso comum a respeito da Dança: se há dança na rua, nos programas de auditório, se o brasileiro tem “samba no pé”, se já “se dança na vida”, para Volume I 123 que se dançar na escola? Este é um meme45 presente há muito na história da Dança na educação brasileira. A Dança na escola sofre ainda as consequências de, até pouco tempo atrás, não ser entendida pela maioria das pessoas como uma área de conhecimento que possui signos próprios, conteúdos estes que, ainda segundo Marques (2007), envolvem aspectos e estruturas do aprendizado do movimento, como o estudo da coreologia de Rudolf Laban (MARQUES, 2007, p. 28), a contextualização da dança quanto à sua história, estética, antropologia, cinesiologia, etc, e a vivência da própria dança, ou seja, dos repertórios, improvisação e composição coreográfica. É importante, em se tratando do planejamento curricular para esta área, que se saiba com que referências ela foi colocada na PC, visto que o senso comum, em sua maioria (inclui-se, nesse grupo, aqueles que não são profissionais de Dança), não entende esta linguagem artística como exposto acima, pois é um problema ainda atual o não entendimento dos conteúdos da Dança, mesmo por profissionais da Educação. Ainda há aqueles dentro da escola, incluindo diretores, gestores e professores, que não têm conhecimento da seriedade do trabalho com a Dança, no sentido de que ela não serve somente para abrilhantar momentos festivos. A dança ilustrativa É importante pensar sobre esses momentos festivos no ambiente escolar, pois é a relação que a maioria das pessoas faz sobre a Dança (assim como das outras áreas artísticas) na Escola. Ela acaba servindo para o Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia da Bandeira, Festa da Páscoa, etc.,somente como ilustrativa46, como se não pudesse ser trabalhado o fazer/pensar em dança com relação aos processos significativos dessas datas comemorativas. A Dança como ilustração diz respeito à utilização da mesma para abrilhantar, para enfeitar ou até para animar as devidas comemorações. Dessa forma, ela não se apresenta contextualizada,com possibilidade crítica, que interage com o contexto em comemoração. Ela 45Meme é um termo criado por Richard Dawkins, zoólogo, etólogo e evolucionista, professor da Universidade de Oxford. Este teórico introduziu este termo para designar uma unidade de cultura que se replica, comparando esta unidade a um gene. O “meme da cultura” seria, portanto, um gene cultural, que se replica e se dissemina no contexto cultural. 46Termo designado pela presente pesquisadora. Vozes da Educação 124 acaba por servir como adereço do evento e se, em alguns casos, ela não conseguir animar o público ao final de sua “performance”, entende-se que ela não conseguiu atingir seu objetivo. Sabemos que a Dança desenvolve e provoca variados tipos de recepções e emoções, para quem dança e para quem assiste, mas não podemos nos restringir a utilizá-la como catártica. A questão não é se posicionar contra a dança nessas festas, mas em como ela é utilizada. Neste caráter ilustrativo, ela fica à mercê (quando aparece no ensino) de ser tratada como uma disciplina extracurricular (em escolas particulares), o que reforça esse seu ritmo de participação na vida escolar. Dança e dualismo A lacuna sobre o entendimento da Dança na escola vai além de uma incompreensão enquanto disciplina, pois engloba o que se entende pelo ato de dançar. E o ato de dançar presume o conceito de corpo, e de como ele é visto pelas próprias pessoas. O dualismo, que é um termo que admite a coexistência de dois princípios opostos (neste caso, corpo/mente), ainda é uma forma hegemônica de como o corpo é admitido na sua compreensão de existência no senso comum, ou seja, que existe um corpo (físico) que é separado de uma mente (abstrata), e que esta mente habita e comanda este corpo. E mais: que “trabalhar a mente” é muito mais importante do que “trabalhar o corpo”. A Dança, neste sentido, é historicamente vista como uma “atividade” que trabalha no relaxamento do corpo para a melhor performance da mente, ou seja, ela serve como atividade recreativa para promover o relaxamento para melhor desempenho das disciplinas escolares e não vista na intenção de se promover o seu ensino. Um argumento que nesta pesquisa se apresenta é o de que uma das razões para que isso ocorra, talvez, seja pela cultura religiosa (que separa alma da carne, como um espírito habitando esta carne) e ainda pela não prática deste corpomente. As religiões, em geral, trazem a espiritualidade muito afastada do corpo, como se a mente - alma - comandasse este corpo, onde esta alma é imortal, o que Churchland (2004) chama de argumento da religião, como sendo um dos argumentos a favor do dualismo. O conceito de religião aqui abordado é aquele que encontramos no nosso dia a dia nas nossas cidades, enquanto dogma. Essa religião instituída de normas, segundo Agamben (2007) deriva do termo Volume I 125 religio, a qual não significa ligar o homem ao divino (como traz o termo religare), mas manter a atenção para a distinção do que é humano e o que é divino, separando-os, de forma que nós homens não podemos “tocar” no que é sagrado. Neste caso, “nossa alma” é algo sagrado, pela qual o “corpo” deve manter respeito e preservá-la, para que ela possa, na sua imortalidade, ser salva. Marques (2007) aborda este ponto sobre o desentendimento da dança na escola, pois a cultura do “corpo pecaminoso” ainda é presente, apesar de, no último século, a Igreja Católica, principalmente, já ter amenizado essas “faltas graves” (MARQUES, 2007, p. 20). Dança como educação física No documento Proposta Curricular ora em análise, assim como apontam também os PCNs, a Dança inserida no currículo de Educação Física é somente mais um conteúdo desta área, e não tratada como área de conhecimento específica dentro deste currículo. Sendo assim, a Dança na PC corresponde ao que propõem os Parâmetros. Porém não podemos confundir a Dança na Educação Física e a Dança nas Artes, visto que são e que devem ter abordagens diferenciadas. A Dança na área de conhecimento Educação Física trata do movimento e da cultura numa dimensão e numa abordagem diferente da Dança nas Artes. Enquanto a Educação Física foca na cinesiologia, fisiologia, e técnicas específicas de se fazer dança, e até, por vezes, em concepções de coreografias em torno das danças populares ou modalidades específicas, as Artes agregam todos esses fatores ao campo artístico, entendendo que, para se fazer dança e entender o corpo que dança, é necessário fazer trabalhos artísticos, apreciá-los e refleti-los, o que é denominado de proposta triangular, exposta por Ana Mae Barbosa47 (2008), pioneira em Arte-Educação no Brasil. A Dança na Educação Física não é um problema, desde que esta segunda utilize alguns conhecimentos de Dança para sua aplicabilidade. O problema está em, nas aulas de Artes, utilizar a Dança como Educação Física, ou seja, tratá-la da mesma forma como a Educação Física a trata. 47Educadora de Arte no Brasil por muitos anos e possui vários livros sobre o assunto publicados, dentre eles “Inquietações e Mudanças no Ensino de Arte” (2008). Vozes da Educação 126 Por isso, alguns esclarecimentos acerca da Dança na Educação Física e nas Artes precisam ser realizados: “... elas (Artes e Educação Física) são áreas diferentes, cada uma com objetivos próprios e nas quais os indivíduos movem-se por razões diferentes”. (STRAZZACAPPA, 2006, p. 96) Dança e tecnicismo É muito comum se observar o trabalho de Dança na escola vinculado exclusivamente ao ensino tecnicista48 da Dança, com muita frequência o balé clássico. Em geral, quando a escola (geralmente as particulares) oferece a “escolinha de dança”, a mesma toma formato de academia dentro da escola, seja que modalidade for. Mesmo nas escolas públicas, adotam-se as aulas tecnicistas, que irão possibilitar àqueles corpos dançarem determinada modalidade e seu respectivo virtuosismo. Então começam a aparecer aqueles corpos que não se adaptam, que “não levam jeito para a dança”, que não são belos em cena, entre outras definições, que o próprio professor determina pelo meme muito forte que impõem esses modelos de dança (quando não a escola e/ou os pais), esquecendo, assim, o amplo conceito de Dança hoje já alcançado, tudo que essa atividade oferece e o porquê de sua importância como atividade artística dentro da escola. Esse caminho de ensino de dança na escola, ainda muito empregado, pode ser questionado com propriedade pela noção de refutação ao conceito de tábula rasa, conceito refutado também em outras áreas de conhecimento, que não só a dança. A tábula rasa parte do princípio que o ser humano nasce sem nenhum tipo de conhecimento, e tudo que ele apreende está na relação dele com o meio no qual está inserido. Pinker (2004) afirma que o cérebro processa as informações recebidas e não simplesmente as recebe, e, para processar (e aprender), é necessário que a nova informação entre em contato com o que a pessoa já 48Tecnicista, segundo dicionário Houaiss (2009), é aquilo que tende a abusar do uso da técnica para se expressar. Portanto, estetermo é aqui abordado como um conceito de Dança preestabelecido, o qual reforça modelos de movimento que precisam ser copiados. A técnica da qual se abusa diz respeito a um exclusivo trabalho de repetição mecânica de movimentos, fazendo com que “a técnica se torne a finalidade da prática, e não apenas um meio para o desenvolvimento das capacidades artísticas” (NEVES, 2010, p.15). O resultado dessa performance é o que se chama de virtuose (v. f. 41) Volume I 127 possui de informação e/ou conexões. Ao nascer ou ao longo da vida esse procedimento é o mesmo: as tábulas rasas não fazem nada, As inscrições ficarão ali eternamente à espera, a menos que alguém note padrões nelas, combine-os com padrões aprendidos em outras ocasiões, use as combinações para escrever novos pensamentos na página e leia os resultados para guiar os comportamentos na direção de objetivos (PINKER, 2004, p. 59). A técnica em Dança pode ser empregada sem que caia no tecnicismo, o qual muitas vezes é supervalorizado, sendo utilizado como adestramento de corpos, não dando atenção ao que o aluno dança. Depois de apresentados todos esses desentendimentos quanto à Dança na escola, deve-se observar que os professores, de qualquer área ou disciplina escolar, ao sugerirem uma atividade e/ou mediarem alguma compreensão, não devem esquecer-se do aluno, que é corpo e que apreende de forma integral, e não só “mentalmente”, como geralmente se define. Dessa forma, o convívio da Dança na escola pode aproximar essa visão que a escola precisa ter de corponectividade, permitindo a experiência de autonomia e autoconhecimento de quem a pratica. Portanto, todos esses desentendimentos sobre a Dança contribuem para a incompreensão da sua efetividade no âmbito escolar, bem como para a concepção do seu planejamento. PCNs e PC: uma análise comparativa dos conceitos propostos No conteúdo específico para a Dança na disciplina de Artes na PC analisada, tem-se como primeiro conteúdo: “A Dança na expressão e na comunicação, elementos básicos da linguagem na existência do corpo e do movimento”. O item é idêntico ao PCN na sua primeira frase: “A Dança na expressão e na comunicação”. Obviamente existe expressão e comunicação na Dança, como em qualquer atividade humana, mesmo que as recepções de uma dada expressão ou comunicação sejam infinitamente diversas. Porém, em relação à segunda parte, o enunciado não é eficiente em termos de sua compreensão da própria escrita, bem como do seu objetivo. O trecho: “elementos básicos da linguagem na existência do corpo e do movimento” não esclarece o que o documento designa como “elementos básicos”. Seriam a “expressão” e a “comunicação” “elementos básicos da linguagem”? A “existência do corpo e do movimento” possui Vozes da Educação 128 um caráter teleológico que deva se concretizar na “comunicação e na expressão”? É necessário estarmos atentos à complexidade de tais conceitos. Os termos escolhidos para uma abordagem específica nesta pesquisa foram eleitos por sua recorrência no documento municipal, os quais são: “Expressão”, “Comunicação”, “Linguagem” e “Dança Improvisada” (“criação” e “invenção”). Essa Análise de Expressão discorre pelo Dicionário de Língua Portuguesa (2008, 2009), dicionário de Filosofia (2003) além de estudos contemporâneos em Dança e no aporte teórico de referência. Os demais itens conceituais da Proposta Curricular são tais quais os dos PCNs. Vale ressaltar, porém, que o documento sequer menciona os seguintes conceitos abordados pelos PCNs: “autonomia”, “responsabilidade”, “autoconhecimento”, “desenvolvimento”, “apreciação estética”, “manifestação coletiva” e “relações interpessoais”. Dentre todos os conteúdos listados nos PCNs, os selecionados para ir para a PC só foram aqueles que, nas frases dos PCNs, trazem palavras como “dança”, “coreografia”, “improvisação” e “movimento”. Os conteúdos que falavam a respeito de “corpo”, “consciência corporal” e “trabalho em grupo” não foram considerados. “Expressão” e “Comunicação” O termo expressão e expressividade na Dança são utilizados no documento municipal. Esse termo, segundo o Dicionário Aurélio (2008)49 designa “1. Ato de exprimir(-se). 2. Enunciação de pensamento por gestos ou palavras escritas ou faladas; verbo. 3. Dito, frase. 4. Representação, manifestação.” (p. 390). Já o Dicionário Houaiss (2009) acrescenta: [...] 2. ênfase, entonação especial; [...] 4. fisionomia, semblante; a maneira como o rosto, a voz e/ou o gesto revelam um estado moral, emocional ou de espírito; 5. Vivacidade, animação, energia; 6. modelo, encarnação, personificação, manifestação; 7. manifestação significativa, forte [...]. (HOUAISS, 2009) Como se pode observar nos termos utilizados “por” (meio de), “maneira”, “revelam”, “enunciação”, “manifestação”, entre outros, o 49Importante ressaltar que a escolha bibliográfica do Dicionário Aurélio, entre outros (vide bibliografia), se dá em virtude de sua ampla utilização pelo público em geral,que em sua grande maioria tem uma visão dualista. Volume I 129 significado que comumente se adota para o termo “expressão” é o daquilo que está “dentro” e que precisa vir à tona (“para fora”), ou seja, algo que é mais subjetivo (“dentro”) torna-se mais objetivo (“para fora”). Tal compreensão reforça um pensamento dualista. Lakoff & Jonhson (2002) trazem uma importante reflexão sobre a inadequação dos mitos50 de subjetivismo e objetivismo. Para compreender os fatos e coisas no mundo, objetivismo e subjetivismo precisam caminhar lado a lado. Nenhum dos dois é mais importante que o outro e nem muito menos podem anular um ao outro. A “expressão” proposta nos Parâmetros e na PC pretende separar o objetivo do subjetivo, quando trata o corpo como intermédio de “por para fora” o sentimento. Assim “expressão” seria um conceito muito mais complexo, na medida em que abarca vários processos que ocorrem com o corpo, tomando como referência o pensamento não dualista. Seria conceber a Dança como um processo de fazer o que o corpo (nós, pessoas) é ou pensa. Vale frisar que a Dança é processo não apenas de sentir mas também de pensar. Não se trata de um corpo que pratica uma atividade chamada pensamento (pensar sobre algo). Há de se entender que quando a dança acontece num corpo, o tipo de ação que a faz acontecer é da mesma natureza do tipo de ação que faz o pensamento aparecer. O pensamento que se pensa e o pensamento que se organiza motoramente como dança se ressoam (KATZ, 2005, p. 39). Sobre o termo “comunicação”, é mister aguçar a atenção a como se dissemina o entendimento de corpo nesse processo: uma compreensão voltada para um emissor, uma mensagem a ser comunicada e um receptor, e que neste caso o corpo é tomado como veículo dessa comunicação. Para Katz & Greiner (2005) o corpo faz parte deste mundo que equivocadamente aprendemos que existe independente de nós, como se existisse por si só e nós simplesmente o observamos. As autoras sustentam que as informações recebidas não “entram” em nós, mas passam a nos constituir, e são sempre, consequentemente, um fluxo de informações das quais o corpo faz parte, não como recipiente, mas como “sempre- 50Mitos, segundo Lakoff & Johnson (2002), seriam “verdades” ou referências de determinadas verdades que organizam nossa vida. Os mitos dão sentido ao que nos rodeia; por isso frequentemente os consideramos como verdades. Vozes da Educação 130 presente” ou corpomídia. (KATZ & GREINER, 2005). Essas novas informações negociamsua presença no corpo com aquelas que já estão nele, onde ocorrerá uma adaptação desse novo ao que já se encontra. O que está fora adentra e as noções de dentro e fora deixam de designar espaços não conectados para identificar situações geográficas propícias ao intercâmbio de informação. As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que o leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças (KATZ & GREINER, 2001, p. 90). Sendo assim, o corpo é também a própria comunicação e, por isso, expressa a si mesmo. A informação não acontece e/ou se processa dentro do corpo. O corpo, ele próprio é informação. Essa noção é bem diferente do que comumente se entende por comunicação: pelo e através do corpo. E a informação e a comunicação nunca estão construídas fechadas, cerradas, ao contrário, elas estão em constante processo ininterrupto. “Linguagem” O termo linguagem está geralmente associado à comunicação, a um conjunto de símbolos, palavras, gestos, ou seja, que tenham algum signo para se transmitir uma informação. Na definição do Dicionário Aurélio (2008), linguagem designa 1. O uso da voz e outros sons que se articulam formando palavras (as quais podem se articular em frases maiores), para expressão e comunicação entre as pessoas. 2. A forma de expressão pela linguagem (1), ou pela sua representação escrita, e que é própria dum indivíduo, grupo, classe, etc (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2008, p. 518). Na definição do Dicionário Houaiss (2009), linguagem é 1. qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, etc. Exs: l. humana; funções da l. 2. qualquer sistema de símbolos ou sinais ou objetos instituídos como símbolo. Exs: l. da dança; a l. das cores... (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009). Na primeira definição (Dicionário Aurélio, 2008), a linguagem que se convenciona como tal é a linguagem das palavras (verbal ou escrita). Já na segunda definição (Dicionário Houaiss, 2009), agregam-se demais formas de linguagem que não somente a das palavras. A Dança e o movimento enquanto área de conhecimento específica são tratados como linguagem. Porém, como pode ser observado em ambas as definições, é Volume I 131 preciso cautela ao tratar a Dança como uma linguagem de gestos, na qual cada gesto possui seu signo específico. Este tipo de entendimento tem correlação direta com a noção ainda de algo que é interno precisa ser traduzido para o externo. Isso nos remete ao que nos expõe Rengel (2007), quando fala que a linguagem que geralmente se convenciona é a verbal. Quando falamos de qualquer linguagem, mesmo a verbal, não podemos esquecer que ela tem sua concepção indissociável e diretamente ligada às nossas estruturas sensóriomotoras. A “linguagem” tem a característica de ser intersubjetiva51, segundo o Dicionário de Filosofia (2003), podendo usá-la de forma intuitiva ou de maneiras limitadas e repetitíveis, que possibilitem a comunicação. Por isso a mesma se distingue da “língua”, que é uma unidade de signos convencionada no corpo social, enquanto na “linguagem” não se determina uma unidade, justamente pelo seu caráter intersubjetivo. Não se deve confundir convenções da “linguagem” com unidades que se traduzem ipsis litteris, pois as convenções são “frutos de um acordo, um contrato entre os homens”. (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, p. 615). Isso acontece naturalmente devido às características humanas comuns, como discutido por Sheets-Johnstone (In: O´DONAVAN-ANDERSON, 1996) quando conceitua “a percepção analógica” (p. 17). Esse conceito de “apercepção analógica” diz respeito àquilo que humanos e não humanos possuem de comportamentos semelhantes, os quais são percebidos pelos seus iguais por possuírem experiências corporais semelhantes. É possível entender que esse conceito se relaciona com a intersubjetividade de que trata a “linguagem”, no sentido que tratam da “comunicação” recíproca entre as pessoas devido às suas semelhanças de experiências. A linguagem da Dança, nesse sentido, constitui-se como procedimento cognitivo, e não como sendo um resultado do ato de pensar. Então a linguagem pode ser “não-verbal, verbal, proto, semi, 51“Comunicação das consciências individuais, umas com as outras, realizada com base na reciprocidade [...] constitui o sentido pleno da experiência humana” (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009). Vozes da Educação 132 meio-linguagem, com suas multilinguagens simbólicas...” (RENGEL, 2007, p. 113). A língua não é simplesmente um artefato cultural, mas um fenômeno que faz parte da biologia e adaptação dos animais, a fim de transmitir informação, segundo esta autora. Seu procedimento é dado pelas inferências, percepções e raciocínio, os quais estão diretamente vinculados ao movimento. “Dança Improvisada”: “invenção” e “criação” Inventar e criar são respectivamente definidos, segundo o Dicionário Aurélio (2008) como 1.Ser o primeiro a ter idéia de. 2. Criar na imaginação; imaginar ou descobrir através do pensamento...” (p.489) e como “1. Dar existência a. 2. Dar origem a; formar. 3. Imaginar. 4. Fundar. 5. Educar. 6. Promover a procriação e prover a subsistência de...” (p. 276). O Dicionário Houaiss (2009) define inventar como: 1.fazer existir; dar origem, a partir do nada; 2. formar, gerar, dar origem a; 3. imaginar, inventar; 4. elaborar (algo ger. de cunho científico, utilitário); 5. fundar, instituir, estabelecer; 6. adquirir (algo) que anteriormente não se possuía; 7. causar, originar; 8.sustentar, alimentar; 9. promover a educação de; educar, instruir (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009) Como anteriormente abordado, a questão do dentro e fora se faz presente também nesse entendimento. Além disso, a questão já tratada, de que o cérebro possui comando sobre o restante do corpo, dificulta compreender que os processos de inventar e criar dependam do corpo inteiro para acontecer. Outro aspecto importante para se observar na questão da “dança improvisada” é que a improvisação não é só um recurso da dança, como preparação corporal para execução de uma coreografia, mas também a própria dança. Essa é uma preocupação da pesquisadora Cleide Martins (1999)52, quando aponta que a improvisação é uma forma de dança que não é planejada anteriormente, mas que acontece no instante de sua execução. Explica que a dança improvisada é um sistema composto de dois subsistemas: movimento e “corpo+cultura” (MARTINS, p. 5), os quais vão sofrendo alterações no decorrer do fazer-dança, no sentido de movimentos que geram possibilidades de outros movimentos, podendo se considerar que vão acontecendo como um jogo, buscando uma 52Em sua dissertação “A improvisação em Dança: um processo sistêmico e evolutivo”. Volume I 133 organização. No processo de busca dessa organização é concebido o pensamento. O “novo” pode até aparecer no processo de improvisação; porém, são invenções “previsíveis”, no sentido que provém de probabilidades de organização do movimento/pensamento. A invenção acontece por um conjunto de situações e ocorrências que culminarão numa visibilidade do movimento (dança), e não como um processo que “inventa” um movimento na “cabeça” e se transcreve no “corpo”. Eles acontecem corponectivamente. Não faz mais sentido afirmar que “a improvisação garante a quebra de hábitos”, ou que “é onde se atinge estados de liberdade total”,ou ainda, que é “onde sempre se surge o novo”, sem se definir com mais rigor o que é um hábito, o que significa um estado de liberdade e como surge algo novo no corpo (MARTINS, 1999, p.20). “Invenção” e “criação” definidas nos Dicionários não se encaixam, portanto, neste conceito de dança improvisada. Os PCNs chamam atenção para que a Dança na Escola seja desenvolvida “com espírito de investigação” (p. 50), experimentação, espontaneidade, para experimentar a plasticidade e potencialidades “motoras e expressivas” do corpo e relacionamentos interpessoais. Já na PC, citando como um dos conteúdos de ensino (entenda-se que não se menciona na introdução da área de Artes e nem em outro momento sobre “dança improvisada”): “Realização de dança improvisada, inventando, registrando e repetindo sequências de movimentos criados” e “Seleção de gestos e movimentos observados em dança, recriando e/ou mantendo suas características individuais”. Dessa forma, os termos aqui apresentados e discutidos estão inseridos num contexto que permite tal compreensão. O discurso proferido por todos nós no dia a dia dá asas a concepções dualistas sobre esses conceitos. Os planejadores desses documentos, portanto, compartilham dessa visão dualista, que (se) reflete nos nossos documentos. Uma etapa conclusiva A Dança, mesmo tratada enquanto área de conhecimento no segmento do 1º ao 5º ano nos Parâmetros Curriculares Nacionais e na Proposta Curricular necessita, a partir de um entendimento mais Vozes da Educação 134 complexo da sua abordagem no processo educacional, de reflexão e reformulação do seu planejamento no currículo de Artes. A questão da Dança como um utensílio no aprendizado do aluno ou como um enfeite da Escola precisa ser modificada , nos termos nos quais se referencia esta pesquisa, colocando-a no contexto da educação escolar como área específica de conhecimento e como fundamental para esse processo. Observa-se um sistema praticamente inerte e hermético: quanto menos se fala, se vê ou se vive a Dança, menos se entende dela. Quanto menos se entende, menos se fala, se vê ou se vive. O processo pelo qual esta área de conhecimento passa para ter um espaço dentro do Sistema Educacional e das Instituições na cidade de Manaus é uma luta árdua para aqueles que se dedicam a sua consolidação. O que se pode perceber neste estudo é o entendimento de dança como ilustrativa, dualista, levando também a uma abordagem tecnicista quando inserida no currículo de Educação Física. Esses desentendimentos são muito fortes no Sistema Educacional de Manaus, visto, entre outros fatores, a ausência de especialistas da área para orientar as propostas de ensino. E a dança de que falam os PCNs ainda aparece de forma muito superficial e frágil nessa Proposta Curricular. Especialistas na área de Dança ingressaram na Secretaria, assim como nas salas de aula (devido ao curso superior em Dança da Universidade Estadual há 17 anos, mas que ainda não supriu a demanda de professores no mercado), trazendo a possibilidade de renovação para o trabalho desenvolvido nesse âmbito. Com isso, julga-se, ser possível promover um pensamento diferenciado sobre essa área no sistema municipal. Levando em conta todos esses estudos, a falta de professores especialistas na área, em geral, tanto para atuar em sala de aula como para fazer a Proposta Curricular, os distancia da compreensão dos conteúdos propostos pelos PCNs para a Dança, pois o professor sem conhecimento específico na área entende dança de uma forma diferenciada do que propõe os Parâmetros, o que pode tornar estes últimos sem sentido e desestimulantes. Reconhece-se o grande passo que os PCNs vieram dar na Educação brasileira, principalmente no que diz respeito à área de Dança, pois reuniram conhecimentos nesse campo que, de certa forma, dão suporte até hoje para muitos professores especialistas, também aos que não o são e que têm que cumprir carga horária, ou que estão em sala Volume I 135 de aula ensinando Dança por outro motivo logístico qualquer. Com a nova BNCC propõe-se um entreleçamento de conceitos, porém sem um olhar corponectivo, emergente e não dualista dos mesmos, pelo professor, sua efetivação fica prejudicada. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Bomtempo, 2007. ANDERSON, Michael O’Donovan (Ed.). The Incorporated self – interdisciplinary perspective on embodiment. New York, London: Roimand Littefield, 1996. BARBOSA, Ana Mae (org). Inquietações e Mudanças no ensino de Arte. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2008. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Decretado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República vigente. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5.971, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. 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Palavras-chave: Alfabetização. Interações. Aprendizagem. Formação ABSTRACT The literacy cycle is the period in which the child starts understanding as the Systematization of Alphabetic Writing (SAW) happens, but the child does not learn alone, it learns through interactions, relationships that are built; highliningthat the teacher is the person who will mediate this case. In this sense, it is necessary that the teacher has the theoretical basis that will provide you with the reflection about what the child learns and how he can mediate this learning. The continuous formation of PNAIC brings a discussion about the guidelines contained on the role of the teacher in the learning rights. Keywords: Literacy. Interactions. Learning. Training 53Professora de educação infantil, mestranda em ciências da educação, pós-graduada em gestão, supervisão e orientação educacional; pós-graduada em práticas interdisciplinares: com ênfase em educação infantil e ensino fundamental; coordenadora municipal do PNAIC e diretora pedagógica municipal (2013 à 2015). Volume I 139 Introdução Para iniciar a conversa sobre o papel do professor alfabetizador na garantia dos direitos de aprendizagens das crianças é preciso primeiro compreender as mudanças que ocorrem acerca do processo de alfabetização nas últimas décadas. O documento do MEC “Ensino Fundamental de Nove Anos: Orientações para a inclusão da criança de seis anos” traz um síntese legal desses acontecimentos, desde - a Lei nº 4024/61 até as legislações mais recentes que tratam da ampliação do Ensino Fundamental - de Nove Anos e a Inclusão das Crianças de Seis Anos no Ensino Fundamental. Estes fatos são expostos abaixo de forma cronológica: • Lei nº 4024, de 1961, estabeleceu quatro anos de escolaridade obrigatória; • Acordo de Ponta Del Este e Santiago, 1970, estendeu-se para seis anos o tempo de ensino obrigatório; • Lei nº 5692, de 1971, determinou a extensão da obrigatoriedade para os oito anos; • Lei nº 9394, de 1996, sinalizou para um ensino obrigatório de nove anos de duração, ao iniciar-se aos seis anos de idade; • Lei nº 10172, de 2001, que aprovou o PNE (Plano Nacional de Educação), que trouxe como uma das metas a ampliação do ensino fundamental para nove anos e a inclusão das crianças de seis anos no ensino fundamental; • Lei 11.114 de 16 de maio de 2005 que trata da redução de 7 para 6 anos a idade mínima para o ingresso no primeiro ano. • Lei 11.274 de 06 de fevereiro de 2006 que instituiu a ampliação do Ensino Fundamental de 8 para 9 anos de duração; A lei 11.114/2005 e a lei 11.274/2006 tiveram por objetivo aumentar o tempo de permanência das crianças na escola promovendo assim “a inclusão de um número maior de crianças no sistema educacional Vozes da Educação 140 brasileiro, especialmente aqueles pertencentes aos setores populares” (BRASILIA, 2007- p.5). Durante esse processo de ampliação e de inclusão da criança de seis anos no ensino fundamental muitos debates e discussões ocorreram, acerca do que ensinar, como ensinar, quando ensinar. Pois “não se trata de transferir para as crianças de seis anos os conteúdos e atividades da tradicional primeira série, mas de conceber uma nova estrutura de organização dos conteúdos em um ensino fundamental de nove anos, considerando o perfil de seus alunos” (BRASILIA, 2004, p.11). Essa discussão refletiu a necessidade de uma mudança de postura de todos os atores inseridos no processo. Era preciso repensar o currículo, reorganiza-lo em todas as suas abrangências e concepções, já que a inserção desta criança no processo de alfabetização não poderia desconsiderá-la nas especificidades de sua faixa etária. Nesta fase o processo de construção da escrita e da leitura deve estar diretamente ligado ao mundo da ludicidade e do faz de conta. Para legitimação efetiva deste processo foi preciso rediscutir o papel do professor, pois de nada adiantaria repensar currículo, se o mediador deste processo não repensasse sua postura, assim surgiram algumas formações direcionadas aos professores. Em 2001 o Ministério da Educação e Cultura lançou um programa de formação de professores que passou a ser conhecido como PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) que tinha por objetivo “desenvolver as competências necessárias a todo professor que ensina a ler e a escrever” (BRASILIA, 2001- p.3). O programa era destinado a professores da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Alfabetização de Jovens e Adultos que estivessem diretamente ligados ao ensino da leitura e da escrita. O programa durou apenas dois anos. Em 2007 uma nova proposta de formação continuada destinada aos professores do Ensino Fundamental foi lançada pelo MEC, o Pró- Letramento, era na modalidade semipresencial e “visava a melhoria da qualidade da leitura/ escrita e matemática nos anos/séries do ensino fundamental” (BRASILIA, 2007, p. 2). A formação era realizada por módulo: (1) Alfabetização/linguagem; (2): matemática. Volume I 141 Em 2012 o Governo Federal por meio da portaria nº 867 de 4 de julho, instituiu o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) com intuito de assegurar que todas as crianças estejamalfabetizadas até os 8 anos de idade. Por meio de formação continuada os professores alfabetizadores tem acesso a uma série de materiais e propostas que lhes dão subsídios para garantir a criança os direitos de aprendizagens de cada ano do ciclo de alfabetização. Os Direitos de Aprendizagens em todas as etapas do ensino básico estão diretamente ligados aos objetivos de aprendizagem e garantidos no art. 32 da LDB que determina a formação do cidadão mediante: I- o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II- a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que fundamenta a sociedade; III- o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV- o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. (Brasília, 2004, p.15) No entanto estar mais tempo na escola ou entrar mais cedo no Ensino Fundamental não garante a eficácia da garantia destes direitos, é preciso que o professor reveja sua prática pedagógica, respeitando a especificidades de cada criança, seu direito de aprender e ampliar suas possibilidades. O PNAIC por meio da formação dos professores busca contemplar momentos em que o alfabetizador terá oportunidade de refletir sobre sua prática, mobilizando e socializando seus saberes, de forma engajada e comprometida com a aprendizagem da criança na qual resultará na constituição de sua identidade profissional. Alfabetizar e letrar Desde seu nascimento a criança esta cercada pelo mundo letrado, já que a sociedade na qual está inserida tem a escrita como prática de seu cotidiano, pois são placas, anúncios, livros, embalagens de produtos entre tantos outros e a criança está em contato com todo esse aparato letrado. Quantas vezes nos deparamos com a seguinte cena: “Uma criança, com cerca de dois anos de idade, em um mercado aponta para um Vozes da Educação 142 determinado produto e o nomeia pela marca”. Esta criança ainda não domina o sistema de escrita alfabético, no entanto faz relações entre os códigos (letras e imagens) e o nome do produto. É por meio dessas primeiras relações que a criança inicia as hipóteses sobre o uso social da escrita. De acordo com Albuquerque, Leal e Morais (2007): As crianças e os adolescentes observam palavras escritas em diferentes suportes como placas, outdoors, rótulos de embalagens; escutam histórias lidas por outras pessoas, etc. Nessas experiências culturais com práticas de leitura e escrita, muitas vezes mediadas pela oralidade, meninos e meninas vão se constituindo como sujeitos letrados. (Albuquerque, Leal e Morais, 2007, p.70). O grande desafio da escola e dos professores alfabetizadores é possibilitar meios para que a criança compreenda como se constitui e sistematiza a construção da escrita alfabética sem deixar de lado os conhecimentos sociais construídos nas relações dentro e fora do ambiente escolar. Diante desse desafio, tornam-se necessário uma reflexão sobre alfabetizar e letrar, dois conceitos que circundam este processo primordial na vida escolar da criança, o processo de construção da escrita. Conceitos distintos e indissociáveis como afirma Magda Soares (2003): Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos e sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito de letramento como também este depende daquele. (SOARES, 2003. p. 90) Ao afirmar que os dois conceitos são indissociáveis e distintos a autora propõe que deve ser possibilitado à criança no ciclo de alfabetização, momentos que privilegie atividades voltadas para compreensão de correspondência entre letras e sons, grafia das letras, atividades de sistematização ao mesmo tempo em que é oportunizado momentos em que as palavras e textos são levados para o cotidiano da criança. Podemos citar como exemplos os bilhetes, convites, receitas entre outros. Volume I 143 No entanto a aprendizagem das crianças no ciclo de alfabetização não pode estar restrita somente aos conceitos da aquisição da linguagem oral (leitura) e escrita, é preciso também refletir sobre as outras áreas do conhecimento previstas nas Diretrizes Curriculares Nacionais. Nesta concepção cabe aqui ampliarmos o conceito de alfabetização, para as outras áreas do ensino. Um exemplo desta ampliação é a alfabetização matemática, onde a criança por meio de hipóteses faz reflexões sobre como se constituem as relações números-quantidades, ordenação, seriação, classificação. Por meio de atividades diversificadas e contextualizadas o professor possibilita a criança a ampliação e a construção de novos conceitos, aplicando-os na sua vida social. Trabalhar atividades que envolvam todas as áreas do conhecimento é bem mais amplo e complexo, pois pede por parte do professor o planejamento de atividades significativas e desafiadoras que amplie as relações sociais e culturais que fazem parte do contexto da criança. Neste sentido Ângela Kleiman (2005) afirma: O letramento é complexo, envolve muito mais do que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) ou uma competência do sujeito que lê. Envolve múltiplas capacidades e conhecimento para mobilizar essas capacidades (...) (KLEIMAN, 2005. p. 18). Portanto, o letramento possibilita a criança do ciclo de alfabetização além de se apropriar das habilidades necessárias para compreensão do Sistema de Escrita Alfabética, desenvolver habilidades sobre as outras áreas do conhecimento, de forma articulada e contextualizada. Onde a criança por meio da linguagem escrita se comunica com o mundo, expressando seus desejos e necessidades. Assim alfabetização é definida como processo pelo qual a criança compreende a sistematização das diversas linguagens: matemática, escrita e artística. Já o letramento é o uso social que criança faz deste conhecimento, aplicando-os no contexto sociocultural. O direito de aprender Dados do IBGE aponta que no ano de 2012 cerca de 8,7 % dos adolescentes brasileiros de 15 anos ou mais não estavam alfabetizados. Dentro deste grupo a maioria eram crianças e adolescentes de classes Vozes da Educação 144 sociais desprivilegiadas social e economicamente, que tinham acesso a escola mais tarde e ali permanecia por menos tempo. Assim com o objetivo ampliar o tempo de permanência na escola, principalmente o das crianças de classes sociais mais baixas o Governo Federal sancionou a Lei 11.114 de 2005 (que reduz de 7 para 6 nos o ingresso das crianças no 1º ano) e a lei 11.274 de 2006 (que amplia de 8 paraanos o ensino fundamental). No entanto, estar mais tempo na escola não garante que a criança irá de fato se apropriar dos conhecimentos necessários a sua alfabetização, tornando-se necessário repensar todo o processo: currículo, espaço escolar, formação de professores, metodologias e avaliação. Neste sentido é preciso oportunizar práticas que favoreça a construção da aprendizagem ao mesmo tempo em que, as especificidades destas crianças sejam respeitadas, cada qual tem seu tempo, sua maneira de aprender,traz as influências do contexto que está inserida. Segundo Avanzini e Gomes (2005, p.9) “as crianças tem suas necessidades, têm seus processos físicos, cognitivos, emocionais e características individuais”. Buscando respeitar a individualidade de cada criança e a garantia de seu direito de aprender, os três primeiros anos de escolarização no Ensino Fundamental foram constituídos como um único ciclo “Ciclo de Alfabetização”. Compreendendo que a criança terá até o terceiro ano para estar alfabetizado. Neste contexto estar alfabetizado significa: Aos oito anos de idade, as crianças precisam ter a compreensão do funcionamento do sistema de escrita; o domínio das correspondências grafofônicas, mesmo que dominem poucas convenções ortográficas irregulares e poucas regularidades que exijam conhecimentos morfológicos mais complexos; a fluência de leitura e o domínio de estratégias de compreensão e de produção de textos escritos. (BRASÍLIA, 2015) Mas para alcançar este objetivo é preciso que durante todo o período de alfabetização as crianças sejam desafiadas a avançarem, a superarem suas dificuldades e a apropriarem-se de novos conhecimentos. No PNAIC em seus documentos apresentam os direitos de aprendizagem para cada ano do ciclo da alfabetização, deixando claro aos alfabetizadores que ao encerrar cada ano letivo a criança tem o direito de ter certas habilidades desenvolvidas. Volume I 145 Ao término do primeiro ano do ciclo da alfabetização esperamos que a maioria dos alunos tenham construído uma hipótese alfabética de escrita, compreendendo que letras ou grupos de letras representam (notam) unidades sonoras mínimas (os fonemas) (BRASÍLIA, 2012, p.07). Se, muitas dessas crianças não têm em seu contexto social, em sua relação familiar possibilidades diversificadas de contato com as diversas manifestações culturais, históricas e sociais cabe a escola criar esta possibilidades, garantindo a todos, sem discriminar, o direito de aprender. Direito esse que perpassa por todas as áreas do conhecimento. De acordo com o quadro dos Direitos Gerais de Aprendizagens em Arte “desde o primeiro ano devem ser apresentados a criança atividades onde ela possa conhecer, apreciar, vivenciar e respeitar as diversas formas de manifestações artísticas que circulam nos mais variados contextos históricos e culturais da humanidade” (BRASILIA, 2012, p.29). Garantir a criança do ciclo de alfabetização o contato as manifestações artística possibilitará e ela o aprimoramento de conceitos estéticos, valorização da herança cultural e a sua sensibilidade visual e auditiva. Nesse sentido é preciso compreender que no ciclo de alfabetização além de garantir a apropriação da escrita e da leitura, a criança tem o direito de ter todos os conceitos previstos para este ciclo, referentes às áreas de linguagens, matemática, ciências humanas e ciências da natureza, garantidos. Estes devem ser trabalhados de forma interdisciplinar e contextualizada o que possibilitará à criança a compreensão da relevância social dos conteúdos abordados. Segundo Corsino (2007) nos chama a atenção para a “importância de se estabelecer diálogo entre as diversas áreas de conhecimento como forma de não só garantir a ampliação da escolaridade, mas, principalmente, ofertar o acesso aos conhecimentos que fazem parte de uma construção sócio-histórica.” (BRASILIA, 2015, p.24). Garantir direito de aprender as crianças do ciclo de alfabetização é possibilitar atividades que promovam a ampliação dos conceitos, respeitando as diferenças individuais, valorizando suas experiências sociais, de forma a articular as áreas do conhecimento que resultaram numa aprendizagem significativa. Vozes da Educação 146 O papel do professor O professor é o principal ator no processo de garantia dos direitos de aprendizagens de qualquer nível do ensino. No ciclo de alfabetização sua responsabilidade é de garantir à criança a compreensão do SEA e o uso dos conhecimentos e saberes das diversas áreas de ensino, no contexto social na qual esta inserida. Tarefa esta nada fácil, pois como ensinar e garantir a aprendizagem de todas as crianças, se cada criança é única, com especificidades cognitivas, sociais e históricas diferentes? A reposta a este questionamento passa por dois fatores: a formação do professor e a sua prática docente. Ao falar de formação de professor não me refiro somente a formação inicial, mas também e principalmente a sua formação continuada, pois o professor só terá propriedade no que ensina se tiver conhecimento teórico sobre como se constitui a aprendizagem. Segundo Paulo Freire (2014): Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 2014, p.31). Desta forma o professor precisa buscar conhecimentos teóricos, novos conceitos que são constituídos nos meios acadêmicos e a partir daí articula-los com sua prática docente. A prática docente é o segundo fator que constitui a garantia dos direitos de aprendizagens da criança. O professor alfabetizador precisa refletir o tempo todo sobre suas ações acerca de sua prática e de como esta garante a efetivação da aprendizagem da criança. As ações do PNAIC centralizaram-se em quatro eixos: Formação continuada presencial para os professores alfabetizadores e seus orientadores de estudo; Materiais didáticos, obras literárias, obras de apoio pedagógico, jogos e tecnologias educacionais; Avaliações sistemáticas; Gestão, mobilização e controle social. Volume I 147 O PNAIC traz como proposta a articulação entre formação continuada e reflexão da prática docente. Na formação dos professores alfabetizadores uma ação de leitura de materiais, discussões em grupos, troca de experiências e reflexão sobre a prática, a fim de garantir mudanças de postura dos envolvidos no programa e garantindo assim os direitos de aprendizagens. “As práticas de alfabetização são constituídas de um conjunto de ações que envolvem procedimentos rotineiros e inovadores: o ’saber fazer‘ dos professores” (BRASILIA, 2012, p. 20). Este movimento de reflexão da prática, pautada em conhecimentos teóricos faz com que o professor olhe para a criança como agente no processo educativo e não como objeto deste processo. Nesta concepção as ações do professor serão direcionadas a olhar a criança, a ouvi-la para poder mediar sua aprendizagem. E as atribuições do trabalho docente como o ato de planejar, ensinar e avaliar tomam novas significações “um dos elementos centrais para o sucesso escolar e em especial no ciclo de alfabetização é as atribuições assumidas e conferidas aos professores” (BRASILIA, 2014, p.7). Ao ter a criança como agente do processo o professor terá que conhecer seu aluno, saber o que cada criança sabe para poder mediar e ampliar seu conhecimento. Assim a concepção de avaliação encontrada em tantas salas de aulas, tais como a avaliação como objeto de medição e classificação das crianças se transforma e o professor passa a ver a avaliação como ferramenta de análise do processo, com finalidades diversas. Como apontam Leal, Morais e Albuquerque (2007): Conhecer e potencializar as suas identidades; Identificar os conhecimentos prévios dos estudantes, nas diferentes áreas do conhecimento e trabalhar a partir deles. Identificar os avanços e encorajá-los a continuar construindo conhecimentos e desenvolvendo capacidades; Conhecer as dificuldades e planejar atividadesque os ajudem a superá-las; Saber se as estratégias de ensino estão sendo eficientes e modificá-las quando necessário.(, Leal, Morais e Albuquerque, 2007, p.70). A avaliação diagnóstica é então uma importante ferramenta que auxilia o professor a planejar e replanejar suas ações. Um planejamento voltado às especificidades de cada turma, pensando estratégias diversificadas e com clareza nos objetivos que se Vozes da Educação 148 pretende alcançar é primordial ao trabalho docente para atingir uma aprendizagem efetiva e contextualizada. De nada adianta o professor pensar em estratégias diversificas, se estas não fizerem sentido para a criança. Segundo Lerner (2002), o objeto de ensino, ao ser apresentado, deve ser fiel ao saber ou a prática social que se pretende comunicar. Ao planejar sua aula o professor precisa levar em consideração a criança em sua integridade, as especificidades de cada uma, seus conhecimentos prévios, suas características sociais e individuais, seu desenvolvimento cognitivo e emocional. Assim a prática do professor deve contemplar atividades desafiadoras que propicie a criança interações e de descobertas significativas. A criança é curiosa por natureza e as atividades devem explorar esta curiosidade, levando-a por meio de hipóteses e reflexões construir novos conceitos tanto no âmbito da escrita e da leitura como das outras áreas do conhecimento, para isso o professor precisa estar atento para que este conhecimento tenham sentido para a criança, para que ela compreenda a importância social desta aprendizagem. Considerações finais A criança desde muito cedo está cercada pelo ambiente letrado, no entanto estar em contato com vários elementos textuais não garante que ela se apropriará do Sistema da Escrita Alfabética (SEA), compete ao professor buscar meios para que ela compreenda este processo e a importância do uso da escrita no meio social. É o professor que deverá desenvolver estratégias diversificadas a fim de garantir a cada criança o seu direitos de aprendizagens. Cada criança é única e aprende em tempos e espaços diferentes, assim o professor precisa proporcionar atividades diversificadas, que ao mesmo tempo respeite a individualidade de cada criança, proporcionando o seu desenvolvimento e garantindo que aos oito anos de idade todas as crianças estejam alfabetizadas e compreendendo o uso social desses conhecimentos. Os encontros de formação do PNAIC busca a todo o momento proporcionar aos professores, subsídios teóricos e práticos para que reflitam sobre sua prática docente, desafiando o professor a uma mudança Volume I 149 de postura diante da maneira como a criança aprende e sistematiza o conhecimento. Referências Bibliográficas BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa:formação do professor alfabetizador: caderno de apresentação /Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2012. Brasil. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: a heterogeneidade em sala de aula e os direitos de aprendizagem no ciclo de alfabetização: ano 02, unidade 07/ Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2012. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: reflexões sobre a prática do professor no ciclo de alfabetização: progressão e continuidade das aprendizagens para a construção dos conhecimentos por todas as crianças: ano 02, unidade 08/ Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2012. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. 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Ensino fundamental de nove anos- orientações gerais- Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/9anosgeral.pdf.>Acesso em: 02 nov. 2015. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Pró letramento- guia geral- Disponível em:<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Proletr/guiageral.pdf.> Acesso em 02 nov. 2015. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa de formação de professores alfabetizadores- documento de apresentação- Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/apres.pdf.> Acesso em: 02 nov. 2015. MORAIS, Artur Gomes de; ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia; LEAL, Telma Ferraz. Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica. 2 ed. Brasília, 2007. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. A criança no ciclo de alfabetização. Caderno 02 / Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2015. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Currículo na perspectiva da inclusão e da diversidade: as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e o ciclo de alfabetização. Caderno 01 / Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2015. SOARES, Magda. As muitas facetas da alfabetização. In: Alfabetização e letramento. São Paulo: Contextos, 2003. Volume I 151 CURRÍCULO OCULTO: UMA ABORDAGEM DISCIPLINAR DO ENSINO FUNDAMENTAL II Ana Paula do Nascimento Rodrigues54 RESUMO Este artigo pretendeu uma análise do que há de “oculto” nos conteúdos das disciplinas do Ensino Fundamental II, uma vez que, grosso modo, o currículo oculto que é elencado na escola trata de questões alheias aos conteúdos programáticos. Por meio de revisão bibliográfica, apresenta-se um panorama histórico da educação brasileira, perpassando por questões culturais inerentes ao convívio escolar, ressaltando a importância do ensino de língua portuguesa e do engajamento de outras disciplinas nessa tarefa. Nesse contexto, o currículo oculto assume protagonismo dentro e fora de sala de aula. Palavras-chave: Currículo oculto. Ensino Fundamental. Língua Portuguesa. ABSTRACT This article intends an analysis of what is hidden in the contents of the subjects of Elementary School II, since, roughly speaking, the occult curriculum that is listed in the school deals with issues unrelated to the programmatic contents. Through a bibliographical review, a historical panorama of Brazilian education is presented, crossingthe cultural issues inherent in the school community, emphasizing the importance of teaching Portuguese and engaging other disciplines in this task. In this context, the hidden curriculum takes the lead in and out of the classroom. Keywords: Hidden curriculum. Elementary School. Portuguese language. 54Graduada em Letras pela UEMG (2001), especialista em Português pela FIJ/RJ (2003) e em Pedagogia pelo CUBM (2016). É mestra em Letras pela UFRJ (2018). Atua nas redes públicas, em Cabo Frio/RJ. Pesquisadora nas áreas de educação, ensino de língua portuguesa e leitura. Vozes da Educação 152 Introdução Em uma sociedade de relações complexas e em acelerada transformação, é imprescindível que a escola exerça seu papel na formação plena do cidadão que entenda e se insira nessa sociedade. Para tanto, valores e princípios são trabalhados com os alunos através do que se chama currículo oculto, para que, fora da escola, eles sejam capazes de colocar esses valores e princípios em prática, criticamente. No entanto, cabe-se discutir, de maneira mais acurada, até que ponto esse currículo oculto tem um caráter disciplinador/moralizador, assim como se pode/deve ser abordado em conteúdos cotidianos, para que se tenha uma visão irrestrita do cenário escolar, completando-se o ciclo de interação entre equipe técnico-pedagógica, alunos, professores e comunidade escolar como um todo. Nessa visão, o currículo oculto é um tema cada vez mais debatido entre os estudiosos da educação, diante de uma realidade em que os fatores externos à escola não podem mais ser ignorados, uma vez que, Em sua natureza oculta, o currículo aponta para o fato de que, tal aprendizagem casual, pode contribuir mais para a socialização, na formação de valores e atitudes do estudante, que o currículo oficial da escola (COSTA, 2009, p. 12-13). Contudo, o foco desse debate tem sido, via de regra, valores e questões comportamentais e a forma como ambos influenciam na vida escolar de cada aluno e no ambiente escolar como um todo. Este artigo pretende extrapolar tais questões, dando enfoque ao fato de que cada disciplina traz em si um caráter social muito maior do que o conhecimento propriamente dito, agregando, elas mesmas, valores e concepções que devem ser levados em consideração no trabalho diário com os alunos, tanto quanto no planejamento e na escolha dos conteúdos. Como destaca Paulo Freire, “se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando” (FREIRE, 1996, p. 33). Assim, este artigo pretende demonstrar, através de revisão bibliográfica, que o currículo oculto não pode ser apenas entendido como uma ferramenta extracurricular, mas também e especialmente como parte essencial dos conteúdos de cada disciplina, com destaque para a disciplina de Língua Portuguesa, pois com ela também atuam todas as demais, sendo fundamental para o desenvolvimento crítico e empoderador dos alunos. Volume I 153 Nessa perspectiva, é importante olhar para teóricos balizadores da pedagogia contemporânea no Brasil, como José Carlos Libâneo e Demerval Saviani, que veem na escola um espaço de crítica e transformação social, menos conteudista, além do olhar ainda mais filosófico e sociológico para as bases da educação do séc. XXI, que se transformou ao longo da história, através de pensadores como Durkheim, Marx, Nietzsche e Bourdieu. Outra corrente que vem sendo discutida é a proposição da aprendizagem por “habilidades e competências”, em que a evidenciação da indissociabilidade entre conteúdos e questões extracurriculares se dá na própria essência, pois, como cita Perrenoud, “[Toda] competência está, fundamentalmente, ligada a uma prática social de certa complexidade.” (PERRENOUD, 1999, p. 35). Outra fonte que não pode ser negligenciada são os Parâmetros Curriculares Nacionais que dão destaque aos chamados “conteúdos transversais”, incentivando uma escola voltada para o social, em que as disciplinas escolares não apenas trabalhem conceitos inerentes a elas, mas trabalhem também temas relevantes para a sociedade em que está inserida a escola, os alunos e todos os agentes do processo de aprendizagem/escolarização. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96, também privilegia os conteúdos transversais em diversos pontos, como em seu Artigo 32, inciso III, que versa sobre um dos objetivos da formação básica do cidadão ser “o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores.” (CARNEIRO, 2011, p.233). Seguindo a prerrogativa da análise dos teóricos acima citados, permeados por outras publicações de relevância, este artigo faz uma revisão bibliográfica, “com o embasamento de livros e autores que abordam o tema pesquisado” (KLEINA; RODRIGUES, 2014, p. 39), apresentando, além da revisão bibliográfica de livros e artigos científicos sobre o tema, análises na perspectiva de integração entre o que é ensinado nas escolas e que atravessa os seus muros. O currículo e a funcão social da escola A palavra currículo, muito usada nas escolas e no mundo acadêmico, traz em si uma diversidade de conceitos que abrange desde a Vozes da Educação 154 gama de objetos de estudo de um curso até o objeto de estudo em si. Se formos ao dicionário, por exemplo, teremos, segundo Bechara, currículo apenas como “o conjunto de disciplinas de um curso” (BECHARA, 2011, p. 473), tendo origem no latim curriculum, sendo disciplina o “conjunto de conhecimento científico, artístico, etc., que é ministrado em cada cadeira de uma instituição escolar” (BECHARA, 2011, p. 529), também do latim, disciplina. Ou seja, vernacularmente, podemos entender que currículo é um termo mais restrito, que abarca apenas as especificidades (disciplinas) de uma área determinada. Nessa mesma linha, tem-se a definição encontrada em Piletti, em que “tradicionalmente currículo significou uma relação de matérias ou disciplinas, com um corpo de conhecimentos organizados sequencialmente em termos lógicos” (1993, p. 51), visão esta que foi revista, segundo o autor, por imposições no “modo de ver e de pensar do próprio homem” (1993, p. 51). Com as transformações na concepção do termo currículo ao longo dos anos, ele passou a ser entendido como algo que “consiste em experiências, por meio das quais as crianças alcançam a auto-realização e, ao mesmo tempo, aprendem a contribuir para a construção de melhores comunidades e de um melhor futuro.” (RAGAN, 1973, apud PILETTI, 1993, p. 51). Nessa visão mais abrangente de currículo, em que são levados em consideração não apenas os conteúdos a serem trabalhados em cada disciplina, mas também aspectos socioculturais e as experiências que a escola oferece para os estudantes, a palavra passou a ser usada com mais frequência e a ser nomenclatura presente desde assuntos que versam sobre as políticas públicas federais (como os Parâmetros Curriculares Nacionais), como sobre as orientações governamentais em esferas menores (como o Currículo Básico, no Estado do Rio de Janeiro), além de estar no discurso cotidiano dos professores. Deixar de entender currículo como apenas uma listagem de conteúdos a ser seguida na escola faz parte do que hoje se chama de empoderamento (do inglês empowerment), palavra pela qual “entende-se o acréscimo da força espiritual, política e social do indivíduo, grupo ou comunidade” (ROBLE, 2012, p. 80), entendimento que urge em uma sociedade de tamanhas desigualdadessociais como a brasileira. Segundo o professor da Universidade de Brasília, Marcelo Medeiros, ao analisar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) Volume I 155 brasileiro, em relatório de 2014, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que calcula um IDH ajustado pela desigualdade, em entrevista ao jornal O Globo, “embora a desigualdade tenha caído desde o fim dos anos 90 e particularmente nos anos 2000, o Brasil ainda é um país extremamente desigual. Uma população bastante rica convive com uma população bem pobre. Aqui, a parcela dos 1% mais ricos tem mais renda que toda a metade da população mais pobre junta” (O Globo, 2014). Para a economista Sônia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade (IETS), em publicação do site da BBC Brasil, em setembro de 2014, a manutenção dessa desigualdade, especialmente com referência à estagnação do processo de redução dela, está diretamente ligado ao sistema educacional brasileiro, na medida em que “a desigualdade educacional – antes mais relacionada aos anos de estudo, mas que agora está cada vez mais à qualidade da educação – está na raiz da desigualdade de renda" (BBC, 2014). Os índices de analfabetismo no Brasil são um indicador dessa realidade, visto que, ao se analisar os dados do IBGE, sinalizados abaixo, é possível perceber a relação direta entre tais índices e condições econômicas da população. Como se vê na tabela, as regiões Norte e Nordeste apresentam os maiores índices de analfabetismo. Apesar da garantia constitucional de uma educação de qualidade para todos, essa oferta ainda carece de Vozes da Educação 156 condições mínimas para que se realize plenamente, uma vez que se pode conjecturar que não basta uma escola de qualidade, supondo que se tenha uma, se a criança/cidadão não tiver condições de frequentá-la. Nesse contexto, assumir o currículo como um fator que ultrapassa os limites das questões puramente conteudistas da escola faz parte de uma visão de educação mais ligada ao fator humano dela, sem as demagogias de uma pedagogia missionária, que tergiversa sobre as questões de relevância social sem de fato colocá-las no centro das discussões e pesquisas acadêmicas, dentro e fora das escolas, muitas vezes privilegiando teorias em detrimento da práxis pedagógica. Para além do viés ideológico que pode ser imputado a situções análogas, é importante salientar que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina, em seu Artigo 3º, parágrafos X e XI, a “valorização da experiência extra-escolar” e a “vinculação entre a educação escolar e as práticas sociais.” Colocar o currículo oculto em prática é fazer cumprir a lei, com comprometimento humano, mais do que comprometimento com “a simples letra fria da lei.” Da catequese à laicidade A educação formal no Brasil teve início logo após a colonização portuguesa, com os jesuítas, que utilizavam a escolarização como forma de catequizar e “civilizar” os nativos. Desde então, seguiram-se séculos de uma educação que não tinha por finalidade o acesso universal ao conhecimento historicamente produzido. Como o Brasil Colônia era fonte de riquezas para o colonizador, logo, o grande foco era na capacidade laboral e não intelectual dos nativos e dos escravos futuramente para cá trazidos. Assim, a educação ficou restrita à pequena classe domintante que aqui residia. Como afirma Silva, Datam do século XVI, os registros históricos de quando, e em que circunstância, aparece, pela primeira vez, a palavra curriculum aplicada aos meios educacionais. Tais registros evidenciam que currículo esteve ligado à ideia de "ordem como estrutura" e “ordem como sequência", em função de determinada eficiência social (2016, p. 4820). É nessa visão de “eficiência social” que se deve ater para a compreensão do quanto é relevante levar em consideração os fatores externos à sala de aula trazidos para dentro dela, tanto na escolha dos Volume I 157 conteúdos trabalhados, quanto na postura que se tem e que se exige dos educandos. No Brasil, fica claro que a educação formal teve, logo de início, forte cunho religioso e elitista. Com o passar dos séculos, as transformações ocorridas na sociedade e a demanda por uma educação que atendesse também a classe trabalhadora não trouxeram consigo uma mudança de paradigma significativa nessa visão. Ainda hoje, cinco séculos depois, temos nas escolas confessionais maior prestígio social e mensalidades mais caras, o que significa, por obviedade, um público de maior poder aquisitivo. A escolha do currículo, nessa linha, segue privilegiando, a despeito de esforços de alguns teóricos e iniciativas do Ministério da Educação, o que é considerado “certo” e “relevante” não para a grande maioria de pobres que ocupam os bancos escolares, mas para os que detêm prestígio social. Ainda seguindo o exposto por Silva, vemos que o currículo não é uma realidade abstrata, à margem do sistema sócio- econômico, da cultura e do sistema educativo no qual se desenvolve e para o qual é proposto. Quando se define o currículo, estão sendo descritas as funções concretas da própria escola e uma forma particular de focá-las, em um momento histórico e social determinados, para um nível ou modalidade de educação, dentro de determinada instituição, com uma organização pública (2016, p. 4822). O que se tem hoje nas escolas é, grosso modo, uma “reprodução” adaptada das cataqueses de doutrinação dos índios, no séc. XVI, posteriormente dos negros escravizados, apesar da laicidade do estado, conforme a Constituição Federal, que estabelece Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Dessa forma, o currículo oculto nas escolas perpassa pelo método para que sejam são trabalhadas e/ou aceitas questões de cunho cultural que envolvem religiosidade, direta ou inderetamente. Como afirma o pesquisador do IBGE Cláudio Dutra, em entrevista à Reuters Brasil, "temos notado um declínio acentuado da população católica no Brasil, e Vozes da Educação 158 essa é uma tendência observada nos Censos de 1991, 2000 e 2010" (REUTERS BRASIL, 2012, online), fator esse que gera situações como, por exemplo, quando a escola opta por realizar uma festa junina, a comunidade escolar tenda a resistir por identificar a festa como uma festa católica. No entanto, a comunidade deve entender que o que está sendo colocado em voga é uma prática cultural do país e não uma festa religiosa em si. Essa é uma situação em que o currículo oculto se cristaliza, em práticas externas ao conteúdo programático das disciplinas. No entanto, vale ressaltar que situação correlata pode acontecer nas aulas de Literatura, quando se estudam as escolas literárias em que, no séc. XVI, a Reforma Protestante teve papel importante, porém muitas vezes é deixada de lado na análise da escola literária a que corresponde, por ser considerada “assunto religioso”. Nesse contexto, explicitado acima, não se percebe que está se deixando de lado uma parte significativa para o entendimento do movimento literário e que não há nada de religioso nisso. Na verdade, é uma escolha ideológica do conteúdo a ser trabalho, não tocando em um ponto delicado em um país ainda majoritariamente católico, porém com grande avanço do protestantismo e outros movimentos advindos dele. Também no cumprimentoda Lei 10.639/03, que altera o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, há que se refletir no quanto se deve incluir desses estudos em sala de aula, nos conteúdos trabalhados, indo além dos estereotipados projetos estanques realizados nas escolas no Dia da Consciência Negra, por exemplo, como se nota no próprio texto da LDB: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Embora fique claro que tais conteúdos não podem ser trabalhados de forma estanque, quando o texto diz “em especial nas áreas Volume I 159 de Educação Artística e Literatura e História Brasileiras”, relativiza-se a responsabilização pelo trabalho com o referido conteúdo. É de se esperar que os professores das demais áreas sintam-se “à vontade” para não trabalhar esses conteúdos em suas aulas, relegando às disciplinas citadas ou a projetos da escola. Similarmente, o trabalho com a língua materna é relegado às aulas de Língua Portuguesa, negligenciando-se o fato de que os alunos necessitam dessa para a compreensão de todas as demais, tanto em termos diretos, na leitura, compreensão e escrita, quanto de forma abstrata, na elaboração e desenvolvimento do pensamento. Outro problema relacionado ao ensino da língua materna é aquilo que é elencado como conteúdo de Língua Portuguesa que, travestido de legitimidade, é ideologicamente comprometido quando desconsidera características significativas dos falantes, tendo a escola papel fundamental no processo de formalização daquilo que o falante já domina, na medida em que, como aponta Bourdieu, citando Georges Davy, No processo que conduz à elaboração, legitimação e imposição de uma língua oficial, o sistema escolar cumpre a função determinante de “fabricar semelhanças das quais resulta a comunidade de consciência que é o cimento da nação” (BOURDIEU, 1998, p. 35). Assim, quando é garantido aos alunos de comunidades indígenas o ensino em sua língua materna ou aos surdos o ensino da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), além do ensino da língua portuguesa, o que se faz é uma reconstrução histórica e a quebra do paradigma doutrinador que caracterizou o início da educação brasileira formal. Formalidade versus reflexão Segundo a Resolução nº 7 de 14 de dezembro de 2010, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos, do Conselho Nacional de Educação, em seu Artigo 15º, o Ensino Fundamental tem como componentes curriculares obrigatórios, de acordo com as áreas de conhecimento: I – Linguagens: a) Língua Portuguesa; b) Língua Materna, para populações indígenas; c) Língua Estrangeira moderna; d) Arte; e e) Educação Física; II – Matemática; III – Ciências da Natureza; IV – Ciências Humanas: a) História; b) Geografia; V – Ensino Religioso. Integrados a essas disciplinas, estão os chamados temas transversais, que “são assim adjetivados por não pertencerem a nenhuma Vozes da Educação 160 disciplina específica, mas atravessarem todas elas como se a todas fossem pertinentes” (Educabrasil, 2001). Deve-se ressaltar, não obstante, que o currículo oculto faz parte da vida cotidiana da escola sem nenhuma das caracterizações formais dos componentes curriculares ou até mesmo dos temas transversais. Daí advém a necessidade de reflexão sobre os conteúdos a serem trabalhados em cada componente curricular, tanto quanto em qual abordagem se dará no trabalho com os temas transversais. Quando se opta por determinado conteúdo ou determinada abordagem em detrimento de tantos outros possíveis, é feita uma escolha de cunho ideológico que não pode desconsiderar as idiossincrasias dos alunos. Já há, nos dispositivos da Lei, em especial a LDB, sinalizações diversas quanto ao caráter significativo do respeito às especificidades da comunidade escolar. Muitas são as variáveis que inflenciam em uma sociedade letrada e igualitária, não há duvida. No entanto, algumas destas variáveis merecem destaque e têm sido, de forma sistemática, deixadas de lado na concepção dos currículos de modo geral, na contramão das políticas nacionais de educação, muitas vezes. Uma dessas variáveis de extrema importância é o ensino de Língua Portuguesa, em que a língua materna ainda é trabalhada como um fim em si mesmo, como um objeto estanque de estudo. Tal postura legitima, através do ensino de Língua Portuguesa, uma visão excludente dos alunos, ao descontextualizar sua aprendizagem no meio familiar, onde adquire seus primeiros saberes com relação à língua, da qual internaliza a estruturação inicial de sua sintaxe e seu vocabulário. Quando a escola desconsidera explicitamente esses fatores no currículo de Língua Portuguesa, ela está fadando o aluno ao fracasso, não só na disciplina em si, mas também nas demais disciplinas, que, evidentemente, exigem uma fluidez mínima para compreensão de enunciados simples e tecitura de pequenos textos, no mínimo. Segundo Berger e Luckmann, A linguagem [...] é o mais importante sistema de sinais da sociedade humana. [...] A vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com meus semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para minha compreensão da realidade da vida cotidiana (1997, p. 56-7) Volume I 161 Ora, se é na linguagem que se encontra a base essencial para a compreensão da realidade, quanto mais o indivídio dominar a linguagem, mais ele irá compreender a realidade e, por consequinte, ser capaz de transformá-la. Como afirma Pierre Bourdieu, [...] a língua, em razão da infinita capacidade geradora, mas também, originária, no sentido kantiano, que lhe é conferida por seu poder de produzir para a existência produzindo a representação coletivamente reconhecida, e assim realizada, da existência, é com certeza o suporte por excelência do sonho de poder absoluto (1998, p.28, grifo do autor). Assim, o ensino da língua materna, entendido como práticas de aprendizagem, nas escolas, é um dos campos mais propícios para uma ação efetiva de empoderamento dos alunos, com a escolha de conteúdos que privilegiem também a língua (e a cultura) que eles dominam e não apenas a norma-padrão, base para a reprodução da exclusão dos alunos que não trazem de casa uma cultura letrada forte e de prestígio. Em seu Artigo 26, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação preconiza que: Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Uma vez que a base do currículo no Brasil destaca a diversidade sócio-cultural dos alunos de todo o país, fica assim evidenciada a relevância do que se chama de currículo oculto e que é, na prática, base para a manutenção de um currículo que privilegie um entendimento amplo da educação, seguindo leis e preceitos básicos da cidadania. É através do respeito àcultura de sua comunidade escolar que a escola segue o caminho da educação de qualidade garantida na Constituição Federal, uma vez que, quando os alunos são excluídos do processo de ensino-aprendizagem do qual devem fazer parte, seja de forma direta ou indireta, não há como se garantir tal qualidade. Quando os alunos não têm sua cultura respeitada, os conteúdos tornam-se “alheios” aos seus interesses e, mesmo que haja um esforço no sentido de ensinar-lhes o que preconizam os conteúdos que lhes serão cobrados em provas e no mundo do trabalho, por exemplo, ainda assim o ponto de partida desses alunos estará em pontos diversos da caminhada. Vozes da Educação 162 É importante entender que o capital com que os agentes trabalham na educação são diversos e devem ser respeitados em sua diversidade. Seguindo o conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu, Os indivíduos, por sua vez, se posicionam nos campos de acordo com o capital acumulado - que pode ser social, cultural, econômico e simbólico. O capital social, por exemplo, corresponde à rede de relações interpessoais que cada um constrói, com os benefícios ou malefícios que ela pode gerar na competição entre os grupos humanos. Já na educação se acumula sobretudo capital cultural, na forma de conhecimentos apreendidos, livros, diplomas etc. (Revista Escola, online) O que cabe ressaltar, neste ponto, é o fato de que os conhecimentos transmitidos/construídos na escola são, via de regra, baseados em conceitos estanques de uma espécie de “bom saber”: a escolha de conteúdos é, vista assim, impregnada da ideologia daqueles que os escolhem. Cabe ao professor, nesse contexto, entender que o currículo que é posto em prática em sala de aula é, também, aquele que se pretende externo, com valores e preceitos éticos. Como afirmam Bourdieu e Passeron, Prova de que a relação de comunicação pedagógica é irredutível a uma relação de comunicação definida de modo formal e de que o conteúdo informativo da mensagem não esgota o conteúdo da informação, é o fato de que a relação de comunicação pedagógica pode manter-se enquanto tal, mesmo quando a informação transmitida tende a se anular, como se vê no caso-limite dos ensinos iniciáticos ou, mais perto, de certo ensino literário (BOURDIEU; PASSERON, 2009, p. 43). Em sendo assim, cabe à equipe pedagógica uma análise que extrapole a informação formal que se encontra na superfície dos conteúdos escolhidos, tornando o conhecimento mais significativo para o alunado e esse alunado deve ser visto de forma abrangente, uma vez que Com o crescimento quantitativo das matrículas no ensino fundamental verificado nas últimas décadas, era de se esperar que, em poucos anos, o percentual de brasileiros plenamente alfabetizados chegaria aos níveis do que se verifica em países industrializados. Mas isso não vem ocorrendo porque a escola brasileira não tem propiciado a um grande contingente de seus alunos efetivo acesso à cultura letrada (BORTONI-RICARDO, 2004, 21-22). Na perspectiva de um alunado com dificuldades de letramento, as demais matérias do Ensino Fundamental II, devem, tanto quanto a disciplina de Língua Portuguesa, cuidar para que os conteúdos trabalhados Volume I 163 em sala de aula sigam o que diz a LDB, no âmbito da formação do cidadão, em que Art. 32º. O ensino fundamental obrigatório, com duração mínima de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. Assim, evidencia-se que a própria Lei de Diretrizes de Bases ressalta a importância multidisciplinar, integrada a valores que solidifiquem a formação cidadã dos alunos. Considerações finais Diante do exposto até aqui, a educação aparece como um ato político e, cada conteúdo a ser trabalhado com os alunos deve fazer parte de um todo consciente e ideologicamente relevante. Não se trata de doutrinação ideológica, como muitos têm propagado, eles mesmos de forma tendenciosa. Seguindo a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação, expõe- se a necessidade de se trabalhar conceitos que ampliem a criticidade e a habilidade de analisar o conhecimento a que os alunos têm acesso. Não basta a esse alunado apenas conhecer os fundamentos de um determinado conteúdo sem que haja a percepção da realidade que os rodeia. A língua portuguesa como instrumento fundamental em todo e qualquer conteúdo, tem papel de destaque nesse cenário que, muitas vezes, faz o ensino da disciplina Língua Portuguesa ser considerado responsável por grande parte do fracasso dos alunos na escola. O que os professores das demais disciplinas precisam encarar é que a língua portuguesa é, também, instrumento de trabalho deles e que, pela relevância social que possui, faz parte daquilo que deve ser construído na escola para além dos conteúdos propriamente ditos. Vozes da Educação 164 Dessa forma, os professores devem assumir um papel de militante do empoderamento de seus alunos, contra um mundo que continua caminhando para a desigualdade, a fim de que se cumpra, assim, tanto o que determinam as leis, quanto o que se preconiza em diversas teorias acerca da educação. Referências Bibliográficas BECHARRA, Evanildo. Dicionário da Língua Portuguesa Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. 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Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ 2003/L10.639.htm> Acessado em: 02 fev. 2016. Volume I 165 BRASIL. Resolução nº 7, de 14 de dezembro de 2010. Fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos. MEC, CNE/CEB. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb00 7_10.pdf> Acessado em: 02 fev. 2016CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. 18. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. COSTA, Glauciaglivian Erbs da. Aonde se esconde o currículo oculto? Dispositivos e rituais que silenciam vozes no currículo escolar. Itajaí, 2009. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade do Vale do Itajaí. FERRARI, Márcio. 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Volume I 167 EDUCAÇÃO E EQUIDADE: QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA Ana Quesado Sombra55 RESUMO O artigo pretende abordar questões de gênero e raça, a fim de ensejar reflexões sobre os tipos de preconceito, estigmas e estereótipos reproduzidos no contexto escolar. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa, na literatura sobre o tema e na legislação pátria, pretende-se contribuir para a construção de uma educação democrática e pluralista, que acolha a todos, bem como suas demandas, indistintamente, a fim de incorporar a concepção de educação para a diversidade, capaz de dialogar com a pluralidade do cotidiano escolar, visando à redução das desigualdades e à promoção da equidade. Palavras-chave: Educação. Gênero. Raça. Equidade. ABSTRACT The article aims to address issues of gender and race in order to reflect on the types of prejudice, stigmas and stereotypes reproduced in the school context. Through a bibliographical research of a qualitative nature, in the literature on the subject and in the country's legislation, it is intended to contribute to the construction of a democratic and pluralist education, that welcomes all, as well as their demands, in order to incorporate the conception of education for diversity, capable of dialoguing with the plurality of daily school life, aiming at reducing inequalities and promoting equity. Keywords: Education. Gender. Race. Equity. 55Especialista no ensino da Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade Ateneu/FATE. Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual do Ceará/UVA. E-mail: anaquesado@hotmail.com CV: http://lattes.cnpq.br/8790717282712843 Vozes da Educação 168 Com base em estudos sobre o assunto em questão, fica evidente que as desigualdades de gênero e raça constituem-se fator preponderante à promoção da exclusão socioeconômica no Brasil. Nesse sentido, a escola deve ser lócus de reflexão e enfrentamento de tais desigualdades que, historicamente, têm limitado o acesso, a progressão e as oportunidades aos coletivos em situação de vulnerabilidade. Para dar início à abordagem sobre o tema, acredita-se ser necessário apresentar uma breve análise da trajetória do negro no Brasil Colônia, bem como sobre a origem da sociedade brasileira, na qual imperava o patriarcalismo, que inferiorizava e excluía a mulher, cujos aspectos favoreceram o processo de promoção das desigualdades constituídas historicamente. No Brasil, a escravidão teve origem a partir do tráfico de africanos em navios negreiros, os quais, inicialmente, foram utilizados como mão de obra nos engenhos nordestinos e, posteriormente, vendidos como escravos para diversas atividades. Estes homens e mulheres foram tolhidos de suas origens, terras, crenças, histórias, cultura, entre outros, e submetidos à vontade de seus senhores, que os reduziram por muito tempo à condição de seres inferiores, o que contribuiu para a construção de concepções racistas e preconceituosas que foram se perpetuando até a atualidade. Assinada pela Princesa Isabel, a Lei Áurea, Lei Imperial nº 3.353, foi sancionada em 13 de maio de 1888. A referida lei extinguiu a escravidão no Brasil, último país da América Latina a abolir a escravatura. Esta lei, a despeito de ter proporcionado a liberdade aos escravos negros no Brasil, não lhes garantiu os direitos básicos à sobrevivência, tampouco a sua inserção na sociedade da época, deixando-os à mercê de um processo contínuo de produção de desigualdade, pobreza e exclusão política e sociocultural. Para Hosenbalg (2005. p. 21), “a mobilidade social ascendente, experimentada pelos brasileiros de cor, após a abolição, foi tão restrita que desigualdades raciais acentuadas têm sido perpetuadas até o presente”. Como se pode observar, após a abolição da escravatura, teve início um processo de segregação dos negros na sociedade brasileira, uma vez que eles eram vistos pela sociedade da época como seres em condição subalterna, vitimados pela relação de poder, concepção que se difundiu até os dias atuais, ampliando as desigualdades e promovendo a pobreza e o racismo, entre outras formas de segregação. Segundo Fernandes (apud Hosenbalg, 2005), Volume I 169 Com a desintegração do regime escravista, a mudança no status legal de negros e mulatos não se refletiu numa modificação substancial de sua posição social. À falta de preparo para o papel de trabalhadores livres e ao limitado volume de habilidades sociais adquiridas durante a escravidão acrescentou-se a exclusão das oportunidades sociais e econômicas, resultantes da ordem social competitiva emergente. Os ex-escravos e homens livres de cor foram relegados à margem inferior do sistema produtivo, dentro de formas econômicas pré-capitalistas e áreas marginais da economia urbana. (HOSENBALG, 2005, p.79) Pelo exposto acima, observa-se que, após o período escravagista, os negros foram relegados a uma herança de pobreza e marginalidade, que os tornou aprisionados a condições que por muito tempo os impediram de romper com a situação de desigualdade, bem como com os estigmas associados à pobreza e ao racismo. Assim, percebe-se que, apesar de gozar de liberdade, esse coletivo continuou acorrentado a uma condição de inferioridade, opressão e de ausência de acesso a oportunidades,à margem dos direitos sociais e econômicos necessários à sobrevivência em sociedade. Na visão de Carneiro (1993), [...] no caso brasileiro, o discurso sobre identidade nacional possui uma dimensão escondida de gênero e raça. A teoria de superioridade racial teve na subordinação feminina seu elemento complementar. A expressiva massa de população mestiça, nascida da relação subordinada de mulheres escravas negras e indígenas com os seus senhores, tornou-se um dos pilares estruturantes da decantada “democracia racial” brasileira. Ao longo da história, conforme Borin (2007), as mulheres não tiveram tratamento igualitário em dignidade, com relação ao homem. Assim o foi na antiguidade e na Idade Média, período no qual sofreram perseguições e foram vítimas de extermínios. Sobre a submissão da figura feminina, Hermann (2007) afirma que: Desde a antiguidade e ao longo da Idade Média e da Idade Moderna, filhas mulheres eram indesejáveis, pois não serviam à perpetuação da Linhagem paterna e ao serviço pesado da lavoura e do pastoreio; só para os trabalhos domésticos, pouco lucrativos e, portanto, inferiores. Os casamentos eram decididos pelo pai, que tinha o dever de ofertar um dote como compensação pelo encargo de manter e sustentar, a partir dali, a mulher que tomava por esposa. Da subserviência à figura paterna a mulher passava diretamente à submissão e obediência ao marido. (HERMANN 2007, p. 54) Em referência à história da gênese da sociedade brasileira, no período do Brasil Colonial surgiu o modelo de família patriarcal, sob influência da Igreja Católica, na qual o pai era a figura central, responsável Vozes da Educação 170 pelos negócios da família e detentor de autoridade sobre a esposa e os filhos. À mulher, cabiam apenas os cuidados do lar, a criação dos filhos e a obediência ao pai ou ao marido, cumprindo seu papel de subordinação e submissão. Assim, durante muito tempo, a figura feminina foi inferiorizada e relacionada ao casamento, às atividades domésticas, à reprodução e criação dos filhos. De acordo com Ribeiro (2000), na tradição cultural ibérica, transposta de Portugal para a colônia brasileira, a mulher era considerada um ser inferior, que não tinha necessidade de aprender a ler e a escrever. Com isso, infere-se que a mulher da época tinha uma participação social pouco significativa e gozava de poucos direitos, o que acabou favorecendo as desigualdades e construindo uma concepção racista e preconceituosa que foi, ao longo da história, incorporada no cotidiano da sociedade brasileira e, paulatinamente, naturalizando-se, reforçadas pelos preconceitos historicamente produzidos e reproduzidos no âmbito das relações de poder, como é o caso da desigualdade de gênero. A segunda metade do Século XX foi marcada por intensas transformações ocorridas nas esferas econômica e social de todo o mundo, as quais ensejaram o processo de globalização e novas relações entre os países. Tal processo desencadeou mudanças econômicas, sociais e culturais, entre outras, que trouxeram efeitos positivos e negativos para a sociedade. Diante do grande número de efeitos negativos advindos dessas mudanças, tais como o desemprego, problemas de saúde, moradia e segurança, e como consequência da inoperância do Estado para a resolução de tais problemas, surgiram os movimentos sociais, a fim de reivindicar o cumprimento dos deveres do Estado para com a população ou promover o reconhecimento individual ou social da população ou de grupos específicos. A Constituição brasileira de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, foi um importante marco para a democracia brasileira, no que se refere à participação popular, pois permite a colaboração da sociedade na formulação de políticas públicas e na fiscalização da aplicação dos recursos estatais. Assim, cabe à sociedade participar da elaboração, implementação e avaliação de tais políticas, bem como fiscalizar os recursos nelas empregados, a fim de alcançar os objetivos propostos. A CF/88 também trouxe o princípio constitucional da igualdade, disposto no artigo Volume I 171 5º, caput, da seguinte forma: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” A citada norma, no art. 3º, elenca o rol de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. E, ainda, no art. 5º, traz os direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro, a fim de assegurar-lhe uma vida digna, livre e igualitária. No Brasil, nas décadas de 80 e 90, os movimentos sociais das mulheres e dos negros ganharam expressividade, criaram os Conselhos de Direitos e Secretarias, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), cujo objetivo é gerar impacto nos diversos campos de ações governamentais, a fim de promover o efetivo exercício da cidadania das mulheres e segmentos raciais discriminados, por meio da participação na elaboração, implantação e avaliação das políticas públicas. A despeito de todos os esforços empreendidos pelos movimentos populares no enfrentamento das desigualdades que afetam esses grupos populacionais, ainda se observa na sociedade várias formas de preconceitos, discriminações e exclusões, que precisam ser erradicadas ou, pelo menos, minimizadas, por meio da implantação de políticas públicas de gênero, raça e etnia eficazes, considerando as especificidades das demandas de cada grupo. Com base no exposto, depreende-se que a contribuição dos movimentos sociais na luta pela igualdade de gênero e raça tem sido fundamental para gerar mudanças, a partir do diálogo entre a sociedade civil e o Estado, bem como da criação de políticas públicas que atendam às demandas dos diversos segmentos sociais. Portanto, na elaboração, execução e avaliação das políticas públicas é necessário que haja uma representatividade da sociedade civil, com vistas ao processo de controle social sobre estas políticas no atendimento às demandas da população, visando ao alcance dos resultados preestabelecidos. Vozes da Educação 172 A concepção preconceituosa e fatalista, arraigada culturalmente na sociedade ao longo da história, também se reflete na educação, que, muitas vezes, assume um caráter civilizatório, em detrimento da promoção do acesso ao conhecimento e ao domínio das ciências e tecnologias. Assim, a escola tende a proporcionar aos coletivos feitos desiguais apenas as destrezas básicas necessárias à entrada no mercado de trabalho, tornando-os aptos às suas exigências, a fim de atender às demandas do capital. De acordo com Carvalho (2000, p. 120), uma escola inclusiva é aquela que “inclui a todos, que reconhece a diversidade e não tem preconceito contra as diferenças, que atende às necessidades de cada um e que promove a aprendizagem.” Conforme o exposto, a escola precisa promover sistematicamente, entre educadores, estudantes e demais atores da comunidade escolar, encontros que fomentem discussões e reflexões acerca desse processo de reprodução do preconceito, considerando os paradigmas que permeiam a visão de que os negros e as mulheres, ou qualquer outra minoria marginalizada, são carentes de valores,cultura, memória, religião, entre outros, a fim de romper com a cultura de dominação, exploração e subordinação alimentada ao longo da história. A escola reproduz de diversas formas os problemas, conflitos e ideologias da sociedade em que está inserida, e constitui-se lócus de reprodução das relações socioeconômicas e culturais dominantes, fomentando em seu cotidiano os diversos tipos de desigualdades. Assim, há a necessidade de ruptura da dicotomia discurso/prática, na busca de proporcionar oportunidades àqueles que estão em situação de desproporção, quer seja política, socioeconômica, racial, entre outras, a fim de reduzir as desigualdades e promover a equidade, que, de acordo com Sposati (2005, p. 5), é [...] o reconhecimento e a efetivação, com igualdade, dos direitos da população, sem restringir o acesso a eles nem estigmatizar as diferenças que conformam os diversos segmentos que a compõem. Assim, eqüidade é entendida como possibilidade das diferenças serem manifestadas e respeitadas, sem discriminação; condição que favoreça o combate das práticas de subordinação ou de preconceito em relação às diferenças de gênero, políticas, étnicas, religiosas, culturais, de minorias, etc. (SPOSATI, 2002). Para que haja uma transformação da visão reducionista das minorias segregadas, como os negros e as mulheres, a escola precisa Volume I 173 considerar as multiplicidades existentes na sociedade, a fim de superar todo tipo de preconceito, intolerância e discriminação. Segundo Carvalho (2002, p. 70), “Pensar em respostas educativas da escola é pensar em sua responsabilidade para garantir o processo de aprendizagem para todos os alunos, respeitando-os em suas múltiplas diferenças.” Nessa mesma linha, Araújo (1988) afirma que [...] a escola precisa abandonar o modelo no qual se esperam alunos homogêneos, tratando como iguais os diferentes, e incorporar uma concepção que considere a diversidade tanto no âmbito do trabalho com os conteúdos escolares quanto no das relações interpessoais. É preciso que a escola trabalhe no sentido de mudar suas práticas de ensino visando o sucesso de todos os alunos, pois o fracasso e o insucesso escolar acabam por levar os alunos ao abandono, contribuindo assim com um ensino excludente. (ARAÚJO, 1988, p. 44) Do exposto acima, observa-se que um dos grandes desafios da educação, na atualidade, é construir uma postura crítica da realidade, visando à superação de concepções equivocadas e preconceituosas, que perpetuam as desigualdades e, consequentemente, produzem a pobreza. Assim, é imperativo o reconhecimento das diversidades, culturas, subjetividades, valores e religiosidades dos coletivos feitos desiguais, a fim de eliminar a relação opressor/oprimido e promover mudanças significativas na sociedade. Segundo Gadotti (1992, p. 21), “A escola que se insere nessa perspectiva procura abrir os horizontes de seus alunos para a compreensão de outras culturas, de outras linguagens e modos de pensar, num mundo cada vez mais próximo, procurando construir uma sociedade pluralista.” A escola deve contemplar as demandas da coletividade, e, simultaneamente, estabelecer um espaço que respeita as diferenças, favorece o diálogo e a cooperação, e garante a autonomia dos indivíduos, visando ao fortalecimento da democracia. Para Arroyo (2010), o combate à desigualdade na escola perpassa uma mudança de concepção da história de produção das desigualdades. O autor diz que o ideário de igualdade “[...] vai levando a esse distanciamento e ao abandono da ênfase nas desigualdades trazendo com destaque a ênfase na inclusão daqueles que estão do lado de lá, na outra margem, atrás dos muros da cidadela.” Salienta ainda que Na função de incluir os excluídos, a escola e as políticas educativas sentem-se em sua função. Primeiro por ser uma função mais leve do Vozes da Educação 174 que acabar com as desigualdades. Segundo porque na dicotomia incluídos-excluídos, dentro dos muros, atrás dos muros, do lado de dentro e do lado de fora são aqueles que estão dentro, os que decidem e controlam as políticas de inclusão. Vale ressaltar a necessidade de garantir a esses coletivos feitos desiguais não apenas o acesso à educação, mas o acesso à educação para a diversidade, capaz de dialogar com a pluralidade do cotidiano escolar, visando à redução das desigualdades e à promoção da equidade, a partir do entendimento de que o currículo, as práticas pedagógicas, bem como o ambiente escolar refletem, contraditoriamente, os preconceitos, estigmas e estereótipos atribuídos às pessoas consideradas diferentes e, por este motivo, ampliam as desigualdades. Assevera Arroyo (2010) que enquanto não mudarmos o modo de pensar os desiguais, como um problema, não mudaremos a visão do Estado e de suas políticas como a solução. O autor leciona ainda que os coletivos desiguais tiveram “um reconhecimento perverso que terminou reforçando as representações negativas, inferiorizantes com que [estes] foram pensados ao longo e nossa história social, política e cultural” (ARROYO, 2011, p. 160). E, por fim, diz que os diversos passaram a ser reconhecidos a partir da visão que a sociedade já possuía, e continua detendo, dos coletivos populares como carentes e inferiores, que é “Visão histórica ameaçadora dos pobres e carentes que até hoje persiste nos campos, nas cidades e nas escolas; que é um traço marcante de nossa cultura política e pedagógica.” (ARROYO, 2011, p. 161). Pelo exposto, pode-se inferir que à construção de uma sociedade que preze pela equidade e justiça social, precede uma desconstituição de sociedade parcial e segregadora, marcada pelas desigualdades e exclusões que, consequentemente, se reproduzem no ambiente escolar. Essa construção “exige, ainda, superar preconceitos e discriminação que reforçam as desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira, reeducando as relações étnico-raciais, como prevê a atual legislação.” (BRASIL, 2008, p. 30) A legislação brasileira, por meio da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (LDB), Lei nº 93.94/96, preconiza a universalização da educação para todos, garantindo o direito de acesso, permanência e de uma educação de qualidade. A despeito disso, na atualidade, a escola se configura palco das diversidades, Volume I 175 uma vez que atende a diferentes grupos sociais, portanto, o trabalho pedagógico precisa voltar-se à diferença, oportunizando o direito de educação para todos. A ineficácia de igualdade de tratamento e o desrespeito para com os coletivos feitos desiguais perpetuam o surgimento de estereótipos e estigmas sociais, diminuem as oportunidades e, consequentemente, aumentam a exclusão social e o estado de vulnerabilidade social desses coletivos. Assim sendo, a diversidade transformada em desigualdade tem assumido um duro papel para a cidadania em toda a história brasileira. Considerada a sociedade de classes, hierárquica e autoritária que constituiu a nação, há exigência de políticas de Estado para superar a desigualdade. (BRASIL, 2008, p. 1) Historicamente, as diversas concepções do binômio diversidade/desigualdade têm subsidiado elementos estruturais geradores de desigualdade social. A educação para a equidade precisa pautar-se na superação das diferentes modalidades de discriminação, segregação e exclusão, considerando as diversidades socioeconômicas, políticas, históricas e culturais presentes no ambiente escolar, que favorecem as relações de poder e os processos de dominação e desigualdade. Assim, as políticas públicas educacionais devem buscar meios para reduzir as dificuldades deacesso e permanência na escola dos grupos feitos desiguais e historicamente discriminados, bem como garantir-lhes uma educação pública democrática e de qualidade. A educação com vistas à equidade deve corresponder às demandas e interesses desses grupos populacionais, bem como subsidiá- los para que se desenvolvam social, intelectual e profissionalmente, objetivando diminuir as desigualdades existentes na sociedade. As habilidades requeridas aos estudantes, por meio do currículo escolar, não podem desconsiderar as multiculturas e diversidades existentes no país, considerando que tais peculiaridades são inerentes ao ser humano, daí, observa-se que o currículo escolar brasileiro ainda reflete e reproduz as desigualdades presentes na sociedade. Sobre a diversidade, Lima (2006, p.17) arrazoa que, [...] é norma da espécie humana: seres humanos são diversos em suas experiências culturais, são únicos em suas personalidades e são também diversos em suas formas de perceber o mundo. [...] Como toda forma de diversidade é hoje recebida na escola, há a demanda óbvia, por um currículo que atenda a essa universalidade. (LIMA, 2006) Vozes da Educação 176 Assim, é importante ressaltar a necessidade de o currículo escolar, bem como as práticas pedagógicas por ele orientadas incorporarem a visão de uma educação para a diversidade, capaz de dialogar com essa pluralidade existente na sociedade. A proposta curricular deve ser construída por meio de um processo democrático, considerando as diversidades existentes e as especificidades de cada contexto escolar. De acordo com Gomes (2006, p. 31-32), o currículo escolar “possui um caráter político e histórico e constitui uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento nele envolvida se realiza por meio de uma relação entre pessoas”. Pelo exposto, infere-se que o currículo não é somente um instrumento pedagógico repleto de conteúdos disciplinares, visando à transmissão do conhecimento sistematizado na escola, mas traz implicitamente influências políticas e históricas que reproduzem as desigualdades e, portanto, tem uma dimensão social. Tais reflexões sobre o currículo escolar apontam para a necessidade de sua reestruturação, uma vez que o que está em vigência ainda reflete no ambiente escolar as relações de dominação/subordinação, bem como as desigualdades presentes na sociedade contemporânea. Considerando que o currículo escolar recebe influências das ideologias, interesses e valores pertencentes a uma determinada parcela da sociedade, além de ser uma ferramenta pedagógica utilizada pelo professor na sua ação docente, ele é, também, um instrumento de controle ideológico e social, necessitando, portanto, de uma ressignificação, a fim de suprir as carências de igualdade, diversidade e equidade do currículo, visando à promoção do respeito à diversidade e à pluralidade de ideias, na busca de proporcionar oportunidades aos coletivos que estão em situação de vulnerabilidade, desproporção e desigualdade, com a finalidade de reduzir as desigualdades e valorizar a diversidade, caminhos imprescindíveis à equidade. Considerações finais A pesquisa teve como objeto de estudo a educação, equidade e questões de gênero e raça. Com base nos estudos realizados, foi possível observar que ao longo da história evidenciaram-se desigualdades que se constituem elementos estruturais geradores da exclusão socioeconômica. A partir de um breve histórico da condição do negro durante o Brasil Volume I 177 Colônia, foi possível inferir que a escravidão teve origem a partir do tráfico de africanos em navios negreiros, os quais, inicialmente, foram utilizados como mão de obra nos engenhos nordestinos e, posteriormente, vendidos como escravos para diversas atividades. Estes homens e mulheres foram tolhidos de suas origens, terras, crenças, histórias, cultura, entre outros, e submetidos à vontade de seus senhores, que os reduziram por muito tempo à condição de seres inferiores, o que contribuiu para a construção de concepções racistas e preconceituosas que se perpetuaram até hoje, que os reduzem à condição de seres inferiorizados e produzem as desigualdades e a exclusão. Em referência à história da gênese da sociedade brasileira, no período do Brasil Colonial surgiu o modelo de família patriarcal, sob influência da Igreja Católica, na qual o pai era a figura central, responsável pelos negócios da família e detentor de autoridade sobre a esposa e os filhos. À mulher, cabiam apenas os cuidados do lar, a criação dos filhos e a obediência ao pai ou ao marido, cumprindo seu papel de subordinação e submissão. Assim, durante muito tempo, a figura feminina foi inferiorizada e relacionada ao casamento, às atividades domésticas, à reprodução e criação dos filhos. Essas desigualdades, paulatinamente, foram limitando o acesso, a progressão e as oportunidades aos coletivos feitos desiguais, deixando- os à margem da sociedade e em situação de vulnerabilidade, obrigando-os a conviver cotidianamente com problemas nas áreas básicas de saúde, educação, transporte e segurança, com pouco ou nenhum acesso aos bens e serviços essenciais. Vale ressaltar que a condição de desigualdade não deve ser analisada apenas sob o viés econômico, tendo em vista que há outros fatores que a produzem, tais como os sociais e políticos, entre outros, que precisam ser considerados para uma compreensão mais ampla deste fenômeno multifatorial que afeta os diferentes coletivos. Considerando que é incumbência do Estado a criação, implantação e implementação de mecanismos de enfrentamento à reprodução das desigualdades, a fim de romper com a situação de vulnerabilidade socioeconômica e de violação de direitos em que se encontra grande parte da população brasileira, fica evidente que este tem sido omisso no cumprimento de seus deveres para com esses coletivos. A Vozes da Educação 178 inoperância do Estado, a ausência de igualdade de tratamento e o desrespeito para com os coletivos feitos desiguais perpetuam o surgimento de estereótipos e estigmas sociais, diminuem as oportunidades e, consequentemente, aumentam a exclusão social e o estado de vulnerabilidade social desses coletivos. Em referência à educação, resta claro que a legislação brasileira é bastante ampla, tendo como esteio a Constituição Federal de 1988, que garante o acesso irrestrito do indivíduo à educação, o qual é um direito inalienável do ser humano. A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (LDB), Lei nº 93.94/96, têm como premissa a garantia de educação para todos, independentemente dos fatores físicos, sociais, econômicos, entre outros, uma vez que o direito à educação é constitucional e inalienável do ser humano. No entanto, a despeito do surgimento de normas, resoluções e outros documentos que regem a educação como um direito universal, e de todos os esforços alçados para a sua efetividade, sabe-se que, na prática, esta ainda esbarra nas resistências, na homogeneidade do currículo e na cultura escolar excludente, dentre outros entraves. No ambiente escolar são reproduzidos cotidianamente os problemas, conflitos e ideologias da sociedade. Assim, a escola constitui-se lugar de reprodução das relações socioeconômicas e culturais dominantes, fomentando em seu cotidiano os diversos tipos de desigualdades. Enquanto lócus da formação humana integral, a escola deve promover reflexões e discussões que ensejem a ressignificação das concepções e ideologias sobre as diversidades existentes, buscando meios para reduzir as dificuldades