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Artigo Carl Rogers: I Biografia e Obra1 Resumo: O presente trabalho traça uma panorâmica da evolução do pensamento de Carl Rogers, inserindo-a no contexto da sua biografia. Os principais conceitos rogerianos, nos diferentes campos das ciências humanas, são abordados sucintamente. Palavras-Chave: Carl Rogers; Terapia Centrada no Cliente; Abordagem Centrada na Pessoa; Pedagogia Centrada no Aluno; Orientação Não-Directiva 1. Introdução Kirschenbaum e Henderson publicaram em 1989 um livro com alguns dos textos de Carl Rogers, “The Carl Rogers Reader”. Na introdução lê-se: “Carl Ransom Rogers (1902- 1987) foi o mais influente psicólogo na história americana”. Segundo o próprio Kirschenbaum afirma num dos artigos incluídos numa publicação colectiva sobre Rogers, o manuscrito original nomeava, mais precisamente, Rogers como sendo “o mais influente psicoterapeuta da história americana”. Kirschenbaum baseava-se num trabalho publicado em 1982 por D. Smith no American Psychologist (1) Também Kaplan (2) na sexta edição do seu conceituado tratado de psiquiatria, publicada em 1995, o menciona como tendo sido, provavelmente, o mais influente teórico no campo das teorias humanísticas da personalidade. Mesmo que Carl Rogers não tenha sido o mais importante psicólogo do seu tempo, como pensa John K. Wood, nem o mais influente psicólogo, mas só o mais influente psicoterapeuta da história americana, não há dúvida que a sua pessoa e a sua obra marcaram de maneira indelével não só a psicologia e a psicoterapia americana, mas também a psicologia e a psicoterapia em geral. Achamos importante referir que publicou mais de 250 artigos, cerca de 20 livros, sozinho ou em colaboração com outros autores, e foram ainda realizados cerca de 12 filmes sobre o seu trabalho, deixando um elevado número de documentos sonoros e audiovisuais que exemplificam a sua atividade. Quer se trate de “Orientação Não Diretiva” em psicoterapia, de Abordagem Centrada na Pessoa, de Pedagogia Centrada no Aluno, de Grupos de Encontro, de Gestão de Recursos Humanos ou de Gestão de Empresas, de Mediação de Conflitos Sociais, Políticos ou Raciais, a sua ação ao longo deste século foi de um contínuo empenho no caminho da liberdade e da libertação das forças que no humano são motoras de atualização de potencialidades. 2. A trajetória de Carl Rogers Para compreender a obra e o contributo de Carl Rogers no desenvolvimento do conhecimento da pessoa em geral e no aprofundamento da psicologia e da psicoterapia em 1 Hipolito, J. (1999). Biografia de Carl Rogers. Revista de Estudos Rogerianos, A Pessoa como Centro, Nº. 3. Disponível em, <http://www.appcpc.com/?page_id=39>. Acesso em: 07/02/2014. particular, é importante inseri-lo na sua história, no seu trajeto pessoal que o determina, quer ele o admita ou não, tendo em consideração a sua oposição aos conceitos de determinismo, enraizando-se no ponto de vista filosófico da corrente existencialista e da sua atitude de confiança na capacidade do Humano em se tornar livre e decidir sobre o seu próprio futuro. Carl Ransom Rogers nasceu a 8 de Janeiro de 1902 em Oak Park nos arredores de Chicago. Tinha quatro irmãos e uma irmã, sendo o antepenúltimo. Faleceu em La Jolla, na Califórnia, a 4 de Fevereiro de 1987 na sequência de uma fratura do colo do fémur. De acordo com as instruções que deixara, as máquinas que mantinham “artificialmente” a sua vida foram desligadas após três dias de coma. Os pais, de educação universitária, faziam parte de uma comunidade protestante de forte pendor fundamentalista. A família valorizava uma educação moral, religiosa, sendo muito conservadora, isto é, muito enraizada nos valores tradicionais e fechada sobre ela mesma; contudo, intelectualmente era muito estimulante. Desde muito novo Carl Rogers mostrou-se interessado pela leitura e pelo “saber”. Foi sempre um aluno excepcionalmente brilhante, mantendo, no entanto, uma colaboração constante nos trabalhos do quotidiano familiar, reduzindo ao mínimo a sua rede relacional fora da família. A hipervalorização do trabalho físico ou intelectual, não dava azo a outras atividades de lazer, que não fosse a leitura dos clássicos, de preferência de caráter religioso. Quando Rogers tem 12 anos o pai compra uma grande quinta nos arredores de Chicago para onde a família vai morar, com a intenção oficial de fazer uma agricultura “científica”. Segundo Carl Rogers, o objetivo real era afastar os filhos dos “perigos da vida da cidade”. A vida na quinta e o trabalho na agricultura levam-no naturalmente a matricular-se em 1919 em Agronomia na Universidade de Wisconsin. Envolve-se em várias atividades comunitárias desenvolvendo as suas capacidades de “facilitador” e organizador. Entra em contacto com meios evangélicos militantes e decide mudar para o curso de História com a intenção de se dedicar posteriormente à carreira eclesiástica. No terceiro ano da faculdade faz uma viagem à China integrado numa delegação americana com o objetivo de participar no Congresso da Federação Mundial dos Estudantes Cristãos. A viagem dura seis meses e, no decorrer da mesma, abandona parte das suas convicções religiosas, abrindo-se à diversificação das ideias e opiniões. Ao chegar de novo aos Estados Unidos ganha uma nova independência e autonomia face às opiniões e posições da família, tendo começado a sofrer de uma úlcera gastroduodenal, provavelmente como resultado deste processo de afirmação. Guarda, contudo, a sua motivação para uma carreira pastoral e empenha-se social e politicamente, tentando demonstrar a incompatibilidade do cristianismo e da guerra através de escritos sobre o pacifismo do reformador Wyclif ou sobre a posição de Lutero face à autoridade. Em 1924, Carl Rogers termina a sua licenciatura em História e casa-se com Hellen Elliot, sua amiga de infância, de quem virá a ter dois filhos: David e Natalie. Após ter obtido a sua licenciatura em História, Carl Rogers matricula-se no Seminário da União Teológica em Nova Iorque. Durante o primeiro ano nesta instituição, Rogers tem a oportunidade de frequentar alguns cursos na faculdade de psicologia, contatando assim com os psicólogos Goodwin Watson e William Kilpatrick que muito o impressionam. Com outros colegas organiza um seminário de reflexão auto-facilitado e acaba por tomar consciência da sua “não vocação” para o ministério pastoral, apesar do estágio realizado nesse mesmo Verão, como pastor substituto na paróquia de Dorset em Vermont. Assim, no segundo ano do curso transfere-se para o Teachers’ College da Universidade de Columbia com o objetivo de frequentar o curso de psicologia clínica e psicopedagogia. Em 1928, Carl Rogers trabalhava como psicólogo no Centro de Observação e Orientação Infantil da Sociedade para a Prevenção da Crueldade sobre as Crianças, em Rochester. A partir de 1929, dirige este Centro e, durante 12 anos, interessa-se pelo trabalho com crianças delinquentes e marginais. Na instituição entra em contacto com Otto Rank que o marca mais pela sua prática terapêutica do que pelas suas teorias. Progressivamente, Rogers abandona uma orientação diretiva ou interpretativa, optando por uma perspectiva mais pragmática de escuta dos clientes, numa posição precursora do que mais tarde estruturará como Orientação Não Diretiva em terapia. A partir de 1935 começa a leccionar no Teachers’ College, mas não vê nem o seu ensino nem o seu estatuto de psicólogo reconhecido pelo departamento de psicologia da faculdade e só muito mais tarde, após vários anos de ensino nos departamentos de sociologia e psicopedagogia, e quando já está para abandonar Rochester, odepartamento de psicologia o reconhecerá como psicólogo e como docente. Em 1938, Carl Rogers entra em “guerra” com os psiquiatras. O Centro, em que trabalha e que dirige, transforma-se e amplifica-se e o conselho de administração sob a pressão dos médicos psiquiatras, decide, como então era tradição, contratar para diretor um psiquiatra, apesar de estarem satisfeitos com o trabalho que Rogers até então realizara. Carl Rogers luta vivamente e consegue ser reconhecido como primeiro diretor do novo Centro de Aconselhamento de Rochester. Em 1939, publica o seu primeiro livro: “O tratamento clínico da criança-problema (3) no qual expõe o essencial das suas reflexões e pesquisas realizadas até esse momento. Com a publicação desse livro começa a ser conhecido na qualidade de psicólogo clínico e é convidado para professor catedrático da Universidade de Estado do Ohio, sendo da sua responsabilidade a cadeira de “Técnicas de Psicoterapia”. Não deixando de referir os modelos mais importantes em psicoterapia e aconselhamento, tem a possibilidade de explicitar a sua abordagem terapêutica numa perspectiva que ele considera mais genericamente como “as novas” ou “mais recentes terapias” e que define, por oposição às “antigas”, como sendo centrada sobre a expressão, a auto-aceitação, a tomada de consciência e a relação terapêutica, e não sobre a análise do passado, a sugestão ou a interpretação. Assim, durante a sua passagem pela Universidade de Ohio introduz na faculdade o ensino e a prática da psicoterapia assim como a supervisão e, ainda, surge com a inovação de, pela primeira vez, utilizar a gravação integral das entrevistas e de tratamentos completos, como metodologia de investigação sobre os processos terapêuticos. Desenvolve progressivamente e de uma forma pragmática, uma intervenção cada vez mais “não diretiva”, utilizando técnicas de reformulação e clarificação dos sentimentos, assentes numa atitude de maior aceitação dos sentimentos do cliente por parte do terapeuta. Carl Rogers só tem consciência da originalidade do seu pensamento quando é confrontado com as reações provocadas pela conferência que faz na Universidade de Minnesota a 11 de Dezembro de 1940. Ele intitula-a: “Novos conceitos em psicoterapia” e nela afirma que “o alvo da nova terapia não é resolver um problema particular, mas ajudar o indivíduo a crescer, de maneira que ele possa fazer face ao problema atual e aos problemas que mais tarde apareçam de uma maneira mais bem integrada… ela baseia-se muito mais na tendência individual para o crescimento, saúde e adaptação…”, perspectiva bem precursora da corrente atual da Psicologia da Saúde. Em segundo lugar, diz ainda Rogers, “esta nova terapia põe mais ênfase nos elementos emocionais, nos aspectos emocionais da situação, do que nos aspectos intelectuais…”. Em terceiro lugar, “esta nova terapia dá maior ênfase à situação imediata do que ao passado do indivíduo…”. Finalmente, diz Rogers, “esta abordagem considera a relação terapêutica em si mesmo como uma experiência de crescimento”. (4) Criticado ou apreciado, ele não deixa os auditores indiferentes e toma consciência de que a sua posição relativamente à terapia é singular. Rogers diz: “Pode parecer absurdo alguém poder nomear o dia em que a Terapia Centrada no Cliente nasceu. Contudo, eu sinto que é possível nomeá-lo como sendo o dia 11 de Dezembro de 1940”. Essa data passou, assim, a ser considerada no movimento rogeriano como sendo a fundadora do movimento, ou, talvez fosse mais justo dizer, o mito-fundador da comunidade rogeriana. Carl Rogers prepara então uma exposição mais detalhada e sistemática da sua abordagem da terapia, que publicará em 1942 no livro Aconselhamento e Psicoterapia (5). Os conceitos de “aconselhamento” e “psicoterapia” parecem cada vez mais equivalentes assim como os de “Orientação Não Diretiva em Terapia” e “Terapia Centrada no Cliente”. O livro aparece como uma inovação, publicando-se pela primeira vez, e na íntegra, um tratamento a partir da transcrição da sua gravação. Esta obra foi um sucesso e best-seller profissional, se bem que tenha passado despercebido aos jornais e revistas da especialidade quer psiquiátricas, quer psicológicas. Se por um lado o reconhecimento oficial de Carl Rogers se exprime em honras profissionais — é eleito vice presidente da Associação Americana de Ortopsiquiatria e presidente da Associação Americana de Psicologia Aplicada — , por outro existe uma ambivalência das instituições manifestada pela falta de apoio e por uma certa marginalização na sua Universidade. Assim, quando no Verão de 1944 é convidado por Ralph Tyler para professor de psicologia na Universidade de Chicago e lhe propõe criar um novo Centro de Aconselhamento, Carl Rogers aceita, deixando atrás de si um grupo de discípulos, alguns dos quais se tornaram em figuras de proa da abordagem centrada na pessoa, tais como, Virgínia Axline, Arthur Combs, Nat Raskins e John Shlien, ou mesmo traçando caminhos novos como Thomas Gordon e Eugene Gendlin. A criação deste Centro de Aconselhamento Psicológico leva-o mais uma vez a ter que vivenciar situações de tensão com os psiquiatras e neste caso mais especificamente, com o departamento de psiquiatria da mesma Universidade. O período de 1945 a 1957 é para Carl Rogers muito rico quer do ponto de vista humano quer do ponto de vista científico, publicando extensa bibliografia e, mais particularmente, o livro “Terapia Centrada no Cliente” (6) onde, com a colaboração da sua equipa, faz o ponto das suas pesquisas e reflexões. Podemos dizer que o seu reconhecimento profissional, foi, finalmente, expresso pela sua eleição como presidente da Associação Americana de Psicologia (1946), pela sua eleição como presidente da recém-criada Academia Americana de Psicoterapeutas (1956) e pela atribuição em 1956 do Prêmio pelo Eminente Contributo Científico (Distinguished Scientific Contribution Award), pela Associação Americana de Psicologia, que sublinhava: “por ter desenvolvido um método original para descrever e analisar o processo terapêutico, por ter formulado uma teoria da psicoterapia e dos seus efeitos na personalidade e no comportamento, susceptível de ser testada, pela extensa e sistemática pesquisa para explicitar o valor do método e explorar e testar as implicações da teoria. A sua imaginação, persistência e adaptação flexível do método científico no ataque dos grandes problemas envolvidos na compreensão e modificação da pessoa moveram esta área de interesse psicológico para dentro das fronteiras da psicologia científica”. O fulcro da sua abordagem passa da importância dada às técnicas para, progressivamente, acentuar as atitudes, isto é, da técnica da reformulação para as atitudes de compreensão empática, de aceitação do cliente, de congruência do terapeuta, de confiança nas capacidades do cliente para a auto-atualização das suas potencialidades e para a auto- organização e, finalmente, para uma valorização das potencialidades terapêuticas da relação. É também um período de intensa atividade de investigação durante o qual mais de duzentas pesquisas são realizadas assim como milhares de sessões de terapia são gravadas e analisadas. Publica em 1957 um dos seus mais importantes artigos, no qual procura de maneira rigorosa definir “as condições necessárias e suficientes para mudança terapêutica da personalidade”, condições essas que seriam comuns a todas as relações terapêuticas quaisquer que fossem os modelos teóricos que as inspirassem e susceptíveis de serem testada experimentalmente. No Verão de 1961, Carl Rogers faz uma longa viagem ao Japão onde é recebido calorosamente e onde estabelece laços de amizade e de partilhaprofissional que considera como muito enriquecedores. Nesse mesmo ano publica o livro “Tornar-se pessoa (7) que rapidamente se torna um best-seller mundial. Nesse livro Carl Rogers explora a aplicação dos princípios da terapia centrada no cliente a outros domínios do humano – educação, relações inter-pessoais, relações familiares, comunicação intergrupal, criatividade — e apresenta a sua abordagem como uma filosofia de vida, uma “maneira de ser” (“a way of being”), com profundas implicações e aplicações em todos os domínios do humano. Foram vendidos quase um milhão de exemplares desta obra. Rogers investe cada vez mais no trabalho com os grupos de encontro. Rogers considera o trabalho dos grupos de encontro como instrumento privilegiado não só para o desenvolvimento pessoal mas também para a educação, para a gestão e administração e para a resolução de conflitos. O livro “Grupos de encontro”, publicado em 1970, aparece como um instrumento de trabalho apreciado tanto pelos profissionais como pelos leigos e impõe-se rapidamente como um livro de consulta obrigatória na área. Em 1971, em colaboração com o filho David e Orienne Strode, Rogers desenvolve o “Human Dimension Project” para utilização dos grupos de encontro na educação médica e na formação à relação médico-doente. A sua atenção dirige-se também de maneira prioritária, nesta época, para o campo da educação, propondo uma pedagogia centrada no aluno, experiencial. Esta pedagogia aparece como tendo muitos pontos comuns com a que Paulo Freire proporá como “educação não bancária”, apesar de Carl Rogers ainda não ter, nesse momento, conhecimento do trabalho de Paulo Freire. A Pedagogia Experiencial é objeto de dois grandes livros: “Liberdade para Aprender” (1969) e “Liberdade para Aprender nos Anos 80” (1983). O essencial da sua mensagem consiste no fato de que os alunos aprendem melhor, são mais assíduos, mais criativos e mais capazes de solucionar problemas quando os professores proporcionam o clima humano e de facilitação que Carl Rogers propõe. Com 70 anos, Carl Rogers é o primeiro psicólogo americano a receber os dois maiores galardões da Associação Americana de Psicologia, tanto pelo seu contributo científico como pelo seu contributo profissional. A partir de 1972, dedica-se preferencialmente à intervenção e reflexão sobre os aspectos referentes às áreas do social e do político, explorando as possibilidades maturativas e criativas que os grupos de encontro oferecem. Expõe o essencial destas reflexões no livro publicado em 1977 “Poder Pessoal” (8) e em 1967 apresenta o seu modelo de abordagem centrada na pessoa e a sua filosofia de intervenção não só como um modelo de psicoterapia mas também como uma abordagem eficaz em todas as relações humanas, quer elas sejam relações de ajuda, relações pessoais ou políticas. Richard Farson dirá que Carl Rogers é “o homem cujo efeito cumulativo na sociedade o tornou num dos revolucionários sociais mais importantes do nosso tempo”. Carl Rogers investe cada vez mais nos últimos anos da sua vida na investigação, empenhando-se em grandes workshops transculturais, ou de esforço pela paz e, finalmente em 1987, o seu nome faz parte do grupo das personalidades indicadas para a atribuição do prêmio Nobel da Paz. Infelizmente a morte colheu-o antes, num momento em que, apesar da sua idade avançada, continuava perfeitamente lúcido, extremamente ativo, e gozando plenamente da vida em todos os domínios desta e, como ele dizia aos seus amigos mais próximos, como nunca o fizera antes. Estes últimos anos foram também marcados, sobretudo após a morte de sua esposa Helen, em Março de 1979, por um maior interesse pela dimensão espiritual do homem, pela sua integração numa globalidade que o transcende e que se insere numa harmonia global do universo. Toma consciência da importância da dimensão da “presença” na terapia, que ele associa a uma forma de comunicação transpessoal e na qual a intuição tem um papel importante. Apresenta-a como um novo campo a explorar no âmbito da sua abordagem e no domínio daquilo que se poderia chamar, talvez, os estados alterados de consciência. Assim, de uma certa maneira, o circulo se fechara. Dos primeiros interesses e empenhos numa teologia e numa carreira pastoral, Carl Rogers chega ao fim da sua vida a um interesse renovado pelo campo do espiritual no homem, mas num espírito de liberdade e de tolerância, muito longe da visão fundamentalista e estreita da sua juventude. Guardara talvez o aspecto proselitista, a confiança indestrutível num futuro melhor, não ignorando, como ele fez questão de sublinhar em numerosas ocasiões, toda a miséria, dor, sofrimento e mal que nos acompanham na nossa peregrinação. 3. A difusão do pensamento de Carl Rogers nas ciências humanas Quando Rogers começa o seu trabalho de terapeuta, a psicoterapia era considerada nos Estados Unidos como uma atividade médica e só reservada aos médicos. Rogers não só se opõe a este monopólio como até pretende, num primeiro tempo, defender que os médicos, cuja formação privilegia o diagnóstico e a propensão para dirigir os outros, não apresentam a formação de base ideal para a prática desta nova profissão, a qual ele considera naturalmente mais indicada para as pessoas com uma formação de base em psicologia. Grande parte de seus conceitos foram integrados pelas múltiplas correntes terapêuticas, quando não mesmo pela linguagem comum. A noção de empatia foi retomada por todas as escolas e ninguém desconhece a importância deste conceito desde a psicanálise, sobretudo com Kohut, até às teorias cognitivo-comportamentalistas. Do mesmo modo, quer a congruência, quer a aceitação, foram conceitos que se difundiram de forma tal que a abordagem terapêutica de Carl Rogers parecia condenada a desaparecer diluída e integrada pela multiplicidade das escolas. Talvez o conceito que maior dificuldade teve em ser adequadamente compreendido e integrado tenha sido o de não-diretividade, apesar de muitas escolas considerarem a sua intervenção terapêutica como não-diretiva. Poder-se-ia pensar que o ciclo estava concluído e que o pensamento de Carl Rogers, por se ter integrado plenamente na cultura, deixara de ter pertinência e singularidade para se esbater naquela herança cultural que todos partilham sem reivindicar especificidades. Carl Rogers, referindo-se a estes princípios, escreve que eles “se infiltraram na educação, onde as suas implicações revolucionárias provocam controvérsias”. Influenciaram casamentos e parcerias. Afetaram as relações com os pais. Alcançaram indústrias e escolas de gestão… A educação e práticas médicas também sentiram a mudança. Nem mesmo a profissão jurídica ficou isenta. O aconselhamento pastoral foi profundamente mudado. Trabalhadores no desenvolvimento de comunidades atuam de modo diferente. Podemos dizer que as idéias de Carl Rogers tiveram uma imensa difusão quer no campo da psicologia quer no da psicoterapia e a sua influência estendeu-se a todas as ciências humanas. 4. A posição de Carl Rogers na Psicologia atual Durante a maior parte da sua vida Carl Rogers opôs-se à institucionalização do seu pensamento ou das suas idéias. De alguns anos para cá, o movimento rogeriano tomou consciência contudo da riqueza da herança recebida e do fato de que a Terapia Centrada no Cliente tinha ainda hoje pleno lugar no panorama das psicoterapias como uma das mais firmemente esteadas na pesquisa e com mais sólidas raízes filosóficas. Apareceu, assim, uma segunda vaga de terapeutas que no “universo” rogeriano são por vezes considerados como puristas ou ortodoxos e que, sem pôr em causa a filosofia da Abordagem Centrada na Pessoa ou asua aplicação aos múltiplos campos do humano, propõe o retorno, no campo da psicoterapia, ao modelo dito da Terapia Centrada no Cliente, o qual assenta nos três pilares que acima referimos. Do mesmo modo, na última década, assistiu-se a um retorno da Abordagem Rogeriana aos meios universitários e a um retomar das atividades de pesquisa, que durante alguns anos tinham passado, de certa maneira, a segundo plano, enquanto que as atividades de exploração dos limites de aplicação e aplicabilidade do modelo filosófico, tinham sido mais privilegiadas. Nomeadamente, Barrett-Lennard faz uma extensa e cuidada crítica a mais de duzentos projetos de investigação. Um dos aspectos que me parece particularmente interessante é que as terapias de tempo limitado são um excelente campo de investigação, pela possibilidade de enquadramento num projeto mais controlável e também pela sua brevidade. Um estudo que ficou célebre foi o Projeto de Hamburgo (14) em 1981 que consistiu em comparar a psicoterapia de tempo limitado de inspiração psicanalítica com a psicoterapia de tempo limitado centrada no cliente e com um grupo de controle sem terapia, utilizando para tal uma impressionante bateria de testes psicológicos. Os resultados mostraram uma significativa vantagem no grupo sujeito a terapias em comparação com o grupo que não fez terapia, e uma diferença não significativa entre as duas perspectivas terapêuticas. Contudo, poder-se-ia inferir que os clientes que tinham beneficiado de uma psicoterapia de inspiração psicanalítica tinham no fim do tratamento um maior insight em relação aos que tinham beneficiado de uma psicoterapia centrada no cliente, expressando estes últimos, no entanto, um maior sentimento de “bem estar no seu corpo”. Em 1990 Eckert e Biermann-Ratjen (16) comparam os resultados de grupos terapêuticos inspirados nos modelos rogeriano e freudiano e concluem que ambos apresentam iguais resultados na diminuição da depressão, da introversão e do desconforto na adaptação à vida. Mostram também que os que beneficiaram duma abordagem psicanalítica apresentam um maior sentimento de autonomia interna e externa e os que beneficiaram do tratamento inspirado no modelo rogeriano, uma maior capacidade em relacionar-se e contatar com os outros. De maneira geral verifica-se que a escolha do modelo rogeriano relativamente a outros modelos não assenta numa questão de eficácia, pois é comprovadamente semelhante com a dos principais modelos acreditados no mundo científico, não assenta tão pouco numa especificidade diagnóstica, que aliás o modelo rogeriano sempre rejeitou, mas na opção filosófica quer do cliente, quando esclarecido, quer do terapeuta, no seu posicionamento em relação às questões fundamentais do valor e do respeito do humano e do seu posicionamento na abordagem da pessoa relativamente a uma perspectiva essencialista ou existencialista. 5. Qual é o impacto de Carl Rogers ainda hoje? Neste momento de crise econômica, social e humana em que os valores do individual tendem a desaparecer, não em proveito de uma percepção adequada do social, mas do macroeconômico em que o indivíduo só é valorizado em termos econômicos e que a vida deixou de ter um valor único (vejam-se os corte nas despesas sociais e de saúde atualmente em todos os países desenvolvidos), a mensagem de Rogers parece-nos de novo indispensável para o retorno ao individual, ao pessoal, mas não num pessoal ou individual que se opõe e é incompatível com o social, mas num individual que dá sentido ao social, num conceito isomórfico de organismo, a todos os níveis de organização, numa posição profundamente ecológica, holística e humanista. Foi bem Carl Rogers uma das figuras de proa da chamada terceira força da psicologia, a psicologia humanista, alternativa humanista às posições essencialistas e deterministas das psicanálises e dos comportamentalismos. Referências Bibliográficas: 1 Smith, D. (1982). Trends in counseling and psychotherapy. American Psychologist. 37(7), 802-809. 2 Kaplan, (1995). Comprehensive textbook of psychiatry -sixth edition. Chapter 31. Williams & Wilkins. 3 Rogers, C. (1979). O tratamento clínico da criança-problema. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. 4 Rogers, C. (1942). Counseling and Psychotherapy: Newer concepts in practice. Boston: Houghton Mifflin. 28-30. 5 Rogers, C. (1942). Counseling and Psychotherapy: Newer concepts in practice. Boston: Houghton Mifflin. 6 Rogers, C. (1951). Client-Centered Therapy: Its Current Practice, Implications and Theory. Boston: Houghton Mifflin. 7 Rogers, C. (1961). On Becoming a Person. Boston: Houghton Mifflin. 8 Rogers, C. (1986). Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes. 9 De Peretti, André (1987). Présence de Carl Rogers .Ramonville Saint-Agne: érès. 10 Bozarth, J. (1998) Person-Centered Therapy: A Revolutionary Paradigm. Ross-on-Wye: PCCS Books. 11 Barrett-Lennard G. T. (1998). Carl Rogers’ Helping System: Journey & Substance. London: Sage. 12 Ends, E. J. & Page, C. W. (1957) A study of three types of group therapy with hospitalized males inebriates. Quarterly Journal of Studies in Alcohol. 18, 263-277. 13 Shlien, J. M., Mosak, H. H., Dreikers, R. (1962). Effect of time limits: a comparison of two psychotherapies.Journal of Counseling Psychology, 9, 31-34. 14 Meyer, A.E. (Ed.) (1081). The Hamburg Short Psychotherapy Comparison Experiment. Psychotherapy and Psychosomatics, Vol. 35, N.º2-3. 15 Nunes, O. (1998): Psicoterapia de Tempo Limitado uma Perspectiva Centrada no Cliente. A Pessoa Como Centro; revista de Estudos Rogerianos Nº.1. 16 Eckert, J. & Biermann-Ratjen, E. M. (1990). Client centered therapy versus psychoanalytic psychotherapy: reflections following a comparative study. In G. Lietaer, J. Rombatus & R. Van Balen (Eds.) (1990). Client-centered and experiential psychotherapy in the nineties. (pp.457-468). Leuven: Leuven University Press.
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