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O CONTRATO SOCIAL DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU Moisés do Carmo Conceição1 RESUMO: A obra O Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau é um clássico da Filosofia. Nela são discutidas as questões da origem, formação e manutenção das sociedades humanas entendidas sobre a base da celebração de um acordo ou contrato entre os homens. A modernidade, com as transformações cientifica e epistemológica pelas quais passou, instituiu um modelo interpretativo da realidade social e política que colocou novas bases à legitimidade do poder. Mas, ainda havia na sociedade do Século XVIII, fagulhas do sistema organicista aristotélico, onde se explicava a sociedade como algo natural, ou seja, uma continuação da natureza. O conceito de poder como de origem divina ainda justificava, de forma inquestionável, o poder dos príncipes. Assim, Rousseau, ao propor o Contrato, estabeleceu o indivíduo como a fonte de todo poder, que é legitimado por uma convenção. Rousseau também faz uma critica ao sistema absolutista, exposto por Thomas Hobbes, e a todo poder centralizado na figura de uma pessoa. O pacto, na sua essência, visa fundar a base do poder político no consenso. Em Rousseau, esse pacto se realiza quando todos abdicam igualmente de sua liberdade. Nesse sentido, a questão pertinente é a seguinte: Como Rousseau, na obra O Contrato Social, se propõe à árdua tarefa de discutir um pacto que – mesmo alienando-se de sua liberdade – garante que o indivíduo continue livre? Palavras-Chave: Sociedade, Contrato Social, Vontade Geral, Liberdade Civil e Política. 1. INTRODUÇÃO O Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau é uma obra fundamental para a Filosofia. É, ao mesmo tempo, uma obra para ser lida com prazer, pois nela o autor conversa de igual para igual com o leitor. O Contrato Social é um texto escrito numa linguagem clara e agradável, permitindo a compreensão de conceitos importantes para a Filosofia Política atual. Procurando resolver a questão da legitimidade do poder, Rousseau também fundamenta sua posição no contrato social – a exemplo de seus antecessores Hobbes e Locke. Entretanto, o 1 Professor-Tutor do Curso de Filosofia do Núcleo de Tecnologias para a Educação – UEMANET da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA; Possui Graduação em Filosofia (UFMA) e Pós-Graduação Lato Sensu em Psicopedagogia (UEMA) e Gestão Pública (UEMANET/UEMA diferencial que destaca sua posição inovadora e o que irá culminar em sua proposta de uma nova sociedade, é a aplicação dos conceitos soberano, governo e vontade geral. Apesar de O Contrato Social não ser uma obra estritamente sistemática nem oferecer uma exposição didática das idéias de Rousseau – pois só o compreenderemos completamente acercando-nos de suas demais obras – é de uma riqueza sem igual. Está dividido em quatro livros. O primeiro (com nove capítulos), trata do fundamento legítimo da sociedade política. O filósofo aponta o contraste entre a condição natural do homem, que é de plena liberdade, e sua condição social, de restrição a esta liberdade. A forma como essas duas situações se relacionam é o tema desse primeiro livro. Exatamente no capítulo sexto Rousseau descreve o conceito de pacto social, uma das bases de seu pensamento. O segundo livro (com doze capítulos) discute as condições e os limites do poder soberano, inalienável e indivisível, e o terceiro livro (mais sistemático e mais extenso, formado por dezoito capítulos) reflete sobre a forma e o funcionamento da máquina governamental. O último e quarto livro reúne diversas considerações sobre eleições, assembléias e órgãos e funções governamentais complementares. É onde Rousseau conclui com um capítulo sobre a religião. Claramente não hostil à religião como tal tem, entretanto, sérias restrições contra pelo menos três tipos de religião, distinguindo a “religião do homem”, que pode ser hierarquizada e individual e a “religião do cidadão”. Sua proposta ante o impasse da variedade de religiões existentes é a Tolerância. Portanto, dada a recidiva importância da referida obra no processo político atual, abordaremos nesta pesquisa os principais aspectos e conceitos, buscando contribuir com uma sociedade cada vez mais efetiva e participante. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO CONTRATO SOCIAL – OS LIVROS 2.1. Livro I Para Rousseau, a ordem social é um direito sagrado e base de todos os outros direitos, não se origina na natureza, mas funda-se em convenções. A família é única sociedade natural, mas só se mantém por convenção, no que diz respeito a sua continuidade. Ela é o primeiro modelo das sociedades políticas, pois a imagem do chefe é o pai, a do povo, os filhos. Critica a Aristóteles, que acreditava que alguns nasciam para ser escravo e outros para ser senhor. No entanto, Rousseau diz que, se há escravos por natureza, é por haver escravos contra a natureza. A força fez os primeiros escravos e sua covardia os perpetuou. 2 O mais forte só se mantém como o mais forte enquanto transforma sua força em direito e a obediência em dever. A força é um poder físico, cujos efeitos não resultam moralidades, pois ceder à força é um ato de necessidade ou até prudência e não de vontade. Rousseau ainda expõe que homem algum tem autoridade natural sobre os demais, a força não produz direito algum. Dessa forma, restam as convenções como base da autoridade. Afirma que, no processo de escravidão, o homem que se dá gratuitamente constitui uma afirmação absurda e inconcebível. O estado de natureza oferece obstáculos prejudiciais à conservação humana que ultrapassam as forças individuais. Ora, essa soma de forças só pode sair do concurso de muita força, sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo o instrumento primordial de sua conservação. Imagino os homens que chegaram ao ponto em que os obstáculos, que são prejudiciais à sua conservação no estado natural, arrastam-nos, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo para se manter nesse estado (...) Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir aquelas que existem (...) (Rousseau, 2006, p. 22) Nesse sentido, encontra-se uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum. Essa forma de associação se dará com o pacto social. O soberano para Rousseau não se configura em pessoa, mas em um corpo coletivo, “ora, o soberano, sendo formado tão-somente dos privados que o compõem, não tem nem pode ter interesse contrário ao deles...” (Rousseau, 2006, p. 26). O filósofo genebrino afirma que, quando o homem passa para o estado civil, substitui a conduta por instinto pela justiça, ou seja, pela moralidade em suas ações. No estado civil perde- se a liberdade natural, que se limita nas forças do indivíduo, e ganha a liberdade civil, que limita- se pela vontade geral. O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e que pode alcançar. O que ganha é liberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui (...) (Rousseau, 2006, p. 28) 2.2. Livro II (...) somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum, (...) Afirmo, portanto, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se e que o soberano, que não é senão um ser coletivo, não pode 3 ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não, porém, a vontade. (Rousseau, 2006, p.34) (...) Se o povo portanto, promete simplesmente obedecer, dissolve-se em conseqüência desse ato, perdesua qualidade de povo. No instante em que houver um patrão, não haverá mais soberano e, a partir de então, o corpo político é destruído. (Rousseau, 2006, p.35) É desse modo que Rousseau afirma que a soberania é inalienável. À medida que a vontade geral é aplicada, tem-se soberania. Se a vontade geral não for executada, ocorre a vontade particular. O que é decidido pelo soberano (povo), deve ser encaminhado. Ou seja, o povo tem que decidir e não deixar que outrem decida por ele. Pois, dessa forma, estaria alienando sua decisão, ou seja, transferindo para outro algo que pertence somente a si. Pela mesma razão que a soberania é inalienável é também indivisível porque a vontade é geral ou não o é (...) Nossos políticos, porém, não podendo dividir a soberania em seu princípio, dividem- na em seu objeto: dividem-na em força e em vontade (...) (Rousseau, 2006, p. 44). É assim que Rousseau afirma, também, que a soberania é indivisível. À medida que as decisões são tomadas pelo soberano, devem ser encaminhadas como foram decididas, ou seja, como uma decisão de um corpo coletivo porque é vontade geral. Em uma divisão de poderes o que prevalece é a vontade particular, que não considera o soberano (povo). Assim, uma divisão bem clara de poderes é a seguinte: poder legislativo e poder executivo. O que ocorre com essa divisão é que o legislativo faz as leis e o executivo (governo) executa essas leis. Criam-se “ministérios” que executam as decisões do executivo. No que diz respeito à vontade geral e se ela pode errar, Rousseau é categórico na citação seguinte: Daquilo que precede segue-se que a vontade geral é sempre reta e tende sempre à utilidade pública, mas disso não se segue que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão. Sempre se quer o próprio bem, mas nem sempre se consegue vê-lo. Nunca se corrompe o povo, mas o engana muitas vezes (...) (Rousseau, 2006, p. 38) Segundo Rousseau, com a existência de associações (grupos) as divergências são menos numerosas, pois podemos dizer que não há tantas divergências quanto homens. Mas, o grande problema é quando uma associação se sobrepõe às demais, restando daí uma diferença única. Sendo assim, não há vontade geral e sim um acordo particular. 4 É bem mais fácil chegar à vontade geral com uma grande quantidade de pequenas diferenças, pois nessa quantidade, as pequenas diferenças se destroem mutuamente e fica o bem comum. Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não tivessem nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa (...) (Rousseau, 2006, p. 38) Rousseau afirma que para se ter uma vontade geral bem representada, não deve haver associações parciais no Estado e cada cidadão terá somente sua opinião. Caso não possam ser evitadas as associações, que sejam, ao máximo, multiplicadas, prevendo a desigualdade. Isto é, deve-se buscar a grande quantidade de pequenas diferenças. Estas são precauções para que o povo nunca se equivoque. Quanto aos limites do poder soberano, Rousseau diz que “(...) o pacto social confere ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, leva, recebe o nome de soberania” (Rousseau, 2006, p. 40). O soberano não pode sobrecarregar o cidadão com coisas inúteis à sociedade. Pois, dessa forma, estaria aplicando uma vontade particular. O poder soberano não pode obrigar individualmente um cidadão, pois os compromissos são mútuos. 2.3. Livro III Rousseau parte, no terceiro livro, para as considerações sobre a forma e o aparato governamental, demonstrando cada vez mais exatidão sistemática. É favorável, para tirar uma melhor compreensão desse livro, ver além das fórmulas exatas com que Rousseau mostra o governo. Rousseau reconhecerá duas causas para cada ação livre: uma moral, a vontade que determina o ato, e a outra, física, a potência ou o poder que executa o ato. O corpo político terá os mesmos móveis, pois nele se distinguem a força e a vontade. Esta sob o nome de poder legislativo e aquela sob o nome de poder executivo. O que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. (Rousseau, 2006, p. 69) 5 Segundo o genebrino, o governo é um corpo intermediário entre o súdito e o soberano, é uma administração suprema em que o príncipe exerce o poder executivo. As pessoas públicas formam a República e são chamadas “o Estado”, quando passivas, e “soberano”, quando ativas. O soberano não pode violar o contrato ou alienar qualquer porção de si mesmo. O corpo político não pode se submeter a outro soberano. Isso seria se auto aniquilar. Em uma sociedade, quando se ofende um, ofende todo o corpo. O soberano não pode ter uma opinião contrária a todos, mas isto não se aplica ao indivíduo. Os compromissos do corpo social são mútuos. Trabalhando para os outros, trabalha-se para si mesmo. Os indivíduos têm suas vontades particulares, mas existe também a vontade geral. Assim, cada homem é legislador e sujeito, obedecendo a leis que lhe são favoráveis. O tratado social tem por finalidade conservar e proteger os contratantes. Conforme Rousseau, os governantes, ou magistrados, não devem ser numerosos, para não se enfraquecer, pois quanto mais atua sobre si mesmo, menos influência tem sobre o todo. E, na pessoa do magistrado, há três vontades diferentes: a do indivíduo, a vontade comum dos magistrados e a vontade do povo, que é a principal. Rousseau explica porque o governo deve ser centralizado. No entanto, era contra o absolutismo que reinava na época. Então, analisa as três formas de governo: Na democracia, os cidadãos exercem o magistrado. Na aristocracia, existem mais cidadãos comuns que magistrados. Na monarquia, há apenas um magistrado. Rousseau expõe que a verdadeira democracia é impraticável, pois o interesse privado não deve sobrepor-se ao interesse geral. Existem muitas dificuldades nessa forma de governo, que é a mais suscetível às guerras civis. Por isso, aconselha o seguinte: Aquele que faz a lei sabe melhor que ninguém como ela deve ser executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que aquela em que o poder executivo está unido ao legislativo. Mas é justamente isso que torna esse governo insuficiente sob certos aspectos, porque as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são e porque o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo. (Rousseau, 2006, p. 78) Segundo Rousseau, existem três tipos de aristocracia: a natural, a eletiva e a hereditária. A hereditária é o pior dos governos. A aristocracia não é favorável à igualdade, mas tem virtudes. Na monarquia, o indivíduo representa o ser coletivo. A vontade particular impera e domina mais que nas outras formas de governo. Há uma distância entre o príncipe e o povo. Por 6 isso, é preciso um grande monarca para que o Estado seja bem governado. Rousseau não aprova a monarquia hereditária. Ele descreve que na monarquia, o despotismo, em vez de deixar o povo feliz, torna o povo miserável. É penoso sustentar o luxo da corte. Quando conclui que nem toda forma de governo é apropriada a todos os países, Rousseau afirma que o governo simples é o melhor. Mas, na realidade,não há governos simples. Em todos os governos do mundo, as pessoas públicas não produzem, mas consomem. Quem trabalha são os membros, o povo. Assim, o Estado civil só pode existir quando o produto do trabalho do homem é maior que suas necessidades. Rousseau destaca, também, que os povos do norte são mais desenvolvidos e vivem com muito. Quanto mais ao sul mais se vive com pouco. Entretanto, os alimentos são mais substanciosos nos países quentes. Rousseau quer dizer com isso que... Se todo o sul estivesse coberto de repúblicas e todo o norte de Estados despóticos, não seria menos verdade que por motivo do clima, o despotismo seria conveniente aos países quentes, a barbárie aos países frios e a boa política às regiões intermediárias. (Rousseau, 2006, p. 92) Ao abordar sobre o abuso do governo e de sua tendência a degenerar, Rousseau afirma que o governo não passa de um intermediário entre o soberano e os súditos. Mas, mesmo assim, impõe-se o despotismo. Sempre o governo tenta tomar, por força, o lugar do soberano, pois “assim como a vontade particular age continuamente contra a vontade geral, assim também o governo se empenha com esforço contínuo contra a soberania.” (Rousseau, 2006, p. 98). Sendo o soberano a pessoa pública, só as assembléias periódicas podem garantir que não se usurpe o poder. Ainda segundo o genebrino, o governo se degenera quando se restringe ou quando o estado se dissolve. O Estado se dissolve quando o príncipe usurpa o poder soberano. É o que nos faz perceber com a seguinte afirmação: O governo se restringe quando passa do grande número ao pequeno, isto é, da democracia à aristocracia e da aristocracia à realeza. É essa sua inclinação natural. (Rousseau, 2006, p. 98) Rousseau conclui o terceiro livro afirmando que o ato que institui o governo não é um contrato, mas uma lei e os que estão no poder executivo não são senhores, mas funcionários do povo. Entretanto, afirma também que não há lei no Estado que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social. 7 2.4. Livro IV Para que a vontade geral seja indestrutível, o direito de votar em todo ato de soberania terá de ser assegurado pelo governo. Rousseau pergunta se a vontade geral pode ser aniquilada ou corrompida se os cidadãos deixarem de opinar e decretos iníquos forem estabelecidos. Rousseau mesmo responde negativamente, assegurando que a vontade geral é sempre constante, inalterável e pura, mas está subordinada a outras vontades particulares que a superam. Mesmo o cidadão “vendendo seu sufrágio a preço de ouro, não extingue em si a vontade geral, mas a engana”. Os direitos de votar, opinar, propor e discutir são direitos que nada pode tirar dos cidadãos, e quanto mais a harmonia reinar nas assembléias, tanto mais a vontade geral se revela dominante. Comentando acerca dos sufrágios e das eleições, Rousseau alerta para o perigo da perca da liberdade: Quando os cidadãos não têm mais liberdade, o temor e a lisonja transformam o sufrágio em aclamações e não se delibera mais. O pacto social é a única lei que, por natureza, exige um consentimento unânime – que daí gera a vontade geral. Se houver opositores, sua oposição não invalida o pacto, mas exclui a eles mesmos – os opositores. Nas eleições, dois caminhos existem para proceder: a escolha e o sorteio. Rousseau concorda com Montesquieu quando este diz que o sufrágio por sorteio é da natureza da democracia – o que não tem lugar num governo monárquico. Ao deixar a cada cidadão uma razoável esperança de servir à pátria, só isso teria razão suficiente. Se a escolha e o sorteio se encontram misturados, cabe à primeira preencher os postos que requerem aptidões apropriadas a exemplo dos cargos militares. Já ao sorteio convém aos postos em que bastam o bom senso, a justiça e a integridade, como os cargos de judicatura. Ademais, num Estado bem constituído, essas qualidades são comuns a todos os cidadãos. Mas Rousseau pretende falar sobre a maneira de dar e recolher os votos na assembléia do povo e, para isso, traça um histórico da política romana a esse respeito. Rousseau traça um detido relato sobre os comícios romanos procurando, através da história do estabelecimento de Roma, explicar sua formação. As tribos – daí o termo tribunato – logo após a fundação de Roma, eram em número de três, que foram subdivididas em dez cúrias e cada cúria em decúrias. Também, de cada tribo tirou-se um corpo de cem cavaleiros, chamado centúria militar. 8 Após diversas modificações, implantadas desde Rômulo a Sérvio, com a distinção de tribos da cidade e tribos do campo, resultou um efeito que deve a um só tempo a conservação de seus costumes e o crescimento: tornou-se hábito procurar nos campos os sustentáculos da República. Os comícios por cúrias eram uma instituição de Rômulo e os comícios por centúrias, de Sérvio. Já os comícios por tribos, dos tribunos do povo. Assim, o povo romano passou por diferentes divisões em sua estrutura política e os efeitos que essas divisões produziram nas assembléias, denominadas comícios, foram os seguintes: (...) Só os comícios sancionavam as leis e elegiam os magistrados. E como não houvesse nenhum cidadão que não estivesse inscrito numa cúria, numa centúria ou numa tribo, segue-se que nenhum cidadão era excluído do direito do sufrágio e que o povo romano era verdadeiramente soberano de direito e de fato. (Rousseau, 2003, p. 108) A maneira de dar e recolher os votos nos comícios romanos se dava da seguinte maneira: (...) Dava cada um o seu voto em voz alta e um escrivão o anotava; pluralidade de votos em cada tribo determinava o sufrágio da tribo e o mesmo ocorria nas cúrias e nas centúrias. Esse costume era bom enquanto reinava a honestidade entre os cidadãos e cada um tinha vergonha de dar publicamente seu voto a uma decisão injusta ou a um assunto indigno. Quando, porém, o povo se corrompeu e os votos passaram a ser negociados, convencionou-se que o sufrágio se tornasse secreto a fim de conter os compradores pela suspeita e fornecer aos velhacos o meio de não se tornarem traidores. (Rousseau, CS, livro IV, IV, p. 111) Rousseau cita Cícero e sua lamentação por tal mudança. Para Cícero, a ruína da República em parte é atribuída a essa mudança. Rousseau, pelo contrário pensa que, por não terem sido processadas mais mudanças semelhantes, a perda do Estado foi acelerada mais ainda. Foi Rômulo que, ao instituir as cúrias, teve por meta conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Mesmo após inúmeras modificações que demonstram sua inutilidade, com tanto abuso, o imenso povo romano não deixou jamais de eleger seus magistrados, de aprovar leis, de julgar causas, de expedir negócios particulares e públicos – e quase com tanta facilidade como o teria feito o próprio senado. No que diz respeito à implantação de uma religião de Estado, Rousseau estava convencido de que o verdadeiro e legítimo Contrato Social requeria o suporte da religião. Tanto que não preconizava uma religião qualquer, mas uma religião que encorajasse virtudes civis como coragem e patriotismo. (...) Ora, muito importa ao Estado que cada cidadão tenha uma religião, que lhe faça amar os seus deveres; mas os dogmas dela só interessam o Estado e seus membros, 9 no que se referem à moral, e deveres do que a professa, deveres que para com os outros deve preencher. (Rousseau, 2003, p. 123) Na obra O Contrato Social, após analisar três espécies de religião, Rousseau propõe a introdução dessa nova religião nos moldes de uma profissão de fé puramentecivil que, depois de ser aceita pelos cidadãos, deveria ser seguida sob pena de morte. À primeira vista, e em consonância com a tese reacionária e com os opositores ideológicos, essa preconização parece depor contra Rousseau um possível despotismo. Ele, contudo, intentava reforçar o Contrato Social por meio de sanções rigorosas que acreditava necessárias para a manutenção da estabilidade política da sociedade por ele idealizada. Seu intento baseava-se na possibilidade de uma sociedade ideal que funcionasse consoante a razão e o direito natural. O Estado descrito por Rousseau é apenas um instrumento de análise conceitual ou um programa a ser colocado em prática? Antes de tudo, devemos saber que, sendo o Contrato Social uma livre associação de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito à vontade geral, quando todos abdicam de sua liberdade particular e sendo a religião, para Rousseau, um suporte imprescindível à constituição do Estado, então estaria aí a justificativa de sua posição quanto a punição dos estranhos aos sentimentos de sociabilidade. Fixada através das leis, expressa na opinião, nos usos e nos costumes, a religião civil se traduziria na lei gravada nos corações dos cidadãos, ou seja, na quarta espécie das leis enunciadas por Rousseau no Contrato Social, conforme se percebe na seguinte citação: A essas três espécies se junta uma quarta, de todas a mais importante, que não se esculpe no mármore, ou no bronze, mas sim no peito dos cidadãos; que forma a verdadeira constituição do Estado; que todos os dias medra em forças; que reanima e supre as outras leis quando elas envelhecem e se apagam; que conserva um povo no espírito de sua instituição, e insensivelmente substitui a força do hábito à força da autoridade. Falo dos costumes, usos e mormente da opinião, parte desconhecida de nossos políticos, e da qual depende o acerto de todas as outras; parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se a estatutos particulares, que são unicamente o arco da abóbada, da qual os costumes, lentos em nascer, formam finalmente a duradoura chave. (Rousseau, 2003, p. 61) 10 3. CONCLUSÃO Rousseau empenhou-se em investigar, a partir de um novo Contrato Social, a possibilidade de uma vida em sociedade, referendada por bases legitimas expostas em sua obra O Contrato Social. Nesta obra, podemos claramente identificar a proposta rousseauniana de uma nova vida em sociedade a partir do ideal de soberania vinculada ao povo, além de averiguar o paradoxo entre vontade individual e vontade geral. Com esse propósito, o genebrino destacou a intermediação do Governo entre os súditos e o soberano na preservação e manutenção da liberdade civil e política, quando todos abdicam igualmente de sua liberdade particular. Destacou, ainda, a problemática e a solução da criação de uma religião civil unificada no culto do coração e no dever para com o Estado. Rousseau teve legítima consciência de que a liberdade política está estreitamente ligada às condições de existência. Concluiu, assim, que a desigualdade dos direitos entre os cidadãos tem origem na desigualdade das riquezas. Mas, moralista que era, considerava que a principal condição para a existência de uma nova sociedade, pautada em um Estado legítimo, não era de ordem econômica ou política, e sim, de ordem moral ou religiosa. Daí o motivo de abordar a importância da religião no último capítulo de sua obra O Contrato Social. 4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Coleção A Obra Prima de Cada Autor. São Paulo – SP: Editora Martin Claret, 2003. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social ou Princípio do direito político. Tradução Ciro Mioranza.São Paulo –SP: Editora Escala Educacional (série Filosofar), 2006. 11 O CONTRATO SOCIAL DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
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