Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autora: Profa. Priscila Beralda Moreira de Oliveira Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudela Nanias Profa. Maria Francisca Vignoli Profa. Angélica Carlini Projetos Sociais no Terceiro Setor Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Professora conteudista: Priscila Beralda Moreira de Oliveira Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011), cursou um semestre de seu mestrado na Université Pierre Mendès France, em Grenoble – França (2010‑2011). Possui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Atuou como assistente social em consultoria na área de habitação e foi funcionária pública da Prefeitura do Município de São Paulo (2009‑2012), onde foi membro do Comitê de Ética em Pesquisa. Atualmente, é docente no curso de Serviço Social presencial na Universidade Paulista (UNIP) e no Instituto de Ensino Superior de São Paulo (IESP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O48p Oliveira, Priscila Beralda Moreira de. Projetos sociais no terceiro setor. / Priscila Beralda Moreira de Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2014. 84 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XIX, n. 2‑098/14, ISSN 1517‑9230. 1. Terceiro setor. 2. Responsabilidade social. 3. Ética empresarial. I. Título. CDU 658.5 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Cristina Z. Fraracio Amanda Casale Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Sumário Projetos Sociais no Terceiro Setor APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 CONTEXTUALIZAÇÃO SÓCIO‑HISTÓRICA: TERCEIRO SETOR E RESPONSABILIDADE SOCIAL..............................................................................................................................9 1.1 Capitalismo e sociedade capitalista .................................................................................................9 1.1.1 Especificidades do modo de produção capitalista .......................................................................9 2 TERCEIRO SETOR E O CAPITALISMO: CONTRADIÇÕES E DESAFIOS ............................................. 19 3 OS SETORES DA SOCIEDADE: UM DEBATE POLÊMICO ..................................................................... 21 3.1 Terceiro Setor: refletindo sobre esse conceito .......................................................................... 22 3.2 Terceiro Setor: emergência e fortalecimento na realidade brasileira ............................. 30 4 ELABORAÇÃO DE PROJETO SOCIAL: ALGUNS APONTAMENTOS .................................................. 38 Unidade II 5 RESPONSABILIDADE SOCIAL: CONCEITOS, VISÕES E DIMENSÕES. ............................................. 50 5.1 Responsabilidade social: refletindo sobre possibilidades e limites .................................. 56 5.1.1 Responsabilidade social corporativa: algumas contribuições .............................................. 57 6 RESPONSABILIDADE SOCIAL: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS ................................................................ 61 7 ÉTICA EMPRESARIAL: APONTAMENTOS PARA O DEBATE ............................................................... 62 7.1 Ética e moral: existe diferença? ...................................................................................................... 63 7.1.1 Código de ética Gife: um exemplo para ilustrar ........................................................................ 65 8 RESPONSABILIDADE SOCIAL DE EMPRESAS: UM DESAFIO PARA O SERVIÇO SOCIAL .............................................................................................................................................. 67 7 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 APRESENTAÇÃO O presente livro‑texto tem como objetivo oferecer ao acadêmico de Serviço Social elementos teóricos que contribuam para uma atuação crítica frente à gestão social das instituições assistenciais a partir da cultura das organizações, na implementação de modelos sustentáveis com qualidade. Não se trata de um manual de “como fazer”, mas de um espaço em que se pretende introduzir o leitor às determinações presentes neste campo de atuação profissional contraditório, estimulando reflexões que levem o profissional a se preparar para enfrentar os desafios cotidianos e a pensar e agir a partir de um amadurecimento teórico que permita, no lugar de reproduzir respostas prontas, elaborar soluções que de fato atendam às demandas que lhe serão apresentadas. Dessa forma serão discutidas ferramentas de diagnósticos da cultura das organizações, visando instigar uma posição capaz de identificar problemas organizacionais que possam prejudicar na qualidade de atendimento, assim como um posicionamento propositivo que contribua com as condições de autossustentabilidade das instituições. Nessa perspectiva, no decorrer dos capítulos, refletiremos sobre o Terceiro Setor na sociedade brasileira, pautando os principais desafios que este tem enfrentado na atualidade. Também abordaremos alguns conceitos pertinentes a essa reflexão, buscando compreender sua ampliação em nossa realidade. Do mesmo modo, discorreremos sobre sua evolução histórica e a inserção do assistente social nesse contexto. Para esse fim, refletiremos sobre a sociedade capitalista e suas implicações para o Terceiro Setor, buscando compreender o crescimento e fortalecimento desse seguimento no enfrentamento da questão social, o que pressupõe uma análise da relação Estado x Sociedade. Ademais, analisaremos o conceito de responsabilidade social, buscando destacar a ampliação do Terceiro Setor a partir da atuação de empresas socialmente responsáveis. Abordaremos o novo modelo de atuação na área social por meio da chamada parceria, que envolve empresa, governo, ONGs e sociedade civil, e, para finalizar, refletiremos sobre os desafiosimpostos ao profissional do Serviço Social nessas instituições. INTRODUÇÃO A emergência do Terceiro Setor na realidade brasileira, principalmente a partir da década de 1990, resulta, entre outros fatores, do fortalecimento da ideologia neoliberal que visa ao enxugamento do Estado frente à questão social. Nessa lógica, o Estado convoca a sociedade e o setor privado para efetivar ações de enfrentamento das expressões da questão social que deveriam ser de sua responsabilidade, isentando‑se do papel de Estado provedor de direitos sociais; pelo contrário, suas práticas têm se tornado cada vez mais distantes da concretização dos direitos sociais historicamente conquistados. 8 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Sendo assim, o Terceiro Setor tem encontrado condições para crescer e se fortalecer, constituindo‑se cada vez mais complexo, contemplando diferentes atores e revelando a emergência de um modelo de atuação na área social pautado na parceira entre empresa, governo, ONGs e sociedade civil. As empresas passam então a atuar no enfrentamento dos chamados “problemas sociais”, de forma mais organizada, intensificando doações de recursos e firmando parcerias com as ONGs, além de criar suas próprias fundações e institutos empresarias, que passaram a implementar diretamente os programas e projetos. Nessa realidade contraditória, cresce o campo de trabalho para o assistente social, que até este momento tinha uma atuação no ambiente empresarial pautada no âmbito interno: atendimento aos funcionários e suas famílias. Com a responsabilidade social das empresas, tais demandas tomam outras dimensões: o profissional do Serviço Social tem sido chamado, principalmente pelo setor privado, a contribuir com a elaboração, monitoramento e avaliação de programas e projetos sociais, entre outras atividades. Sua inserção nessa área tem gerado debates na categoria profissional, considerando que nesse ambiente contraditório não existem possibilidades para a concretização do projeto ético‑político‑profissional; porém, constitui‑se um campo de trabalho em ascensão, sendo necessário entendê‑lo em seus limites e possibilidades. Tais elementos serão contemplados em nosso estudo. 9 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Unidade I 1 CONTEXTUALIZAÇÃO SÓCIO‑HISTÓRICA: TERCEIRO SETOR E RESPONSABILIDADE SOCIAL 1.1 Capitalismo e sociedade capitalista 1.1.1 Especificidades do modo de produção capitalista O capitalismo teve início no século XVI, momento histórico em que o sistema feudal estava em crise e as relações capitalistas puderam se multiplicar, como nos apresenta Faleiros (2009): [...] no modo de produção feudal, o servo era vinculado ao senhor por relações de submissão e proteção (sobretudo militar), encontrando satisfação de certas necessidades dentro das associações comunais e principalmente religiosas. [...]. Nesse modo de produção o servo era proprietário dos meios de produção. No modo de produção capitalista produz‑se uma ruptura entre a posse dos meios de produção e o trabalhador. Os meios de produção passam a ser de propriedade do capitalista, pela expropriação, pela reprodução simples e ampliada, pela acumulação. O homem, como disse Marx, se vê livre, sem estar ligado ao senhor, pronto a oferecer sua força de trabalho como indivíduo, em troca de salário. A ordem medieval se desmoronou em sua estrutura social e política, em consequência das modificações nas relações de produção, diante de novas exigências de produção dos valores e de intercâmbio de mercadorias. O salário é o meio de prover a sua subsistência. Mas esse salário é obtido na produção da mais‑valia e sob uma submissão total às novas relações sociais que as fábricas suscitam. Disto resulta a disciplina coletiva, o despotismo da fábrica, como dizia Marx. Encurralados no campo, foram os camponeses obrigados a vender sua força de trabalho para subsistir em penosas condições de trabalho (longas jornadas, baixos salários, trabalho de mulheres e menores) (FALEIROS, 2009, p. 12). 10 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I Saiba mais O filme a seguir pode proporcionar uma inter‑relação com a questão das penosas condições de trabalho no processo de industrialização imposto pelo capitalismo. DAENS – um grito de justiça. Dir. Stijn Coninx. Bélgica; França; Holanda: Dérives Productions; Favourite Films; Shooting Star Filmcompany BV, 1992. 138 minutos. Diferentes autores afirmam que o capitalismo passou por algumas fases, sendo que estas não são estáticas e cada uma nasce da precedente. São elas: capitalismo comercial ou pré‑capitalismo (século VXI); capitalismo industrial (século XVIII) e capitalismo monopolista financeiro (final do século XIX). No entanto, foi no século XVIII, com a Revolução Industrial, que esse modo de produção prosperou. De acordo com Pereira (1977) verificou‑se que na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos no século XVIII o modo de produção capitalista tem sua forma mais pura. Segundo o autor, as características históricas mais gerais desse modo de produção que Marx conheceu e analisou são: (a) o surgimento do capital e, portanto, da relação de produção capitalista, através da separação dos instrumentos de produção dos trabalhadores e sua apropriação pela burguesia; (b) a generalização da mercadoria, ou seja, a transformação de todos os bens em mercadorias com valor de troca; (c) o surgimento do trabalho assalariado, ou seja, a transformação do trabalho também em mercadoria; (d) a apropriação do excedente econômico pela burguesia através da obtenção de lucros (mais‑valia); (e) a incorporação sistemática do progresso técnico, visando ao aumento da produtividade (mais‑valia relativa) – condição básica de sobrevivência e da obtenção de lucros por parte das empresas; (f) a multiplicidade de pequenas e médias empresas agindo em um mercado concorrencial sob a coordenação do mecanismo dos preços (PEREIRA, 1977, p. 1). O modo de produção capitalista se diferencia dos experimentados anteriormente na história da humanidade e “[...] representa um grande avanço histórico para o desenvolvimento do ser social” (BARROCO, 2010, p. 36‑37). 11 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Observação Antes do capitalismo, houve outros modos de produção. São eles: primitivo, escravista, feudal e capitalista. Para Iamamoto (2004), é na vida em sociedade que ocorre a produção. A produção é uma atividade social e a relação entre os homens na produção e na troca de suas atividades varia de acordo com o nível de desenvolvimento dos meios de produção. O nascimento e a consolidação do capitalismo representaram um desenvolvimento nunca visto das forças produtivas no âmbito universal, resultando na ruptura com as relações que pudessem constituir obstáculos à sua expansão (BARROCO, 2010). Nas sociedades pré‑capitalistas, continua a autora, o trabalho era limitado por inúmeras determinações, principalmente pelo pouco domínio do homem diante da natureza, fazendo com que as relações produtivas e sociais pudessem ser aceitas como relações “dadas naturalmente”, nas quais o homem não se via como sujeito. Para, Marx (apud BARROCO, 2010, p. 36), “[...] o produto objetivo do desenvolvimento dasforças produtivas capitalistas, pressupondo o domínio humano da natureza, permite que o ser social adquira consciência de si mesmo como sujeito histórico”. Porém, essas relações sociais que aumentam as capacidades e possibilidades humanas produzem os mecanismos de sua negação, impossibilitando sua realização concreta, o que se expressa, entre outros aspectos, na contradição entre o maior desenvolvimento do ser social e o maior grau de alienação (em relação às sociedades precedentes), dando lugar até mesmo a outras formas de alienação: o fetiche ou a coisificação das relações sociais (BARROCO, 2010). Saiba mais O livro e o filme a seguir poderão oferecer elementos que ajudam na reflexão sobre os valores da sociedade capitalista: BARROCO, M. L. S. Ética: fundamentos sócio‑históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. (Biblioteca Básica de Serviço Social, v. 4). ILHA das Flores. Documentário. Dir. Jorge Furtado. Brasil: Casa de Cinema de Porto Alegre, 1989. 13 minutos. 12 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I Nessa perspectiva Iamamoto (2004) pontua que o processo capitalista de produção expressa uma maneira historicamente determinada de os homens produzirem e reproduzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais, por meio das quais levam a efeito a produção. Nesse processo se reproduzem, concomitantemente, as ideias e representações que expressam essas relações e as condições materiais em que se produzem, encobrindo o antagonismo que as permeia. Ou seja, o sistema capitalista fundamenta‑se na contradição capital x trabalho e, para que possa prosperar (considerando que esse é um sistema que visa ao acumulo do capital e à concentração de renda da produção em um pequeno grupo – no caso a burguesia), tende a produzir e reproduzir valores que obscurecem tal contradição, sem interferir na produção. No modo de produção capitalista, o trabalhador passa a ser “livre”, podendo vender sua mão de obra para os burgueses – que passam a ser donos do meio de produção – em troca de salário. Nessa relação, o capital monopoliza os meios de produção e de sobrevivência por uma parte da sociedade – a classe capitalista – em confronto com os trabalhadores, que não possuem as condições para a efetivação de seu trabalho. Logo, o “[...] capital e trabalho assalariado são uma unidade de diversos; um se expressa no outro, um recria o outro, um nega o outro” (IAMAMOTO, 2004, p. 33). Quando o trabalhador não possui os meios de produção, ele não tem como garantir sua sobrevivência. Sendo os meios de produção propriedade alheia monopolizada por uma parte da sociedade – a classe capitalista – não lhe resta outra alternativa a não ser vender parte de si mesmo em troca do valor equivalente aos meios necessários para sua sobrevivência e de sua família, expressos na forma do salário (IAMAMOTO, 2004). É dessa relação desigual que surge a questão social compreendida como: [...] conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista moderna, que tem raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna‑se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém‑se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO, 2005, p. 27). Ainda, segundo a autora, “[...] a condição histórica para o surgimento do capital e o pressuposto essencial para a transformação do dinheiro em capital é a existência no mercado da força de trabalho como mercadoria” (IAMAMOTO, 2004, p. 39). Behring e Boschetti (2008) afirmam que as relações capitalistas constituem relação de produção de valores de troca (mercadorias) para a acumulação de capital, por meio da expropriação da mais‑valia somada ao valor pelo trabalho livre, condições da produção capitalista e razão pela qual se provoca a separação entre a força de trabalho e a propriedade dos meios de produção. A separação entre a força de trabalho e o trabalhador, no caso, a concretização de uma realidade onde o homem é afastado dos meios de produção e passa a depender do salário, não se deu sem consequências, pelo contrário, essa realidade foi fundamental para que o sistema capitalista pudesse prosperar. 13 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Na formação social capitalista o objetivo principal da produção não é a satisfação de necessidades sociais, mas a manutenção da ordem necessária para a acumulação do capital. Behring e Boschetti (2008) pontuam que, nas relações capitalistas, o sentido do trabalho sofre profunda modificação, pois assume o caráter de “trabalho abstrato”, produtor de valores de troca. Isso porque: [...] o trabalho, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana (MARX, 1987, p. 50 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 51). Ou seja, o trabalho é categoria fundante do ser social em qualquer modelo de sociedade, já que o homem depende da transformação da natureza para sobreviver. Porém, no capitalismo, a categoria trabalho sofre modificações onde são instituídas características específicas para esse modo de produção. Para Iamamoto (2004), o processo de produção capitalista é um modo de trabalho com características específicas, pois ao mesmo tempo em que é um processo de trabalho de produção de valores de uso mediante o consumo de um trabalho de qualidade específica, também é um processo de valorização: de criação e conservação de valor, no qual o que interessa é o valor de troca do capital – que se expressa por meio de mercadoria (meios de produção e de vida) e do dinheiro – que se diferencia do valor de troca de mercadoria. Nessa lógica de produção, as relações sociais aparecem como relações entre coisas, esvaziadas de sua historicidade, invertidas naquilo que realmente são: aparecem como relação entre mercadorias, embora não sejam mais que expressões de relações entre classes sociais antagônicas (IAMAMOTO, 2004). O capitalismo no Brasil: uma reflexão crítica As relações sociais capitalistas, na realidade brasileira, efetuaram‑se de forma distinta dos países do capitalismo central – sendo importante considerar que o Brasil não foi o berço da Revolução Industrial –, embora tenham mantido suas características essenciais (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Para Prado Júnior (1991 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008), o processo de colonização no século XVI a XIX serviu essencialmente à acumulação originária de capital nos países centrais. O que não se encerrou nos períodos do Império e da República, sendo a subordinação e dependência ao mercado mundial aspectos que se mantêm historicamente. O Brasil não experimentou, no período escravista do século XIX, uma radicalização das lutas operárias, sua constituição em classe para si, com organização e partidos fortes. A adaptação ao capitalismo se fez por meio da substituição gradativa do trabalho escravo pelo trabalho livre, nas grandes unidades agrárias, numa “[...] complexa articulação de progresso (adaptação ao capitalismo) e conservação (a permanência de importantes elementos da antiga ordem)” (COUTINHO, 1989, p. 119, apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 72). 14 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I No lugar de constituir instituições próprias nesse processo de transição, aburguesia tende para o Estado, procurando exercer pressão, orientar e controlar a aplicação de seu poder político, partindo de interesses particulares. Ela opta por pequenas mudanças, adaptações ambíguas e conservadorismo social (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Nesse contexto, a contínua presença do trabalho escravo teve impactos profundos no nascimento do trabalho livre, que se consolidou permeado por características como o mandonismo, paternalismo e conformismo, as quais convivem, na atual conjuntura, com a precarização, flexibilização, entre outras formas que fragilizam a organização da classe trabalhadora (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Para as referidas autoras, no processo de ruptura com a homogeneidade da aristocracia agrária, potencializado com o surgimento de novos agentes econômicos, a partir da pressão da divisão do trabalho na construção de uma nova sociedade nacional, não existe compromisso com qualquer defesa dos direitos do cidadão por parte das elites econômica e política, e essa é uma marca indelével da nossa formação, fato fundamental para pensar a configuração da política social no Brasil. As classes dominantes brasileiras não tiveram historicamente compromissos democráticos e redistributivos. A desigualdade econômica, que coloca o Brasil na posição de um dos países com maior índice de desigualdade do mundo, é um indicador que retrata esse fato (OLIVEIRA, 2011). De acordo com Behring e Boschetti (2008), o fundamental, nesse contexto do final do século XIX e início do século XX, é compreender que nosso liberalismo à brasileira não comportava a questão dos direitos sociais, que foram aderidos sob pressão dos trabalhadores e com fortes dificuldades para a sua implementação e garantias efetivas. A economia e as políticas brasileiras, dizem as autoras, foram profundamente abaladas pelos acontecimentos mundiais das três primeiras décadas do século XX, principalmente depois da crise internacional de 1929‑1932, momento em que aconteceu a expansão acelerada das relações capitalistas no País, com fortes repercussões para as classes sociais, para o Estado e para as respostas à questão social (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Um dos aspectos significativos trazidos pela crise foi a correlação de forças no interior das classes dominantes, que acarretou consequências significativas para os trabalhadores. As autoras destacam que a chamada “Revolução de 30” foi uma fase de inflexão no longo processo de constituição de relações sociais, característica do capitalismo no Brasil. Vargas esteve à frente de uma ampla coalizão de forças em 1930, que a historiografia caracterizou como um “Estado de compromisso” e que impulsionou amplas mudanças no Estado e na sociedade brasileira. O Brasil acompanhou as tendências internacionais de aumento da intervenção do Estado diante das expressões da questão social, mas com características muito específicas (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Nossa realidade nunca experimentou a atuação de um Estado forte frente às expressões da questão social. 15 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR O golpe de 1964 instituiu uma ditadura que durou 20 anos e impulsionou um novo momento de modernização conservadora no Brasil. Em 1974, transparecem as primeiras fissuras e sinais de esgotamento do projeto tecnocrático, modernizador e conservador do regime, em razão dos impactos da economia internacional, diminuindo o fluxo de capitais e também dos limites internos (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Os anos seguintes foram marcados pela lenta transição do regime ditatorial para a democracia, o que refletiu no caráter tardio da adesão brasileira ao neoliberalismo. Nesse contexto de transição, evidencia‑se o esgotamento do milagre brasileiro, que demonstrava que seus frutos não seriam redistribuídos e os trabalhadores e movimentos sociais já avaliavam essa tendência pela crise econômica que se aproximava (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Os anos de 1980 são conhecidos por diferentes autores como a “década perdida” – do ponto de vista econômico –, embora também sejam recordados como período de conquistas democráticas, devido às lutas sociais e a Constituição de 1988. Observação A Constituição de 1988 é considerada como a Constituição Cidadã; ela resultou de lutas sociais e contemplou diferentes demandas apresentadas pelos movimentos sociais. Da década de 1990 em diante, as condições políticas e econômicas implicaram num giro conservador para o neoliberalismo (BRAVO, 2000 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008 p. 145), dificultando intensamente a implementação real dos “[...] princípios orientadores democráticos e dos direitos a eles correspondentes”. Neoliberalismo: implicações para as políticas sociais O neoliberalismo tem sua origem na obra de Friedrich Hayek, O caminho da Servidão, escrita em 1944, porém, ficou limitado a pequenos círculos – entre eles o fundado por Hayek em 1947, a “Sociedade de Mont Pelérin” – sem muita significância política, durante a chamada era de ouro de Welfare State (NEGRÃO, 1996). É na passagem de 1970 para 1980 que esse pensamento reaparece, principalmente durante os governos Reagan e Thatcher, momento em que as democracias contemporâneas, segundo inúmeros autores, passam a ser responsabilizadas por aumentarem demais o poder da sociedade – principalmente das classes trabalhadoras –, gerando demandas que o Estado não tem capacidade de responder. As práticas do conjunto de reformas neoliberais se efetivaram de forma diferenciada nos diversos países, sendo possível identificar no centro dessas ações a “[...] desregulamentação dos mercados, abertura financeira e redução do tamanho e papel do Estado” (NEGRÃO, 1996, p. 53). 16 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I Isso porque o capitalismo vem respondendo e enfrentando as conquistas dos trabalhadores que, especialmente a partir do pós‑guerra, ampliam seus direitos e colocam, de forma mais ou menos acentuada, obstáculos à reprodução ampliada do capitalismo (NEGRÃO, 1996). No contexto neoliberal, as políticas sociais de direito “[...] são consideradas responsáveis pelo esvaziamento de fundos públicos, ‘mal gastos’ em atividades burocratizadas, sem retorno e que estendem a cobertura a toda a população indiscriminamente” (MONTAÑO, 2010, p.188). Para Gomes (2005), com o neoliberalismo, o mercado que resultava da necessidade de os seres humanos se apoiarem uns nos outros passa a ser com o “[...] meio, o método, e inclusive o fim que governa as relações entre os seres humanos” (p. 115), sendo este cotidianamente exaltado como “[...] único alocador racional, justo e democrático” (p. 115), o único sistema econômico possível, já que falharam as sociedades comunista, socialdemocrática e, até mesmo, o Estado de Bem‑Estar (GOMES, 2005, p. 116). No entanto, o fato é que o neoliberalismo transmite os interesses imediatos de grandes investidores que decidem as políticas públicas e dominam a maior parte da economia nos países desenvolvidos e principalmente dos “[...] países em desenvolvimento” como é o caso do Brasil (GOMES, 2005). Montaño (2010) afirma que, como solução parcial da crise capitalista, o neoliberalismo busca reconstituir o mercado, minimizando ou até extinguindo a intervenção social do Estado em diversas áreas e atividades. É o que caracteriza como “[...] a passagem do fundamento da legitimação sistemática das lógicas democráticas (particularmente no âmbito estatal) para as lógicas da sociedade civil e do mercado” (p. 188). Nessa lógica, segundo o autor, a desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistase a reestruturação produtiva vão em direção da reforma do Estado, principalmente na sua desresponsabilização de intervenção na resposta às expressões da questão social. O mercado se torna a instância, por excelência, de regulação e legitimação social. O “igualitarismo” promovido pelo Estado intervencionista – Welfare State – deve ser, na ideologia neoliberal, enfrentado e substituído pela desigualdade e a concorrência, que são exaltadas como motores do estímulo e desenvolvimento social. O neoliberalismo não opera como um sistema apenas econômico, mas também cultural e político, dado que no atual contexto [...] a solução dos problemas, referentes à distribuição de recursos, à organização social e à produção, em última análise acaba ficando submetida à atuação das forças do mercado, a redundar no sucateamento das condições ambientais, no agressivo desmantelamento das políticas educacionais, dos programas sociais de segurança, saúde e seguridade, em prejuízo da maior parte da sociedade civil (GOMES, 2005, p. 116). Sendo esse pensamento contrário ao que objetiva o Estado Social, Democrático e de Direito, o “lucro” torna‑se “essência” da democracia (GOMES, 2005). 17 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR A ideologia neoliberal coloca o Estado como incapaz de garantir os direitos a todos os indivíduos e suas famílias, na medida em que se submete às forças globalizantes do mercado, que impõem plena liberdade no desenvolvimento das atividades econômicas, expondo a superioridade do mercado mediante à ação estatal (GOMES:2005). Neoliberalismo no Brasil: abrindo caminhos para o Terceiro Setor O neoliberalismo chegou ao Brasil de forma lenta e encontrou na crise do final da ditadura militar o ambiente para que seu ideal fosse propagado. Porém, segundo Negrão (1996), foi durante o governo de Collor que efetivamente tal ideário se torna ideologicamente dominante. Essa política de fortalecimento do grande capital em um processo de reconcentração e retomada da acumulação ampliada foi conservada na chamada Era FHC, na qual a política neoliberal, inspirada no Consenso de Washington, foi levada às últimas consequências e seu esgotamento produziu uma crise de natureza especialmente grave, não apenas cíclica, mas também profunda e estrutural (POMPEO, 2003). Esse fato interferiu nos direitos e na organização dos trabalhadores, bem como na função do Estado como redistribuidor de renda, regulador da economia e controlador do mercado e dos setores mais frágeis e descentralizados do próprio capital (NEGRÃO, 1996). O Consenso de Washington ou Dissenso de Washington, como é conhecido por alguns autores, apresenta dez regras para serem seguidas pelos países, que são os dez mandamentos do neoliberalismo: redução de gastos, reforma tributária, juros de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro com a eliminação das restrições, privatização das estatais, desregulamentação e afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas, entre outros (OLIVEIRA, 2011). Essas práticas se mantêm em maior ou menor grau no atual governo, que não instituiu mudanças significativas que bloqueiem os princípios neoliberais (ANTUNES, 2006). Diferentes autores, como Ivo (2006) e Raichelis (2007), apontam que a adoção do receituário neoliberal e das medidas de ajuste estrutural, imposta pelos organismos multilaterais a partir do Consenso de Washington, concretiza‑se na regressão e restrição de direitos e das políticas sociais, sob o argumento da crise fiscal do Estado, transformando as políticas sociais em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise. Isso se realiza principalmente nos países capitalistas, ditos dependentes, como o Brasil e os países da América Latina, mas também se expressa em diferentes intensidades nos países capitalistas centrais (RAICHELIS, 2007). Os anos 1990 foram marcados pela contrarreforma do Estado e pelo redirecionamento e obstaculização das conquistas de 1988. Somados a esses fatores, aparece como novo componente a terceirização, cujas condições estruturais provenientes do capitalismo – com a globalização do sistema de produção e dos mercados e com o desenvolvimento tecnológico – estimulam mudanças nos processos de trabalho, a partir da intensificação da competição intercapitalista, gerando terceirização ou subcontratação (RAICHELIS, 2007). 18 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I A terceirização, para Druck e Borges (2001), pode ser considerada como a principal política de gestão e organização do trabalho no interior da reestruturação produtiva. Ela seria a forma mais clara da flexibilização do trabalho, pois possibilita concretizar os “contratos flexíveis”, compreendidos como sendo contratos por tempo indeterminado, por tempo parcial, por tarefa, por prestação de serviços, por diferentes formas de precarização do trabalho, sem cobertura legal e por responsabilidade de terceiros. Nesse contexto, o retraimento do Estado que busca minimizar os gastos sociais vem possibilitando a sua desresponsabilização em relação às políticas sociais universais e o procedente retrocesso na consolidação e expansão dos direitos sociais (RAICHELIS, 2007). Na (re)configuração dos direitos da seguridade social, a partir da década de 1990, enfatiza‑se o mercado via planos privados de saúde e previdência, ou são transferidas responsabilidades para a sociedade civil sob os argumentos do voluntariado, da solidariedade e da cooperação. Estabelece‑se a perspectiva do Welfare Pluralism ou Welfare Mix (ABRAHAMSON, 1995 e 2005; PEREIRA, 2001 e 2004; BEHRING, 2004 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008) distanciando‑se da proposta do Welfare State keynesiano (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Nessa perspectiva, Behring e Boschetti (2008) apontam que houve [...] o retorno à família e às organizações sem fins lucrativos – o chamado Terceiro Setor, categoria tão bem desmistificada por Montaño (2002) – como agentes do bem‑estar, substituindo a política pública. Ao não se constituir como uma rede complementar, mas assumir a condição de “alternativa eficaz” para viabilizar o atendimento das necessidades, esse apelo ao Terceiro Setor ou a sociedade civil, aqui mistificada, configurou‑se como um verdadeiro retrocesso histórico. Trata‑se do que Yasbek (1993 e 2000 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008) denomina refilantropização das políticas sociais, que implica uma precipitada volta ao passado sem esgotar as possibilidades da política pública, na sua formação constitucional. Soares (2000 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 83) denuncia a ineficiência das “pequenas soluções ad hoc” e do “reinado do minimalismo”, que estão levando a uma “descentralização destrutiva” e ao reforço dos esquemas tradicionais de poder, como as práticas de clientelismo e favor (p. 73). O neoliberalismo institui um contexto de grandes desafios para o enfrentamento das expressões da questão social. Inúmeras são as alternativas apresentadas por essa política que se pauta no retraimento do Estado, no que se refere ao social, e na elaboração de estratégias para fortalecimento do capital. Nessa lógica, longe de se estabelecer um consenso, materializa‑se uma arena de grandes controvérsias. Nessa realidade, o chamado Terceiro Setor ganha destaque na atuação frente à questão social, como veremos a seguir. 19 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR2 TERCEIRO SETOR E O CAPITALISMO: CONTRADIÇÕES E DESAFIOS Como estudamos, o sistema capitalista sofre alterações, passando por diferentes fases. Na atualidade, apresenta‑se no processo de reestruturação do capital e reforma do Estado que se pauta nas orientações neoliberais, contexto em que há retraimento do Estado no enfrentamento da questão social. É nesse contexto que o Terceiro Setor está inserido, ou como defende Montaño (2010), ele é resultado dele, não sendo possível ignorá‑lo, já que nesse projeto a sociedade civil tem efetivamente realizado atividades antes de responsabilidade do Estado. Porém, é necessária uma análise desse fenômeno em sua totalidade, e não de forma isolada, tratando‑o pontualmente sem considerar as determinações históricas que contribuíram para seu surgimento e consolidação. O Terceiro Setor caracteriza‑se como resposta às mudanças no enfrentamento da questão social, sendo necessário um esforço teórico para não naturalizá‑lo como “[...] organizações de uma sociedade civil, autonomizada do Estado e do mercado e desarticulado do processo histórico de reforma do capital” (MONTAÑO, 2010, p. 183). O projeto neoliberal – como estudamos – busca reduzir os gastos sociais, estimulando ações que fortaleçam o capital. Nesse embate desigual, entre o projeto neoliberal e as lutas dos trabalhadores, verdadeiras transformações estão se concretizando nas respostas da sociedade às expressões da questão social. Como nos apresenta Montaño (2010), esse projeto [...] quer acabar com a condição de direito das políticas sociais e assistenciais, com seu caráter universalista, com a igualdade de acesso, com a base de solidariedade e responsabilidade social e diferencial (todos contribuem com o financiamento e a partir das capacidades econômicas de cada um). No seu lugar, cria‑se uma modalidade polimórfica de respostas às necessidades individuais, diferente segundo o poder aquisitivo de cada um. Assim, tais respostas não constituíram direito, mas uma atividade filantrópica/voluntária ou um serviço comercializável; também a qualidade dos serviços responde ao poder de compra da pessoa, a universalização cede lugar à focalização e descentralização, a “solidariedade social” passa a ser localizada, pontual, identificada à autoajuda e ajuda mútua (p. 189). Nessa lógica, segundo o referido autor, o termo Terceiro Setor é um equivoco teórico, que não por acaso nos leva a olhar para esse fenômeno como sendo formado pelas organizações da sociedade civil, desarticulado do real. Isso facilita a aceitação de que no lugar das organizações do Estado (apontado como burocrático e ineficiente) ou do mercado (lucrativo), as organizações da sociedade civil é que devem assumir a tarefa de responder à questão social. Ainda de acordo com Montaño (2010), o Terceiro Setor, como é denominado por inúmeros autores, não é terceiro, não é setor e não se refere às organizações desse setor (ONGs, instituições, fundações e outros). São ações desenvolvidas por organizações da sociedade civil, que acabam por assumir as 20 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I funções de responder à questão social em suas múltiplas expressões – funções estas que na proposta do projeto anterior era de responsabilidade do Estado – “[...] a partir dos valores de solidariedade local, autoajuda e ajuda mútua – substituindo os valores de solidariedade social e universalidade e direito dos serviços” (MONTAÑO, 2010, p. 184). Saiba mais O filme a seguir retrata o Terceiro Setor a partir do ponto de vista crítico, contribuindo para ilustrar nossa reflexão sobre esse tema: QUANTO vale ou e por quilo? Dir. Sergio Bianchi. Brasil: Agravo Produções Cinematográficas, 2005. 110 minutos. O quadro a seguir apresenta algumas diferenças no enfrentamento da questão social no padrão Welfare State (Estado forte) e no padrão neoliberal (Estado mínimo). Quadro 1 Padrão de resposta à questão social típico do Welfare State1 Padrão de resposta à questão social típico neoliberal • Modalidade setorialista de resposta à questão social. Fundamenta‑se na constituição de direito de cidadania e de universalidade do serviço. • A resposta à questão social deve ser de responsabilidade do conjunto da sociedade (“solidariedade social”), por intermédio do Estado. • Modalidade de intervenção que é setorialista, mas também localizada, e fundamenta‑se na focalização e desconcentração das respostas (LAURELL, 1995 apud MONTAÑO, 2010, p. 185); é sustentada na autoajuda e na ajuda mútua (“solidariedade local”). • A resposta à questão social deve ser de responsabilidade dos próprios portadores de necessidades, de seus pares e de suas localidades. 1 O Terceiro Setor não é o desenvolvimento de organizações de um “setor” para superar a crise de outro, e sim a mudança de um padrão de reposta social às expressões da questão social (típica do Welfare State) “[...] com a desresponsabilização do Estado, a desoneração do capital e a autorresponsabilização do cidadão e da comunidade local para esta função (típica do modelo neoliberal ou funcional a ele)” (MONTAÑO, 2010, p. 185). Esse é um aspecto importante a ser analisado, dado que, segundo o referido autor, deslocar o debate do fenômeno real – atividades que expressam funções sociais a partir de determinados valores – para um debate sobre organizações em determinado âmbito (ou setor), concretiza a transformação de uma questão político‑econômico‑ideológica em uma questão meramente técnico‑operativa. 1 Esse quadro tem fins exclusivamente didáticos. Pauta‑se nas contribuições de Montaño (2010). Optamos por sua elaboração para que a diferença entre os projetos em questão apresente‑se de forma clara. 21 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR No lugar de centrar o debate na função social de respostas às demandas sociais e os valores que a sustentam, foca‑se isoladamente, na reflexão se as organizações de determinado “setor” podem dar tal resposta, concretizando, assim, verdadeira despolitização do fenômeno e do debate. A discussão é levada para a comparação entre instituição estatal – tratada como burocrática, ineficiente, corrupta, rígida e em crise (fiscal) – e organização do Terceiro Setor, que é flexível, atendendo às particularidades regionais e categorias (MONTAÑO, 2010, p. 185). Montaño (2010) defende que o conceito de Terceiro Setor não deveria referir‑se a um “setor”, e sim à sua uma função social, já que passa a ser realizada no contexto neoliberal por organizações da sociedade civil e empresariais, e não mais pelo Estado, finalizando o “pacto keynesiano” e os fundamentos do Welfare State. No debate sobre o Terceiro Setor no capitalismo, é fundamental que esse setor seja entendido dentro da lógica neoliberal, buscando compreender as condições históricas em que esse fenômeno é posto em pauta, superando o senso comum encoberto por uma “cortina de fumaça” que, segundo Montaño (2010), esconde um novo padrão de resposta à questão social, pautado na “[...] perda de direitos e de garantias no atendimento de qualidade, em um debate que confronta organizações estatais com a sociedade civil” (p. 186). Nessa perspectiva, podemos concluir que na busca por compreender o Terceiro Setor, mais do que respostas prontas, encontramos questões que devem nortear ações que superem o senso comum. 3 OS SETORES DA SOCIEDADE: UM DEBATE POLÊMICO Diferentes autores afirmam que a sociedade contemporânea estrutura‑se em três setores. São eles: • Primeiro Setor: Estado – atua na esfera pública estatal.• Segundo Setor: Mercado – atua na esfera privada. • Terceiro Setor: Organizações da Sociedade Civil – atuam sem finalidade de lucro com atuações de interesse público, na esfera pública não estatal. Vamos nos remeter a essa definição apenas para fins didáticos, dado que, como nos apresenta Costa (2005), a realidade social não é fragmentada, sendo impossível dividi‑la em setores que aparentemente são isolados entre si. Nela, em sua totalidade, o político, o econômico e o social se articulam indissociavelmente, determinando a conjuntura e as demandas sociais. Nesse debate, Fernandes (1996) defende que fica prejudicada a ideia de uma subordinação hierárquica, que nos remeta a pensar nos indivíduos como grupos na base, o mercado no meio e o Estado no alto, governando o todo, sendo os primeiros chamados periodicamente a opinar sobre as relações devidas entre interesses de lucro particular e a lei comum. Para o referido autor, os três setores encontram‑se tão fortemente ligados e condicionais que a definição exata dos limites é motivo de controvérsias e variações no tempo e no espaço. 22 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I Nessa lógica, o termo Terceiro Setor não se fundamenta em rigor teórico, sendo desarticulador do social, dado que pressupõe a existência de um primeiro e um segundo setor, como se a realidade social pudesse ser dividida em três esferas autônomas: o Estado, o Mercado e a “Sociedade Civil” (MONTAÑO, 2010, p. 181). Essa divisão não é possível de ser concretizada e consiste em um artifício positivista, institucionalista ou estruturalista que foca o debate sobre o “Terceiro Setor” para além da sua funcionalidade no projeto neoliberal, fundamentando‑o de forma abstrata e impossível de ser experimentada na realidade. Esse debate setorialista, oferece uma discussão que pressupõe um social desarticulado do Estado, do mercado e da sociedade civil (MONTAÑO, 2010, p. 183). Na reflexão sobre o que é o Terceiro Setor, outro ponto importante é o apresentado por Coelho (2002): [...] essa terminologia pode se confundir com o setor terciário da economia, quando não necessariamente a totalidade dessas instituições presta serviços à população. Considera‑se como setor terciário na economia tudo aquilo que não é indústria ou agricultura, ou seja, todas as atividades de serviço, transporte e comunicação. Certamente, o setor terciário é bem mais amplo do que o conjunto de organização desse tipo. Terceiro setor é a denominação mais recente e a menos utilizada. Os autores que a ela recorrem consideram o mercado como primeiro e a área governamental como segundo, e essas organizações – que têm características dos dois setores – vêm a ser o Terceiro Setor. Na verdade, essa denominação põe em evidência o papel econômico que esse conjunto de organização assume, particularmente, na economia americana (p. 58‑59). Os dois autores defendem não ser a divisão entre setores a mais apropriada para explicar a realidade contemporânea. Sendo assim, os pontos até aqui abordados são fundamentais para compreendermos alguns elementos desse debate. Porém, na falta de uma denominação, talvez mais apropriada e que contemple os aspectos até aqui discutidos, e na busca por assumir uma linguagem comum à literatura existente, optamos por essa “estruturação”, sendo o foco do nosso debate o chamado Terceiro Setor. 3.1 Terceiro Setor: refletindo sobre esse conceito Considerando o seu crescimento e fortalecimento, principalmente a partir da década de 1990 – por motivos já abordados –, diferentes autores têm buscado definir o que é o Terceiro Setor. Várias denominações têm sido apresentadas por autores que têm se destacado como estudiosos do assunto. Alguns desses conceitos são apresentados por Costa (2005): [...] por Terceiro Setor entenda‑se [...] a sociedade civil que se organiza e busca soluções próprias para suas necessidades e problemas, fora da lógica 23 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR do Estado e do mercado (RODRIGUES, 1998 p. 31 apud COSTA, 2005, p. 3). [...] o Terceiro Setor é composto de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não governamental, dando continuidade a práticas tradicionais de caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil (FERNANDES, 1997, p. 27 apud COSTA, 2005, p. 3). Essas organizações não fazem parte do Estado, nem a ele estão vinculadas, mas se revestem de caráter público na medida em que se dedicam a causas e problemas sociais e em que, apesar de serem sociedades civis privadas, não têm como objetivo o lucro, e sim o atendimento das necessidades da sociedade (TENÓRIO, 2001 p. 7 apud COSTA, 2005, p. 3). A partir destas definições, é possível entender que o Terceiro Setor é formado por instituições (associações ou fundações privadas) não governamentais, que representam a sociedade civil organizada, com atuação de voluntários para atendimento de interesse público em diversos segmentos (COSTA, 2005, p. 3). Lembrete A sociedade civil é compreendida pela autora como fora do aparato estatal, apesar de manter relação indissociável com o Estado na medida em que o institui, o legitima e o mantém. Para Montaño (2010) [...] o “Terceiro Setor” inclui, tanto organizações não governamentais, como organizações sem fins lucrativos, as fundações empresariais e a chamada “empresa cidadã”, as instituições filantrópicas e a imensa e imensurável “atividade voluntaria” (p. 205). Segundo Melo Neto (1999), as entidades sem fins lucrativos que desenvolvem ações sociais, inseridas no Terceiro Setor, possuem vários, nomes tais como: setor social, setor sem fins lucrativos, setor de promoção social, economia social, setor voluntário e muitos outros. O autor defende ainda que as principais características do Terceiro Setor “[...] são a natureza específica de suas ações, de caráter filantrópico e de investimentos em programas e projetos sociais, e o alto grau de diversidades das entidades que delas fazem parte” (p. 18). O Terceiro Setor mostra‑se dinâmico, sendo composto por instituições de caráter distinto, que se diferenciam segundo sua ação social. 24 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I As ações sociais, segundo Melo Neto (1999), principal característica do Terceiro Setor, abrangem modalidades diversas, como: • doações de pessoas física e jurídicas; • investimentos em programas e projetos sociais; • financiamento de campanhas sociais; • parcerias com o governo, empresas privadas, comunidade e entidades sem fins lucrativos; e • participação em trabalhos voluntários. Outras características, indicadas pelo autor são: • A prática de doações para causas sociais. Porém, esta ainda é mais comum em outras realidades, como a norte‑americana, por exemplo (no Brasil, essa prática ainda é bastante incipiente). • A ação de investimentos em projetos e programas sociais, sendo esta a que mais cresce no Brasil. Empresas nacionais e muitas corporações multinacionais estão cunhando institutos para gerir suas próprias ações sociais. Algumas financiam diretamente projetos da comunidade e outras criam e desenvolvem seus próprios programas e projetos sociais. Isso entre outras possibilidades. • Asparcerias – que também constituem uma área em expansão – são consideradas o mais novo modelo de investimentos no Terceiro Setor, que agrupa recursos e esforços do governo, empresas privadas, comunidade, ONGs e demais entidades do setor. • E por último – o que não significa que tenha menor expressão – o voluntariado, que ganhou força com a visibilidade dos programas da comunidade solidária, colocados em prática pelo Governo Federal (MELO NETO, 1999, p. 20). Existe, segundo o referido autor, outra forma de identificar e analisar o Terceiro Setor, sendo ela o estudo de segmentos que o constituem. Tais como: • cultura e recreação; • assistência social; • saúde; • desenvolvimento e defesa de direitos; • religião; • ambientalismo. 25 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Na realidade brasileira, é possível acrescentar outros seguimentos como: moradia, alimentação e nutrição, saneamento, segurança, trabalho, emprego e renda, reforma agrária e previdência social. Nessa realidade, tais segmentos assumem grande relevância (MELO NETO, 1999, p. 20). Outro dado expressivo destacado pelo autor é que três campos tradicionais de serviços comunitários se fortalecem no Brasil e também no mundo. São eles: a educação, a saúde e os seguimentos sociais, a cultura e recreação (MELO NETO, 1999, p. 20). Para o referido autor, o perfil dos investimentos do Unicef no Brasil é um indicador para identificarmos as principais áreas de atuação do Terceiro Setor. Vejamos alguns dados: • Direitos da criança e do adolescente – 34%. • Educação – 26%. • Saúde – 14%. • Políticas sociais – 11%. • Comunicação e mobilização social – 7%. • Meio ambiente – 8% (MELO NETO, 1999). Costa (2005) concorda que o Terceiro Setor é composto por instituições distintas, porém, defende algumas características comuns que devem ser consideradas. A primeira delas destacada pela autora é que: [...] quando atuam na área da assistência social, saúde ou educação, geralmente trabalham com pessoas e famílias que estão à margem do processo produtivo ou fora do mercado de trabalho, não tendo acesso aos bens e serviços necessários ao suprimento de suas necessidades básicas. Portanto, enquadram‑se no artigo 2º da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que coloca a maternidade, crianças e adolescentes, idosos, famílias e portadores de deficiência como alvos de proteção, amparo e capacitação para que tenham qualidade de vida e acesso às políticas sociais (COSTA, 2005, p. 4). A segunda característica comum destas instituições é que: [...] apesar de não se constituírem de caráter público, desenvolvem um trabalho de interesse público. Hoje a assistência social perdeu seu caráter, historicamente dado, de caridade, benevolência e favor, tornando‑se 26 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I política pública de garantia de direitos do cidadão. O mesmo aconteceu com a saúde e a educação. São direitos de cidadania garantidos pela Constituição Federal de 1988 e respectivas Leis Orgânicas. O atendimento a esses direitos, portanto, faz parte de um interesse público e qualquer instituição que trabalhe na perspectiva de defesa desses direitos e garantia da cidadania está cumprindo um fim público, pois se volta para o outro que, de alguma forma, está sendo explorado, excluído ou destituído (COSTA, 2005, p. 4). Outra característica levantada é que estas [...] são entidades que não mantém uma relação mercantil com a sociedade. Não trabalham voltadas para o lucro no sentido do interesse capitalista. As receitas advindas de doações, convênios e/ou prestação de serviços são revertidas para a própria instituição, não havendo distribuição de “lucros” entre seus diretores ou associados. Esse é mais um dado que as enquadra como instituições de assistência social, segundo o artigo 3º da LOAS (COSTA, 2005, p. 4). Como quarta característica, evidencia: [...] o fato de não serem instituições estatais, embora mantenham vínculos com o Estado por força de convênios, relações de parceria e cadastro nos Conselhos Municipais, conforme artigos 9º e 10º da LOAS. São organizadas fora do aparato estatal e são autogovernadas. Isto lhes dá certa autonomia de ação e definição de diretrizes em relação ao Estado, embora estejam sob a fiscalização dos Conselhos, de acordo com o parágrafo 2º do artigo 9º da mesma Lei (COSTA, 2005, p. 4). Já a quinta característica é configurada pela [...] presença do voluntariado que atua em prol da manutenção e sobrevivência dessas instituições, participando diretamente do seu gerenciamento também (COSTA, 2005, p. 4). Para finalizar, a autora pontua como característica comum: [...] a possibilidade de obterem a qualificação de CEBAS ou de OSCIP. O certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) pode ser pleiteado junto ao Conselho Nacional de Assistência Social, desde que a instituição preencha os requisitos exigidos, dentre eles, o de atuar diretamente na área da assistência social. Já o certificado de Organização da Sociedade Civil que atua com Interesse Público (OSCIP) pode ser solicitado junto ao Ministério da Justiça, com uma abrangência maior de instituições que podem alcançar essa qualificação. Uma mesma instituição não pode acumular os dois certificados (COSTA, 2005, p. 4). 27 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Ou seja, embora as instituições que compõe o Terceiro Setor tenham características distintas, necessitam seguir algumas exigências legais que acabam por “padronizar” determinados aspectos para sua atuação na sociedade. Como pudemos analisar, muitas são as dificuldades existentes para definirmos com precisão o Terceiro Setor, isso devido à complexa diversidade que o compõe. Costa (2005) salienta que: [...] compreender o cenário do Terceiro Setor também não é fácil, mesmo porque há uma diversidade muito grande de organizações que o integram, constituídas juridicamente como associações ou fundações, laicas ou de confissão religiosa. A abrangência de suas ações vai desde a prática puramente assistencialista e caritativa até pesquisas científicas financiadas por empresas ou instituições privadas, que buscam respostas para as grandes questões sociais, educacionais, ecológicas, dentre outras (p. 4). Sendo assim, podemos afirmar que o Terceiro Setor abrange uma diversidade de instituições com características distintas, que devem ser estudadas, facilitando uma compreensão mais ampla do termo. Com o objetivo de ilustrar essa diversidade, apresentaremos a seguir alguns conceitos que são comuns na literatura existente sobre os personagens presentes nesse cenário complexo que constituem o Terceiro Setor. Fundações O Código Civil, ao tratar das fundações, dispõe: art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá‑la. Parágrafo único: A fundação somente poderá constituir‑se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência. Fonte: Manual do Terceiro Setor (s.d.). São as instituições que financiam o Terceiro Setor, fazendo doações às entidades beneficentes. No Brasil, também existem as fundações mistas que doam para terceiros e ao mesmo tempo executam projetos próprios. Temos poucas fundaçõesno Brasil. Depois de cinco anos, o Gife – Grupo de Instituições, Fundações e Empresas – conseguiu 66 fundações como parceiras. No entanto, muitas fundações no Brasil têm pouca atuação na área social. Nos Estados Unidos já existem 40 mil fundações, sendo que a décima colocada tem 10 bilhões de dólares de patrimônio. A maior fundação Brasileira tem 1 bilhão. Devido à 28 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I inflação, sequestros de dinheiro e congelamentos, a maioria das fundações nacionais não tem fundos. Vivem de doações anuais das empresas que as constituíram. Em épocas de recessão, essas doações mínguam, justamente quando os problemas sociais aumentam. O conceito de fundação é, justamente, o de acumular fundos nos anos bons para poder usá‑los nos anos ruins. A Fundação Bradesco é um dos raros exemplos de fundação com fundos. Fonte: Kanitz (s.d.). Associações O Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, define associações como a “[...] união de pessoas que se organizam para fins não econômicos” (art. 53). O direito à livre associação para fins lícitos está previsto e assegurado pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso XVIII. Instituição Instituição é o próprio ato de estabelecer ou formar alguma coisa, para que se exercitem ou se cumpram as finalidades pretendidas ou as disposições impostas. Nesse sentido, a instituição se apresenta como a fundação ou a criação de alguma coisa, com finalidades próprias e determinadas pela própria vontade criadora. Em decorrência disso, “instituição” é uma palavra empregada para designar a própria corporação ou a organização instituída, não importando o fim a que se destine, seja ele econômico, religioso, educativo, cultural etc. As instituições podem ser públicas ou privadas. Do mesmo modo, o termo “instituto”, embora componha a razão social de algumas entidades, não corresponde a uma espécie de pessoa jurídica, podendo ser utilizado por entidade governamental ou privada, lucrativa ou não lucrativa, constituída sob a forma de fundação ou associação. Usualmente, vemos o termo “instituto” associado a entidades dedicadas à educação e pesquisa ou à produção científica. Organização Organização é, em sentido técnico, o conjunto de regras adotadas para a composição e funcionamento de certas instituições, sejam de interesse público sejam de interesse privado. O termo tanto significa a regularização – a coordenação de um organismo instituído, fundado – como o corpo que dela se gerou ou se constituiu. Assim, como vimos, uma ONG, organização, entidade ou instituição da sociedade civil, será sempre – em termos jurídicos – uma associação ou uma fundação. A escolha fica a critério daqueles que a estabelecem, mas, inexistindo bens para a dotação de um patrimônio inicial, a criação de uma fundação torna‑se impossível. É por esta razão que pequenas e médias ONGs, grupos de apoio e pesquisa, grupos comunitários etc. em geral são constituídos como associações. Entidades 29 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR financiadoras, grandes instituições educacionais, grupos fomentadores de projetos e pesquisas, contrariamente, são em geral organizadas como fundações. Fonte: Manual do Terceiro Setor (s.d.). Organizações não governamentais Nem toda entidade beneficente ajuda prestando serviços a pessoas diretamente. Uma ONG que defenda os direitos da mulher, fazendo pressão sobre nossos deputados, está ajudando indiretamente todas as mulheres. Nos Estados Unidos, esta categoria é chamada também de Advocacy Groups, isto é, organizações que lutam por uma causa. Lá, como aqui, elas são muito poderosas politicamente. Entidades beneficentes São as operadoras de fato, “cuidam” das expressões da “questão social” em diferentes áreas (idosos, meninos de rua, meio ambiente; idosos etc.). São publicados números que vão desde 14.000 a 220.000 entidades existentes no Brasil, o que inclui escolas, associações de bairro e clubes sociais. Nosso estudo sobre as entidades que participaram do Guia da Filantropia revela que as quatrocentas maiores entidades representaram, praticamente, 90% da atividade do setor em 2001. Fundos comunitários Community Chests são muito comuns nos Estados Unidos. Em vez de cada empresa doar para uma entidade, todas as empresas doam para um Fundo Comunitário, sendo que os empresários avaliam, estabelecem prioridades e administram efetivamente a distribuição do dinheiro. Um dos poucos fundos existente no Brasil, com resultados comprovados, é a Feac, de Campinas. Entidades sem fins lucrativos Infelizmente muitas entidades sem fins lucrativos são, na realidade, lucrativas ou atendem os interesses dos próprios usuários. Um clube esportivo, por exemplo, é sem fins lucrativos, mas beneficia somente os seus respectivos sócios. Muitas escolas, universidades e hospitais eram no passado sem fins lucrativos, somente no nome. Por isso, esses números chegam a 220.000. O importante é diferenciar uma associação de bairro ou um clube que ajuda os próprios associados de uma entidade beneficente, envolvidas com os problemas sociais do bairro. Empresas doadoras Uma pesquisa feita por nós revela que das quinhentas maiores empresas brasileiras, somente cem são consideradas parceiras do Terceiro Setor. Das duzentas e cinquenta 30 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I empresas multinacionais que têm negócios no Brasil, somente vinte são admiradas. A maioria das empresas consideradas parceiras são pequenas e médias e são relativamente desconhecidas pelo grande publico. Elite filantrópica A maioria dos doadores, pessoas físicas, são da classe média. Essa tendência continua na classe mais pobre. Quanto mais pobre, maior a porcentagem da renda doada como solidariedade. Pessoas físicas No mundo inteiro, as empresas contribuem somente com 10% da verba filantrópica global, enquanto as pessoas físicas, notadamente da classe média, doam os 90% restantes. No Brasil, a nossa classe média doa, em média, 23 reais por ano (SIC), menos que 28% do total das doações. As fundações doam 40%, o governo repassa 26% e o resto vem de bingos beneficentes, leilões e evento. Imprensa Até 1995, a pouca cobertura que a imprensa fazia sobre o Terceiro Setor era, normalmente, negativa. Com a descoberta de que a maioria das entidades é séria e, portanto, faz bons trabalhos, esse setor ganhou respeitabilidade. Com isso, quadruplicou a centimetragem de notícias sobre o Terceiro Setor. A missão agora é transformar este novo interesse em cobertura constante. Empresas juniores sociais Nossas universidades pouco fizeram para o social, apesar de serem públicas. É raro encontrar um professor universitário assessorando uma ONG com seus conhecimentos. Nos últimos anos, os alunos criaram Empresas Juniores Sociais, nas quais os alunos das escolas de Administração ajudam entidades. Algumas das mais atuantes são a FEA‑Júnior da USP, a Júnior Pública da FGV e os ex‑alunos do MBA da USP. Fonte: Kanitz (s.d.). Os textos apresentados têm fins meramente didáticos, sendo fundamental a problematização de cada um desses conceitos, buscando identificar outros elementos que contribuam para uma compreensão mais ampla desses personagens presentes no Terceiro Setor. 3.2 Terceiro Setor: emergência e fortalecimento na realidade brasileira O contexto neoliberal não foi o berço das organizaçõesque constituem o Terceiro Setor no Brasil. As organizações voltadas para atender aos “problemas sociais” já existiam no Brasil há muito tempo, como exemplo podemos citar as Santas Casas de Misericórdia, cuja primeira unidade chegou ao Brasil em meados do século XVI. 31 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR Silva (2010) defende que as bases para o Terceiro Setor na realidade brasileira pautam‑se nos princípios da caridade religiosa e da filantropia. Sendo que, em seus primórdios [...] a atuação direta do Estado na área social era mínima e o atendimento às camadas carentes da população [...] apoiava‑se em um modelo importado pelas Casas de Misericórdias portuguesas, de iniciativas caritativas e cristãs, que tratavam a questão social como de resolução da sociedade, mediante a criação de asilos, educandários e corporações profissionais. [...]. Nessa origem está a primeira Santa Casa de Misericórdia fundada em Santos por Brás Cubas, em 1543, e a primeira doação voluntária que consta do testamento da senhora Isabel Fernandes que, em 1599, dizia: “Deixo à Misericórdia mil réis” (CABRAL, 2007, p. 56 apud SILVA, 2010). Nessa lógica Melo Neto (1999) afirma que a origem do Terceiro Setor na realidade brasileira está muito relacionada ao trabalho comunitário, à prática da solidariedade e à cultura da filantropia. Após a fundação dessa instituição, outras inúmeras foram se formando, como nos apresenta Silva (2010): Por mais de três séculos — do período colonial até o final do século XIX — novas organizações foram surgindo, tendo em comum a origem religiosa e a prática “assistencialista” às comunidades carentes que ficavam às margens das políticas sociais básicas, principalmente nas áreas de saúde, educação e assistência social. Ressaltam‑se a presença do Estado, da Igreja, assim como dos ricos filantropos na sustentação dos educandários, asilos e hospitais — tipologias organizacionais mais comuns nesse período (ASHOKA, 2001; BNDES, 2001 apud SILVA, 2010). O referenciado autor elaborou um quadro que sistematiza de forma clara as configurações do Terceiro Setor no final do século XIX. Apresenta que este tinha “[...] configuração bastante simplificada tanto em relação às tipologias organizacionais, quanto às práticas de gestão, legislação e fontes de recursos” (SILVA, 2010). Configuração do Terceiro Setor no século XIX Práticas de Gestão Fontes de Recursos Governo Indivíduos Igreja Legislação Terceiro Setor Legenda: Elementos surgidos no período Figura 1 32 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 Unidade I No entanto, no início do século XX, a atuação das organizações passou a sofrer mudanças significativas, principalmente pelo crescimento da atuação Estatal na questão social (SILVA, 2010). Segundo Mânica (2007, p. 176), no campo institucional, com a Constituição de 1934, o Estado brasileiro assumiu o modelo de Estado social, passando a voltar sua atenção também para a área econômica e social. Além de se envolver diretamente com a execução de políticas públicas — quase que exclusivamente em perímetros urbanos e nas áreas de saúde e educação —, o Estado direcionou um maior aporte de recursos para as organizações assistenciais. Iniciou‑se um período caracterizado por forte dependência econômica do Estado, que passou a exigir prestação de contas e a exercer maior controle sobre a gestão financeiro‑administrativa das organizações (ASHOKA, 2001; BNDES, 2001). Em 1916, através do Código Civil (Lei nº 3.071/1916), as organizações passaram a ter garantida a sua existência jurídica como associações, fundações e sociedades civis sem fins econômicos (BRASIL, 1916 apud SILVA, 2010). Ou seja, com a intervenção cada vez mais clara do Estado no enfrentamento da questão social, as instituições que compõem o Terceiro Setor passaram a instituir algumas mudanças, para atender as exigências de práticas de gestão impostas por esse novo contexto. Com a industrialização e urbanização da década de 1920 e 1930, a classe operária e as cidades aumentaram, e houve aprofundamento das expressões da questão social, proporcionando o desenvolvimento das tradicionais organizações assistenciais. Nesse contexto, surgem [...] novas tipologias de organizações sem fins lucrativos [...]: sindicatos, associações profissionais, federações e confederações defendiam interesses coletivos mais específicos, mas também vinculavam o setor privado às práticas da doação e da assistência, notadamente ao operariado (ASHOKA, 2001; BNDES, 2001 apud SILVA, 2010). O crescimento do Terceiro Setor – com a integração de inúmeras entidades as quais as naturezas não eram mais bem definidas – foi determinante para a elaboração de uma legislação específica para as entidades que tinham finalidade pública (SILVA, 2010). Em 1935, por meio da Lei nº 91/1935, foi instituído o título de Utilidade Pública Federal, “[...] concedido às organizações que serviam desinteressadamente à coletividade” (SILVA, 2010). A partir dessa lei, essas organização passam a ser obrigadas a “[...] apresentar anualmente relação circunstanciada dos serviços que houverem prestado à coletividade” (BRASIL, 1935, p. 1 apud SILVA, 2010). Em 1959 o reconhecimento institucional das organizações foi ampliado com a criação do Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos (Lei nº 3.577/1959). O título de Utilidade Pública a princípio não 33 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 12 /0 7/ 20 14 PROJETOS SOCIAIS NO TERCEIRO SETOR ofereceu nenhum benefício econômico para as organizações. Porém, o Certificado de Filantropia as isentava da contribuição patronal previdenciária. Essas leis, vigentes até os dias atuais, constituíram os alicerces para o marco legal do Terceiro Setor brasileiro (SILVA, 2010). Sendo assim, é possível afirmar que a consolidação do Terceiro Setor na sociedade brasileira torna‑se, em meados do século XX, cada vez mais complexa na medida em que as instituições que o compõe são obrigadas a atender certas práticas de gestão – como vimos – impostas pelo Estado. A figura a seguir, elaborada por Silva (2010), retrata esse fato. Terceiro Setor Configuração do Terceiro Setor em meados do século XX Práticas de Gestão Governo Indivíduos Legislação Igreja Fontes de Recursos Constituição 1934 Código Cívil 1916 Utilidade Pública Entidade Beneficiente Empresas Organizações Nacionais Forma Jurídica Prestação de Contas Finanças Legenda: Elementos surgidos no período Terceiro Setor Figura 2 Na década de 1970, na busca por defender os direitos políticos e humanos tornados precários pela ditadura militar, surgiram as organizações chamadas de não governamentais – ONGs –, cujas características distinguem‑se daquelas das ações governamentais. Lembrete As ONGs surgem na realidade brasileira a partir da década de 1970, porém, será na década de 1990 que encontrará terreno fértil para seu fortalecimento e proliferação. Costa (2005) pontua que as chamadas Organizações Não Governamentais (ONGs), são “[...] resultantes dos movimentos sociais que emergiram em plena ditadura militar, nos anos setenta, atuando na defesa dos direitos sociais das minorias, do meio ambiente, dos animais etc.”. 34 Re vi sã o: C ris tin a Z. F ra ra ci o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a
Compartilhar