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CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 2 APRESENTAÇÃO O Caderno NEDER é uma publicação do Núcleo de Estudos Sobre Desenvolvimento Regional da Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE. Este campo de pesquisa foi institucionalmente criado com a proposta de ser um espaço de desenvolvimento da pesquisa social no contexto regional. Hoje o Núcleo tem duas áreas de pesquisa: Migração e Violência e Criminalidade. Dando continuidade à proposta de divulgação dos resultados de pesquisas e de reflexões teóricas dos trabalhos pertinentes às áreas que mobilizam a existência do NEDER este volume se dedica à apresentação de artigos que se enquadram na temática “Violência e Criminalidade”. A realização deste trabalho contou com a colaboração de docentes da UNIVALE, de um representante do Sistema Estadual de Segurança Pública/ Minas Gerais e de profissionais do Núcleo de Prevenção à Criminalidade, setor ligado à Secretaria de Estado de Defesa Social/ Minas Gerais. Os profissionais envolvidos na produção deste Caderno são de diversas áreas do conhecimento: Direito, Psicologia, Serviço Social e Sociologia, revelando a multiplicidade dos olhares sobre o fenômeno da violência e criminalidade. Estes olhares, se não convergentes são, em certo sentido, complementares. Aí reside a importância deste trabalho, que reúne produções realizadas sobre o assunto por profissionais de nossa região. Os artigos se dividem em duas categorias: - aqueles que expressam reflexões teóricas sobre o tema violência e criminalidade; - e os que se dedicam aos estudos de caso. Na primeira categoria os temas são a Pedofilia, a Segurança Pública e a Teoria Ecológica, em suas abordagens teórica e prática. Na segunda predomina, de um lado, a análise da situação de vulnerabilidade a que estão submetidos adolescentes, jovens e idosos no Brasil, tomando como referência o que ocorre nos municípios de Governador Valadares (Minas Gerais) e Nova Friburgo (Rio de Janeiro). Um outro estudo faz uma análise das condições dos egressos do sistema prisional de Governador Valadares, a partir do trabalho desenvolvido pela Secretaria de Estado de Defesa Social – Minas Gerais. Alternando-se entre a reflexão teórica, a denúncia e a proposição de novas estratégias de enfrentamento da violência e criminalidade os textos revelam o compromisso de todos com as questões abordadas. Esperamos proporcionar ao leitor a compreensão das várias faces desse fenômeno e, em especial, o conhecimento de como ele se manifesta em nosso contexto de inserção. Aos ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 3 colaboradores, a quem agradecemos, desejamos que este seja o primeiro de várias outras parcerias de desvendamento das interfaces do fenômeno da violência e criminalidade. Cristina Salles Caetano ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 4 Sumário Pedofilia: aspectos psicossociais e significações .................................................................... 5 Mário Gomes de Figueiredo O papel do poder executivo municipal na adoção de políticas públicas de segurança: perspectivas ............................................................................................................................ 16 Wagner Fabiano dos Santos Reflexões sobre as dimensões teóricas e práticas de enfrentamento da criminalidade urbana no contexto brasileiro ............................................................................................... 40 Cristina Salles Caetano Um território de violência contra o idoso: o ambiente familiar ........................................ 57 Sônia Maria Queiroz De Oliveira Carlos Alberto Dias Egressos x Criminalidade ..................................................................................................... 75 Gisele de Oliveira Assis Regina Bragatto Violência, criminalidade e adolescência: a experiência de Governador Valadares ........ 89 Cristina Salles Caetano Retrato em números de uma juventude vulnerável em situação de violência social ..... 106 Rita Cristina de Souza Santos ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 5 PEDOFILIA: ASPECTOS PSICOSSOCIAIS E SIGNIFICAÇÕES PEDOPHILIA: PSYCHOSOCIAL ASPECTS AND SIGNIFICATIONS Mário Gomes de Figueiredo Mestre em Psicologia, Curso de Psicologia da UNIVALE – Universidade Vale do Rio Doce, Governador Valadares-MG. mariodefigueiredo@yahoo.com.br RESUMO A pedofilia tem se constituído em um problema de saúde pública com alta prevalência em todo o mundo, gerando um impacto dramático na opinião pública. Freqüentemente a questão é abordada de uma forma que restringe alguns aspectos relevantes, de natureza psicológica e social. Nesse sentido, este artigo busca discutir o tema, através de uma abordagem mais ampla, na qual a visão da pedofilia como um transtorno de personalidade ou falha de caráter, fundamentado em determinantes biológicos e outros que se encerram no próprio sujeito, é ampliada para outros vieses de entendimento. Para isso, articularam-se aqui possíveis relações entre a pedofilia e características e paradigmas da sociedade contemporânea, analisando-a sobre diferentes ângulos e pontos de vista. Palavras-chave: Pedofilia; Psicologia; Violência. The pedophilia has constituted a problem of public health with high prevalence in the whole world, generating a dramatic impact in the public opinion. The question has frequently been pointed out in a way that restricts some important aspects, of psychological and social nature. By this way, this essay searches to argue the subject through an abundant form, in which the vision of pedophilia upheaval of personality or imperfection of character, based on biological determinants and others that are part of the subject, and it is extended for others knowledge. For this, possible relations between pedophilia, and characteristics and paradigms of the contemporary society, had been articulated here, analyzing them on different angles and points of view. Key words: Pedophilia; Psychology; Violence. Introdução A pedofilia é um problema de saúde pública altamente prevalente, que ocorre praticamente em todos os países, grupos étnicos, educacionais e socioeconômicos. A prática da pedofilia, portanto, é um fenômeno mundial e não de culturas particulares, facilitada pela internet, com a divulgação de fotos e vídeos de fácil acesso. Nesse contexto, o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking de material pornográfico na rede mundial de computadores (FELIPE, ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 6 2006). Quanto a isso, registros históricos revelam reações sociais extremamente ambivalentes a essa atividade sexual entre adultos e crianças, que variam desde a negação até a aceitação, mesmo que velada (DEBLINGER; HEFLIN, 1995). Não obstante o efeito dramático na opinião pública, tal fato, com suas implicações diversas e surpreendentes, tem existido através dos tempos. Nos dias atuais, a pedofilia tem um impacto psicossocial perturbador, conforme indicam pesquisas (DEBLINGER; HEFLIN, 1995). Freqüentemente a mídia veicula notícias de casos tidos como de pedofilia, o que causa forte tensão emocional e psicológica nas pessoas. Sentimentosde ódio e repulsa, assim como pensamentos e verbalizações que expressam revoltas e indignação sintetizam a resposta da opinião pública acerca da questão. Isso provoca a reflexão quanto ser a pedofilia um fato novo ou não tão novo assim, mas que, de tempos para cá, tornou-se visível, a partir de uma intensa exposição nos meios de comunicação de massa. Cada vez mais a palavra aparece em bocas horrorizadas da sociedade. Seria algo que antes ocorria de forma velada, ignorada e que, por causar impacto, torna-se um bom conteúdo de veiculação pública, particularmente como mote em campanhas do governo contra a violência. Ressalte-se que, por medo da reação da sociedade, grande parte dos casos de pedofilia familiar não aparece à opinião pública. É importante frisar as seqüelas psicossociais associadas à pedofilia, onde estudos apontam para graus diferentes de perturbações para a criança que viveu tal experiência, que vão desde efeitos mínimos ou não aparentes, até graves problemas de comportamento, dependência de droga, disfunções sexuais, depressão grave, tendências suicidas e transtorno de estresse pós-traumático (DEBLINGER; HEFLIN, 1995). Partindo desse ponto, temos então a pedofilia como fenômeno a ser visto sob diferentes ângulos. Esse é o propósito deste artigo, onde se pretende aqui abordar a questão sob alguns pontos de vista diversos: como entender a pedofilia? Quais os aspectos psicossociais envolvidos na questão? Antes, porém, de buscar responder tais perguntas, é necessário ajustar o vocábulo quanto à sua significação, tanto em termos etimológicos, quanto ao contexto histórico e geográfico em que a palavra é ou já foi usada. Originariamente, o termo pedofilia designava o amor de um adulto pelas crianças. O termo vem do grego antigo paidophilos, que se refere tanto a pais como a criança, e de phileo, que significa amar. A palavra, entretanto, com o passar do tempo, derivou para outros sentidos e, hoje, é usada para designar características de comportamentos socialmente inadequados, ou mesmo, abomináveis. Freqüentemente o termo é utilizado pelos veículos de comunicação de massa associado a comportamentos inaceitáveis, no bojo de campanhas de ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 7 combate à violência e ao abuso sexual, distanciando-o cada vez mais de sua significação original. No sentido da classificação psicopatológica, a pedofilia se define como uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-puberal ou no início da puberdade. A pedofilia está classificada, juntamente com outros transtornos psiquiátricos, agrupados pela CID-10 como parafilias, que são comportamentos sexuais caracterizados por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades, situações incomuns e causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou ainda em outras áreas da vida do indivíduo (OMS, 1993). Visto pela ótica da psicopatologia, é imperativo inserir nesse ângulo o conceito de sujeito, que é indissociável dessa categorização, para que se possa ter uma compreensão mais precisa desses fenômenos psicopatológicos, o que inclui a pedofilia, vista como tal. Nesse sentido, iremos considerar aqui o conceito de sujeito não como algo em si mesmo, sem determinações que lhes são exteriores, mas como produto de três determinantes: um biológico, que diz respeito à filogenia e à herança genética de cada um. Outro seria o psicológico, caracterizado pela ontogenia, que é a história particular de vida do indivíduo. Por fim, tem-se a cultura, composta de práticas coletivas do ambiente social. Portanto, o sujeito nessa visão é entendido como produto da relação dialética entre o comportamento do indivíduo e seu ambiente social, onde um não prevalece sobre o outro, mas sim é determinado por um, ao mesmo tempo em que o determina. Ou seja, o sujeito é produto e também produtor da sociedade que o determina (SKINNER, 1994; 1995; 1999). A definição desse conceito de sujeito é fundamental para a abordagem da questão, uma vez que aponta para um sujeito como relação, entre ele e seu ambiente social, onde um não tem autonomia sobre o outro e se influenciam mutuamente (MICHELLETTO, 2008). Apesar dessas considerações acerca do conceito de sujeito, a pedofilia é freqüentemente abordada como um transtorno de comportamento, mais especificamente como uma parafilia. Essa significação tende a esgotar a questão no próprio sujeito, dissociado de sua história e do contexto social de seu tempo, com todas suas contradições e vicissitudes. Seria algo como diagnosticar o indivíduo sem diagnosticar, concomitantemente, a sociedade em que ele vive. O conceito de sujeito como relação supera essa interpretação, uma vez que não dissocia o sujeito de seu contexto social, configurando assim, uma influência dialética entre seu comportamento e as conseqüências desse sobre o meio, conseqüências essas que retroagem sobre suas ações. Dessa forma, amplia-se a investigação do tema para outros vieses de entendimento. A pedofilia, então, pode ser vista como produto de determinantes não ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 8 apenas psicopatológicos encerrados no próprio sujeito, mas que também envolve fatores sociais, econômicos e políticos, os quais, se não determinam a pedofilia, pelo menos favorecem sua ocorrência. Isso implica na observância de aspectos que estão para além do próprio sujeito. Nesse sentido, vale destacar que as práticas emergentes em psicologia, superando o modelo clássico de consultório, prescrevem que, para sua efetivação, é necessário operar tanto na subjetividade quanto nos elementos sociais que participam de sua produção, uma vez que a cidade e a sociedade como um todo também apresentam seu lado produtor de perturbações de comportamento nos indivíduos, como a violência, o tráfico de drogas e as próprias contradições da vida moderna (NETO, 2008). A partir daí, então, veremos a seguir a questão sob esses aspectos para além do entendimento da pedofilia como uma psicopatologia, no sentido de algo restrito e intrínseco a alguns indivíduos, dissociado das características da dinâmica social de seu tempo e de sua cultura. Pedofilia como transtorno psiquiátrico A classificação dos transtornos mentais e de comportamento do Código Internacional de Doenças em sua décima versão, CID-10, descreve as patologias psiquiátricas como uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica do indivíduo (OMS, 1993). Nesse sentido, o propósito não é o compromisso com teorias que explicariam os transtornos classificados. Tais transtornos seriam apenas descrições. Assim, a pedofilia está descrita, sob o código F65.4, da seguinte forma: “... uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-puberal ou no início da puberdade. Alguns pedófilos são atraídos apenas por meninas, outros apenas por meninos e outros ainda estão interessados em ambos os sexos. A pedofilia raramente é identificada em mulheres. Contatos entre adultos e adolescentes sexualmente maduros são socialmente reprovados, sobretudo se os participantes são do mesmo sexo, mas não estão necessariamente associados à pedofilia. Um incidente isolado, especialmente se quem o comete é ele próprio um adolescente, não estabelece as presença da tendência persistente ou predominante requerida para o diagnóstico. Incluídos entre os pedófilos, entretanto, estão homens que mantém uma preferência por parceiros sexuais adultos, mas que, por serem cronicamentefrustrados em conseguir contatos apropriados, habitualmente voltam-se para crianças como substitutos. Homens que molestam sexualmente seus próprios filhos pré- púberes, ocasionalmente seduzem outras crianças também, mas em qualquer caso seu comportamento é indicativo de pedofilia.” (OMS, 1993, p. 215) Nota-se que, na descrição acima, há uma referência à “... presença de uma tendência persistente ou predominante...”, o que pode ser interpretado que o comportamento encerra-se ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 9 no próprio sujeito, dotado intrinsecamente dessa tendência. Além disso, pode-se destacar, por outro lado, indicativos da pedofilia como relação de poder, como no trecho em que se refere à conduta do pedófilo como uma alternativa à sua frustração em conseguir parceiros adultos, entendendo que a relação com crianças seria mais fácil de ser conseguida por ele pela desproporção de poder entre um e outro: “... cronicamente frustrados em conseguir contatos apropriados, voltam-se para crianças como substitutos.” Nesse ponto, pode-se sustentar que a pedofilia implica em aspectos que vão além de um transtorno de conduta sexual, e que inclui aspectos sociais e também políticos, entendida aqui a política como relações de força e de poder entre pessoas e grupos, tornando a questão muito mais complexa do que possa parecer a princípio. Como um transtorno psiquiátrico a pedofilia seria, então, passível de tratamento. Isso quer dizer que algumas pessoas, por razões imprecisas, padeceriam de tendências incontroláveis que lhes são próprias e, por isso, necessitariam de um tratamento para conter essa disfunção de conduta. Nesse caso, o pedófilo seria vítima de uma doença a ser tratada. As intervenções em transtornos psiquiátricos atualmente seguem uma prática multidisciplinar, que envolve além da psiquiatria, a psicologia, terapia ocupacional e outras áreas afins. A forma de intervenção na pedofilia implica no tratamento psiquiátrico, com a prescrição de algumas drogas para redução da libido, conhecida pela expressão de adequação e uso controverso, de “castração química”. Também psicoterapia, treino de auto-controle de impulsos e outros. Entretanto, tais intervenções exigem uma adesão ao mesmo por parte do pedófilo, o qual, motivado por um suposto sentimento de culpa e arrependimento pelos seus atos, iria buscar o tratamento. Nesse particular é preciso esclarecer que o comportamento pedófilo pode ser de um indivíduo com um tipo de personalidade denominada de anti-social. A descrição desse transtorno de personalidade contida na CID-10 traz que “... o transtorno de personalidade anti-social é caracterizado por indiferença, insensibilidade pelos sentimentos alheios, por atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais... baixa tolerância à frustração... incapacidade experimentar culpa...” (OMS, 1993, p.199-200). Desta forma, para o sucesso de uma intervenção para o tratamento da pedofilia, o indivíduo que apresenta uma característica de personalidade anti-social certamente não irá aderir ao processo de intervenção, exigindo, assim, uma outra forma de resolução. Essa outra forma de resolução, em alguns países da Europa, como a França, tem sido a castração química compulsória, através da aplicação de hormônios para inibir o desejo sexual. Os resultados de tal intervenção tem sido controversos, na medida em que a redução da libido pode não ser ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 10 concomitante à redução de conduta violenta. Nesse ponto, a pedofilia pode ser abordada sob a ótica da violência sexual. Pedofilia como violência sexual É notório que vivemos em uma sociedade onde a violência é uma realidade insofismável. Dentro desse contexto, a pedofilia pode ser vista como produto dessa realidade, que implica em relações de poder. Alguns paradigmas de nosso tempo referem-se a uma espécie de primazia do prazer individual imediato, sem renúncia ou elaboração de outras possibilidades, redundando em um verdadeiro elogio ao individualismo agressivo (CHAUÍ, 2008). Aliado a uma permissividade, às vezes explícita e outras tantas dissimulada, envolvida em um rótulo de liberdade individual, tal paradigma funciona como um combustível para comportamentos anti-sociais, violentos. Mais do que isso, alguns comportamentos violentos são até mesmo objeto de admiração social, interpretados como de alguém corajoso e inteligente. Aqui a inteligência estaria associada à idéia de desempenho social, de sucesso. Nesse raciocínio, fica negligenciada ou mesmo ignorada a idéia de inteligência relacionada à educação, o que remeteria a conduta do indivíduo a parâmetros éticos. Nessa linha de raciocínio, a pedofilia pode ser entendida também como um negócio rentável, sem interdições de caráter moral ou ético, onde indivíduos, enquanto consumidores em potencial estariam disponíveis para consumir produtos promovidos pelo crime organizado, gerando lucros de milhões de dólares em todo o mundo (FELIPE, 2006). Isso faz do problema algo muito mais complexo e de uma amplitude muito maior do que apenas uma patologia que acomete alguns indivíduos que precisam ser tratados. Assim como o tráfico de drogas ou de armas, a comercialização de fotos e vídeos eróticos de crianças através da internet configura- se como uma complicada rede internacional do crime organizado, exigindo do poder público uma ação estratégica eficiente e rigorosamente planejada. Tal dinâmica social, favorecedora de um comércio dessa natureza, exige uma reflexão acerca da sociedade de consumo contemporânea. Pedofilia como expressão da sociedade de consumo contemporânea Um outro aspecto envolvido no entendimento da pedofilia implica na visão de uma cultura que prima pelo prazer imediato, o que caracterizaria a sociedade contemporânea como uma sociedade de consumo hedonista. Ou seja, com práticas culturais compatíveis com a ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 11 doutrina que considera o prazer individual e imediato como princípio da vida moral (ABBAGNANO, 2003). Nessa direção, tem-se um novo tipo de subjetividade, marcada pelo sujeito narcisista, que exige aquilo que a mídia e a sociedade de consumo lhe prometem sem cessar – satisfação imediata de seus desejos, como promessa de felicidade (CHAUÍ, 2008). Tais sujeitos viveriam em uma espécie de “festa de prazeres”, onde tudo é permitido. A máxima é o prazer compulsório, onde a satisfação individual se sobrepõe a bens coletivos ou a qualquer tipo de consideração pelo outro. Assim, as pessoas se transformam em simples mercadorias a serem comercializadas, dentro de uma lógica de mercado. Nesse sentido, a pedofilia constitui um fenômeno social, na forma de um comércio gerido pelo crime organizado internacional, facilitado pela rede mundial de computadores, a internet. Isso implica, mais uma vez, numa abordagem da questão em uma complexidade para além de uma simples psicopatologia a ser tratada, vista como uma perturbação encerrada no próprio sujeito. A evolução da tecnologia de comunicação permite que o comércio pornográfico tenha um alcance jamais visto. Crianças de sete, nove anos são expostas em fotografias eróticas em sítios pornográficos na rede de computadores, para serem consumidas como mercadorias, que geram lucros estratosféricos. Desta forma, quanto a essa questão de ser a pedofilia uma doença psiquiátrica ou um simples atode violência, vale citar uma pesquisa sobre a abordagem do assunto na mídia escrita, mais especificamente no jornal Folha de São Paulo (LANDINI, 2003), que traz dados curiosos. Neste trabalho observou-se que a pedofilia, quando praticada por pessoas da classe média alta, é entendida como doença mental que acomete o indivíduo que sofreu traumas na sua infância. Geralmente ocorre entre pessoas sem relação de parentesco. A pedofilia neste caso é vista como fenômeno mundial, possibilitada pela internet e agenciada pelo crime organizado. Quando, de outro lado, é praticada por pessoas de classe social socioeconomicamente baixa, é denominada de violência sexual, entendida como crime e, portanto, passível de punição severa, não de tratamento. São descritas como casos isolados e praticada por pessoas com laços de parentesco com as vítimas. A conclusão a que se chegou é que a mídia contribui para a construção de uma visão do senso comum da violência praticada pelas classes baixas como produto da barbárie e da pobreza, enquanto que nas classes altas, a violência é produto de um “desvio psicológico” (LANDINI, 2003). Aqui é importante ressaltar a forma como a pedofilia é interpretada, pois ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 12 tal interpretação funciona como instrumento ideológico, na medida em que dá significados diferentes para justificar uma segregação social de classes. Um outro ponto a ser destacado ainda é a contradição observada dentro da sociedade de consumo, onde interesses comerciais se confrontam com exigências morais. Ao mesmo tempo em que se combate a pedofilia, na forma de matérias jornalísticas espetaculares na mídia, para satisfazer os clamores populares na forma de audiência, se exibe crianças como objetos de consumo erotizados em anúncios e campanhas publicitárias, configurando uma verdadeira sociedade pedofilizada (FELIPE, 2006). A espetacularização da sexualidade, aliás, vem no bojo do que se denomina de sociedade do espetáculo (GUY DEBORD, 1999), a qual se caracteriza pela exposição dos fatos na forma de espetáculo, sem aprofundamento do conteúdo, sem reflexão crítica. O sujeito, assim, vira mero expectador passivo, passível apenas de uma comoção passageira, sem efeito sobre a racionalidade analítica, crítica. Isso o leva a uma acomodação, a uma espécie de desamparo, uma resignação amorfa. Isso se confirma no fato de que a sociedade contemporânea prima pela espetacularização dos fatos, na medida em que produz espectadores passivos diante de material veiculado na mídia, para glorificar a mercadoria, a novidade, o trágico, o progresso, o capital (GUY DOBORD, 1999). Os temas da realidade cotidiana, em todas as suas vertentes, inclusive na da violência, são apresentados sob os holofotes do palco midiático que transforma tudo em espetáculo a ser digerido por uma audiência pasma e amorfa, sem capacidade de reflexão crítica ou questionamentos. As questões abordadas não são aprofundadas e ficam flutuando na superfície da imobilidade ou da impulsividade irracional. O espetáculo, desta forma, se constitui em inimigo da verdade, reduzindo a experiência a uma mera vivência pontual, imediata e sem memória (GUY DEBORD, 1999). Provavelmente, já há algum tempo estar-se-ia fomentando o erotismo infantil, mesmo sem a consciência disso. Talvez por isso é que não seja nítida a esse sujeito a manifestação de uma cultura hiper-sexualizada, onde formas de prazer proibidas, que incluem a exposição de crianças em atitudes erotizadas, são experimentadas como toleráveis ou mesmo legítimas. Afinal, a máxima é a de que aproveitar e se divertir acima de tudo é o que importa, uma vez que o sujeito é pressionado pela cultura a obter prazer imediato e a qualquer preço, sem possibilidade de renúncia. O acesso ao prazer é sinônimo de poder e sucesso, confere prestígio, admiração e destaque social. Submetido a esse imperativo a falta de controle volitivo para conter os excessos diminuem sensivelmente nas subjetividades, que ficam assim ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 13 cada vez mais à deriva de imposições extravagantes. O auto-controle não consegue regular tais excessos, que se manifestam então de maneira incoercível (BIRMAN, 2006). Discussão Os pedófilos não são meros doentes mentais, que padecem ou fazem os outros sofrerem por conta de um transtorno de conduta sexual. Na doença mental ou nos transtornos de conduta há componente social que, pelo menos, se não o determinam, favorecem sua manifestação. Sujeitos com baixa capacidade de tolerar frustração, com profunda inconsistência de consciência moral e compromisso ético pode ser produto também de uma cultura consumista e individualista. O sujeito envolvido na sociedade de consumo transforma o outro em objeto a ser consumido, sem significação que lhe atribua dignidade. O prazer é pautado pela lógica da mercadoria, colocada na prateleira para ser adquirida: o homem é consumidor e, ao mesmo tempo, objeto a ser consumido como outro objeto qualquer. Isso favorece ainda o desenvolvimento de sujeitos com características psicológicas marcadas por baixos recursos de auto-controle de conduta e impulsos. Na dinâmica da vida moderna, uma outra questão refere-se a padrões de práticas parentais, onde pais e mães se vêem com dificuldades quanto a como lidar com seus filhos. Nesse sentido é preciso investigar se os pais, com todas as suas ocupações e premências têm tempo e efetivos recursos para cuidar e proteger seus filhos. Por fim, tem-se uma questão ética quanto à forma da sociedade em lidar com o pedófilo. Quando ele demonstra sentimento de culpa com seu ato, possibilitando uma adesão a um programa de tratamento, é legítima a proposta, além da psicoterapia e apoio social, da chamada “castração química” voluntária, onde o indivíduo usaria medicamentos para conter seu impulso sexual inaceitável? E o pedófilo que não apresenta sentimento de culpa, com indicativos de uma personalidade anti-social? Seria um caso para punição, que incluiria a castração química compulsória? Pelo exposto neste artigo, tem-se que o tema envolve questões profundas e complexas, que não permitem uma abordagem precipitada e superficial que venham a excluir aspectos essenciais que extrapolam o sujeito em si mesmo. Determinantes sociais que apontam para práticas culturais problemáticas e contraditórias não podem ser deixadas de lado quando se pretende compreender o comportamento humano, mesmo naqueles onde aparentemente a compreensão parece óbvia, motivadas por afetos e emoções intensas, como indignação e ódio. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 14 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia, 4 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rido de janeiro: Civilização Brasileira, 2006. CHAUÍ, Marilena. Ética e Violência. Texto disponível em www.scridb/marilenachauí.conviteafilosofia.com.br. Acesso em 30/09/08. FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, n. 26, Campinas, jan / jun. 2006. Disponível em: www.scielo.com.br, acesso em 10/08/2008. DEBLINGER, E.; HEFLIN, A. H. Abuso sexual infantil. In: DATTILIO, F. FREEMAN, A., Estratégias cognitivo-comportamentais para intervenção em crises. Campinas: Editora Psy II, 1995. DEBORD, Guy. In: A Sociedade do Espetáculo, Jornal Folha de São Paulo, 07/11/1999. LANDINI,Tatiana Savoia. Pedófilo, quem és? A pedofilia na mídia impressa. Caderno de Saúde Pública, v. 19, supl. 2, Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: www.scielo.com.br, acesso em 10/08/08. MICHELETTO, N.; SERIO, T. M. A. Homem: objeto ou sujeito para Skinner. Texto disponível em www.terapiaporcontigencias.com.br. Acesso em 30/09/08. NETO, J. L. F. Práticas Transversalizadas da Clínica em Saúde Mental, Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(1), 110-118, 2008. Disponível em: www.scielo.com.br . Acesso em 30/08/2008. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 15 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. São Paulo: MartinsFontes, 1994. Tradução de: João Carlos Todorov e Rodolfo Azzi. SKINNER, B. F. Questões recentes na análise do comportamento. São Paulo: Papirus, 1995. Tradução de: Anita Liberalesso Neri. SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. 11 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1999. Tradução de: Maria da Penha Villalobos. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 16 O PAPEL DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL NA ADOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA: PERSPECTIVAS THE ROLE OF THE MUNICIPAL EXECUTIVE POWER IN THE ADOPTION IN PUBLIC POLITICS OF SECURITY: PERSPECTIVES. WAGNER FABIANO DOS SANTOS1 RESUMO O aumento da criminalidade e da sensação de insegurança verificados nas últimas décadas e o entendimento, ainda que incipiente, por parte da população, de que o município é o local primário da manifestação das ações estatais, têm suscitado discussões sobre qual é o real papel do Poder Executivo Municipal no que tange à segurança pública. Sob este enfoque, o objetivo deste artigo é verificar qual o papel dos governos locais na adoção de políticas públicas de segurança que podem corroborar para a prevenção da criminalidade. Este artigo demonstra que quanto maior for o envolvimento da Prefeitura na adoção de políticas públicas de segurança maior será a prevenção criminal e a sensação de segurança. Conclui que embora os Poderes Executivos locais realizem políticas públicas de segurança elas são carentes de uma abordagem focada na prevenção criminal e de uma gestão adequada; são fragmentadas e descoordenadas, existindo a necessidade de uma profunda mudança no entendimento do papel deste ente do Estado na segurança pública. Palavras-chave: Políticas públicas de segurança. Poder Executivo municipal. Governança. Prevenção criminal. ABSTRATC The increasing rate of criminality and the sensation of insecurity have been present in the last decades and the understanding, even though incipient, from the part of the population, that the city is the primary place of the manifestation of the state actions, have raised discussions about what is the real function of the municipal Executive Power in what concerns the public security. Subject to this focus, this research aim at verifying what public security politics are accepted by the Cities Halls and can collaborate to the prevention of the criminality. The research perform, try to show that the bigger the involvement of the municipal Executive in the adoption of public politics of security the bigger the prevention of the crime. The conclusion of this study arrieved is that however, the executive power local realize public security politics, they are lockling of the approuch focused in the criminal prevention and the one appropriete management, fragment, uncoordination, beeing necessity of the deep changed in the comprehension of the function of this person of the state in the public. 1 Capitão da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais - Wagner Fabiano dos Santos, Especialista em Segurança Pública – FJP/APM, Pós-graduado em Gestão Empresarial – FGV, Bacharel em Direito pela FADIVALE/MG. Mestrando em Gestão Integrada do Território – UNIVALE. E-mail: capwagner@yahoo.com.br ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 17 Key Words: Politics of Public Security. Municipal Executive. Governance.Criminal Prevention. 1- INTRODUÇÃO As intervenções no campo da segurança pública estão em um patamar que sobrepõe a exclusiva atuação estatal nas esferas de governo federal e estadual, por intermédio das polícias, para atender às comunidades nos seus anseios por segurança. Por se tratar de questão multidisciplinar, a segurança pública implica na atuação de diversos órgãos governamentais e da sociedade organizada, para adoção de medidas eficazes de prevenção criminal. Devido a este motivo, constituiu-se tema deste artigo a análise do papel do Poder Executivo Municipal na adoção de políticas públicas de segurança. O objetivo geral deste artigo é verificar quais são as políticas públicas de segurança locais que podem colaborar para a prevenção da criminalidade. Os objetivos específicos são: verificar, no ordenamento jurídico vigente, qual a previsão legal da competência relativa ao Poderes Executivos Municipais na adoção de políticas públicas de segurança; apresentar políticas públicas municipais implementadas com sucesso. A pergunta norteadora deste artigo tem o escopo de investigar qual é o papel do Poder Executivo Municipal na adoção de políticas públicas de segurança que reduzam a criminalidade e o medo do crime. Foi elaborada como hipótese da pesquisa que quanto maior for o envolvimento das Prefeituras na adoção de políticas públicas de segurança, maior será a prevenção da criminalidade. O artigo é relevante por analisar quais as políticas públicas de segurança são desenvolvidas em municípios que, ao adotarem políticas de prevenção, obtiveram resultados positivos na redução criminal. Poderá subsidiar, teoricamente, projetos que visem à captação de recursos para implementação das políticas citadas e culminar com a redução da criminalidade e do sentimento do medo do crime. Trata-se de uma pesquisa exploratória, devido ao fato de que o seu objeto, o papel do Poder Executivo Municipal na segurança pública, é um assunto relativamente novo no âmbito acadêmico. Para a realização deste artigo utilizou-se da pesquisa bibliográfica, por meio da análise das teorias sociológicas acerca do tema, e a pesquisa documental, com a verificação de legislação, metodologia de análise criminal, documentos e diretrizes pertinentes ao assunto e obras correlatas. Para as fontes primárias teve-se como material de pesquisa o Plano Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2003), a Constituição Federal de 1988, a Constituição Estadual ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 18 de 1989 (MINAS GERAIS), o Plano Diretor do Município (GOVERNADOR VALADARES, 2007), a Diretriz para a Produção de Serviço de Segurança Pública n° 01/ 2002 (MINAS GERAIS, 2002) e demais obras correlatas ao objeto de pesquisa. As fontes secundárias tiveram como fundamento a teoria da análise de problemas de Cohen e Felson (1979), os estudos de Sapori (2006) sobre políticas públicas de segurança e a análise de obras que relatam experiências exitosas de adoção de políticas públicas de segurança pelos governos municipais. Estas teorias tiveram como objetivo mostrar o papel do PoderExecutivo Municipal na adoção de políticas públicas de segurança que visem a redução da criminalidade e do medo do crime. Para melhor compreensão do texto este artigo está dividido em seis seções. A primeira se destina a introdução ao assunto objeto da pesquisa. Nas segunda, terceira, quarta e quinta seções são apresentadas a abordagem teórica da pesquisa. Na segunda seção estão expostos os conceitos de políticas públicas de segurança, a sua relação com a manutenção da ordem pública e com a governança e o seu processo de gestão. Na terceira seção são abordadas as principais teorias que sustentam a análise do objeto de estudo. Na quarta está demonstrado qual é o papel do município na segurança pública. Na quinta seção são relatadas duas experiências de sucesso na gestão das políticas públicas de segurança em nível municipal e apresentado um guia de recursos para os municípios que pretendem adotar tais políticas. A sexta e última seção serve para a apresentação da conclusão do artigo. Seguiu-se ao corpo do texto a indicação das referências utilizadas. 2 ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA Esta seção tem por finalidade esclarecer brevemente a etimologia e os conceitos da expressão “políticas públicas de segurança” e estabelecer a sua relação com a governança. Por ser de fundamental importância ao objeto de estudo apresenta-se como ocorre o processo de gestão das políticas públicas de segurança. 2.1 Etimologia da expressão políticas públicas de segurança Para Plácido e Silva (2007, p.1055) a etimologia da palavra política tem sua formação no grego politika, que por sua vez tem sua gênese na palavra polis que é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos cidadãos politikos, homens nascidos no solo da Cidade, livres e iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não deve realizar). A politika é a gestão dos negócios públicos dirigidos pelos ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 19 cidadãos: costumes, leis, erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços públicos e das atividades econômicas da Cidade. Plácido e Silva (2007, p.1132) descreve que a palavra publica, de origem latina, é o feminino singular dos adjetivos publicus e publicum, que por sua vez são derivadas de uma forma mais antiga, poplicus, ou seja, relacionada a populus “povo". A palavra pública, neste sentido, se refere a uma coisa que não é considerada propriedade privada, mas mantida em conjunto pela coletividade. O autor cita, ainda, que a palavra politika e a palavra publica significam, em conjunto, o que designamos atualmente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política, e às decisões concernentes ao erário ou fundo público. A palavra segurança exprime, gramaticalmente, a ação e efeito de tornar seguro, ou se assegurar e garantir alguma coisa. Tem origem no latim, idioma no qual significa “sem preocupações”, cuja etimologia sugere o sentido “ocupar-se de si mesmo” (se e cura). Na definição mais comum a segurança se refere a “um mal a evitar”. É a ausência de risco, a previsibilidade, a certeza quanto ao futuro (SILVA, 2007, p.1266). Assim, a segurança pública pode ser entendida como um estado permanente de ordem, um estado sensitivo coletivo de segurança, uma sensação de segurança social manifesta e perene. Neste sentido, as políticas públicas de segurança são entendidas como práticas públicas governamentais adotadas com o objetivo de coordenar os meios à disposição do Estado e das atividades privadas, para a gestão de objetivos socialmente relevantes, no que concerne à segurança pública. 2.1.1 Políticas públicas Para um melhor entendimento do conceito de políticas públicas é necessário verificar o contexto onde elas se encontram inseridas. Neste sentido, Sapori (2006, p. 58) descreve que: [...] a noção de política pública pressupõe que haja uma esfera da vida que não é privada ou puramente individual, mas sustentada pelo que é comum e público. E sendo comum, em termos da comunidade política, cabe ao Estado a principal, senão exclusiva, responsabilidade pela sua preservação. O “público” compreende a dimensão da atividade humana, que é percebida como necessitando de intervenção, regulação social e/ou governamental. À medida, portanto, que certos bens vão se coletivizando, tornam-se objetos, necessariamente, de políticas públicas. É no processo de supremacia institucional gradativa do Estado-Nação, enquanto provedor de bens coletivos, que, paralelamente, vai se cristalizando a expectativa social de ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 20 que caberia aos governos resolver ‘problemas’ utilizando-se do aparato administrativo-burocrático [...]. Segundo Hill (1997 apud SAPORI, 2006, p.58-59): “[...] ter uma política pública significa ter razões ou argumentos que contêm tanto a compreensão de um problema como também a sua solução. Coloca em questão “o que é” e “o que deve ser feito”. Espera-se sob este ponto de vista que políticos tenham políticas (policies), ou mesmo que planejem e executem políticas (policy- makers). Isto não significa que as políticas públicas sejam caracterizadas, necessariamente, por alto grau de racionalidade, sendo planejadas e executadas de forma sistemática. O caráter racional e sistemático das políticas públicas é muito mais uma expectativa social, mesmo de muitos estudiosos de que assim elas sejam, de modo que tem uma perspectiva eminentemente normativa. O discurso contemporâneo, acerca das políticas públicas, enfatiza como desejável que os políticos tenham políticas, bem como as executem de forma sistemática. Os políticos não concebem seus papéis nesses termos, necessariamente. O poder pode ser mais importante do que a própria política ou, ainda, pode ser usado para fins pessoais e não para a solução de problemas públicos. Deve-se considerar, também, que muito da atividade política está voltada para a manutenção do status-quo e não para implementar mudanças. Em suma, a noção de políticas públicas deve englobar tanto processos decisórios e conseqüentes cursos de ação, como também ausência de decisões e conseqüente ausência de intervenções governamentais. Além disso, não pode ser pressuposto que políticas públicas sejam dotadas de racionalidade, pautadas pela seqüência de diagnósticos, planejamento, execução e avaliação. Este padrão racional funciona mais como um tipo-ideal do que uma descrição acurada das intervenções governamentais concretas, nas diversas sociedades contemporâneas [...]”. Verifica-se que para que exista a possibilidade de sistematizar as políticas públicas é necessário que exista um layout institucional adequado, aspirações sociais somadas à capacidade de planejar e gerir as políticas públicas, a própria vontade política, que será determinada pela visão pessoal do governante ou alicerçada pela pressão popular, o que lhe conferirá legitimidade. Pode-se afirmar que a noção de políticas públicas está intimamente relacionada à dimensão coletiva do objeto de intervenção estatal e a capacidade de gestão governamental neste sentido. As políticas públicas têm como escopo regular a vida cotidiana e propiciar aos cidadãos a possibilidade de um relacionamento pacífico e, sobretudo,realizar as aspirações coletivas, sejam elas por segurança, saúde, educação ou qualquer outra questão que esteja no âmbito dos anseios comuns. 2.2 A manutenção da ordem pública e a governança Para que ocorra a gestão das políticas públicas é necessária a capacidade governamental de gerenciar os envolvidos no processo de criação, implementação, avaliação e ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 21 correção das políticas, ou seja, o exercício da governança. Neste sentido Rhodes (1997 apud SAPORI, 2006, p.75) demonstra que: [...] a noção de governança tem um sentido mais amplo do que o de governo, considera que os serviços públicos são providos por um network organizacional complexo. Segundo este autor, a governança diz respeito ao gerenciamento de redes, ao gerenciamento dos nexos e relações estabelecidas entre organizações. Tais redes são auto-organizativas, ou seja, muitas das organizações que a compõem controlam a si mesmas em boa medida, de modo que a capacidade de controle do governo sobre elas é limitada. O governo é apenas um dos atores que influenciam o curso dos eventos na rede, não tendo poder suficiente para impor seus desejos e vontades. Outra característica do gerenciamento de redes típico da governança é a interação continuada entre os membros da rede, pois compartilham propósitos e negociam recursos entre si [...]. Portanto, sendo a governança a capacidade governamental de gerir redes organizacionais, existem grandes desafios a serem suplantados para coordenar esforços no sentido de angariar o envolvimento não só intra órgãos governamentais, mas, também, na sociedade como um todo. Verifica-se que existe uma enorme dificuldade para fazer o gerenciamento dos atores envolvidos nas políticas públicas e compreende-se o quanto é importante a participação da comunidade no processo de geração da política, de sua implantação, coordenação, controle e aperfeiçoamento. Desta maneira verifica-se que o resultado esperado de uma política pública depende muito mais do envolvimento daqueles que se encontram no seu processo do que do governo propriamente dito. Para tanto existe a necessidade de um layout institucional que possibilite a inter-relação entre aqueles que geram, implantam e são objetos de políticas públicas. No caso do governo municipal se verifica a necessidade do envolvimento da Prefeitura Municipal, Câmara de Vereadores, das polícias e demais órgãos do sistema de defesa social, conselhos comunitários, entidades de classe, dentre outros e, da comunidade, principal beneficiária da política pública. 2.3 Política de segurança como gerenciamento de crises A análise de como ocorre a implantação e gestão públicas de segurança na sociedade brasileira é de fundamental importância ao entendimento do objeto de estudo. Para Sapori (2006, p.105) se pode afirmar que: [...] nas duas últimas décadas, políticas de segurança pública não tenham sido implementadas na sociedade brasileira. Muito da atividade política está voltada para a manutenção do status-quo e não para a implementação de mudanças. A noção de políticas públicas deve englobar tanto processos decisórios e, conseqüentes cursos ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 22 de ação, como também ausência de decisões e, conseqüente, ausência de intervenções governamentais. É sob este ponto de vista que podemos identificar uma trajetória da política de segurança pública em nossa história recente [...]. Nesse sentido pode-se afirmar que no cotidiano da sociedade brasileira existe a racionalização dos processos de intervenção no fenômeno da criminalidade, através de uma política pública calcada na filosofia da manutenção da situação vigente, de “apagar incêndios”, ou “enxugar gelo”. A guisa de exemplos citam-se os caso do menino João Hélio, recentemente morto por infratores e os incêndios provocados em ônibus, ambos os casos no Estado do Rio de Janeiro, e os ataques aos policiais ocorridos recentemente no Estado de São Paulo. No flagras destes graves incidentes sociais surgem respostas como panacéias ao grave problema da criminalidade no Brasil, como propostas de mudança do ordenamento jurídico, notadamente quanto à maioridade penal, aplicação de penas mais severas, dentre outras. Cita- se ainda, como exemplo, o caso da atriz Daniela Peres, brutalmente assassinada e cuja comoção social ocorrida após a sua morte, capitaneada por sua mãe Glória Peres, culminou com a lei dos crimes hediondos. Assim, irmana-se ao sentimento coletivo de indignação, mas demonstra-se como o processo de gerenciamento de crises se manifesta. No que diz respeito à racionalização do gerenciamento de crises como regra nacional para resolução dos problemas atinentes à segurança pública existe, mesmo que de forma incipiente, políticas sendo adotadas com vistas a sistematizar as ações nesta área. O plano nacional de segurança pública do governo federal, apresentado no ano de 2003, contempla ações que visam a adoção de políticas públicas consistentes e coordenadas entre os envolvidos, no seu processo de gestão. Segundo Sapori (2006, p.106): [...] os problemas mais graves de segurança não estão no arcabouço legal, mas sim na gestão dos arranjos institucionais existentes e a primeira vista, a noção do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) traz à tona a perspectiva de se instituir na segurança pública algo semelhante ao que foi feito na saúde, quando da implantação do Sistema Único de Saúde – SUS. Este tem como principais características a institucionalização de mecanismos de financiamento para dar conta dos gastos com a saúde pública – envolvendo percentuais específicos nos orçamentos das diversas esferas do Executivo e mecanismos sofisticados de repasses destes recursos entre elas – como também fomenta a adoção de procedimentos para a gestão municipalizada. Contudo, a concepção do Sistema Único de Segurança Pública não contempla um rearranjo institucional desta magnitude, limitando-se a propugnar um maior grau de integração entre as organizações policiais estaduais e destas com as instituições federais, além do Ministério Público e Judiciário. O Sistema Único de Segurança Pública centra-se nas polícias estaduais, que vão estabelecer interface com a Polícia Federal e com as Guardas Municipais [...]. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 23 Portanto, pode-se afirmar que as políticas públicas calcadas no gerenciamento de crises ainda são regras na sociedade brasileira e que, embora tenham ocorrido melhorias com Plano Nacional de Segurança e o Sistema Único de Segurança Pública, o alcance das medidas previstas ainda não obteve o resultado esperado, uma vez que não existe a sistematização das ações que estão em curso. Nota-se a necessidade de avanços no arranjo das instituições responsáveis pela segurança pública e a necessidade de se estabelecer dotação orçamentária para os Estados e os Municípios, para a implantação de políticas públicas de segurança. Verifica-se um vácuo entre o que se esperava e o que realmente está em curso. 2.4 A gestão de Políticas de Segurança Pública Diversas discussões, de diferentes matizes, relatam que o problema da segurança pública no país e a redução da criminalidade só ocorrerão quando houver solução para os problemas sociais do país, como a melhor distribuição de renda, redução do desemprego, melhoria na educação e saúde. As mudanças apregoadas por muitos são estruturais e encontram barreiras na ausência de consenso sobre o graude eficácia das medidas a serem adotadas no que concerne à segurança pública, gerando uma quase inércia governamental, por se entender que não adianta adotar nenhuma medida para melhorar a segurança pública sem mudar a estrutura social. Esse discurso também reafirma a política de gerenciamento de crises. Para Beato Filho (2005, p.12) as reformas estruturais, além de não serem imprescindíveis para a obtenção de resultados nas políticas de segurança pública, tendem a ser mais custosas do ponto de vista político “[...] nosso ceticismo em relação às soluções maximalistas freqüentemente propostas advém do fato de que, passados mais de vinte anos de discussões sobre o tema, a melhor maneira de não se mudar nada foi tentar mudar tudo [...]”. Pode-se concluir que a gestão das políticas públicas de segurança calcada no diagnóstico correto do fenômeno criminal, na elaboração de objetivos, estratégias e metas adequadas e na alocação de recursos infere diretamente na redução da criminalidade, sem a necessidade da resolução prévia de problemas sociais estruturais. 3 DESORDEM SOCIAL E INCIDÊNCIA CRIMINAL Esta seção é de fundamental importância para o entendimento deste artigo, pois se associa o entendimento de políticas públicas de segurança à evolução dos estudos acerca da gênese de fatores que propiciam a incidência criminal e sustenta o significado de qual é o papel do Poder Executivo Municipal na segurança pública. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 24 3.1 Histórico da análise criminal sob a ótica da desordem social 3.1.1 Primórdios A análise da desordem social em relação à possibilidade da ocorrência de delitos remonta ao século XIX. No início do século passado, apresentou evoluções, para no final deste mesmo século ter alguns elementos incorporados, sendo a partir de então amplamente explorada por estudiosos quando se trata de analisar o fenômeno criminal. Segundo Silva (2004) o estabelecimento de relações entre o espaço geográfico e características sociais em relação à eclosão do delito é chamado de ecologia do crime. O conceito é uma alusão à relação existente no meio ambiente natural, no que diz respeito ao estudo entre os organismos vivos e o seu habitat. Os trabalhos pioneiros realizados acerca do assunto foram as análises do escritor A. M. Guerry (1833), aprofundados pelo astrônomo e matemático belga Adolphe Quételét (1825). Este último realizou o processo de mapeamento do crime, com o levantamento estatístico de aspectos ligados às condutas dos infratores e aos locais onde os fatos ocorriam. Quételét iniciou o processo de tratar estatisticamente as informações coletadas e a sua relação com a criminalidade (SILVA, 2004, p.15). 3.1.2 A teoria da desorganização social O primeiro grande avanço nas pesquisas realizadas por Quételét, foi realizado na cidade de Chigago, Estados Unidos, que em 1890 era, segundo Silva (2004), a segunda cidade mais populosa daquele país. Paralelo ao seu crescimento populacional ocorreu uma expansão da criminalidade, e para a sua contenção as ações que foram adotadas eram focadas na repressão ao criminoso. Alguns anos após Clifford Shaw e Henry McKay (1942 apud SILVA, 2004, p. 21), idealizaram o trabalho científico denominado Delinqüência Juvenil e Áreas Urbanas. Foram analisadas a expansão da cidade de Chicago e as mudanças trazidas pela industrialização que, por conseguinte, trouxeram mudanças sociais, demográficas e espaciais com relação ao aspecto criminal. Realizaram um mapeamento das residências de jovens que haviam incidido na prática de delitos e constataram que existia um padrão concernente a ser comum entre eles, por exemplo, a deteriorização das moradias, a baixa renda dos residentes, a desestruturação familiar, o uso de drogas; a prostituição, dentre outros aspectos de degradação social. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 25 Silva (2004) descreve ainda que a “Escola de Chicago” se tornou respeitada pela produção de estudos sobre a relação entre o crime e o espaço social. O crime passou a ser entendido como um produto da urbanização, das características do espaço físico ambiental, de aspectos sociais, culturais e de desordem social. Para a prevenção do crime os autores concluíram ser necessária a promoção do bem-estar dos indivíduos. Assim, a cidade passa a ser vista pelos autores como um “laboratório social”, onde o fenômeno da incidência criminal possui um vasto espaço para estudo. A teoria da desordem social de Shaw e McKay é de extrema relevância por trazer elementos complementares à teoria de Quételét, quais sejam: a necessidade de uma análise pormenorizada do local de incidência dos delitos e a análise espacial, agregada a fatores de ordem social, cultural e econômica. 3.1.3 Teoria da análise de problemas A teoria da análise de problemas introduz novos elementos ao conceito de desordem social. Sob o enfoque dessa teoria é fundamental a intervenção de diversos órgãos governamentais na realização da prevenção criminal, devido às características de multiplicidade e interdependência de ações necessárias à sua prevenção. Fundamental se faz também o comprometimento solidário da comunidade e das diversas entidades de representação social e a realização de diversas ações de cunho coletivo. Cohen e Felson (1979) apresentam a teoria denominada Triângulo do Crime – Crime Triangle, ou, Teoria de Análise de Problemas, cujo fundamento teórico preconiza a necessidade da convergência temporal e espacial de três elementos ou condições para a eclosão de um delito, quais sejam: um ofensor motivado, um alvo disponível e um local propício, (fig.3.1.3). A figura externa enfatiza o gerente, o “controlador” e o guardião, ou seja, em princípio fortalece a figura do Estado no papel de repressor. Na realidade, expressa o controle informal, obtido pelo trânsito de pessoas por locais públicos bem cuidados e, também, pelo controle formal, exercido por meio da ação preventiva dos “policiais guardiões”. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 26 Figura 1 - Triângulo do crime ou triângulo de análise de problemas: Nota: O Triângulo do Crime, também chamado triângulo de análise de problemas (TAP), introduziu uma importante ferramenta na análise criminal. Pode ser utilizado para análise através de sua observação interna: a vítima, o local e o ofensor e da observação externa, para desenvolver a intervenção capaz de prevenir o crime: alvo, vítima, local e ausência de um guardião. Na figura externa verifica-se o guardião, o controlador e o gerente. Devem-se observar os fatores citados no ambiente objeto da análise criminal. (COHEN, Lawrence E.; FELSON, Marcus. Social change and crime rate trends: a routine activity approach. American Sociological Review, v. 44, 1979, p.54). No que diz respeito ao alvo adequado para o crime, Cohen e Felson (1979) acreditam que: [...] um alvo pessoal ou propriedade. Sua adequabilidade para o crime é regida por quatro atributos, sintetizados na sigla VIVA: valor, inércia, visibilidade e acesso. O valor é calculado segundo o ponto de vista do ofensor. A inércia se refere aos aspectos físicos da pessoa ou da propriedade que interferem na sua adequabilidade como alvo. Um alvo que é visível para mais pessoas provavelmente chamará sua atenção para um ataque ilegal. Um alvo que também é acessível a mais pessoas está sujeito a um maior risco de ataque.No geral, a propriedade mais adequada a predação ilegal tem alto valor, pouco peso, é altamente visível e extremamente acessível [...]. Os autores destacam duas medidas de prevenção criminal relacionadas às vítimas ou alvos. A primeira destina-se a trabalhar os alvos no sentido de que adotem medidas de auto- proteção e a segunda, trabalhar a melhoria do controle sobre os locais. Demonstram que o contexto da atividade criminosa recebe influência da disponibilidade de alvos e da ausência de mecanismos de controle e vigilância para a perpetração de um determinado delito. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 27 Salas e Rico (1992); Guerrero (1997); Rolim (2006 apud SAPORI, 2006, p.122-123) demonstram de forma bastante simples uma comparação que se relaciona com a teoria da análise de problemas: “[...] A causalidade é interpretada em termos de probabilidade, ou seja, para que um determinado fator seja considerado causa, basta que sua presença aumente ou diminua uma enfermidade. Contudo, mesmo na ausência do fator causal, a enfermidade pode continuar se manifestando, já que existem outros fatores que produzem o mesmo efeito, caracterizando a multicausalidade. Esta característica é aplicável ao crime, dado que uma variedade de fatores produz um efeito muito similar e, por esta razão, é sensato concentrar-se não, propriamente, na causa da criminalidade, mas sim nos fatores que a produzem e que estão associados a ela [...]. Neste sentido, pode-se alinhar a possibilidade da gestão de políticas públicas de segurança por intermédio de ações que contemplem atividades e projetos focados no que apresenta a teoria da análise de problemas, diminuindo a existência de ofensores motivados, fortalecendo os prováveis alvos e melhorando a qualidade dos espaços públicos. De acordo com pesquisa da Fundação João Pinheiro (2007) os municípios mineiros com maior população e maior grau de desenvolvimento apresentam um maior índice de criminalidade violenta. As cidades mais desenvolvidas perdem os vínculos sociais de proximidade e pertencimento, são habitadas por pessoas que, embora residam muito próximas, não se conhecem e as famílias em sua maioria, são nucleares. Tal situação diminui consideravelmente o controle social informal, que é aquele realizado por vizinhos e outros moradores da cidade, pela circulação e permanência das pessoas em espaços comuns (redução dos guardiões, aumento dos alvos disponíveis, possibilidade de espaços sociais mais degradados e maior presença de ofensores). Portanto, tais municípios carecem da adoção de ações governamentais que possam minimizar o efeito negativo deste aspecto da evolução social. Assim, pode-se concluir que a teoria da análise de problemas explica o fenômeno da maior incidência criminal nos municípios mineiros com maior população. Nestas cidades existe um contexto social favorável à existência de oportunidades para a eclosão de delitos. Na visão do que se pretende concluir neste artigo o Poder Executivo do município se insere perfeitamente como ente governamental capaz de adotar políticas públicas de segurança que possam atuar diretamente sobre o provável alvo e sobre as prováveis vítimas. Além disso, as ações do município podem exercer influência sobre os ofensores motivados para a realização de crimes. As políticas, neste contexto, podem estar relacionadas à melhoria ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 28 dos espaços públicos, à inserção social de menores em conflito com a lei e de egressos do sistema prisional e à realização de campanhas de auto-proteção, dentre outras. 3.1.4 Outras teorias a respeito de desordem social e criminalidade Alguns estudos mais recentes também seguem a linha de raciocínio da eclosão de delitos relacionada à desordem social. Segundo Wilson e Kelling (1982) na teoria denominada Broken Windows “janelas quebradas”, é crucial a conservação de áreas comuns à população para evitar a eclosão de crimes. A desordem física é denominada “problema das janelas quebradas” que, não sendo consertadas, ocasionarão novas janelas quebradas e, por conseguinte, novos problemas de desordem social e de incidência de crimes. Sampson e Groves (1989) mostram que a desorganização social infere diretamente na capacidade da comunidade de se controlar e supervisionar. Demonstram dois tipos de controle social: o controle social informal, que se realiza por meio de associações de bairros, participação da comunidade em eventos culturais ocorridos no ambiente onde vivem, dentre outras ações; o controle social formal que se realiza por meio de ações governamentais, como por exemplo, através da presença ostensiva da polícia ou de agentes públicos municipais. Para que os controles sociais ocorram de forma eficaz é necessário um ambiente adequado ao trânsito de pessoas e espaços públicos conservados. Skogan (1990) apresenta o resultado de uma pesquisa realizada em quarenta bairros da cidade de Chicago e demonstra que o maior problema detectado junto à comunidade como padrão é a desordem social. Segundo Skogan, a desordem é de extrema relevância ao estudo da criminalidade, porque mostra que a ordem social deteriorada induz à prática de delitos. Tal deteriorização transmite a mensagem aos ofensores motivados de que aquele ambiente é propício à prática de crimes e às vítimas (alvos) a mensagem de que devem evitar aqueles ambientes, gerando o medo do crime. Assim, conclui-se que as teorias mais recentes que relacionam a desordem social com a possibilidade de ocorrência de delitos reforçam a necessidade da manutenção da ordem no espaço comunitário e demonstram que os locais mais degradados são mais propensos à prática de crimes, devido à ausência ou diminuição de controle social. O presente artigo não foi idealizado observando o prisma singular do mapeamento criminal, conforme os estudos de Quételét (1835 apud SILVA, 2004) ou como uma análise social, econômica e cultural, conforme Shaw e McKay (1942). Ancora-se nos vértices da teoria da análise de problemas de Cohen e Felson (1979), incorporada pelos estudos de Wilson e Kelling (1982), Sampson e Groves (1989) e Skogan (1990), dada a maior ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 29 abrangência teórica e maior relação com as ações que podem ser realizadas pelo Poder Executivo dos Municípios. As políticas públicas a serem adotadas pelas Prefeituras são conseqüentes de fatores sociológicos, multisetoriais, de origens diversificadas e necessitam da intervenção harmônica de vários órgãos públicos, da sociedade organizada e de cada indivíduo no exercício de sua cidadania, de governança, para realizar a melhoria da qualidade de vida dos munícipes e a prevenção criminal. 4 O PAPEL DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL NA SEGURANÇA PÚBLICA No desenho institucional estabelecido pelas Constituições Federal e Estadual o município tem o dever de prestar os serviços públicos de interesse local e quanto a segurança pública cita-se: a) Constituição Federal (BRASIL, 1988, p.71) [...] Art. 144 – A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...] § 8º - Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei [...] b) Constituição Estadual (MINAS GERAIS, 1989, p.66) [...] Art.138 – O município pode constituir guardas municipais para a proteção de seus bens, serviços e instalações, nos termos do art. 144, § 8º, da Constituição da República [...] Verifica-se que as Constituições Federal e Estadual prevêem como atribuição do Poder Executivo municipal a exclusiva atuação na segurança pública, pela possibilidade da criação de guardas municipais. Não existe no ordenamento jurídico em nível federal ou estadual nenhuma outra atribuição ao Poder Executivo Municipal no que diz respeito à segurança pública. As atribuições específicas do Poderes Executivos devem ser previstas nos Planos Diretores das cidades e devem incluir políticas que vislumbrem diretrizes afetas exclusivamente ao assunto segurança pública, como função de governo municipal. Destaca-se que estas funções são inseridas nos Planos Diretores como “políticas de segurança” que devem estar em consonância com outras políticas desenvolvidas pelos municípios. Assim, conclui-se que o ordenamento jurídico constitucional prevê apenas a criação de Guardas Municipais como atribuição dos municípios. Em principio não lhe é restritiva a ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 30 adoção de políticas públicas de segurança, entretanto, devido ao fato de estar comprometido com a busca da melhoria da qualidade de vida da população possui a capacidade de adotar diversas políticas que podem inferir diretamente na qualidade de vida dos munícipes e, por conseguinte, na segurança pública. 5 EXPERIÊNCIAS EXITOSAS DE ATUAÇÃO DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL NA ADOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA É de fundamental importância ao objeto deste artigo apresentar programas de políticas públicas de segurança implementadas por intermédio de governos municipais que obtiveram êxito na redução da criminalidade violenta. Essas experiências de relevância são relativas à cidade de Bogotá, capital da Colômbia, e à cidade de Diadema, interior do Estado de São Paulo. Faz-se necessário também apresentar, sucintamente, o guia de recursos para os municípios, (PREVENÇÃO COMUNITÁRIA DO CRIME E DA VIOLÊNCIA EM ÁREAS URBANAS DA AMÉRICA LATINA: Um guia de recursos para municípios. São Paulo, 2003), editado em parceria com o Banco Mundial, cujo objetivo é oferecer informações para prefeitos de países da América Latina sobre como formular programas de redução da violência e do crime. 5.1 Segurança cidadã em Bogotá Antes de se iniciar a abordagem das medidas adotadas pelo governo de Bogotá para a melhoria de indicadores criminais, que segundo Velasquez (2004, p. 94-209) apresentaram redução nos homicídios, passando de uma taxa de 80 homicídios para cada 100.000 habitantes em 1993, para 23 no ano de 2003, sendo que os demais delitos reduziram mais de 40%, no período compreendido entre os anos de 1998 e 2003, se faz necessário conceituar a “segurança cidadã” adotada naquela cidade, conforme cita, ainda, Velásquez (2004, p.189): “[...] Ao falar de segurança cidadã ou segurança pública, fazemos referência a uma dimensão mais ampla que a mera sobrevivência física. A segurança é uma criação cultural que hoje implica em uma forma igualitária (não hierárquica) de socialização, um âmbito compartilhado livremente por todos. Essa forma de tratamento civilizado representa o fundamento para que cada pessoa possa desenvolver sua subjetividade em interação com os demais. Dessa forma, frente aos fatos que afetam a segurança dos cidadãos encontra-se em jogo não apenas a vida da pessoa individual, mas igualmente a vida da sociedade [...]”. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 31 Deste modo verifica-se que segurança cidadã refere-se a uma ordem cidadã democrática que busca eliminar as ameaças de violência na população, permite a convivência segura e pacífica e o desenvolvimento do indivíduo no âmbito social. Esse enfoque, mais amplo de que o conceito habitual de segurança e centrado no indivíduo, tem como premissa a realização individual da cidadania para, por conseguinte, se obter a realização dos anseios sociais da coletividade. Ainda segundo Velasquez (2004, p. 195-204) as principais políticas públicas de segurança adotadas em Bogotá foram: 5.1.1 Gestão institucional da segurança pública Desde o ano de 1995 os prefeitos têm a responsabilidade pela liderança e a coordenação da política pública de segurança cidadã na cidade, premissa da Constituição Federal colombiana que prevê, no artigo 315, que o prefeito municipal deve conservar a ordem pública do município, sendo a primeira autoridade policial da cidade. 5.1.2 Criação de um sistema integrado de informações Criou-se o Sistema Unificado de Informação de Violência e Delinqüência (SUIVD), com informação da Polícia Metropolitana e do Instituto Nacional de Medicina Legal, para desenvolver estudos e diagnósticos de violência e insegurança. 5.1.3 Elaboração de planos de segurança e convivência No ano de 1995 foi colocado em execução um plano de segurança e convivência com projetos, programas e recursos voltados a fortalecer a ação da Polícia Nacional e das autoridades de justiça e prevenir os atos de violência. Dentre esses programas, destacam-se os seguintes: • Atenção a jovens envolvidos em assuntos de violência e consumo de drogas - Projeto orientado à redução dos fatores intervenientes na violência juvenil, que já atendeu a mais de 25.000 jovens. • Melhoria da convivência e recuperação de lugares críticos - A partir da “teoria das janelas quebradas” de Wilson e Kelling (1982), o Programa Missão Bogotá centralizou sua intervenção na recuperação de espaços críticos em matéria de segurança e convivência. ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 32 • Recuperação do espaço público - A recuperação do espaço público não apenas contribui para a melhoria da percepção de segurança, mas também impacta no meio ambiente, desconfigurando a tríade “delinqüente, entorno e vítima”, indispensável para que se possibilite o delito. Prova disso foi a redução substancial da atividade delitiva, ao longo dos anos de 2001 a 2003 no centro da cidade e em outros diversos lugares em que foi realizada a recuperação do espaço público, (fig. 2). Figura 2 – Centro de Bogotá – antes e depois da renovação urbana ANTES ANTES DEPOIS DEPOIS Fonte: Estrada (2006) • Outras medidas importantes adotadas foram: desarmamento; fortalecimento da investigação criminal; criação de infra-estrutura administrativa e de destinação de recursos; fortalecimento da Polícia Metropolitana; participação comunitária e Polícia Comunitária. Desta forma pode-se constatar que a segurança pública na cidade de Bogotá obteve resultados satisfatórios pela implementação de uma série de políticas públicas inter-setoriais, ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books CADERNO NEDER, Nº 3 – VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE 33 que tiveram a participação da população e de diversos órgãos públicos devidamente articulados e com propósitos comuns. A respeito da diferença da previsão legal entre o Brasil e a Colômbia, onde se nota que a polícia da cidade de Bogotá é municipal, verifica-se que as políticas públicas de segurança adotadas a partir do conceito de “polícia cidadã” servem de paradigma para as cidades brasileiras naquilo que é pertinente às ações governamentais municipais, por serem políticas que, em sua maioria, dependem unicamente da ação do órgão governamental
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