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.•...••....... ,"- --..~.......... . . . . . 2" edição, revista e ampliada _ - MALHEIROS :;;:;EDITORES CARLOSARISUNDFELD DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS I, I "I t I ! ! i Livros publicados nesta CoÍeção sob os auspícios da Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp Comentários à Lei -de -ppp ~_Fundamentos Econômico-Jurídicos (sbdp/Malheiros Editores, P. ed .• 2a tir., São Paulo, 2010) - MAURÍCIo PORTUGALRIBEIRO e LUCAS NAVARROPRADo Concessão (sbdplMalheiros Editores, São Paulo, 2010) - VERA MONTEIRO Contratações Públicas e seu Controle (sbdplDireito GV /Malheiros Editores, São Pau- 10,2013) - Org. CARLOSAro SUNDFELD Direito Administrativo Econômico (sbdp/Malheiros Editores, la ed., 31 tir., São Paulo, 2006) - Coord. CARLOSAro SUNDFELD Direito Administrativo para Céticos (sbdplDireito GV lMalheiros Editores, São Paulo, 2' ed., 2014) -CARLOS Aro SUNDFELD Direito da Regulação e Políticas Públicas' (sbdplMalheiros Editores, São Paulo, 2014) - Orgs. CARLOSAro SUNDFELDeANDJill ROSILHO Direito das Concessões de Se",iço Público - Inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral)(sbdplMalheiros Editores, São Paulo, 2010) - EooN BOCKMANNMOREIRA Direito Processual Público - A Fazenda Pública em Juízo (sbdplMalheiros Editores, la 00., 2a tir., São Paulo, 2003) - Coords. CARLOSARI SUNDFELDe CÁSSIO SCARPI- NELLABuENO Estatuto da Cidade (sbdplMalheiros Editores, 311 ed., São Paulo, 2010) -:- Coords. ADILSONABREU ABREU DALLARIe SÉRGIOFERRAZ Improbidade Administrativa - Questões Polirnicas e Atuais (sbdp/Malheiros Edito- res, 211 ed., São Paulo, 2003) - Coords. CÁSSIO SCARPlNELLABUENO e PEDRO PAULO DE REzENDE PORTOFILHO - Jurisprudência Constitucional: Como Decide o STF? (sbdplMalheiros Editores, São Paulo, 2009) - Coords. DIOGO R. CmJTINHO e ADRIANAVOJVODIC Jurisdição Constitucional no Brasil (sbdplMalheiros Editores, São Paulo, 2012) - Orgs: ADRIANAVONODIC, HENRIQUEMOTIA PINTO, PAULAGORZONI e RODRIGOPAGA- NI DE SOUZA As Leis de Processo Administrativo - Lei Federal 9.784/1999 e Lei Paulista 10.17711998 (sbdplMalheiros Editores, l' ed., 2' tir., São Paulo, 2006) - Coords. CARLOSARI SUNDFELDe GillLLERMOANDRÉ MuNOZ Licitação no Brasil (sbdplMalheiros Editores, São Paulo, "2013) - ANDRÉ ROSILHO" Parcerias Público-Privadas (sbdplDireito GVlMalheiros Editores, 2a ed., São Paulo, 2011) - Coord. CARLOSAR! SUNDFELD Comunidades Quilombolas: Direito à Terra (Artigo 68 do ADCT) (sbdp/Centro de Pesquisas AplicadaslFundação Cultural PalrnareslMinistério da CulturalEditora Abaré, Brasília, 2002) - Coord. CARLOSAR! SUNDFELD Direito Global (sbdp/School of Global Law/Max Limonad, São Paulo, 1999) - Coords. CARLOSAR! SUNDFELDe OSCAR VILHENAVIEIRA o primeiro colocou em xeque muitas das ideias sobre a especia- lidade desse direito, atingiu o conceito de serviço público e introduziu as novidades da regulação.. . . O segundo criticou o modelo burocrático que havia inspirado as reformas a partir da Era Vargas e que teve tanta influência em temas como servidores públicos, regime da Administração indireta e licita- ção. A reforma da gestão pública propõe introduzir certas flexibili- dades e trocar alguns dos controles formais por controles de resultado, dentro de um enfoque de administração gerencial. Por último, tem-se vivido, desde o surgimento da Constituição de 1988, uma maré montante na judicialização de questões envolvendo a administração, com o frequente uso de princípios bastante imprecisos para controlá-la (como o princípio da dignidade da pessoa humana). Isso de algum modo coloca em questão a própria noção de Direito (afinal, ele agora inclui esses princípios todos, assim abertos e inde- terminados, com força normativa?) e, portanto, também de direito administrativo. Por certo tudo isso é objeto de intenso debate no mundo jurídico, com choques relevantes de visão. Mas ainda não parece muito claro como é que as coisas vão se estabilizar. De modo que devo encerrar esse relato sobre a formação do direi- to administrativo brasileiro chamando a atenção para a característica do período que estamos vivendo. As visões estão mudando, há novos conceitos a elaborar, há experiências a consolidar e muito debate ainda a fazer. Não é um momento fácil para quem quer entender o direito administrativo, mas é fascinante para influir em sua construção. 54 DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS Capítulo 2 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS /DElAS ] . Introdução. 2. Direito administrativo, alicerce do País. 3. Osjuris- tas brasileiros e a mentalidade do Estado administrativo. 4. Direito administrativo, ferramenta do desenvolvimento. 5. Um sistema de princípios contra a pluralidade do direito do desenvolvimento. 6. Di- reito administrativo, engrenagem da democracia. 7. O "jurista cor- dial" e sua peculiar visão de direito administrativo na democracia. 1. Introdução Este ensaio procura mostrar como, no curso da História, novos objetivos, não excludentes, foram sendo incorporados pelo Direito Brasileiro relativo à Administração. Os tópicos a seguir destacam es- tes três: primeiro, o objetivo de construir um Estado administrativo, em seguida o de desenvolver o País, depois o de controlar a Adminis- tração e democratizar. Portanto, as figuras para iniciar a exposição de nosso direito administrativo são as de alicerce do País, ferramenta do desenvolvimento e engrenagem da democracia1 Entremeadas à exposição mais factual, são destacadas e discuti- das as ideias que, em conjunto com as personalidades dos administra- tivistas, deram formato às concepções doutrinárias que vingaram e ainda influem na atualidade no Brasil. 1. Para uma perspectiva distinta sobre a história do direito administrativo no Brasil, v. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "500 anos de direito administrativo brasi- leiro", in Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Carlos Ari Sundfeld (orgs.), Direito Admi- nistrativo - Doutrinas Essenciais, vaI. I, São Paulo, Ed. RT, 2013, pp. 121-147. 2. Direito administrativo, alicerce do País Na medida em que ia' sendo inventado entre nós, o 'direito admi- nistrativo foi servindo de alicerce da obra de construção do Estado ' Brasileiro e do País. O Império do Brasil surgiu formalmente com a Independência em 1822, herdando alguma estrutura administrativa que havia sido criada após a transferência da sede do Reino de Portugal para o Rio de Ja- neiro, em 1808. Mas, além de precária, era uma estrutura do Antigo Regime, que a nova ordem tinha de superar. Ademais, tomaria tempo para, por meio do Estado e do Direito, reunir em um só País, bem amarrados, regiões e grupos que no passado tinham tido escasso vín- culo entre si. A tarefa consumiu 110 anos: atravessou todo o período do Impé- rio Brasileiro (até 1889) e a primeira República (até 1930) e terminou simbolicamente quando da vitória do Governo Federal sobre a Revo- lução Constitucionalista do Estado de São Paulo (em 1932). A partir daí se deu a nacionalização definitiva do Estado Brasilei- ro, pela consolidação de uma estrutura federal abrangente e forte, que não teve mais oposição regional. Também ficou sepultada uma visão mais liberal, menos estatista, que tentara influir na organização polí- tica do Brasil nas décadas anteriores, quando da passagem do Império para a República. ' De outro lado, em todo esse século de iniciação pouco a pouco se haviam definido os papéis e a organização das instituições públicas bra- sileiras, segundo as orientações de Estado contemporâneo, e disso resul- tou nosso estilo de Administração Pública e seu correspondente direito. O estabelecimento do direito administrativo brasileiro, no decor- rer desse período, por certo não foi uma reação ao Estado, seus poderes e excessos, mas um esforço desse Estado por se estabelecer e impor. Nesses primeiros tempos era preciso inventar juridicamente a Administração Pública, em bases constitucionaise como parte espe- cífica e fundamental de um novo Estado soberano. Natural, então, que a atenção dos juristas se voltasse para os problemas da estrutura e das relações internas das instituições públicas, de modo a definir para a Administração um espaço próprio no interior da máquina estatal e um conjunto de poderes no confronto com os particulares. 56 ____ o DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS II ,,, ._111_ A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINlSlRATIVO BRASILEIRO E SUAS lDEIAS 57 Esse esforço de criação veio desde o ato fundador: a Constituição de 1824, com separação de Poderes e Conselho de Estado, e também Com uma Declaração de Direitos. Passou em 1827 pela instalação de duas Escolas de Direito para gerar uma elite jurídica, que deveria ser a responsável peÍo novo Estado e por carregar sua ideologia. Chegou em 1862 a seu primeiro livro importante em nossa área, o Ensaio de Di- reito Administrativo, do Visconde do Uruguai, à época uma das perso- nalidades públicas centrais do País, cuja declarada preocupação era organizacional, era colocar "cada uma das peças da nossa organização administrativa ( ...) no lugar que lhe corresponde".' Depois, quando da implantação da República, no final do século XIX, foram estabelecidas novas bases para a Justiça e para o controle da Administração. Daí se seguiu uma sucessão de iniciativas (normativas e intelec- tuais) para organizar a Administração como alicerce do Estado e do País, aÍmnar suas competências e estabelecer suas formas jurídicas. Nesse longo período, sem contar as Constituições de 1824 e 1891, que trataram das estruturas mais gerais do Estado, algumas leis influíram na construção das instituições e no arranjo político. Nos primeiros anos da República, a Lei da Justiça Federal (Lei 22111894), dispondo sobre controie judicial, adotou noções técnicas em que o papel e O espaço da Administração Pública já estavam bem estabelecidos (e, não por acaso, essas noções ainda hoje estão no re- pertório do direito administrativo). Para definir as competências judiciais em relação à Administra- ção Pública, a lei (art. 13) falou em "atos administrativos", "autorida- des administrativas", "lesão de direitos individuais" e "anulação": "Os juízes e tribunais federais processarão e julgarão as causas que se fundarem na lesão de direitos individuais por atos ou decisão das au- , toridades administrativas da União"; "Verificando a autóridade judi- ciária que o ato ou resolução em questão é ilegal, o anulará no todo ou em parte, para o fim de assegurar o direito do autor"; "Conside- ram-se ilegais os atos ou decisões administrativas em razão da não aplicação ou indevida aplicação do Direito vigente". 2. José Murilo de Carvalho (org. e "Introdução"), Visconde do Uruguai, São Paulo, Editora 34, 2002, p. 70. • - - ,'" A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINISTRATIVOBRASILEIROE SUAS IDEIAS 59 3. José Murilo de Carvalho (org. e "Introdução"), Visconde do Uruguai, cit., pp. 474 e 502. 4. Idem, p. 86 5. Idem, p. 110. regulamentar, e no seu mecanismo administrativo é mola essencial o Poder Judicial. "A francesa parte em geral do princípio oposto: regular para pre- venir que O abuso se dê, removê-lo antes que apareça. Por isso é muito regulamentar, e o Poder Judicial reduz-se em geral a julgar questões privadas e criminais. ( ...). "O sistema francês, inteiramente diverso do anglo-saxônico, mais ou menos modificado, é o mais simples, mais metódico, mais claro e compreensivo, e o que mais facilmente pode ser adotado por um País que arrasa, de um só golpe, todas as suas antigas institnições, para adotar as constitucionais ou representativas, e isto muito principal- mente quando esse País larga as faixas do sistema absoluto, e, abrindo pela primeira vez os olhos à luz da liberdade, está mal ou não está de todo preparado para se governar em tndo e por tudo a si mesmo."3 A partir de então, a mentalidade jurídica brasileira pareceu se acomodar a esta ideia: a de que seria necessário um Estado adminis- trativo como centro do País (disse o Visconde do Uruguai: "As neces- sidades comuns ... o Poder Público deve satisfazer"),' com seu direito próprio, especial, viabilizando essa missão essencial (mais uma vez Uruguai: "O exercício da Administração, o direito administrativo, é portanto uma condição essencial de toda a existência coletiva"'). A influência francesa na adoção, desde as primeiras décadas do século XIX, dessa ideia de Estado administrativo não foi destruída pela Constituição da República, de 1891,de espírito norte-americano. É verdade que nesse momento o 'Brasil deu uma guinada para o modelo jurisdicional à americana, de Justiça Comum, abandonando o Conselho de Estado, que tinha sido tomado da França. Também incorpo- rou o presidencialismo e o federalismo. Ademais, o debate jurídico foi apimentado com teses mais liberais em matéria econômica e de liberdade pessoal (teses para limitar as medidas de.autoridade administrativa). Mas, no caminhar dos anos, a base "à francesa" - o estatismo, a superioridade do Estado administrativo e a especialidade de seu direi- t _~__ 1~ DIREITO AD1fiN1STRATIVO PARA CÉTICOS58 De outro lado, para preservar a autonomia da Administração, a lei adotou a ideiade discricionariedade: "A autoridade judiciária fun- dar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou opor- tnnidade"; "A medida administrativa tomada em virtnde de uma facul- dade ou poder discricionário somente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou do excesso de poder". 3. Os juristas brasileiros e a mentalidade do Estado administrativo Todavia, a consolidação do direito administrativo no Brasil nesse período, com seu vasto leque temático, provavelmente foi obra menos legislativa do que intelectnal e jurisprudencial. O direito que, nesse século inicial, de fato se consolidou pela via legislativa foi o privado, com a edição, em 1916, do primeiro Código Civil brasileiro - o que, aliás, teria impacto no campo público: primei- ro, porque o Código tratou não só da propriedade privada, mas das espécies e regimes dos bens públicos; depois, porque a consolidação do direito civil estimularia os publicistas a fazerem esforços de inter- pretação para afastar a incidência de certos dispositivos do Código a problemas da Administração Pública. . Esse movimento veio de uma visão bem menos liberal que a dos mgleses e norte-americanos quanto ao papel da Administração na SOCIedade; no Brasil, a visão que acabaria por prevalecer seria mais estatista, de privilégio e superioridade do Estado, a sugerir um direito especial, administrativo. Nessa longa fase de construção, a influência francesa foi decisi- va, especialmente na absorção da ideia de Estado e de direito admi- nistrativo "à francesa" como melhor solução para um País novo, sem tradição de liberdade. Aliás, é simbólico que o Visconde do Uruguai, pai fundador, ti- vesse nascido na França (em 1807), escrito seu famoso livro com bi- bliografia francesa e defendido com ênfase a aplicação entre nós do que chamou de "sistema francês". Suas ideias eram enfáticas: "A legislação inglesa e americana parte em geral do seguinte princípio: deixar toda a liberdade e punÜ"o abuso. Por isso é pouco 6. A análise da jurispru~ncia do STF sobre temas administrativos do período entre 1891 e 1930, com o ambIente aberto às teses liberais norte-americanas, mostra a Corte pouco propensa a afInnações radicais em favor de um principio geral de su- premacia do interesse público sobre o privado, especialmente em matéria contratual. Mas o discurso dos administrativistas, de invocar O interesse público para reconhecer caso a caso poderes para a Administração, esteve presente em boa parte das decisões. A respeito, José Guilherme Giacomuzzi, "A supremacia do interesse público na juris-prudência do Supremo Tribunal Federal durante a República Velha", Revista de Di- reito Administrafivo/RDA 263/251-290, Rio de Janeiro, maio-agosto/20l3. 7. Michel Fromont e outros (dirs.), "Le reoard d'unjuriste européen sur le Droit Brésilien", in Droit Français ef Droit Brésilien 0_ Perspectives Nationales et Compa~ rées, Bruxelas, Bruylant, 2012, p. 53. . to - iria permanecer como predominante na ideologia do direito admi- nistrativo substantivo do Brasil6 Já, quanto ao direito administrativo contencioso, à organização da Justiça, aos tipos processuais, prevale- ceu a base norte-americana, acrescida da noção de direito público subjetivo de inspiração alemã. Um sistema jurídico com essas características merece bem a des- crição que lhe deu Michel Fromon!: "O direito administrativo brasi- leiro é um pouco como uma abelha. Ele foi bicar em todas as flores do mundo, tanto sobre as flores da Common Law norte-americana como sobre as dos direitos romanistas do Continente Europeu".' 4. Direito administrativo, ferramenta do desenvolvimento Na segunda fase, a partir mais ou menos da década de 1930 a legislação administrativa brasileira assumiria de modo mais intens~ a feição de ferramenta do desenvolvimento, apoiando a articulação do Estado com o setor privado e também a modernização e o crescimen- to da Administração. Verdade que desde os primórdios a legislação administrativa já mostrara preocupação em viabilizar empreendimentos econômicos. Logo no início do Império, a lei de 9.9.1826 tratou da desapro- priação de imóveis privados para empreendimentos de necessidade ou utilidade pública, prevendo suas hipóteses, garantindo ampla indeni- zação e dispondo sobre a intervenção judicial, em um estilo normativo que se manteria nas atualizações legais posteriores. Anos após, a im- portante Lei de Terras (Lei 601/1850) disciplinou o domínio público (as terras devolutas) e a aquisição das propriedades pelos particulares, definindo a estrutura fundiária que marcaria a história econômica brasileira. Da mesma época, a Lei das Estradas de Ferro (Lei 641/1852) regulou o contrato de concessão de serviço público e seus privilégios, com certas características que ainda hoje conserva, e deu início a uma história de parcerias contratuais de investimento entre particulares e Estado que seria decisiva no desenvolvimento do País. A vinculação do direito administrativo com a questão do desen- volvimento iria se tornar bem mais intensa a partir dos anos 1930. Logo nos primeiros anos desse período, a Administração Federal passou por grande transformação. De um lado, pela absorção de novas soluções de administração burocrática: organização das carreiras públicas (com concurso público e regime jurídico funcional especial), planejamento, primeiras entida- des administrativas autônomas (as autarquias) etc. Para tanto, reformas legislativas foram feitas, inclusive com pretensões parcialmente siste- matizadoras . Os marcos legais iniciais da organização burocrática foram estes: o primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Decre- to-lei 1.713/1939), que sistematizou o regime especial do trabalho na esfera pública; a primeira grande lei de direito financeiro, sobre a ela- boração e controle dos orçamentos públicos (Lei 4.320/1964, cujos conceitos ainda hoje são aplicados); e a lei que estabeleceu a organiza- ção geral da Administração da União e O primeiro conjunto de normas gerais nacionais de licitação (Decreto-lei 200/1967, hoje afetado em muitas de suas disposições, mas com conceitos atuais, como os de Administração direta e indireta, sociedades de economia mista etc.). De outro lado, houve aumento da presença estatal na economia, com a criação de empresas estatais (a Cia. Siderúrgica Nacional, inau- gurada em 1946, e depois, entre os anos 1950 e 1970, as grandes es- tatais nas áreas de petróleo, energia elétrica e telecomunicações) e a expansão dos bancos públicos (os mais antigos o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal e, desde 1952, o Banco Nacional de Desen- volvimento Econômico e SocialIBNDES, todos controlados pela União), entre outras medidas. Por certo que as tendências em matéria de organização e atuação administrativa para o desenvolvimento, nos campos tanto econômico como social, foram se alternando nas muitas décadas seguinte~. A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS IDEIAS 61DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS60 8. Um panorama sobre o perfodo in Carlos Ari Sundfeld (org.), Direito Admi- nistrah'vo Econômico, li! ed., 3~ tir., São Paulo, Malheiros Editores, 2006. o papel empresarial dos Estados da Federação foi crescendo _ atingindo seu auge durante o período militar (1964-1985), sobretudo com bancos oficiais estaduais, empresas estaduais de energia elétrica e empresas estaduais de saneamento - para recuar parcialmente a partir da década de 1990, com desestatizações (energia elétrica), fede- ralizações (bancos) e, mesmo, algumas liquidações (saneamento). Também algumas empresas estatais da União viriam a ser deses- tatizadas na década de 1990 (especialmente em telecomunicações, siderurgia, petroquímica e indústria aeronáutica). Mas outras foram ampliadas e seguem importantes, como os Bancos e a PETROBRAS e mesmo a ELETROBRAS, do setor elétrico. ' Tem sido sempre crescente, em todo o período, a atuação das Administrações Estaduais em segurança pública e serviço penitenciá- rio, bem como das Estaduais e Municipais em serviços sociais como saúde, educação e transporte público, e ainda na construção de mora- dias e grandes obras públicas (rodovias estaduais, infraestrutura urba- na municipal). Mais voltados para a elite do País, os serviços de educação supe- rior tomam impulso com a criação da Universidade de São Paulo/USP em 1934 (pelo Governo do Estado, que a mantém desde então) e, a partir do início da década de 1950, de universidades federais, que se expandem continuamente até hoje. . A presença e o crescimento da União na área social também são fortes nesse largo período, sobretudo em previdência, cujas primeiras entidades oficiais aparecem no início dos anos 1930, para serem fun- didas em 1966, levando à universalização paulatina dos benefícios, reforçados com a Constituição de 1988. Nos anos 1990 o Poder Público incrementa seu esforço de regu- lação e de contratação, com particulares, de novos empreendimentos e da prestação de serviços públicos e sociais. Surgem aí as fortes agências reguladoras federais, aprofundando um modelo burocrático para a regulação que havia sido iniciado em 1964 com o Banco Cen- tral do Brasil. Agências reguladoras também surgem nos Estados e mesmo em alguns Municípios maiores.' [ Todas essas iniciativas dependeram de formas jurídicas sofistica- das, capazes de organizar uma atuação estatal bem diversificada. O direito administrativo foi se renovando e ampliando, tornando-se mais complexo, para atender a essa demanda, sobretudo pelo impulso de novas normas constitucionais e de leis.' Nesse período, a legislação administrativa iria claramente se transformar em ferramenta pragmática do desenvolvimento. Sendo O poder de contratar de enorme relevãncia para o Estado direcionar a economia e gerar desenvolvimento, era natural que se fizesse esforço legislativo também quanto a isso. Várias leis setoriais, tratando de contratos de concessão e formas alter- nativas de negócios público-privados, vieraro se sucedendo desde a década de 1930, a partir do pioneiro Código de Águas (Decreto 24.643/1934), fundamental às concessões de geração de energia hidrelétrica. Nos anos 1990, com os programas de privatização, iniciou-se nova onda de leis federais em muitos setores - portos, energia, teleco- municações, petróleo, gás, saneamento, transporte etc. -, sempre apostando nas contratações públicas. Surgiram também leis gerais de concessões, para aplicação multissetorial (as Leis 8.987 e 9.074,am- bas de 1995, e a Lei 11.079/2004). Além disso, foi sendo construída, a partir do final da década de 1960, ampla legislaçãO sobre contratos de obras, compras e serviços, bem representada pela Lei 8.666/1993, com constantes alterações posteriores .10 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISlRATIVO BRASILEIRO E SUAS IDElAS 63 5. Um sistema de princípios contra a pluralidade do direito do desenvolvimento A sistematização geral do direito administrativo e sua autonomia como ramo jurídico - especialmente pela contraposição ao direito 9. Floriano Azevedo Marques Neto, "Os serviços de interesse econômico geral e as recentes transformações dos serviços públicos", in Fernando Dias Menezes de Almeida e outros (orgs.), Direito Público em Evolução - Estudos em Homenagem à Professora Odete Medauar, Belo Horizonte, Fórum, 2013, pp. 531-547. 10. Para. a análise desse movimento legislativo, v.: Carlos Ari Sundfeld (erg.), Contratações Públicas e seu Controle, São Paulo, Malheiros Editores, 2013 (em es- pecial Carlos Ari Sundfeld, "Contratações públicas e o princípio da concorrência", pp. 15-41); e Carlos Ari Sundfeld (org.), Parcerias Público-Privadas, 2B ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2011. DIREITO ADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos62 11. Para uma visão de conjunto a respeito dessas construções teóricas na história brasileira, v. Fernando Dias Meneze~ de Almeida, Fornwção da Teoria do Direito Administrativo no Brasil, tese de titularidade, São Paulo, Faculdade de Direito da USP,2013. 12. José CretelIa Ir., Professor da Faculdade de Direito da USP, radicalizando a defesa da construção "científica" do direito administrativo pela identificação de seus princípios, deu início no Brasil, em 1966, à "onda principiológica" que viraria epide~ mia nas décadas seguintes. Disse ele: "Cabe ao cultor do direito público reformular a experiência jurídica à luz de princípios próprios, estremando o público do privado, submetendo a um tratamento adequado de direito público os institutos que lhe são típicos" ("As catego- rias jurídicas e o direito administrativo", RDA 85/28-33, Rio de Janeiro, FGV, ju- Iho-setembro/1966) . Em outro trabalho da época insistiu na necessidade dos princípios: "Inúmeros institutos de direito administrativo têm sido mal-entendidos porque prevalece ainda a mentalidade privatística, que equaciona os problemas do direito público em termos próprios do direito comum, levando para o novo campo os próprios resultados alcan- çados" ("Regime jurídico das fundações públicas no Brasil", RDA 90/459-469, Rio de Janeiro, FGV, outubro-dezembro/1967). Logo a seguir, em J 968, no artigo "Princípios informativos do direito administra- tivo" (RDA 93/1-10, Rio de Janeiro, FGV, outubro/1968), o autor lamentou o casuísmo doutrinário dominante: "Não se empreendeu ainda estudo sistemático dos pressupostos privado - jamais foram"projetos importantes do direito positivo brasi- leiro, antes, ao contrário; o legislador tem sido sempre muito pragmá- tico, pouco simpático a fórmulas fechadas. Em virtude, mesmo, da ampliação e dos objetivos desenvolvimen- tistas, o repertório do Direito aplicável à Administração se tomou sempre mais variado e eclético (quanto aos modelos de organização das entidades estatais, aos tipos de contratos, às soluções para a regu- lação econômica, aos regimes funcionais dos servidores públicos etc.). Os juristas, sim, têm se preocupado em defender e construir o direito administrativo como ramo autônomo e sistemático, e em seus tratados e manuais buscam estabilizar teorias e conceitos li Esse tra- balho de identificar e descrever institutos próprios dialoga talvez mais com a tradição doutrilJária do que com o direito positivo e a experiên- cia jurídica, de modo que teorias e conceitos vêm deduzidos de ideias e valores muito abstratos: interesse público, oposição entre público e privado etc. Desde a década de 1960 a opção doutrinária comum é enunciar mais e mais princípios, na esperança de obter deles a identidade e a autonomia do direito administrativo (preocupação teórica)12 e, ao 64 DIREITOADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos I 1 A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADtvUNlSTRATIVOBRASILEIROE SUAS mElAS 65 mesmo tempo, usá-los como principal utensílio da prática juridica (preocupação operacional). Isso muitas vezes provoca tensão e insegurança, pela falta de aderência entre o que o direito positivo efetivamente contém e o que os juristas dizem que ele é, ou deveria ser. Por outro lado, o certo é que, tanto por razões políticas como pelas preferências doutrinárias, ainda se mantém viva uma tendência mais estatista, pouco liberal, dos primeiros tempos de uosso direito administrativo. E isso apesar da abertura a modelos privados (caso das empresas estatais, por exemplo) e das reformas regulatórias (introdu- zindo flexibilidade e competição em serviços públicos, por exemplo). Boa parte da ação do Estado tem sido sustentada por exclusividades, privilégios, superioridades e especialidades, e isso está refletido no campo administrativo também nessa nova fase. Esse reflexo pode ser medido pelo prestígio da doutrina que de- fendeu a supremacia do interesse público sobre o privado não só co- mo princípio geral, mas como verdadeira base de todo o direito admi- "nistrativo. Pode parecer intrigante essa doutrina ter feito sucesso justamente nas décadas finais do século XX, quando o Estado já esta- va envergando trajes empresariais e, por isso, a legislação administra- tiva ficara mais eclética. Mas o fato é que essa doutrina vingou, e só recentemente surgiu no Brasil um movimento forte para contestá-la." fIlosóficos do direito administrativo, subordinado ao título princípios informativos do "direito administrativo, encontrando~se apenas, de maneira esparsa e assistemática, con- forme as circunstâncias, a referência específica a um determinado princípio, que se põe na raiz do tema desenvolvido, garantindo-lhe a validade" (p. 2). E aí propôs: "Cumpre, então, descobrir uma série de princípios exclusivos do direito administrativo, proposi- ções que fundamentem os institutos deste ramo jurídico e que lhe confiram traços ine- quívocos, que os estremem dos congêneres de outros campos" (p. 5). O lamento e as ideias encontraram um seguidor fiel e entusiasmado em Celso Antônio Bandeira de Mello, então Professor iniciante, que, em seu livro Natureza e Regime Jurídico das Autarquias, usaria termos muito semelhantes para divulgá-las, embora sem citar o precursor (São Paulo, Ed. RT, 1968, pp. 292 e ss.). 13. Cretella Jr., o iniciador da "onda principiológica", perguntou: "Quais são os princípios informativos do direito administrativo?" - para logo constatar: "Uma pri- meira proposição acode à mente dos administrativistas que cogitam do tema - o inte- resse público prepondera sobre o interesse privado". Conquanto o autor argumentas- se não se tratar de princípio setorial, mas comum a todo o direito público, não deixou ", de reconhecer: "Este princípio, princípio da supremacia do interesse público ( ...) in- forma todo o direito administrativo" ("Princípios informativos do direito administra- tivo", cit., RDA 93/4). Bandeira de Mello, discípulo de Cretella Jr. quanto a isso, acabou sendo o vul- garizador do princípio da supremacia, por conta de obra didática que lançou poste- riormente (Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Ed. RT, 1980, pp. 3-34). Tempos depois, quando já virara moda a "principiologia", o tal princípio seria contestado de modo consistente por Humberto Bergmann Ávila ('<Repensando o 'princípio da supremacia do interesse público sobre o particular''', Revista Trimestral de Direito Público/RTDP 24/159-180, São Paulo, Malheiros Editores, 1998), em crítica depois amplificada por Gustavo Binenbojm (Uma Teoria do Direito Adminis- trativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, pp. 81-124). A polêmica esquentou,e hoje está bem representada em farta literatura, de que são emblemáticos dois livros, um defendendo o tal princípio (Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Carlos VmíciusAlves Ribeiro (orgs.),Supremacia do Interesse P!iblico e Outros Temas Relevantes do Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2010), o outro combatendo-o (Daniel Sarmento (arg.), Interesses Públicos x Interesses Privados: Desconstruindo a Supremacia do Interesse Público, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005). 14. O mais célebre, de 1941, é o de Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 6a ed., São Paulo, Saraiva, 1984. 6. Direito administrativo, engrenagem da democracia A rejeição do poder autocrático, com o duplo condicionamento da ação administrativa pela legalidade e pelo controle dos juízes, es- teve presente desde o início do Estado Brasileiro, com a adoção da separação dos Poderes e de uma Declaração de Direitos pela Consti- tuição imperial de 1824. Mas foi longo e cheio de acidentes O percurso do direito adminis- trativo brasileiro em direção à democracia. Nos primeiros anos, limitar juridicamente a Administração não era fácil: pelas heranças políticas e sociais, pelas fragilidades institu- cionais, pelo Poder Moderador reservado ao monarca, entre outras causas. Depois, a República viria a institucionalizar em bases moder- nas o controle judicial da Administração, como vimos, e nas décadas seguintes surgiriam instrumentos processuais importantes (como o mandado de segurança), além de discursos doutrinários contra as imu- nidades da Administração.!4 Só que houve muitos períodos de exceção, em que os condicio- namentos legislativos e judiciais à Administração ficaram bastante comprometidos, ao menos em temas politicamente mais sensíveis. 66 DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS A CONSTRUÇÃO DO I?IREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO E SUAS mEIAS 67 Isso ocorreu especialmente nas frequentes crises da Primeira Re- pública, com a decretação de estados de sítio (que duraram 2.278 dias, pouco mais de 6 anos, distribuídos pelos vários Governos eutre 1889 e 1930); na ditadura do Presidente Getúlio Vargas, entre 1937 e 1946; e na ditadura militar, entre 1964 e 1985.I' De qualquer modo, e apesar dos percalços, no decorrer da história brasileira pouco a pouco foram crescendo - e acabaram por se estabi- lizar - mecanismos variados de condicionamento. Por um lado, surgiram sempre mais e mais normas, de muitas fon- tes (constitucionais, legais e, mesmo, administrativas), em constante mudança. Por outro, mais oportunidades para o controle externo: mais atuação dos Tribunais de Contas, mais controle de constitucionalidade, mais soluções em matéria de processo judicial, mais legitimação para acessar a Justiça (Ministério Público. e associações, em defesa de inte- resses difusos ou coletivos, por exemplo), etc. Por fim, os controles internos também foram encorpando, por meio dos controles hierárqui- cos e de processos administrativos específicos (com participação dos interessados e, mais recentemente, também com participação popular), e ainda pela atuação das corregedorias internas da Administração. Depois da instauração da democracia, a Constituição de 1988 viria a ser o marco -dessa face do direito administrativo, ligada ao condicionamento da autoridade. Novas normas valorizaram o Legis- 15. É significativo que nesses períodos de exceção, além de muitos intelectuais do direito administrativo terem se colocado próximos ou dentro do regime (casos de Francisco Campos na ditadura Vargas e de Carlos Medeiros Silva no período militar), a generalidade deles se absteve de qualquer atuação política contestat6ria. A Carta aos Brasileiros, lançada corajosamente por professores e outros profis- sionais do Direito em 1977, e que se tornaria simbólica da crítica à ditadura militar, não teve professores de direito administrativo entre os subscritores iniciais (para o teor da carta, a lista dos subscritores e a história do período, v. Cássio Schubsky e outros, Estado de Direito Já - Os Trinta Anos da Carta aos Brasileiros, São Paulo, Leltera.doc,2007). Um deles - que ap6s o fIm da ditadura assumiria retórica mais agressiva na crítica às autoridades - explicou o medo e a timidez anteriores: "Durante todo o pe- ríodo militar, todos estivemos reprimidos"; a alternativa "se restringia a questionar o regime dentro de um limite do que podia ser questionado"; "eu procurava, na medida do possível, revelar o meu desgosto pelo golpe"; "tive, ao longo desse período, uma militância discreta, contida, mas procurando resistir até o lintite" (Celso Antônio Bandeira de Mello, depoimento in Cássio Schubsky e outros, Estado de Direito Já - Os Trinta Anos da Carta aos Brasileiros, cit., p. 156). lativo, consolidaram e ampliaram o controle pelo Judiciário e pelos Tribunais de Contas, constitucionalizaram o processo administrativo - e assim por diante. Nos anos posteriores, com o desdobramento legislativo e os em- bates sobre questões administrativas nos órgãos controladores, veio se acentuando uma mudança importante, que já vinha se esboçando mesmo antes. O espaço Da administração e das autoridades adminis- trativas, que a tantos juristas parecia bem claro nos tempos iniciais, passou a ser muito disputado por outras instituições públicas (Legis- lativo, Judiciário, Tribunais de Contas, Ministério Público, entidades paraestatais), e mesmo por organizações não governamentais. A par disso, a Administração cresceu e se fragmentou em muitos órgãos e entidades, cuja coordenação é cada vez mais difícil e cujos objetivos e competências se chocam todo o tempo. Que Administração, agora, é essa? A pnlverização, com o surgimento de muitos núcleos de poder e influência, no Executivo ou não, afetou a noção inicial de Administra- ção Pública como organização autônoma e específica (bem distinta e separada das outras integrantes da máquina estatal e das situadas fora dela). Já não parecem tão claros os limites entre agentes e atividades administrativas, legislativas, judiciais, controladoras e privadas. Também não é mais tão convincente a figura do interesse público aos cuidados da Administração (tudo no singular: um interesse e uma Administração). Nas situações que se apresentam é normal o conflito plural: entre muitos interesses públicos, aos cuidados de muitos ór- gãos e entidades, públicas e semipúblicas. Tudo isso parece fruto do aprofundamento da democracia e da complexidade da sociedade contemporânea, com uma infinidade de interesses, todos de algum modo legítimos e importantes, organizados e atuantes, em todos os espaços possíveis, dentro e fora do Estado, para obter vantagens e barrar mudanças. O mundo mudou, e a Administração não poderia continuar a mesma; nem, claro, o direito administrativo. O direito administrativo reúne hoje um grande conjunto de engre- nagens organizacionais e processuais para viabilizar o choque tanto quanto possível ordenado dos interesses, individuais ou não, e tam- 68 DIREITOADMINISTRATIVO PARA cÉTIcos i A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINIS1RATIVO BRASILEIROE SUAS IDEIAS 69 bém para gerar um diálogo entre eles, levando a um fluxo interminá- vel de decisões e reações.'6 Essa é a face do direito administrativo como engrenagem da democracia. Quem sabe a ironia faça sentido: o direito administrativo talvez já não se possa explicar pela noção de interesse público, e sim pela de conflito público. Será ele, agora, o direito dos conilitos públicos em arena democrática? 7. O 'Jurista cordUtl" e sua peculUtr visão de direito administrativo na democracUt E qual tem sido a postura dos administrativistas nesse novo pe- ríodo? Sem surpresas, eles reforçaram ou incorporaram discursos de elogio à democracia, às sujeições do administrador, aos controles in- ternos e externos sobre a Administração,. aos direitos etc. Quanto a isso, a sensação é de unanimidade." Mas houve espaçopara nossas contradições de sempre: a chegada da democracia não ter levado os administrativistas a valorizarem O direito positivo mais do que haviam feito no passado. Pela ótica racional, era de se esperar o aumento do prestígio das instituições: da legislação, agora vinda da representação popular, e também das políticas e procedimentos da nova Administração Públi- ca, legitimada por eleições e por outros mecanismos de participação. Os administrativistas, hoje todos democratas, na democracia have- riam de, em uníssono, aumentar a militância institucionalista, se mesmo em épocas autoritárias já se vinculavam por definição à lega- lidade (afinal, submissão à lei é da lógica do próprio ramo jurídico), não é mesmo? 16. Juliana Bonacorsi de Palma, "Direito administrativo e políticas públicas _ O debate atual", in Fernando Dias Menezes de Almeida e outros (orgs.), Direito Público em Evolução - Estudos em Homenagem à Professora Odete Medauar, Belo Horizon- te, Fórum, 2013, pp. 177-201. 17. Só que, quanto às bases teóricas e operacionais do direito administrativo, parte deles milita ainda pela supremacia do interesse público sobre o privado - agora argurnen~ tando que só o Estado é capaz de defender os direitos humanos elc. -, enquanto a outra parte a teme corno autoritária, ao menos perigosa. e incompatível com a garantia consli~ tucional dos direitos e da dignidade humana etc., e prefere outros princípios. .__ .- '---, 18. Essa descrição é adaptada de Sérgio Buarque de Holanda, que, em seu Raí- zes do Brasil. descreveu com alguma ironia a "contribuição brasileira para a civiliza- ção"; o "homem cordial" (26' ed., São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p. 141 e ss.). O autor nos diz outras coisas que vale a pena ouvir: "É frequente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. (...). "De qualquer modo, ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências. ( ...). "Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se natura- lizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com Aconteceu o contrário. ..Como se explica isso? A"onda principiológica" pusera uma série de princípios vagos e superficiais em hábeis mãos profissionais; dis- sera estar neles, e não nas instituições e nas quotidianas deliberações políticas das leis e atos da Administração, a verdadeira essência do direito administrativo; legitimara o jurista a tentar corrigir por si mes- mo os defeitos todos que imaginasse haver nas organizações, nas leis e nas decisões administrativas -e também quantas injustiças ele visse no mundo. Pois justamente essas ide ias dariam cobertura retórica para que sobrevivesse, mesmo com a novidade da democracia, a figura, tão brasileira e conhecida, do "jurista cordial", um ser mais de coração que de razão. O "jurista cordial" é todo "exaltação dos valores cordiais": trata o Direito com "uma intimidade quase desrespeitosa", ao qual dedica um "culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar", um res- peito "de superfície" e de "pouca devoção"; ele é "indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas"; é "livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maio- res dificuldades", O "jurista cordial" tira suas opiniões de um "fundo emotivo extremamente rico e transbordante", apela sempre para "os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade"; sua "personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador" ,18 "i, a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confmnando nossO intuitivo horroràs hierarquiase permitindo tratarcom familiaridade os governantes. A democra~ cia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido" (ob. cit., pp. 155-160). A CONSTRUÇÃO DO DIREITOADMINISTRATIVOBRASILEIROE SUAS IDElAS 71 Fiel às raízes brasileiras profundamente plantadas ao longo de nossa história colonial, o "jurista cordial" aplica-se ainda em construir um Direito que se molde muito mais por sua personalidade individual do que por valores institucionais de um Estado de Direito e de uma democracia. Nosso.desafio contemporâneo é, com as esporas duras das insti- tuições, conseguir domar esse humanista emotivo, esse campeão da cordialidade, esse personalista cheio de vontades, que sobrevive ao passado carregando os seus valores. Não tem sido fácil. DIREITO ADMINISTRATIVO p~ CÉTICOS70 Capítulo 4 CRÍTICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1. Para quê serve um ramo do Direito para a Administração? 2. A visão do prático do direito administrativo. 3.A visão do pensador do direito administrativo. 4. Empirismo e racionalismo no direito admi- nistrativo. 5. Modelos ideais de direito para a Administração. 6. Pluralidade no direito positivo ou nas visões sobre direito adminis- trativo? 7. Uma ciência universal do direito administrativo? 8. Um dogma e duas classificações por trás da afirmação do direito admi- nistrativo como ramo do Direito. 9. Colocando em dúvida o dogma e as classificações. lO. Insuficiências conceituais do direito adminis- trativo da autoridade.n. Função prescritiva dos conceitos e o direi- to administrativo da autoridade. 12. Um direito administrativo do interesse público oposto ao privado? 13. Possíveis utilidades da dis- tinção entre direito administrativo e direito privado. 14. O conceito de direito administrativo no Brasil não precisa da dicotomia público e privado. 15. O direito administrativo como antftese do privado é concepção estatista e antiliberal.16. Contra a contaminação ideoló- gica do conceito de direito administrativo. 1. Para quê serve um ramo do Direito para a Administração? Ramos do Direito são conjuntos de normas com alguma identida- de comum. Só que não existe fórmula exata apontando o tipo e o grau de identidade indispensáveis para um punhado de normas ser conside- rado um ramo. Os ramos aparecem por razões diferentes, além de relativamente arbitrárias. Boa parte deles veio das grandes leis, que, dando tratamento or- denado a um numero de questões, chamaram a si mesmas de "códi- gos" (exemplos no campo privado são os Códigos Civil, Comercial e do Consumidor; no campo estatal, os Códigos Tributário e de Processo Civil) ou, sem esse nome, tiveram a clara pretensão de fundar ou sis- tenüitizar uma área importante' (casos recentes no campo estatal no Brasil são: o Estatuto da Cidade, a lei nacional que sistematizou o direito urbanístico; e a Lei de Responsabilidade Fiscal, dando nova sistematização ao direito financeiro). Os ramos mais conhecidos não são fruto de uma classificação só, nem de um só critério; eles vêm mais do caos das necessidades práti- cas que de alguma ordem racional. A classificação mais antiga e conhecida divide o Direito inteiro em público e privado, nos quais estariam os ramos menores. Mas o direito constitucional não cabe entre eles: seu surgimento está ligado a um grande código normativo (a Constituição), não à arrumação global do Direito em classes. Já, o direito econômico - como, de resto, ocor- reu com o direito urbanístico, o direito ambiental, o direito do consu- midor, entre outros - afirmou-se como ramo totalmente à margem da classificação público x privado, justamente para tratar de questões e regulações jurídicas novas, surgidas sobretudo a partir dos anos 1930. As dúvidas interessantes que as divisões do Direito nos propõemsão as de saber se é útil ou não - e para quê - a identificação de um ramo jurídico. E mais: saber o que há por trás, quais os critérios usa- dos na identificação - e que valores os inspiram. Para quê serve afirmar que o direito administrativo é um ramo do Direito? Feita essa pergunta, provavelmente a primeira resposta dos admi- nistrativistas viria em coro, ao menos no Brasil e nos Países em que ele se inspirou quanto a isso: a existência do direito administrativo como ramo jurídico é importante, se não indispensável, para assegurar a efetiva submissão da Administração Pública ao Direito. Mas daí em diante provavelmente começariam as divergências. Na visão mais velha o ordenamento jurídico estaria construído sobre a oposição radical entre o privado e o público, de modo que um valor fundamental da ideia de direito administrativo seria afirmar e defender essa oposição como base da vinculação geral do Estado ao Direito. O direito em princípio aplicável ao Estado (direito adminis- trativo em sentido estrito) seria, então, um oposto do privado, o rever- so deste. O grande projeto de vincular o Estado ao Direito seria total- mente dependente dessa oposição. 2. A visão do prático do direito administrativo Como o prático do direito administrativo, entrevistado por um amigo, explicaria sua área de atuação? Mas essa visão, elaborada por juízes e intelectuais em certo con- texto histórico (no século XIX, logo em seguida ao surgimento do Código Civil francês, que buscara sistematizar o direito privado), foi se tomando disfuncional na medida em que a legislação se desenvol- via e tomava outros caminhos. Hoje, o direito aplicável ao Estado certamente não é, em seu conjunto, o reverso do privado. É verdade que algumas normas aplicáveis ao Estado podem de fato ser descritas como opostas a algumas normas da legislação priva- da; mas não é uma oposição geral, de todas as normas aplicáveis ao Estado com todas as normas da legislação privada. O direito do Esta- do não é um direito de oposição. A vinculação geral do Estado ao Direito não é dependente da oposição público x privado. Manter hoje o velho conceito de que o direito administrativo seria essencialmente o reverso do privado é cair em urna de duas possíveis distorções. Uma é a crença de que as normas para o Estado teriam de ser algo que elas simplesmente não são; e aí a expressão "direito adminis- trativo" terá deixado de referir um ramo do Direito propriamente dito, para nomear um ramo da ficção científica. A outra distorção seria reservar a expressão "direito administrati- vo" apenas para a parte do direito do Estado que de fato se opõe frontalmente a algo da legislação privada; e aí, tendo se salvado aque- la pureza conceitual do público contra o privado, quase desaparecerá a utilidade que havia justificado a invenção do direito administrativo como ideia jurídica (utilidade que era a de garantir a vinculação geral do Estado ao Direito). Como atualizar a definição de direito administrativo, superando a oposição público e privado? É importante, em primeiro lugar, manter fidelidade ao grande ob- jetivo de fazer esse ramo servir à vinculação efetiva e global do Estado ao Direito. Em segundo lugar, é indispensável respeitar as opções do direito positivo, que vem submetendo o Estado a um direito plural. 115CRíTICA À DOUnuNA ANTlLIBERAL E ESTATISTADIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS114 Ele diria que seu trabalho é lidar com o conjunto de normas que viabilizam,organizam e.condicionam.a ação da Adnúnistração Pública e tratam das competências, direitos e deveres vinculados a essa ação. Para ele, estas são as ideias que representam mais diretamente sua área: as de norma jurídica e de ação da Adnúnistração. As normas são as ferramentas básicas, quase palpáveis, de seu trabalho; é natural tomá-las como centro de tudo. Daí o direito adnúnistrativo ser defini- do singelamente como "conjunto de normas". Natural também seu critério de delinútação ser o visível e eviden- te: a Administração, o sujeito cujas ações são objeto das normas. E o que é a Administração Pública para ele? O conjunto de órgãos e enti- dades que, no dia a dia, ele conhece e reconhece como tais. O prático aprendeu nas normas que autorizações normativas são sempre necessárias à ação administrativa; a qual, assim, é viabilizada por elas. Sabe também que a ação administrativa é a ação de certos sujeitos, órgãos e entidades integrantes da Adnúnistração Pública, cuja organização é definida por normas, pois são criações delas. Sabe, ainda, que as normas fazem mais do que autorizar e organizar: elas condicionam de muitos modos a ação administrativa, exigindo-a, li- mitando-a, onerando-a. As normas definem competências dos agentes administrativos e também atribuem direitos e deveres. Tendo surgido timidamente, as normas sobre ação administrativa foram aumentando de volume no decorrer do século XX, na medida em que as leis criavam novas entidades estatais ou paraestatais, em que as ações administrativas cresciam, e iam sendo pouco a pouco instituí- dos para elas mais e mais regimes jurídicos próprios. O intervencionis- mo estatal foi se tornando um fato, mesmo em Países mais liberais, e trouxe com ele a inflação de normas sobre a ação administrativa. O direito administrativo em sentido mais estrito, como sinônimo de legislação administrativa, acabou se impondo, até nos Países que demoravam a reconhecê-lo como área específica. E isso como vitória inclusive da quantidade: se muitas normas vão sendo editadas sobre um assunto qualquer, inevitável os profissionais se especializarem ne- las; a quantidade gera o especialista; e o especialista, a especialidade. Hoje, a maioria dos Países mais ou menos desenvolvidos afirma ter direito administrativo corno um conjunto vasto e especial de nor- mas jurídicas sobre Administração Pública. ------------- .éc"-.: 1. Essa foi a perspectiva, por exemplo, do clássico administrativista francês Hemi Berthélemy. Já no "Prefácio" a seu famoso Traité Élémentaire de Droit Admi- nistratif, escrito em 1900, ele esclarecia que, em seu esforço de sistematização, bus- cara mais a explicação do que a descrição do direito administrativo, e que essa expli- cação estava nas "verdades de que os filósofos do século XVIII proclamaram o alto significado social: o princípio da separação dos Poderes Legislativo e Executivo, o princípio da independência recíproca dos administradores e juízes" (lIa ed., Paris, Rousseau & Cie., 1926). ll7CRíTICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA O prático é sempre atento ao modo como funcionam as coisas, à parte técnica, ao dia a dia da operação. Ele conbece bem as leis, as práticas jurídicas, as orientações dos tribunais, os fatos. O seu é um direito administrativo .de minúcias, circunstâncias e detalhes. Fal- ta-lhe paciência para abstração em excesso, para procurar causa últi- ma nas coisas,.para debates~ito conceituais. Em função disso tudo, o prático, com sua experiência, considera artificial a tentativa de encaixar as normas todas de direito administra- tivo em modelos ideais, em sistemas conceituais fechados, construí- dos a partir de ideias gerais. O prático, que conhece as normas e não se constrange por conceitos, vê que elas são produzidas de modo in- cremental, ao longo do tempo, sem um plano muito coerente. Vê também como elas vão sendo amoldadas pelas práticas jurídicas. En- tende perfeitamente que, em todo esse processo de produção jurídica, os problemas reais e os interesses em disputa têm peso decisivo e acabam gerando soluções heterodoxas. 3. A visão do pensador do direito administrativo Mas, ante aquela pergunta sobre direito administrativo, O que responderia um pensador das instituições estatais clássicas, que se ocupasse em imaginar o funcionamento geral das engrenagens do Direito a partir das referências teóricas fundamentais?! . Se fosse brasileiro, por exemplo, o pensadorcertamente lembra- ria que a autonomia da Administração, por um lado, e a legalidade e o controle judicial, por outro, foram determinantes para o direito ad- ministrativo existir como conjunto de normas jurídicas vinculantes para a Administração. Para explicar o direito administrativo ele real- çaria a submissão ao Direito, a ligação da Administração com o legis- lador e ojuiz independente, mas também não deixaria de afrnnar a autonomia da Administração como organização. DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS116 4. Empirismo e racionalismo no direito administrativo Portanto, as Administrações Públicas que estão nas cabeças do prático e do pensador clássico podem não ser exatamente as mesmas. Não tanto por crerem em coisas opostas; o foco deles é que é distinto. O primeiro pensa em uma organização concreta, que conhece a partir das normas e da realidade; o segundo, em um modelo institucio- nal abstrato, que procura elaborar e valorizar. Para o prático aexpe- riência é muito; para o pensador o modelo é tudo. O prático foca nos textos normativos, opções pragmáticas; o pensador, em ideias, cons- truções em tese. Grande parte dos Países relativamente desenvolvidos adotou a separação dos Poderes Executivo,.Legislativo e Judiciário e garantiu direitos frente ao Estado: a liberdade pessoal, a liberdade de iniciativa econômica, a propriedade etc. Brotou dessa raiz a legalidade, a dependência de lei: a exigência de ser feita por lei a outorga inicial de competências para a ação ad- ministrativa, podendo O legislador condicioná-la mais e mais, segun- do seus critérios políticos. Daí veio também o controle jurisdicional de validade dos atos, contratos, processos e normas produzidos pela Administração. Daí se extraiu, ainda, a ideia de autonomia da Admi- nistração frente às outras unidades do Estado. Assim, nosso pensador das instituições clássicas deixaria claro que foi justamente essa combinação da autonomia da Administração com a amarração externa ao legislador e ao juiz independente (uma amarração jurídico-institucional, baseada em normas e em órgãos pro- dutores e aplicadores de normas) a base histórica inicial da submissão à ordem jurídica e do movimento que gerou o direito administrativo. Para definir direito administrativo, nosso pensador, usando a mesma língua do prático, falaria em direito da Administração Pública. Mas ele descreveria a Administração de outro jeito, mais abstrato: como organização estatal autônoma que, em seu contexto institucio- nal, tem de se equilibrar em meio a sofisticadas relações de troca e vigilãncia com as outras grandes organizações estatais, que legislam, julgam, controlam. 2. José Guilherme Giacomuzzi, Estado e Contrato - Supremacia do Interesse Público sobre o Privado x Igualdade - Um Estudo Comparado sobre a Exorbitância no Contrato Administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 2011, pp. 95 e 55. 119CRÍTICA À DOU1RINAANTILIBERAL E ESTATISTA o pensador, homem antes de ideias que de observação, tem mais gosto por abstração e por sistemas conceituais que por atentar para a sucessão incremental das leis no tempo, os detalhes dos textos, para a variação das práticas jurídicas, o dia a dia, as minúcias e circunstân- cias. Ele pode se aborrecer com as normas que teimem em fugir dos modelos, e aí reagirá a elas, minimizando, desprezando; ele militará pelo modelo. Só que nenhum administrativista se encaixa perfeitamente no prático ou no pensador. Cada um de nós é uma bela mistura, em doses desiguais, das duas figuras .. De modo que, ao invés de separar radicalmente um do outro, o melhor talvez seja falar de ênfases: certos administrativistas tendem a olhar o Direito mais pelos modelos, a encaixar as normas nas ideias, a priorizar a razão sobre a experiência; outros são empiristas, menos racionalistas, tendem a ver as ideias pelo ftltro da prática e do direito legislado. Diferenças importantes de visão quanto ao direito da Administra- ção Pública têm a ver com as tendências mais empiristas ou mais ra- cionalistas presentes em cada ambiente jurídico. Os norte-americanos são empiristas e indutivos: formam suas opiniões antes pelas caracte- rísticas dos fatos que por influência de teorias abstratas. Os continen- tais europeus e os brasileiros, ao contrário, tendem ao racionalismo, à dedução e ao pensamento sistematizador. Essas diferenças aparecem com nitidez no modo como o direito administrativo é explicado e compreendido nesses Países. 2 5. Modelos ideais de direito para aAdministração Em qualquer lugar - e na cabeça de qualquer intelectual ou prá- tico - a expressão "direito administrativo" refere estas coisas mistura- das: a ideia de submissão da Administração ao Direito e a prática profissional com o conjunto das normas administrativas. Mas, para além dessas identidades, podem ser bem variados os direitos adminis- DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS118 3. Para a análise das razões e confusões da influente opinião do inglês Dicey a respeito dos Direitos Francês e Inglês do final do século XIX, v. Sabino Cassese, La Construction du Droit Administratij- France et Royaume-Uni, Paris, Montchrestien, 2000, pp. 52 e 55. trativos das normas de cada País e das cabeças de quem com eles lida. Nilii só porque os direitos posifivosdiferem; também porque os pen- sadores variam. São muitos os possíveis modelos ideais do direito daAdministração. No Reino Unido do final do século XIX já havia Administração Pública, e com certeza ela estava submetida ao legislador e a juízes independentes. O que, então, certos juristas ingleses estavam queren- do dizer quando, estranhando o entusiasmo de seus vizinhos para com o jovem direito administrativo francês, insistiam na tese de que no Reino Unido não havia, nem deveria haver, algo parecido? O que os ingleses rejeitavam na noção de direito administrativo, se estavam perfeitamente felizes com a submissão da Administração ao Direito - portanto, com o direito para a Administração?' Em primeiro lugar, havia entre eles certa desconfiança quanto ao grande Estado que os livros franceses vinham descrevendo; suas ex- tensas competências, suas interferências na vida privada. Esses ingle- ses eram menos estatistas e levavam mais longe a ideia de liberdade individual; receavam um direito extenso, não queriam um Estado ad- ministrativo. Estranhavam a visão, que na França tomava corpo, quanto a ser melhor o Estado sujeitar-se a diretrizes ou normas espe- ciais em matérias como contratos e processo contencioso. Por que deixar o Estado fora das normas comuns? Por que os privilé,gios? Enquanto franceses começavam a achá-los justificáveis, e necessários para construir o Estado administrativo, juristas ingleses resistiam, sem muito entusiasmo por um Estado assim. Seriam ficção os relatos que, naqueles primórdios, juristas fran- ceses e ingleses faziam das respectivas ordens jurídicas nacionais? É possível. Franceses influentes talvez tenham induzido os pares a aceitar, pará questões administrativas, soluções sem tanta base normativa, ti- radas de um sistema de ideias (deste modelo ideal: "é preciso um di- reito especial para a Administração, mais forte e diferente do comum, 6. Pluralidade no direito positivo ou nas visões sobre direito administrativo? Para certos intelectuais brasileiros mais antigos o direito adminis- trativo tinha é que assegurar poderes ao Estado' Para outros, que vieram depois, o que o direito administrativo devia era garantir su- premacia ao interesse público, mas sem violar direitos dos adminis- trados.' Para outros mais recentes, o importante é o direito adminis- trativo servir aos direitos fundamentais.' 121CRíTICA À DOUTRINAANTILIBERAL E ESTATISTA um direito administrativo"). Possível também que juristas ingleses, com outro modelo na cabeça ("o direito comum deve ser para todos"), minimizassem soluções sobre Administração Pública que já estavam no direitopositivo inglês, e não lhes agradavam. O debate sobre se existia, ou não, direito administrativo talvez tenha sido em seu tempo um confronto mais de pensamentos que de direitos positivos. Em qualquer época o mesmo se repete com os re- latos dos diferentes juristas sobre o direito administrativo de seus Países. Dois juristas, olhando para normas e problemas pelos óculos de modelos diferentes, dificilmente verão as mesmas soluções. Adminis- trativistas com modelos distintos nos olhos descreverão direitos diver- sos, apesar de olharem as mesmas normas. 4. Hely Lopes Meirelles, O mais lido dos administrativistas brasileiros a partir de 1960, afrnnava com ênfase que "na interpretação do direi,to administrativo, tam- bém devemos considerar, necessariamente, três pressupostos: (lO) a desigualdade ju- rídica entre a Administração e os administrados; (2°) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; (3°) a necessidade de poderes discricionários para a Adminis- tração atender ao interesse público" (Direito Administrativo Brasileiro, 4.oa ed., São Paulo, Malheiros Edilores. 2014, p. 50). 5. Em seu curso, surgido .em 1990 e hoje provavelmente o mais adotado no Brasil, Maria. Sylvia Zanella Di Pietro afmna que "as normas de direito público, embora pro~eJam reflexamente o direito individual, têm o objetivo primordial de atender ao mteresse público, ao bem-estar coletivo", donde o "princípio que hoje serve de fundam~nto para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas deCIsões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os indi- viduais" (Direito Administrativo, 25a ed., São Paulo, Atlas, 2012, p. 66). 6. ~m ~anUal lançado em 2005 e que vem alcançando boa aceitação, Marçal Justen Filho diZ: "A atividade administrativa do Estado Democrático de Direito subor- L DIREITO ADMINlSTRATIVO PARA cÉTIcos120 dina-se, então, a um critério fundamental, que é anterior à supremacia do interesse publico. Trata-se da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais" (Curso de Direito Administrativo, ga ed., São Paulo, Ed. RT/Thomson Reuters, 2013, p. 158). o desacordo não é exatamente sobre as peças: todos concordam que o Estado deve ter. poderes;. que interesses públicos devem ser cuidados, que direitos devem ser respeitados e concretizados. O desacordo é quanto ao arranjo das peças. É isso que levou à variação de discursos sobre o direito administrativo brasileiro: o pri- meiro valorizou o poder e a autoridade, o segundo priorizou o interes- se público, o terceiro milita pelos direitos fundamentais; são modelos em alguma medida diferentes de direito administrativo. Quando defendem ideias assim alternativas, os juristas afIrmam apenas descrever o que veem no próprio direito positivo. Pode parecer estranho, mas eles são sinceros, a seu jeito (embora outros possam ter visão diversa). Mesmo quando ignora ou inventa certas normas, o homem do Direito não se sente um traidor, mas tradutor de algo que crê superiormente exigido pelo ordenamento - ou pela idealização que fez dele. De modo que haverá tantos "direitos administrativos" quantas fo- rem as visões sobre o conjunto das normas aplicáveis à Administração. É natural que, a despeito das normas, os intelectuais e os práticos do direito administrativo tenham suas convicções sobre como o Esta- do deve funcionar, as autoridades agir, os particulares se comportar etc. Essas convicções influem na leitura, descrição e aplicação das normas e produzem variantes do direito administrativo, transmitidas nos livros e documentos profIssionais. No extremo, o Direito que se impõe pelas mãos do especialista pode vir menos de normas positivas que dos modelos ideais usados para lê-las. Nesse sentido, o direito administrativo é a ideia que se faz dele. Naquela época em que juristas ingleses andaram desdenhando do direito administrativo, o que estavam querendo dizer era, ao menos em parte, que não haviam gostado da ideia de direito administrativo que estava nas cabeças francesas. A outra parte é que eles também não gostavam das normas francesas e não as queriam para si (como a que criara a Justiça Administrativa, separada do Judiciário, e dera gás à ideia de direito administrativo), e sequer gostavam de todas as normas 123CR1TICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA inglesas (algumas já vinham criando regimes especiais para a Admi- nistração). Todos esses desgostos entraram na visão com que eles tentaram caracterizar o direito positivo de seu País. Gostos e tendências também contaram para juristas brasileiros diversos, em suas descrições do direito administrativo, ora prioriza- rem os poderes da Administração, ora os interesses públicos, ora os direitos fundamentais. Variações assim são inevitáveis: nem todo mundo atua igual, nem todo mundo pensa igual. Uma descrição honesta do estágio atual do direito administrativo brasileiro tem de reconhecer que nenhum dos três discursos - o dos poderes da Administração, o dos interesses públicos e o dos direitos fundamentais - pode ser considerado vencedor. Primeiro porque juristas com essas distintas orientações têm lei- tores e adeptos bem posicionados, que comungam de suas convicções para a globalidade do direito administrativo. Mas sobretudo porque, na vida real, o mesmo órgão jurídico - um juiz, por exemplo - usará qualquer dos discursos dependendo do te- rna, sem nenhum constrangimento. Se o caso for de sanção militar, o juiz valorizará os poderes do administrador. Se o debate for de licen- ciamento ambiental, invocará a supremacia do interesse público sobre o privado. Se alguém buscar medicamentos caros, o juiz, agora adnti- nistrativista dos direitos fundamentais, condenará o Estado. Essa flutuação talvez mostre não a falta de personalidade do prático do direito administrativo - que inclusive flutua sob o estímulo do pró- prio direito positivo -, mas o artifIcialismo das teorias e princípios mui- to gerais e de suas pretensões de unifIcação do direito administrativo. 7.Uma ciência universal do direito administrativo? O repertório de direitos adntinistrativos não é infinito. Com o tempo e as modas, ideias e soluções normativas se consolidam e via- jam de País a País (sobretudo dos centrais para os periféricos). É conhecida, por exemplo, a influência intelectual dos adminis- trativistas franceses clássicos (do final do século XIX e primeiras décadas do século XX) sobre seus colegas de tantos lugares, e tam- DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS122 7. Eduardo García de Enterría e Tomás~Ramón Femández, Curso de Derecho Administrativo, 1& ed., 2 vaIs., Navarra,AranzadilThomson Reuters, 2013. 8. Um dogma e duas classificações por trás da afirmação do direito administrativo como ramo do Direito Uma ideia abstrata de direito adminislrativo cujo peso ainda é enorme no Brasil surgiu como produto de um dogma e de duas clas- sificações. O dogma é o da unidade e coerência interna do direito adminis- trativo. bém do Brasil. Mais recentemente, impressiona como os espanhóis Eduardo García de Enterría e Tomás-Rámon Femández (cujo famoso Curso foi lançado em 1974)7 viúàm: dando o tom do direito adminis- trativo em toda a América Latina, inclusive no Brasil. Assim, não é totalmente sem razão que, ao menos para justificar a importação de doutrina estrangeira, o direito administrativo nacional seja às vezes visto como um simples lote do grande latifúndio jurídico universal. Há mesmo um razoável diálogo entre as várias línguas jurídicas, que de resto não é só diálogo internacional, mas também intergeracio- nal: juristas estrangeiros antigos, mesmo mortos e esquecidos em suas pátrias, podem seguir conservados em outras terras, vagando pelas escolas de Direito e pelas Câmaras dos tribunais, participando dos debates como se falassem do lugar e do presente. Mas seria tolice extrair daí a crença em uma ciência universal do direitoadministrativo e sair buscando alguma explicação definitiva a seu respeito. É certo: manuais, cursos e tratados podem ser bem repetitivos (por vezes, meio insonsos). Mas, para além do superficial, das aparên- cias, das citações repetidas de juristas vivos e mortos, pulsam diver- gências profundas e ricas sobre o direito administrativo: não só por as leis mudarem tanto, e não só por alguns juristas serem mais raciona- listas e outros mais empiristas; também por ninguém ter a chave do modelo ideal definitivo, pois o direito administrativo é coisa de gente, não de deuses. 125CRíTICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA 8. As expressões são de Celso Antônio Bandeira de Mello, que, pela influência de seu texto entre os administrativistas a partir da década de 1980, será citado diver~ sas vezes a seguir (Curso de Direito Administrativo, 3}i ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2014, p. 53). Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu estilo mais contido, não chega a defen- der de modo expresso o caráter sistemático, mas aceita a noção de "regime jurídico~ -administrativo", em que ele está implícito (Direito Administrativo, cit., 25a ed., pp. 61 e ss.). Esse caráter é também pressuposto por autores mais recentes, mesmo seguindo referências outras para indicar o "critério fundamental" do sistema; no caso de Marçal Justen Filho, por exemplo, o critério seria a "supremacia e indisponibilidade dos di~ reitos fundamentais" (Curso de Direito Administrativo, cit., 9a ed., p. 158). 9. Bandeira de Mello limita-se a lembrar que é "questão. assente entre todos os doumnadores a existência de uma unidade sistemática de princípios e normas que fonuam em seu todo o direito administrativo" (Curso de Direito Administrativo, cit., 31a ed., p. 53). Daí o autor já vai direto para a discussão sobre quais seriam os crité- rios por trás dessa unidade. A conclusão é que ela viria dos "princípios do direito administrativo" (princípios cujo sentido e fundamento o autor procura, então, expor em seus detalhes). A construção do autor em nenhum momento envolve o questionamento propria- mente dito dessa "unidade sistemática", a qual permanece pressuposta na constatação de que o direito administrativo é um ramo do Direito. 10. Embora nos últimos anos se venha discutindo bastante no Brasil quais se~ riam os "verdadeiros" princípios do direito administrativo (por exemplo: se os da "supremacia e indisponibilidade do interesse público sobre o privado", como disse Bandeira de Mello, ou da "supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamen~ tais", como preferiu Justen Filho), nem por isso os autores deixaram de vincular o conceito e a unidade do direito administrativo à existência de princípios gerais. Para influentes administrativistas brasileiros o direito administra- tivo não seria simples conjunto de normas agrupado a partir de algum critério pertinente. Ele seria bem mais: um "conjunto sistematizado de princípios e regras", dotados de "relação lógica de coerência e unida- de", de "unidade sistemática", formando, assim, o "regime juridico- -administrativo" .' Para esses administrativistas trata-se de um dogma, que não é questionado nem testado, apenas demonstrado pela enunciação de caraterísticas e princípios supostamente capazes de commná-lo. Praticamente todos os livros didáticos brasileiros atuais aceitam sem hesitação a tese de que O direito administrativo é um ramo do Direito com unidade interna muito forte, instituidor de um "regime jurídico-administrativo" sistemático para o Estado, e que essa unidade vem justamente da existência dos princípios gerais do direito admi- nistrativo .10-11 DIREITO ADMINISTRATIVO PARi\ cÉTIcos124 Quanto às classificações que estão na base da ideia de direito adlIlinistrativo, a primeirad(vi>lJu atot;J.1idade do ordenamento jurídi- co em duas metades opostas: o direito privado, que disciplina relações igualitárias entre sujeitos livres, os particulares; e o direito público, para a organização interna do Estado e a disciplina de suas relações com os particulares, baseadas na supremacia e na autoridade. O direito administrativo seria, então, um dos ramos deduzidos da classificação subsequente, que fatiou esse direito público da suprema- cia usando o facão da separação de Poderes. Cada Poder teria sua função típica -legislativa, jurisdicional e administrativa -, produzin- do seu tipo próprio de ato: lei, sentença e ato administrativo (em sentido amplo). Segundo essa visão, o direito administrativo formaria um sistema unitário, articulado e coerente de princípios e regras, constituindo o ramo do direito público específico da função administrativa, isto é, da produção de regulamentos, contratos e atos administrativos, todos dotados de prerrogativas públicas.12 É significativo, a propósito, que uma relevante coletânea, conquanto abrisse espaço para as divergências de visão sobre o conteúdo dos vários princípios, não contenha qualquer estudo crítico à postura "principiológica" em si - a qual, como bem destacou o organizador na "Introdução" da obra, é uma originalidade dos admi- nistrativistas brasileiros (Thiago Marrara (org.), Princípios de Direito Administrativo, São Paulo,Atlas, 2012, p. XV). . E a doutrina do "neoconstitucionalismo" só fez reforçar a "onda principiológica". Em um manual bem recente, surgido em 2013, as primeiras frases do capítulo dos "Princípios do Direito Administrativo" dizem justamente que "o neoconstitucio- nalismo, ao aproximar o Direito e a Moral, abre caminho para superação da visão positivista e legalista do Direito", e "cede espaço a um novo paradigmajusfIlosófico; o 'pós-positivismo''', cujo "traço característico" seria a "normatividade primária dos p~cíp~os~c~nstituci~n~s".A s~~ir, o.livro, sem muita novidade, indica "os princi- paIS pnncIpIos do direIto admimstratlvo: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, finalidade pública (supre- macia do interesse público sobre o interesse privado), continuidade, autotutela, con- sensualidade/participação, segurança jurídica, confiança legítima e boa-fé" (Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Curso de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Foren- se, 2013, pp. 23 e 25). 11. Para a descrição e crítica contundente dessa construção doutrinária no Bra- sil, v. o Capítulo 7, "Crítica à Doutrina dos Princípios do Direito Administrativo" neste livro. ' 12. Bandeira de Mello definiu o direito administrativo como "o ramo do direito público que disciplina o exercício da função administrativa. bem como pessoas e órgãos que a desempenham"; afmnando que a função administrativa "no sistema 127CRíTICA À DOUTRINA ANTILIBERAL E ESTATISTA , ,. 9. Colocando em dúvida o dogma e as classificações Essas classificações são conhecidas. Mas será que se justifica mesmo, ainda hoje, basear nelas um ramo específico (o direito admi- nistrativo), e ainda considerá-lo como dotado de coerência e unidade interna? Desde a metade do século XIX a ideia de direito administrativo foi recebida como natural no mundo jurídico brasileiro, de onde nunca mais saiu. No curso deste século e meio não se tem duvidado de sua pertinência ou de seu valor para nosso desenvolvimento institucional. Só que a ideia original - que tanto nos ajudou na passagem para a Modemidade e no aprendizado da submissão estatal ao Direito - está cada vez mais desajustada do direito positivo brasileiro, além de contaminada por uma ideologia antiliberal e estatista, quando não autoritária. O presente ensaio critica os conceitos de direito administrativo predominantes no Brasil, construídos sobre o dogma da harmonia e unicidade. A tese aqui defendida é que, hoje, o direito administrativo tem de ser visto em sentido amplo, como a área do conbecimento que estuda as normas jurídicas que se aplicam à Administração, independente- constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser
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