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29 O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 1. O pensamento considerado como ambiente 1.1 Pensamento primitivo, ciência e senso comum A crença em que o pensamento primitivo - se tal termo é ain- da aceitável - está baseado é uma crença no “poder ilimitado da mente” em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la e em determinar o curso dos acontecimentos. A crença em que o pen- samento científico moderno está baseado é exatamente o oposto, isto é, um pensamento no “poder ilimitado dos objetos” de confor- mar o pensamento, de determinar completamente sua evolução e de ser interiorizado na e pela mente. No primeiro caso, o pensa- mento é visto como agindo sobre a realidade; no segundo, como uma reação à realidade; numa, o objeto emerge como uma réplica do pensamento; na outra, o pensamento é uma réplica do objeto; e se para o primeiro, nossos desejos se tornam realidade - ou “wish-- ful thinking” - então, para o segundo, pensar passa a ser transfor- mar a realidade em nossos desejos, despersonalizá-los. Mas sendo que as duas atitudes são simétricas, elas somente podem ter a mesma causa e uma causa com a qual nós já estávamos familiari- zados há muito tempo: o medo instintivo do homem de poderes que ele não pode controlar e sua tentativa de poder compensar essa impotência imaginativamente. Sendo esta a única diferença, enquanto a mente primitiva se amedronta diante das forças da na- tureza, a mente científica se amedronta diante do poder do pensa- mento. Enquanto a primeira nos possibilitou sobreviver por mi- lhões de anos e a segunda conseguiu isso em poucos séculos, de- vemos aceitar que ambas, a seu modo, representam um aspecto real da relação entre nossos mundos internos e externos; um as- pecto, além disso, que vale a pena ser investigado. 30 A psicologia social é, obviamente, uma manifestação do pen- samento científico e, por isso, quando estuda o sistema cognitivo ela pressupõe que: 1. os indivíduos normais reagem a fenômenos, pessoas ou acon- tecimentos do mesmo modo que os cientistas ou os estatísti- cos, e 2. compreender consiste em processar informações. Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e to- das nossas percepções, idéias e atribuições são respostas a estí- mulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós vivemos. O que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corre- tamente, de compreender a realidade completamente; e o que dis- tingue o meio ambiente é sua autonomia, sua independência com respeito a nós, ou mesmo, poder-se-ia dizer, sua indiferença com respeito a nós e a nossas necessidades e desejos. O que era tido como vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas eles são concretamente vieses, distorções e tendências em rela- ção a um modelo, a regras, tidas como norma. Parece-me, contudo, que alguns fatos comuns contradizem esses dois pressupostos: a) Primeiro, a observação familiar de que nós não estamos conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal mo- do que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua ida- de - por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos - ou devido a sua raça - p. ex. os negros por alguns brancos, etc. - se tomam invisíveis quando, de fato, eles estão “nos olhando de fren- te”. É assim que um arguto escritor negro descreve tal fenômeno: Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como os que espantaram Edgar Allan Poe; nem sou eu um de vos- sos ectoplasmas dos cinemas de Hollywood. Eu sou um ho- mem concreto, de carne e osso, fibra e líquidos – e de mim pode-se até dizer que tenho inteligência. Eu sou invisível, entenda-se, simplesmente porque as pessoas recusam ver- me. Como a cabeça sem corpo, que às vezes se vê em circos, acontece como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro grossa e que distorcem a figura. Quando eles se aproximam de mim, eles vêem apenas o que me cerca, se vêem eles 31 mesmos, ou construções de sua imaginação – na realidade, tudo, exceto eu mesmo (Ellison, 1965: 7). Essa invisibilidade não se deve a nenhuma falta de informação devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabeleci- da da realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a com- preendem, que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis. b) Em segundo lugar, nós muitas vezes percebemos que alguns fatos que nós aceitamos sem discussão, que são básicos a nosso entendimento e comportamento, repentinamente trans- formam-se em meras ilusões. Por milhares de anos os homens estavam convencidos que o sol girava ao redor de uma terra pa- rada. Desde Copérnico nós temos em nossas mentes a imagem de um sistema planetário em que o sol permanece parado, enquanto a terra gira a seu redor; contudo, nós ainda vemos o que nossos antepassados viam. Distinguimos, pois, as aparências da realidade das coisas, mas nós as distinguimos precisamente por- que nós podemos passar da aparência à realidade através de al- guma noção ou imagem. c) Em terceiro lugar nossas reações aos acontecimentos, nos- sas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada de- finição, comum a todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos. Se, ao dirigirmos pela estrada, nós encontramos um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo um relatório, nós presumimos que houve um acidente. Nós lemos diariamente sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito dis- so. Mas esses são apenas “acidentes” porque nós definimos assim qualquer interrupção involuntária no andamento de um carro que tem conseqüências mais ou menos trágicas. Sob outros aspectos, não existe nada de acidental, quanto a um acidente de automóvel. Sendo que os cálculos estatísticos nos possibilitam avaliar o nú- mero de vítimas, de acordo com o dia da semana e da localidade, os acidentes de carro não são mais casuais que a desintegração dos átomos em uma aceleração sob alta pressão; eles estão direta- mente relacionados a um grau de urbanização de uma dada socie- dade, à velocidade e ao número dos seus carros particulares e à inadequação do seu transporte público. Em cada um desses casos, notamos a intervenção de repre- sentações que tanto nos orientam em direção ao que é visível, como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a 32 aparência á realidade; ou de novo aquilo que define essa realida- de. Eu não quero dizer que tais representações não correspondem a algo que nós chamamos o mundo externo. Eu simplesmente per- cebo que, no que se refere á realidade, essas representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados. Bower escreve: Nós geralmente usamos nosso sistema perceptivo para interpretar representações de mundos que nós nunca podemos ver. No mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das re- presentações é tão importante como a percepção dos obj e- tos reais. Por representação eu quero dizer um conjunto de estímulos feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um substituto a um sinal ou som que não pode ocorrer natu- ralmente. Algumas representações funcionam como substitutos de estímulos; elas produzem a mesma experiência que o mundo na- tural produziria (Bower, 1977: 58). De fato, nós somente experienciamos e percebemos um mundo em que, em um extremo, nós estamos familiarizados com coisas feitas pelos homens, representando outras coisas feitas pe- los homens e, no outro extremo, com substitutos por estímulos cujos originais, seus equivalentesnaturais, tais como partículas ou genes, nós nunca veremos. Assim que nos encontramos, por vezes, em um dilema onde necessitamos um ou outro signo, que nos auxili- ará a distinguir uma representação de outra, ou uma representa- ção do que ela representa, isto é, um signo que nos dirá: “Essa é uma representação”, ou “Essa não é uma representação.” O pintor René Magritte ilustrou tal dilema com perfeição em um quadro em que a figura de um cachimbo está contida dentro de uma figura que também representa um cachimbo Nessa figura dentro da figura podemos ler a mensagem: “Esse é um cachimbo”, que indica a dife- rença entre os dois cachimbos. Nós nos voltamos então para o cachimbo “real” flutuando no ar e percebemos que ele é real, en- quanto o outro é apenas uma representação1. Tal interpretação, contudo, é incorreta, pois ambas as figuras estão pintadas na mesma tela, diante de nossos olhos. A idéia de que uma delas é 1 Nota do editor: Moscovici está se referindo a um quadro de Magritte, que pode não ser tio familiar aos leitores, O famoso quadro data de 1926 e mostra uma simples imagem de um ca- chimbo com a inscriç~o “Isso n~o é um cachimbo”, embaicho da pintura. Em 1966, ele pintou outro quadro chamado Les deux mistéres (Os dois mistérios), em que o quadro de 1966 é mostra- do em um cavalete, em uma sala vazia, com uma segunda imagem de um cachimbo flutuando no ar, sobre ele. As questões sobre representação relacionadas a ambas as pinturas são extensa- mente discutidas por Michel Foucault (1983). 33 uma figura que está, ela mesma, dentro de uma figura e por isso um pouco “menos real” que a outra, é totalmente ilusória. Uma vez que se chegou a um acordo de “entrar na moldura”, nós já estamos com- prometidos: temos de aceitar a imagem como realidade. Continua contudo a realidade de uma pintura que, exposta em um museu e definida como um objeto de arte, alimenta o pensamento, provoca uma reação estética e contribui para nossa compreensão da arte da pintura. Como pessoas comuns, sem o benefício dos instrumentos ci- entíficos, tendemos a considerar e analisar o mundo de uma ma- neira semelhante; especialmente quando o mundo em que vive- mos é totalmente social. Isso significa que nós nunca conseguimos nenhuma informação que não tenha sido destorcida por re- presentações “superimpostas” aos objetos e às pessoas que lhes dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as suas recordações que nós preservamos e nossas categorias cultu- rais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de rea- ção de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas em uma determinada seqüência É essencial relembrar tais lu gares comuns quando nos aproximamos do domínio da vida mental na psicologia social. Meu objetivo é reintroduzi-los aqui de uma ma- neira que, espero, seja frutífera. 1.2 A natureza convencional e prescritiva das representações De que modo pode o pensamento ser considerado como um ambiente (como atmosfera social e cultural)? Impressionistica- mente, cada um de nós está obviamente cercado, tanto individu- almente como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer quei- ramos quer não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromag- néticas circulam no ar sem que as vejamos e se tomam palavras em um receptor de telefone, ouse tomam imagens na tela da televisão. Tal metáfora, contudo, não é realmente adequada. Vejamos se po- 34 demos encontrar uma maneira melhor de descrever como as re- presentações intervêm em nossa atividade cognitiva e até que pon- to elas são independentes dela, ou, pode-se dizer, até que ponto a determinam. Se nós aceitamos que sempre existe certa quantidade, tanto de autonomia, como de condicionamento em cada ambiente, seja natural ou social - e no nosso caso em ambos - digamos que as representações possuem precisamente duas funções: a) Em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pes- soas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradual- mente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas. Todos os novos elementos se juntam a esse modelo e se sintetizam nele. Assim, nós passamos a afirmar que a terra é redonda, associamos comunismo com a cor vermelha, inflação como decréscimo do valor do dinheiro. Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao mo- delo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em deter- minada categoria, na realidade, a se tornar idêntico aos outros, sob pena de não ser nem compreendido, nem decodificado. Bartlett conclui, a partir de seus estudos sobre percepção, que: Quando uma forma de representação co mum e já conven- cional está em uso antes que o signo seja introduzido, exi s- te uma forte tendência para características particulares d e- saparecerem e para que todo o signo seja assimilado em uma forma mais familiar. Assim “o pisca-pisca” quase sempre é identifi- cado a uma forma comum e regular de ziguezague e “quei- xo” perdeu seu ângulo bastante agudo, tornando-se mais semelhante a representações convencionais dessa caracte- rística (Bartlett, 1961: 106). Essas convenções nos possibilitam conhecer o que represen- ta o que: uma mudança de direção ou de cor indica movimento ou temperatura, um determinado sintoma provém, ou não, de uma doença; elas nos ajudam a resolver o problema geral de saber quando interpretar uma mensagem como significante em relação a outras e quando vê-la como um acontecimento fortuito ou casu- al. E esse significado em relação a outros depende ainda de um número de convenções preliminares, através das quais nós pode- mos distinguir se um braço é levantado para chamar a atenção, para saudar um amigo, ou para mostrar impaciência. Algumas ve- zes é suficiente simplesmente transferir um objeto, ou pessoa, de 35 um contexto a outro, para que o vejamos sob nova luz e para sa- bermos se eles são, realmente, os mesmos. O exemplo mais provo- cante foi o apresentado por Marcel Duchamp que, a partir de 1912, restringiu sua produção cientifica em assinar objetos já prontos e que, com esse único gesto, promoveu objetos fabricados ao status de objetos de arte. Um outro exemplo não menos chocante é o dos criminosos de guerra que são responsáveis por atrocidades que não serão facilmente esquecidas. Os que os conheceram, contudo, e que tinham familiaridade com eles tanto durante como depois da guer- ra, elogiaram sua humanidade e sua gentileza, assim como sua efi- ciência tradicional, comparando-os aos milhares de indivíduos tranqüilamente empregados em trabalhos burocráticos. Esses exemplos mostram como cada experiência é somada a uma realidade predeterminada por convenções, que claramente define suas fronteiras, distingue mensagens significantes de men- sagens não-significantes e que liga cada parte a um todo e coloca cada pessoa em uma categoria distinta. Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura Nós pensamos atra- vés de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanece- mos inconscientes dessas convenções. A esse respeito, nossapo - sição é muito semelhante à da tribo étnica africana, da qual Evans- Pritchard escreveu: Nessa rede de crenças, cada fio depende dos outros fios e um Zande não pode deixar esse esquema, porque este é o única mundo que ele conhece. A rede não é uma estrutura externa em que ele esta preso. Ela é a textura de seu pensamento e ele não pode pensar que seu pensamento esteja errado (Evans- Pritchard, 1937: 199). Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos. Mas nós não podemos imaginar que podemos libertar-nos sempre de todas as convenções, ou que possamos eliminar todos os pre- conceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma es- 36 tratégia melhor seria descobrir e explicitar uma única representa- ção. Então, em vez de negar as convenções e preconceitos, esta estra- tégia nos possibilitará reconhecer que as representações constitu- em, para nós, um tipo de realidade. Procuraremos isolar quais representações são inerentes nas pessoas e objetos que nós en- contramos e descobrir o que representam exatamente. Entre elas estão as cidades em que habitamos, os badulaques que usa- mos, os transeuntes nas ruas e mesmo a natureza pura, sem polui- ção, que buscamos no campo, ou em nossos jardins. Sei que é dada alguma atenção às representações na prática de pesquisa atual, na tentativa de descrever mais claramente o contexto em que a pessoa é levada a reagir a um estimulo particu- lar e a explicar, mais acuradamente, suas respostas subseqüentes. Afinal, o laboratório é uma realidade tal que representa uma outra, exatamente como a figura de Magritte dentro de um quadro. Ele é uma realidade em que é necessário indicar “isso é um estimulo” e não simplesmente uma cor ou um som e “isso é um sujeito” e não um estudante de direita ou de esquerda que quer ganhar algum dinheiro para pagar seus estudos. Mas nós devemos tomar isso em consideração em nossa teoria. Por isso, nós devemos levar ao cen- tro do palco o que nós procuramos guardar nos bastidores laterais. Isso poderia até mesmo ser o que Lewin tinha em mente quando escreveu: “A realidade é, para a pessoa, em grande parte, deter- minada por aquilo que é socialmente aceito como realidade” (Le- win, 1948: 57). b) Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura que es tá presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que de- creta o que deve ser pensado. Uma criança nascida hoje em qual- quer país ocidental encontrará a estrutura da psicanálise, por exemplo, nos gestos de sua mãe ou de seu médico, na afeição com que ela será cercada para ajudá-la através das provas e tribula- ções do conflito edípico, nas histórias em quadrinhos cômicas que ela lerá, nos textos escolares, nas conversações com os co- legas de aula, ou mesmo em uma análise psicanalítica, se tiver de recorrer a isso, caso surjam problemas sociais ou educacionais. Isso sem falar dos jornais que ela terá, dos discursos políticos que 37 terá de ouvir, dos filmes a que assistirá etc. Ela encontrará uma resposta já pronta, em um jargão psicanalítico, a todas essas questões e para todas as suas ações fracassadas ou bem- sucedidas, uma explicação estará pronta, que a levará de volta a sua primeira infância, ou a seus desejos sexuais. Nós menciona- mos a psicanálise como uma representação. Poderíamos do mes- mo modo mencionar a psicologia mecanicista, ou uma psicologia que considera o homem como se fosse uma máquina, ou o para- digma científico de uma comunidade específica. Enquanto essas representações, que são partilhadas por tantos, penetram e influenciam a mente de cada um, elas não são pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são re- pensadas, re-citadas e re-apresentadas. Se alguém exclama: “Ele é um louco”, pára e, então, se corrige dizendo: “Não, eu quero dizer que ele é um gênio”, nós imediata- mente concluímos que ele cometeu um ato falho freudiano. Mas essa conclusão não é resultado de um raciocínio, nem prova de que nós temos uma capacidade de raciocínio abstrato, pois nós apenas relembramos, sem pensar e sem pensar em nada mais, a representação ou definição do que seja um ato falho freudiano. Po- demos, na verdade, ter tal capacidade e perguntar-nos por que a pessoa em questão usou uma palavra em vez de outra, sem chegar a nenhuma resposta. É, pois, fácil ver por que a representação que temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato de que nós temos, ou não temos, dada representação. Eu quero di- zer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocor- rem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas g era- ções. Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e ima- gens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento an- terior e que quebra as amarras da informação presente. A atividade social e intelectual é, afinal, um ensaio, ou recital, mas muitos psicólogos sociais a tratam, erradamente, como se ela fizesse perder a memória. Nossas experiências e idéias passadas não são experiências ou idéias mortas, mas continuam a ser ativas, a mudar e a infiltrar nossa experiência e idéias atuais. Sob muitos 38 aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e a clari- dade peculiares das representações - isto é, das representações sociais - deriva do sucesso com que elas controlam a realida de de hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe. De fato, o próprio Jahoda as identificou como propriedades autô- nomas que não são “necessariamente identificáveis no pen- samento de pessoas particulares” (Jahoda, 1970: 42); uma nota a que seu compatriota McDougall identificara e aceitara, meio sécu- lo antes, na terminologia de seus dias: “Pensar, com a ajuda de re- presentações coletivas, possui suas leis próprias, bem distintas das leis da lógica” (McDougall, 192O: 74). Leis que, obviamente, modificam as leis da lógica, tanto na prática, como nos resultados. À luz da história e da antropologia, podemos afirmar que essas re- presentações são entidades sociais, com uma vida própria, comu- nicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se, apenas para emergir novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam através de várias esferas de atividade, onde uma delas terá pre- cedência, como resposta à nossa necessidade de certa coerên cia, quando nos referimos a pessoas ou coisas. Se ocorrer uma mu- dança em sua hierarquia, porém, ou se uma determinada imagem- idéia for ameaçada de extinção, todo nosso universo se pre- judicará. Um acontecimento recente e os comentários que ele pro- vocou podem servir para ilustrar esse ponto. A American Psychiatric Association recentemente anunciou sua intenção de descartar os termos neurose e neurótico para defi- nir desordens especificas. Os comentários de um jornalista sobre essa decisão em um artigo intitulado “Goodbye Neurosis” (Inter- national Herald Tribune, 11 de set de 1978) são muito signifi- cativos: Se o dicionário das desordens mentais não mais aceitar o termo “neurótico” nós, leigos, somente podemos fazer o mes-mo. Consideremos, contudo, a perda cultural: sempre que alguém é chamado de “neurótico”, ou “um neurótico” , isso envolve um ato implícito de perdão e compreensão: “Oh, Mano de tal é apenas um neurótico”, significa “Oh, fulano é excessi- vamente nervoso. Ele realmente não quer atirar a louça na tua cabeça. É apenas o seu leito” . Ou então “Fulano é apenas um neurótico” - signif icando “ele não pode se controlar. Não quer dizer que todas às vezes ele vai jogar a louça em sua ca- beça”. 39 Pelo fato de chamar alguém de neurótico, nós colocamos o peso do ajustamento não em alguém, mas sobre nós mes- mos. É um tipo de apelo à gentileza, a uma espécie de genero- sidade social. Seria também assim se os “mentalmente perturbados” atiras- sem a louça? Pensamos que não. Desculpar Mano de tal pelo fato de citar sua desordem mental - a categoria especif ica de sua desordem - é o mesmo que desculpar um carro por fal- tar-lhe os freios - ele precisa ser consertado o mais rápido pos- sível. O peso do desajustamento será colocado diretamente no desajustamento do carro. Não se solicitará compaixão para a sociedade em geral e naturalmente nenhuma será espera- da. Pensemos também na auto-estima do próprio neurótico, que foi longamente confortado com o conhecimento que ele é “apenas um neurótico” -apenas algumas linhas de segu- rança abaixo de um psicótico, mas muitas acima da linha normal das pessoas. Um neurótico é um excêntrico tocado por Freud. A sociedade lhe concede um lugar honrado, muitas vezes louvável. Conceder-se-ia o mesmo lugar para os que sofrem de “desordens somáticas” ou “desordens depressi- vas mais graves”, ou “desordens dissociativas”? Provavel- mente não. Tais ganhos culturais e perdas, estão, obviamente, relaciona- dos a fragmentos de representações sociais. Uma palavra e a defi- nição de dicionário dessa palavra contêm um meio de classificar indivíduos e ao mesmo tempo teorias implícitas com respeito à sua constituição, ou com respeito às razões de se comportarem de uma maneira ou de outra - uma como que imagem física de cada pessoa, que corresponde a tais teorias. Uma vez difundido e aceito este conteúdo, ele se constitui em uma parte integrante de nós mesmos, de nossas inter-relações com outros, de nossa maneira de julgá-los e de nos relacionarmos com eles; isso até mesmo define nossa posição na hierarquia social e nossos valores. Se a palavra “neurose” desaparecesse e fosse substituída pela palavra “de- sordem” , tal acontecimento teria conseqüências muito além de seu mero significado em uma sentença, ou na psiquiatria. São nos- sas inter-relações e nosso pensamento coletivo que estão implica- dos nisso e transformados. Espero que eu tenha amplamente demonstrado como, por um lado, ao se colocar um signo convencional na realidade, e por outro lado, ao se prescrever, através da tradição e das estruturas 41 40 imemoriais, o que nós percebemos e imaginamos, essas criaturas do pensamento, que são as representações, terminam por se cons- tituir em um ambiente real, concreto. Através de sua autonomia e das pressões que elas exercem (mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que elas não são “nada mais que idéias”), elas são, contudo, como se fossem realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível. 1.3. A era da representação Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos, pressupõem representações. Na realidade, é isso que as caracteriza. “O fato central sobre as interações huma- nas, escreveu Asch, é que elas são acontecimentos, que elas estão psicologicamente representadas em cada um dos participantes” (Asch, 1952: 142). Se esse fato é menosprezado, tudo o que sobra são trocas, isto é, ações e reações, que são não-específicas e, ainda mais, empobrecidas na troca. Sempre e em todo lugar, quando nós encontramos pessoas ou coisas e nos familiarizamos com elas, tais representações estão presentes. A informação que recebemos, e a qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e não possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele. Para alargar um pouco o referencial, nós podemos afirmar que o que é importante é a natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam capazes de influenciar o com- portamento do individuo participante de uma coletividade. É des- sa maneira que elas são criadas, internamente, mentalmente, pois é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra, como o fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais repre- sentações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos ma- teriais, pois eles são o produto de nossas ações e comunicações. Elas possuem, de fato, uma atividade profissional: Eu estou me re- ferindo àqueles pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência ou sacerdotes, isto é, os representantes da ciência, culturas ou re- ligião, cuja tarefa é criá-las e transmiti-las, muitas vezes, infeliz- 41 mente, sem sabê-lo ou querê-lo. Na evolução geral da sociedade, essas profissões estão destinadas a se multiplicar e sua tarefa se tornará mais sistemática e mais explícita. Em parte, devido a isso e em vista de tudo o que isso implica, essa era se tornará conhecida como a era da representação, em cada sentido desse termo. Isso não subverterá a autonomia das representações em rela- ção tanto à consciência do indivíduo, ou à do grupo. Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da co- operação. Representações, obviamente, não são criadas por um individuo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, en- quanto velhas representações morrem. Como conseqüência dis- so, para se compreender e explicar uma representação, é necessá- rio começar com aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu. Não é suficiente começar diretamente de tal ou tal aspecto, seja do com- portamento, seja da estrutura social. Longe de refletir, seja o com- portamento ou a estrutura social, uma representação muitas vezes condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não por- que ela possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque, como tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero, mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, perma- nente, quase imortal. Ao criar representações, nós somos como o artista, que se inclina diante da estátua que ele esculpiu e a adora como se fosse um deus. Na minha opinião, a tarefa principal da psicologia social é es- tudar tais representações, suas propriedades, suas origens e seu impacto. Nenhuma outra disciplina dedica-se a essa tarefa e ne- nhuma está melhor equipada para isso. Foi, de fato, à psicologia social que Durkheim confiou essa tarefa: No que se refere às leis do pensamento coletivo, elas são to- talmente desconhecidas. A psicologia social, cuja tarefa se- ria defini-las, não é nada mais que uma palavra descrevendo todo tipo de variadas generalizações, vagas, sem um objeto definido como foco. O que é necessário é descobrir, pela 42 comparação de mitos, lendas, tradições populares e lin-guagens, como as representações sociais se atraem e se ex- cluem, como elas se mesclam ou se distinguem etc. (Durkheim, 1895/1982: 41-42). Apesar de numerosos estudos posteriores, idéias fragmenta- das e experimentos, nós não estamos mais avançados do que nós estávamos há quase um século. Nosso conhecimento é como uma maionese que azedou. Mas uma coisa é certa: As formas princi pais de nosso meio ambiente físico e social estão fixas em repre- sentações desse tipo e nós mesmos fomos moldados de acordo com elas. Eu até mesmo iria ao ponto de afirmar que, quanto me- nos nós pensamos nelas, quanto menos conscientes somos delas, maior se torna sua influência. É o caso em que a mente coletiva transforma tudo o que toca. Nisso reside a verdade da crença pri- mitiva que dominou nossa mentalidade por milhões de anos. 2. O que é uma sociedade pensante? Nós pensamos através de nossas bocas (Tristan Tzara). 2.1. Behaviorismo como o estudo das representações sociais Vivemos em um mundo behaviorista, praticamos uma ciência behaviorista e usamos metáforas behavioristas. Eu digo isso sem orgulho ou vergonha. Pois eu não vou embarcar em uma critica do que deveria, forçosamente, ser chamado de uma visão do ser hu- mano contemporâneo, pois sua defesa, ou refutação, não é, en- quanto eu posso perceber, interesse da ciência, mas da cultura. Não se defende, nem se refuta, uma cultura. Dito isso, é óbvio que o estudo das representações sociais deve ir além de tal visão e deve fazer isso por uma razão específica. Ela vê o ser humano en- quanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o circun- dam e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nasci- mento, de sua existência corporal, suas humilhações, do céu que está acima dele, dos estados da mente de seus vizinhos e dos po- deres que o dominam: enigmas que o ocupam e preocupam desde o berço e dos quais ele nunca pára de falar. Para ele, pensamentos 43 43 e palavras são reais - eles não são apenas epifenômenos do com- portamento. Ele concorda com Frege, que escreveu: A influência de uma pessoa sobre outra acontece princi- palmente através do pensamento. Alguém comunica um pen- samento- Como acontece isso? Alguém causa mudanças no mundo externo normal que, percebidas por outra pessoa, são consideradas como induzindo-a a apreender um pen- samento e aceitá-lo como verdadeiro. Poderiam os grandes acontecimentos do mundo terem se tornado realidade sem a comunicação do pensamento? E apesar disso, estamos in- clinados a considerar os pensamentos como irreais, porque parecem não possuírem influência sobre os acontecimen- tos, embora pensar, julgar, falar, compreender, são fatos da vida humana. Como um martelo parece muito mais real que um pensamento. Como é diferente o processo de usar um mar- telo do de comunicar um pensamento (Frege, 1977: 38). É isso que os livros e artigos estão continuamente martelando sobre nossa cabeça: os martelos são mais reais que pensamentos; preste atenção a martelos, não a pensamentos. Tudo, em última análise, é comportamento, um problema de fixar estímulos para as paredes de nosso organismo, como agulhas. Quando estudamos representações sociais nós estudamos o ser humano, enquanto ele faz perguntas e procura respostas ou pensa e não enquanto ele processa informação, ou se comporta. Mais precisamente, en- quanto seu objetivo não é comportar-se, mas compreender. O que é uma sociedade “pensante”? Essa é nossa questão e é isso que nós queremos observar e compreender, através do estu- do (a) das circunstâncias em que os grupos se comunicam, tomam decisões e procuram tanto revelar, como esconder algo e (b) das suas ações e suas crenças, isto é, das suas ideologias, ciências e representações. Nem poderia ser diferente; o mistério é profundo, mas a compreensão é a faculdade humana mais comum. Acredita- va-se antigamente que esta faculdade fosse estimulada, primeira e principalmente, pelo contato com o mundo externo. Mas aos poucos nós nos fomos dando conta que ela na realidade brota da comuni- cação social. Estudos recentes sobre crianças muito pequenas mos- traram que as origens e o desenvolvimento do sentido e do pen- samento dependem das inter-relações sociais; como se uma crian- ça chegasse ao mundo primariamente preparada para se relacio- nar com outros: com sua mãe, seu pai e com todos os que a espe- 44 ram e se interessam por ela. O mundo dos objetos constitui apenas um pano de fundo para as pessoas e suas interações sociais. Ao fazermos a pergunta: o que é uma sociedade pensante?, nós rejeitamos ao mesmo tempo a concepção que, creio eu, é pre- dominante nas ciências humanas, de que uma sociedade não pen- sa, ou, se pensa, esse não é um atributo essencial seu. O negar que uma sociedade “pense” pode assumir duas formas diferentes: a) afirmar que nossas mentes são pequenas caixas pretas, dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe infor- mação, palavras e pensamentos que são condicionados de fora, a fim de transformá-los em gestos, juízos, opiniões, etc. De fato, nós sabemos muito bem que nossas mentes não são caixas pretas, mas, na pior das hipóteses, buracos pretos, que possuem uma vida e atividade próprias, mesmo quando isso não é óbvio e quan- do as pessoas não trocam nem energia nem informação com o mundo externo. A loucura, esse buraco negro na racionalidade, prova irrefutavelmente que é assim que as coisas são. b) assegurar que grupos e pessoas estão sempre e completa- mente sob controle de uma ideologia dominante, que é produzida e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras palavras, sustenta-se que eles, como regra, não pensam, ou pro- duzem nada de original por si mesmos: eles reproduzem e, em contrapartida, são reproduzidos. Apesar de sua natureza progres- sista, esta concepção está essencialmente de acordo com a de Le Bon, que afirma que as massas não pensam nem criam; e que são apenas os indivíduos, a elite organizada, que pensa e cria. Desco- brimos aqui, quer gostemos ou não, a metáfora da caixa preta, com a diferença que agora ela está composta de idéias já prontas e não apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas nós não o po- demos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto te- nham sido amplamente discutidos, elas não foram extensivamen te pesquisadas. E isso também foi reconhecido por Marx e Wood: “Em comparação, porém, com outras áreas, o estudo da ideologia foi relativamente negligenciado pelos sociólogos, que em geral se sentem em situação mais confortável estudando a estrutura social e o comportamento, do que estudando crenças e símbolos (Marx & Wood, 1975: 382). O que estamos sugerindo, pois, é que pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e 45 comunicam incessantemente suas próprias e específicas repre- sentações e soluções às questões que eles mesmos colocam. Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas ana- lisam, comentam, formulam “filosofias” espontâneas, não oficiais, que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como plane- jam seu futuro, etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias apenas lhes fornecem o “alimento para o pensamento”. 2.2. Representações sociais É óbvio que o conceito de representações sociais chegou até nós vindo de Durkheim. Mas nós temos uma visão diferente dele - ou, de qualquer modo, a psicologia social deve considerá-lo de um ângulo diferente - de como o faz a sociologia. A sociologia vê, ou melhor, viu as representações sociais como artifícios explanató- rios, irredutíveisa qualquer análise posterior. Sua função teórica era semelhante á do átomo na mecânica tradicional, ou à do genes na genética tradicional; isto é, átomos e genes eram considerados como existentes, mas ninguém se importava sobre o que faziam, ou com o que se pareciam. Do mesmo modo, sabia-se que as re- presentações sociais existiam nas sociedades, mas ninguém se importava com sua estrutura ou com sua dinâmica interna. A psi- cologia social, contudo, estaria e deveria estar pré-ocupada so- mente com a estrutura e a dinâmica das representações. Para nós, isso se explica na dificuldade de penetrar o interior para descobrir os mecanismos internos e a vitalidade das representações sociais o mais detalhadamente possível; isto é, em “cindir as representa- ções”, exatamente como os átomos e os genes foram divididos. O primeiro passo nessa direção foi dado por Piaget, quando ele estu- dou a representação do mundo da criança e sua investigação per- manece, até o dia de hoje, como um exemplo. Assim, o que eu pro- ponho fazer é considerar como um fenômeno o que era antes visto como um conceito. Ainda mais: do ponto de vista de Durkheim, as representa- ções coletivas abrangiam uma cadeia completa de formas intelec- tuais que incluíam ciência, religião, mito, modalidades de tempo e espaço, etc. De fato, qualquer tipo de idéia, emoção ou crença, que ocor- 46 resse dentro de uma comunidade, estava incluído. Isso representa um problema sério, pois pelo fato de querer incluir demais, inclui- se muito pouco: querer compreender tudo é perder tudo. A intui- ção, assim como a experiência, sugere que é impossível cobrir um raio de conhecimento e crenças tão amplo. Conhecimento e crença são, em primeiro lugar, demasiado heterogêneos e, além disso, não podem ser definidos por algumas poucas características ge- rais. Como conseqüência, nós estamos obrigados a acrescentar duas qualificações significativas: a) As representações sociais devem ser vistas como uma ma- neira especifica de compreender e comunicar o que nós já sabemos. Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma significativa. Elas sempre possuem duas faces, que são interdependentes, como duas faces de uma folha de papel: a face icônica e a face simbólica. Nós sabemos que: repre- sentação = imagem/significação; em outras palavras, a represen- tação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma imagem. Dessa maneira, em nossa sociedade, um “neurótico” é uma idéia associada com a psicanálise, com Freud, com o Complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, nós vemos o neurótico como um indivíduo egocêntrico, patológico, cujos conflitos parentais não foram ainda resolvidos. De outro lado, porém, a palavra evoca uma ciência, até mesmo o nome de um herói clássico e um conceito, que, por ou- tras, evoca um tipo definido, caracterizado por certos traços e uma biografia facilmente imaginável. Os mecanismos mentais que são mobilizados nesse exemplo e que constroem essa figura em nosso universo e lhe dão um significado, uma interpretação, obviamente diferem dos mecanismos cuja função é isolar uma percepção pre- cisa de uma pessoa ou de uma coisa e de criar um sistema de con- ceitos que as expliquem. A própria linguagem, quando ela carrega representações, localiza-se a meio caminho entre o que é chama do de a linguagem de observação e a linguagem da lógica; a primeira, expressando puros fatos - se tais fatos existem - e a segunda, ex- pressando símbolos abstratos. Este é, talvez, um dos mais marcan- tes fenômenos de nosso tempo - a união da linguagem e da re- presentação. Deixem-me explicar: 47 Até o inicio do século, a linguagem verbal comum era um meio tanto de comunicação, como de conhecimento; de idéias co- letivas e de pesquisa abstrata, pois ela era igual tanto para o senso comum, como para a ciência. Hoje em dia, a linguagem não-verbal - matemática e lógica - que se apropriou da esfera da ciência, subs- tituiu signos por palavras e equações por proposições. O mundo de nossa experiência e de nossa realidade se rachou em dois e as leis que governam nosso mundo cotidiano não possuem, agora, relação direta com as leis que governam o mundo da ciência. Se nós estamos, hoje, muito interessados em fenômenos lingüísticos, isso se deve, em parte, ao fato de a linguagem estar em declínio, do mesmo modo como estamos preocupados com as plantas, com a natureza e os animais, porque eles estão ameaçados de extin- ção. A linguagem, excluída da esfera da realidade material, re- emerge na esfera da realidade histórica e convencional; e, se ela perdeu sua relação com a teoria, ela conserva sua relação com a representação, que é tudo o que ela deixou. Se o estudo da lin- guagem, pois, é cada vez mais preocupação da psicologia social, isso não é porque a psicologia social quer imitar o que aconteceu com as outras disciplinas, ou porque quer acrescentar uma dimen- são social a suas abstrações individuais, ou por qualquer outros motivos filantrópicos. Isso está, simplesmente, ligado à mudança que nós mencionamos há pouco e que a liga tão exclusivamente ao nosso método normal, cotidiano, de compreender e intercam biar nossas maneiras de ver as coisas. b) Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma concepção bastante estática dessas representações - algo parecido com a dos estóicos. Como conseqüência, representações, em sua teoria, são como o adensamento da neblina, ou, em outras pa- lavras, elas agem como suportes para muitas palavras ou idéias - como as camadas de um ar estagnado na atmosfera da sociedade, do qual se diz que pode ser cortado com uma faca. Embora isso não seja inteiramente falso, o que é mais chocante ao observador contemporâneo é seu caráter móvel e circulante; em suma, sua plasticidade. Mais: nós as vemos como estruturas dinâmicas, ope- rando em um conjunto de relações e de comportamentos que sur- gem e desaparecem, junto com as representações. É o mesmo que aconteceria com o desaparecimento, de nossos dicionários, da pa- lavra “neurótico”, que iria, com isso, também banir certos senti- mentos, certos tipos de relacionamento para com algumas pessoas determinadas, uma maneira de julgá-las e, conseqüentemente, de 48 nos julgarmos a nós mesmos. Eu acentuo essas diferenças com uma finalidade especifica. As representações sociais que me interessam não são nem as das sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa so- ciedade atual, de nosso solo político, cientifico, humano, que nem sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente para se tornarem tradições imutáveis. E sua importância continua a crescer, em proporção direta com a heterogeneidade e a flutua- ção dos sistemas unificadores - as ciências, religiões e ideologias oficiais - e com as mudanças que elas devem sofrer para penetrar a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum. Os meios de comunicação de massa aceleraram essa tendência, multiplica- ram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo entre, de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstra- tas e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos sociais. Em outras palavras, existe uma necessidade continua de re-constituir o “senso comum” ou a forma de compreensão que cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma cole- tividade pode operar. Do mesmo modo, nossas coletividades hoje não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam em realidades compartilhadas, relacionadas com as interaçõesen- tre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fe- nômenos à parte. E a característica especifica dessas representa- ções é precisamente a de que elas “corporificam idéias” em expe- riências coletivas e interações em comportamento, que podem, com mais vantagem, ser comparadas a obras de arte do que a rea- ções mecânicas. O escritor bíblico já estava consciente disso quan- do afirmou que o verbo (a palavra) se fez carne; e o marxismo con- firma isso quando afirma que as idéias, uma vez disseminadas en- tre as massas, são e se comportam como forças materiais. Nós não sabemos quase nada dessa alquimia que transforma a base metálica de nossas idéias no ouro de nossa realidade. Como transformar conceitos em objetos ou em pessoas é o enigma que nos pré-ocupou por séculos e que é o verdadeiro objetivo de nossa ciência, como distinto de outras ciências que, na realidade, inves- tiga o processo inverso. Eu estou bastante consciente que uma distância quase insuperável separa o problema de sua solução, uma distância que bem poucos estão preparados para transpor. 49 Mas eu não deixarei de repetir que se a psicologia social não ten- tar transpor esse valor, ela fracassará em sua tarefa e com isso não somente não conseguirá progredir, mas cessará mesmo de exis- tir.Para sintetizar: se, no sentido clássico, as representações cole- tivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a uma classe geral de idéias e crenças (ciência, mito, religião, etc.), para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados. São fenômenos específicos que estão relacionados com um modo particular de compreender e de se comunicar - um modo que aia tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar essa distin- ção que eu uso o termo “social” em vez de “coletivo”. 2.3. Ciências sagradas e profanas; universos consen- suais e reificados O que nos interessa aqui é o lugar que as representações ocu- pam em uma sociedade pensante. Anteriormente, este lugar seria - e até certo ponto o foi - determinado pela distinção entre uma esfera sagrada - digna de respeito e veneração e desse modo man- tida bastante longe de todas as atividades intencionais, humanas - e uma esfera profana, em que são executadas atividades triviais e utilitaristas. São esses mundos separados e opostos que, em di- ferentes graus, determinam, dentro de cada cultura e de cada indi- víduo, as esferas de suas forças próprias e alheias; o que nós pode- mos mudar e o que nos muda; o que é obra nossa (opus proprium) e o que é obra alheia (opus alienum). Todo conhecimento pressupõe tal divisão da realidade e uma disciplina que estivesse interessada em uma das esferas, era totalmente diferente de uma disciplina que estivesse interessada na outra; as ciências sagradas não teri- am nada em comum com as ciências profanas. Sem dúvida, era pos- sível passar de uma para outra, mas isso somente ocorria quando os conteúdos fossem obscuros. Essa distinção foi agora abandonada. Foi substituída por outra distinção, mais básica, entre universos consensuais e reificados. No universo consensual, a sociedade é uma criação visível, conti- nua, permeada com sentido e finalidade, possuindo uma voz hu- 50 mana, de acordo com a existência humana e agindo tanto como reagindo, como um ser humano. Em outras palavras, o ser huma- no é, aqui, a medida de todas as coisas. No universo reificado, a sociedade é transformada em um sistema de entidades sólidas, básicas, invariáveis, que são indiferentes à individualidade e não possuem identidade. Esta sociedade ignora a si mesma e a suas criações, que ela é somente como objetos isolados, tais como pes- soas, idéias, ambientes e atividades. As várias ciências que es tão interessadas em tais objetos podem, por assim dizer, impor sua autoridade no pensamento e na experiência de cada individuo e decidir, em cada caso particular, o que é verdadeiro e o que não o é. Todas as coisas, quaisquer que sejam as circunstâncias, são, aqui, a medida do ser humano. Mesmo o uso dos pronomes “nós” e “eles” pode expressar esse contraste, onde “nós” está em lugar do grupo de indivíduos com os quais nós nos relacionamos e “eles” - os franceses, os pro- fessores, os sistemas de estado etc. - está em lugar de um grupo diferente, ao qual nós não pertencemos, mas podemos ser força- dos a pertencer. A distância entre a primeira e a terceira pessoa do plural expressa a distância que separa o lugar social, onde nos sentimos incluídos, de um lugar dado, indeterminado ou, de qual- quer modo, impessoal. Essa falta de identidade, que está na raiz da angústia psíquica do homem moderno, é um sintoma dessa ne- cessidade de nos vermos em termos de “nós” e “eles”; de opor “nós” a “eles”; e, por conseguinte, da nossa impotência de ligar um ao outro. Grupos de indivíduos tentam superar essa necessi- dade tanto identificando-se como “nós” e dessa maneira fechando- se em um mundo à parte, ou identificando-se com o “eles” e tor- nando-se os robôs da burocracia e da administração. Tais categorias de universos consensuais e reificados são próprios de nossa cultura. Em um universo consensual, a sociedade é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres, cada um com possibilidade de falar em nome do grupo e sob seu auspício. Dessa maneira, presume-se que nenhum membro possua compe- tência exclusiva, mas cada qual pode adquirir toda competência que seja requerida pelas circunstâncias. Sob este aspecto, cada um age como um “amador” responsável, ou como um “observador curioso” nas “frases feitas” e chavões do último século. Na maioria dos locais públicos de encontro, esses políticos amadores, douto- res, educadores, sociólogos, astrônomos, etc. podem ser encon- trados expressando suas opiniões, revelando seus pontos de vista 51 e construindo a lei. Tal estado de coisas exige certa cumplicidade, isto é, convenções lingüísticas, perguntas que não podem ser fei- tas, tópicos que podem, ou não podem, ser ignorados. Esses mun- dos são institucionalizados nos clubes, associações e bares de hoje, como eles foram nos “salões” e academias do passado. O que eles fazem prosperar é a arte declinante da conversação. E isso que os mantém em andamento e que encoraja relações sociais que, de outro modo, definhariam. Em longo prazo, a conversação (os discursos) cria nós de estabilidade e recorrência, uma base co- mum de significância entre seus praticantes. As regras dessa arte mantêm todo um complexo de ambigüidades e convenções, sem o qual a vida social não poderia existir. Elas capacitam as pessoas a compartilharem um estoque implícito de imagens e de idéias que são consideradas certas e mutuamente aceitas. O pensar é feito em voz alta. Ele se torna uma atividade ruidosa, pública, que satisfaz a necessidade de comunicação e com isso mantém e con- solida o grupo, enquanto comunica a característica que cada mem- bro exige dele. Se nós pensamos antes de falar e falamos para nos ajudarmos a pensar, nós também falamos para fornecer uma reali- dade sonora á pressão interior dessas conversações, através das quais e nas quais nós nos ligamos aos outros. Beckett sintetizou essa situação em Endgame: Clov: O que há aí para me manter aqui? Hamm: Conversação. E o motivo é profundo. Toda pessoa que mantiver seus ouvidos fixos nos lugares onde as pessoas conversam, toda pessoa que lê entrevistas com alguma atenção, perceberá que a maioria das con- versações se referem a profundos problemas “metafísicos” - nasci- mento, morte, injustiça, etc. - e sobre leis éticas da sociedade. Por- tanto, elas provêem um comentário permanente sobre os principais acontecimentos e características nacionais, científicas ou urbanas e são, por isso, o equivalente moderno do coro grego que, emboranão esteja mais no palco histórico, permanece nas sacadas. Num universo reificado, a sociedade é vista como um sistema de diferentes papéis e classes, cujos membros são desiguais. So- mente a competência adquirida determina seu grau de participa- ção de acordo com o mérito, seu direito de trabalhar “como médi- 52 co”, “como psicólogo”, “como comerciante”, ou de se abster desde que “eles não tenham competência na matéria”. Troca de papéis e a capacidade de ocupar o lugar de outro são muitas maneiras de adquirir competência ou de se isolar, de ser diferente. Nós nos confrontamos, pois, dentro do sistema, co- mo organizações preestabelecidas, cada uma com suas regras e regulamentos. Dai as compulsões que nós experienciamos e o sen- timento de que nós não podemos transformá-las conforme nossa vontade. Existe um comportamento adequado para cada circuns- tância, uma fórmula lingüística para cada confrontação e, nem é necessário dizer, a informação apropriada para um contexto de- terminado. Nós estamos presos pelo que prende a organização e pelo que corresponde a um tipo de acordo geral e não a alguma compreensão recíproca, a alguma seqüência de prescrições, não a uma seqüência de acordos. A história, a natureza, todas as coisas que são responsáveis pelo sistema, são igualmente responsáveis pela hierarquia de papéis e classes, para sua solidariedade. Cada situação contém uma ambigüidade potencial, uma vagueza, duas interpretações possíveis, mas suas conotações são negativas, elas são obstáculos que nós devemos superar antes que qualquer coisa se tome clara, precisa, totalmente sem ambigüidade. Isso é conse- guido pelo processamento da informação, pela ausência de envol- vimento do processador e pela existência de canais adequados. O computador serve como o modelo para o tipo de relações que são, então, estabelecidas e sua nacionalidade, podemos ao menos es- perar, é a racionalidade do que é computado. O contraste entre os dois universos possui um impacto psico- lógico. Os limites entre eles dividem a realidade coletiva, e, de fato, a realidade física, em duas. É facilmente constatável que as ciên- cias são os meios pelos quais nós compreendemos o universo reifi- cado, enquanto as representações sociais tratam com o uni verso consensual. A finalidade do primeiro é estabelecer um mapa das forças, dos objetos e acontecimentos que são independentes de nossos desejos e fora de nossa consciência e aos quais nós de- vemos reagir de modo imparcial e submisso. Pelo fato de ocultar valores e vantagens, eles procuram encorajar precisão intelectual e evidência empírica. As representações, por outro lado, restau- ram a consciência coletiva e lhe dão forma, explicando os objetos e acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a qual- quer um e coincidem com nossos interesses imediatos. Eles estão, 53 conforme William James, interessados em: “a realidade prática, realidade para nós mesmos; e para se conseguir isso, um objeto deve não apenas aparecer, mas ele deve parecer tanto interessante como importante. O mundo, cujos objetos não sejam nem interes- santes, nem importantes, nós o tratamos apenas negativa mente, nós o rotulamos como irreal” (W. James, 1890/1980: 295). O uso de uma linguagem de imagens e de palavras que se tor- naram propriedade comum através da difusão de idéias existentes dá vida e fecunda aqueles aspectos da sociedade e da natureza com os quais nós estamos aqui interessados. Sem dúvida - e isso é o que eu decidi mostrar - a natureza específica das representações ex- pressa a natureza especifica do universo consensual, produto do qual elas são e ao qual elas pertencem exclusivamente. Disso resulta que a psicologia social seja a ciência de tais universos. Ao mesmo tempo, nós vemos com mais clareza a natureza verdadeira das ideologias, que é de facilitar a transição de um mundo a outro, isto é, de transformar categorias consensuais em categorias reificadas e de subordinar as primeiras às segundas. Por conseguinte, elas não possuem uma estrutura especifica e podem ser percebidas tanto como representações, como ciências. É assim que elas chegam a interessar tanto à sociologia, como à história. 3. O familiar e o não-familiar 4. Para se compreender o fenômeno das representações sociais, contudo, nós temos de iniciar desde o começo e progredir passo a passo. Até esse ponto, eu não fiz nada mais que sugerir certas re- formas e tentar defendê-las. Eu não poderia deixar de enfatizar de- terminadas idéias, caso quisesse defender o ponto de vista que eu estava sustentando. Mas, ao fazer isso, demonstrei que: a) as representações sociais devem ser vistas como uma “atmosfera”, em relação ao indivíduo ou ao grupo; b) as representações são, sob certos aspectos, espe- cíficas de nossa sociedade. Por que criamos nós essas representações? Em nossas razões de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? Estas são as questões que irei abordar em primeiro lugar. Nós poderíamos 54 responder recorrendo a três hipóteses tradicionais: (1) a hipótese da desiderabilidade, isto é, uma pessoa ou um grupo procura criar imagens, construir sentenças que irão tanto revelar, como ocultar sua ou suas intenções, sendo essas imagens e sentenças distor- ções subjetivas de uma realidade objetiva; (2) a hipótese do dese- quilíbrio, isto é, todas as ideologias, todas as concepções de mun- do são meios para solucionar tensões psíquicas ou emocionais, devidas a um fracasso ou a uma falta de integração social; são, portanto, compensações imaginárias, que teriam a finalidade de restaurar um grau de estabilidade interna; (3) a hipótese do con- trole, isto é, os grupos criam representações para filtrar a informa- ção que provem do meio ambiente e dessa maneira controlam o comportamento individual. Elas funcionam, pois, como uma espé- cie de manipulação do pensamento e da estrutura da realidade, semelhantes àqueles métodos de controle “ comportamental” e de propaganda que exercem uma coerção forçada em todos aqueles a quem eles estão dirigidos. Tais hipóteses não estão totalmente desprovidas de verdade. As representações sociais podem, na verdade, responder a deter- minada necessidade; podem responder a um estado de desequilí- brio; e podem, também, favorecer a dominação impopular, mas impossível de erradicar, de uma parte da sociedade sobre outra. Mas essas hipóteses têm, contudo, a fraqueza comum de serem demasiado gerais; elas não explicam por que tais funções devem ser satisfeitas por esse método de compreender e de comunicar e não por algum outro, como pela ciência ou a religião, por exemplo. Devemos, pois, procurar uma hipótese diferente, menos geral e mais de acordo com o que os pesquisadores desse campo têm ob- servado. Além do mais, por necessidade de espaço, eu não posso nem elaborar mais longamente minhas reservas, nem justificar minha teoria. Deverei expor, sem querer causar mais problemas, uma intuição e um fato que eu creio que sejam verdadeiros, isto é, que a finalidade de todas as representações é tomar familiar algo não-familiar, ou a própria não-familiaridade. O que eu quero dizer é que os universos consensuais são lo- cais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer ris- co, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que 55 contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre de novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal somente é percebida e aceita desde que ela apresente um tipo de vivência e evite o murchar do diálogo, sob o peso da repetição. Em seu todo, a dinâmica das relações é uma dinâmica de familiari- zação, onde os objetos, pessoas e acontecimentossão percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e pa radigmas. Como resultado disso, a memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as ima- gens sobre a “realidade”. Aceitar e compreender o que é familiar, crescer acostumado a isso e construir um hábito a partir disso, é uma coisa; mas é outra coisa completamente diferente preferir isso como um padrão de referência e medir tudo o que acontece e tudo o que é percebido, em relação a isso. Pois, nesse caso, nós simplesmente não registramos o que tipifica um parisi ense, uma pessoa”respeitável”, uma mãe, um Complexo de Edipo etc., mas essa consciência é usada também como um critério para avaliar o que é incomum, anormal e assim por diante. Ou, em outras pala- vras, o que é não-familiar. Na verdade, para nosso amigo, o “homem da rua” (ameaçado agora de extinção, junto com os passeios pelas calçadas, a ser em breve substituído pelo homem diante da televisão), a maioria das opiniões provindas da ciência, da arte e da economia, que se refe- rem a universos reificados, diferem, de muitas maneiras, das opi- niões familiares, práticas, que ele construiu a partir de traços e pe- ças das tradições científicas, artísticas e econômicas e diferem da experiência pessoal e dos boatos. Porque eles diferem, ele tende a pensar neles como invisíveis, irreais - pois o mundo da realidade, como o realismo na pintura, é basicamente resultado das limita- ções e/ou de convenção. Ele, pois, pode experimentar esse sentido de não-familiaridade quando as fronteiras e/ou as convenções desaparecerem; quando as distinções entre o abstrato e o concre- to se tomarem confusas; ou quando um objeto, que ele sempre pensou ser abstrato, repentinamente emerge com toda sua con- cretude etc. Isso pode acontecer quando ele se defronta com um quadro da reconstrução física de tais entidades puramente nacio- nais como os átomos e os robôs, ou, de fato, com qualquer com- portamento, pessoa ou relação atípico, que poderá impedi-lo de reagir como ele o faria diante de um padrão usual. Ele não encon- tra o que esperava encontrar e é deixado com uma sensação de in- completude e aleatoriedade. É desse modo que os doentes men- 56 tais, ou as pessoas que pertencem a outras culturas, nos incomo- dam, pois estas pessoas são como nós e contudo não são como nós; assim nós podemos dizer que eles são “sem cultura”, “bárba- ros”, “irracionais” etc. De fato, todas as coisas, tópicos ou pessoas, banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteira de nosso universo possuem sempre características imaginárias; e pré- ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se torna aparente quando nós estamos em sua presença; quando sua realidade é imposta sobre nós - é como se nos encontrássemos face a face com um fantasma ou com um personagem fictício na vida real; ou como a primeira vez que vemos um computador jo- gando xadrez. Então, algo que nós pensamos como imaginação, se torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver e tocar algo que éramos proibidos. A presença real de algo ausente, a “exatidão relativa” de um objeto é o que caracteriza a não-familiaridade. Algo parece ser visí- vel sem o ser: ser semelhante, embora sendo diferente, ser acessí- vel e no entanto ser inacessível. O não-familiar atrai e intriga as pes- soas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as obriga a tomar explícitos os pressupostos implícitos que são bási- cos ao consenso. Essa “exatidão relativa” incomoda e ameaça, como no caso de um robô que se comporta exatamente como uma criatura viva, embora não possua vida em si mesmo, repentinamente se torna um monstro Frankenstein, algo que ao mesmo tempo fascina e aterroriza. O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é pro- fundamente arraigado. Foi observado em crianças dos seis aos nove meses e certo número de jogos infantis são na verdade um meio de superar esse medo, de controlar seu objeto. Fenômenos de pânico, de multidões muitas vezes provêem da mesma causa e são expressos nos mesmos movimentos dramáticos de fuga e mal- estar. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato como que propicia um sentido de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável. E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que “não é exatamente” como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida. O ato da re-apresentação é uni meio de transferir o que nos perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interi- or,do longínquo para o próximo. A transferência é efetivada pela 57 separação de conceitos e percepções normalmente interligados e pela sua colocação em um contexto onde o incomum se torna co- mum, onde o desconhecido pode ser incluído em uma categoria conhecida. Por isso, algumas pessoas irão comparar a uma “con- fissão” a tentativa de definir e tornar mais acessíveis as práticas do psicanalista para com seu paciente - esse “tratamento médico sem remédio” que parece eminentemente paradoxal a nossa cultura. O conceito é então separado de seu contexto analítico e transporta- do a um contexto de padres e penitentes, de sacerdotes confesso- res e pecadores arrependidos. O método de livre associação é, en- tão, ligado às regras da confissão. Dessa maneira, o que primeira- mente parecia ofensivo e paradoxal, torna-se um processo comum e normal. A psicanálise não é mais que uma forma de confissão. E posteriormente, quando a psicanálise for aceita e se tomar uma re- presentação social de pleno direito, a confissão é vista, mais ou menos como uma forma de psicanálise. Uma vez que o método da livre associação tenha sido separado de seu contexto teórico e te- nha assumido conotações religiosas, ele cessa de causar surpresa e mal-estar e toma, em contraposição, um caráter absolutamente comum. E isso não é, como poderíamos ser tentados a crer, um simples problema de analogia, mas uma junção real, socialmente significante, uma mudança de valores e sentimentos. Nesse caso, como também em outros que nós observamos, as imagens, idéias e a linguagem compartilhadas por um determina- do grupo sempre parecem ditar a direção e o expediente iniciais, com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar. O pensa- mento social deve mais à convenção e à memória do que à razão; deve mais às estruturas tradicionais do que às estruturas intelec- tuais ou perceptivas correntes. Denise Jodelet (1989/1991) anali- sou - em um trabalho infelizmente ainda não publicado - as rea- ções dos habitantes de várias aldeias às pessoas mentalmente de- ficientes que eram colocadas em seu meio. Esses pacientes, devi do à sua aparência quase normal e apesar das instruções que os habi- tantes da aldeia tinham recebido, continuaram a ser vistos como estrangeiros, apesar de sua presença ter sido aceita por muitos e durante muitos anos os pacientes tivessem compartilhado o dia-a- dia e até as casas desses aldeões. Tornou-se então evidente que as representações que eles provocaram derivavam de visões e noções tradicionais e que eram essas representações que determinavam as reações dos aldeões para com eles. 59 58 Contudo, embora nós tenhamos a capacidade de perceber tal discrepância, ninguém pode livrar-se dela. A tensão básica entre o familiar e o não-familiar está sempre estabelecida, em nossos uni- versos consensuais, em favor do primeiro. No pensamento social, a conclusão tem prioridade sobre a premissa e nas relações so- ciais, conforme a fórmula adequada de Nelly Stephane, o veredicto tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa, nós já a julgamos; nós já a classificamose criamos uma imagem dela. Desse modo, toda pesquisa que fizermos e nossos esforços para obter informações que empenharmos somente servirão para confirmar essa imagem. Mais experimentos de laboratório corro- boram essa observação: Os erros usuais que os sujeitos cometem sugerem que exi s- te um fator geral governando a ordem em que determina- das observações são feitas. As pessoas parecem estar inclinadas na direção de confirmar uma conclusão, seja ela sua própria resposta inicial, ou a que lhe seja dada pelo experimentador para ser avaliada. Eles buscam determinar se as premissas podem ser combinadas de tal forma que tornem a conclusão verdadei- ra. Na verdade, isso apenas mostra que a conclusão e as premissas são consistentes e não que a conclusão segue das premissas (Wa- son & Johnson-Laird, 1972: 157). Quando tudo é dito e feito, as representações que nós fabrica- mos - duma teoria cientifica, de uma nação, de um objeto, etc. - são sempre o resultado de um esforço constante de tornar comum e real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um senti- mento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o pro- blema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajusta- mentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que parecia abstrato, torna -se concreto e quase normal. Ao criá-los, porém, não estamos sempre mais ou menos conscientes de nossas intenções, pois as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual (incomum) apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e como qual nós já estávamos fa- miliarizados há tempo e que, por isso, nos dá uma impressão se- gura de algo “já visto” (déjà vu) e já conhecido (déjà connu). Bar- tlett escreve: “Como já foi apontado antes, sempre que o material mostrado visualmente pretende ser representativo de algum obje- to comum, mas contém características que são incomuns (não-fa- 59 miliares) á comunidade a quem o material é apresentado, essas características invariavelmente sofrem transformação em direção ao que é familiar” (Bartlett, 1961: 178). É como se, ao ocorrer uma brecha ou uma rachadura no que é geralmente percebido como normal, nossas mentes curem a ferida e consertem por dentro o que se deu por fora. Tal processo nos confirma e nos conforta; restabelece um sentido de continuidade no grupo ou no indivíduo ameaçado com descontinuidade e falta de sentido. É por isso que, ao se estudar uma representação, nós devemos sempre tentar descobrir a característica não-familiar que a motivou, que esta absorveu. Mas é particularmente importante que o desenvolvimento de tal característica seja observada no mo- mento exato em que ela emerge na esfera social. O contraste com a ciência é marcante. A ciência caminha pelo lado oposto; da premissa para a conclusão, especialmente no campo da lógica, assim como o objetivo da lei é assegurar a priori- dade do julgamento sobre o veredicto. Mas a lei tem de se apoiar em um sistema completo de lógica e provas a fim de proceder de uma maneira que é completamente estranha ao processo e à fun- ção natural do pensamento em um universo consensual ordinário. Ela deve, além disso, colocar certas leis - não envolvimento, repe- tição de experimentos, distância do objeto, independência da au- toridade e tradição - que nunca são totalmente aplicadas. Para tornar possível a troca de ambos os termos da argume n- tação, ela cria um meio totalmente artificial, recorrendo ao que é conhecido como a reconstrução racional dos fatos e idéias. Para superar, pois, nossa tendência de confirmar o que é familiar, para provar o que já é conhecido - o cientista deve falsificar, deve ten- tar invalidar suas próprias teorias e confrontar a evidência com a não-evidência. Mas essa não é toda a histó ria. A lei se tornou mo- derna e rompeu com o senso comum, a ciência se ocupou com su- cesso em demolir constantemente a maioria de nossas perce p- ções e opiniões correntes, em provar que resultados impossíveis são possíveis e em desmentir o conjunto central de nossas idéias e experiências costumeiras. Em outras palavras, o objetivo da ciên- cia é tomar o familiar não-familiar em suas equações matemáticas, como em seus laboratórios. E dessa maneira a ciência prova, por contraste, que o propósito das representações sociais é precisa- mente o que eu já indiquei anteriormente. 60 4. Ancoragem e objetivação, ou os dois processos que geram representações sociais 4.1. Ciência, senso comum e representações sociais Ciência e representações sociais são tão diferentes entre si e ao mesmo tempo tão complementares que nós temos de pensar e falar em ambos os registros. O filósofo francês Bachelard observou que o mundo em que nós vivemos e o mundo do pensamento não são um só e o mesmo mundo. De fato, não podemos continuar desejando um mundo singular e idêntico e lutando por consegui- lo. Ao contrário do que se acreditava no século passado, longe de serem um antídoto contra as representações e as ideologias, as ciências na verdade geram, agora, tais representações. Nossos mundos reificados aumentam com a proliferação das ciências. Na medida em que as teorias, informações e acontecimentos se multi- plicam, os mundos devem ser duplicados e reproduzidos a um nível mais imediato e acessível, através da aquisição de uma forma e energia próprias. Com outras palavras, são transferidos a um mundo consensual, circunscrito e re-apresentado. A ciência era antes baseada no senso comum e fazia o senso comum menos comum; mas agora senso comum é a ciência tornada comum. Sem dúvida, cada fato, cada lugar comum esconde dentro de sua própria banalidade um mundo de conhecimento, determinada dose de cultura e um mistério que o fazem ao mesmo tempo compulsivo e fascinante. Baudelaire pergunta: “Pode algo ser mais encantador, mais frutífero e mais positivamente excitante do que um lugar comum?” E, poderíamos acrescentar, mais coletivamente efetivo? Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em palavras usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma feição familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um processo de pensamento baseado na memória e em conclusões passadas. O primeiro mecanismo tenta ancorar idéias estranhas, redu- zi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto familiar. Assim, por exemplo, uma pessoa religiosa tenta relacionar 61 uma nova teoria, ou o comportamento de um estranho, a uma es- cala religiosa de valores. O objetivo do segundo mecanismo é obje- tivá-los, isto é, transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico. As coisas que o olho da mente percebe parecem estar diante de nossos olhos físicos e um ente imaginário começa a assumir a rea- lidade de algo visto, algo tangível. Esses mecanismos transformam o não-familiar em familiar, primeiramente transferindo-o a nossa própria esfera particular, onde nós somos capazes de com pará-lo e interpretá-lo; e depois, reproduzindo-o entre as coisas que nós podemos ver e tocar, e, conseqüentemente, controlar. Sendo que as representações são criadas por esses dois mecanismos, é essencial que nós compreendamos como funcionam. • Ancoragem - Esse é um processo que transforma algo estra- nho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É quase como que ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço social. Assim, para os aldeões do estudo de Denise Jodelet, os do- entes mentais colocados em seu meio pela associação médica fo- ram
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