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83 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Unidade III 7 A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA ENTRE OS AUTORITARISMOS E A DEMOCRACIA Quem controla o passado, controla o presente. George Orwell Ao longo do período que se estende da década de 1930 a 1960, o Brasil viveu sob regimes ditatoriais com breve intervalo democrático. O pensamento social e, nele, o historiográfico repercutiu essa condição, nem sempre da mesma forma. Na fase da ditadura de Getúlio, com o nacionalismo impregnando tudo, predominaram as versões afinadas com essa matriz ideológica do regime, ainda que se mantivessem latentes as dissidências e já contássemos com as novas visões oferecidas pela tríade dos “intérpretes do Brasil”, como estudamos anteriormente. O avanço da historiografia acadêmica, visível em meados desse período, foi aos poucos abrindo espaço para produções mais contestadoras e menos afinadas com o status quo. É certo que a produção intelectual é fenômeno complexo e não se pode tratar do assunto como se não houvesse pensamentos divergentes em meio a tendências predominantes. Só para ficar com um exemplo disso, a produção historiográfica de cunho factual, conservadora ou dedicada aos interesses de governos e grupos elitistas, continuou a existir ao longo do século XX e até os nossos dias. 7.1 O pensamento autoritário e a historiografia nas décadas de 1930 e 1940 A década de 1930 foi marcada pela intensificação das correntes políticas autoritárias no Brasil que desembocaram na implantação do Estado Novo a partir de 1937. Esse momento histórico foi marcado pelo autoritarismo do Estado, pelo nacionalismo e pelo corporativismo. O regime implantado impregnou o ambiente cultural de uma ideologia nacionalista, que encontrou forte ressonância na produção intelectual da época. A chamada Revolução de 1930 e o Estado Novo colocaram na pauta dos historiadores questões teóricas associadas às relações entre Estado e interesses de classe, e entre o autoritarismo político e o descrédito do Estado liberal no contexto da época. A censura rígida e a forte repressão intimidaram opiniões divergentes, que ficaram latentes até que novos ares soprassem no País, no contexto do final da Segunda Guerra Mundial. O governo de Getúlio Vargas não resistiu às pressões que exigiam uma adequação política do País à onda democrática dali advinda. 84 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Com a redemocratização do País em 1945 e o processo desenvolvimentista em curso na década seguinte, novos temas passaram a exigir a atenção dos historiadores e intelectuais. 7.2 Oliveira Viana e o pensamento autoritário Nos anos 1920, as críticas ao Estado Liberal foram muitas e vieram de diferentes direções. Nessa década, destacou-se a visão teórico-interpretativa de cunho racista e aristocratizante de Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951). Na década seguinte ele se tornou um dos principais teóricos do autoritarismo estadonovista. Esse advogado e historiador nascido em Saquarema, no Rio de Janeiro, foi um dos intérpretes da nossa realidade mais lidos no País entre as duas guerras mundiais, tornando-se um clássico do pensamento social brasileiro. Com posicionamento racista declarado, deu curso às formulações de décadas anteriores. Esse conceitual teórico já estava sendo bastante questionado, mas continuava presente. Mesmo após a divulgação das ideias de Freyre e do avanço de uma perspectiva que conferia mais peso a questões socioculturais nas análises sobre o Brasil, Oliveira Vianna continuava a falar em “raças primitivas”, indivíduos “inferiores e superiores” e “branqueamento”, além de repercutir as ideias eugênicas. Sua obra de estreia, Populações Meridionais do Brasil (1920), é um estudo psicossociológico da Região Sul do País. Nesse trabalho, aponta diferenças entre “raças superiores” e “raças inferiores”, defendendo que mais imigrantes viessem ao País para aumentar o número de arianos puros, bem como a arianização de nosso sangue. A supremacia da raça branca é celebrada e somente se misturando a ela brancos e índios alcançariam um estágio de civilização. A tônica racista continua no seu livro lançado em 1932, Raça e Assimilação, no qual Oliveira Vianna confirma suas ideias arianistas e de seleção eugênica da população. Observação A Eugenia foi criada por Francis Galton (1822 – 1911) como uma ciência destinada ao aperfeiçoamento das raças humanas por meio da seleção das suas melhores características. A estratégia seria promover o cruzamento de indivíduos portadores de boas características e inibir o daqueles que poderiam comprometer a descendência. No limite, se chegaria a eliminar exemplares indesejados, o que fez da Eugenia um fundamento da política de extermínio nazista. A obra de Oliveira Vianna vinculava-se a uma proposta de estado autoritário. Seu pensamento o conduziu ao engajamento político no Estado Novo no qual deu o suporte científico, por assim dizer, à legislação trabalhista promulgada nesse governo. Atuando como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), especializou-se nas teorias do corporativismo, fornecendo os fundamentos teóricos para a sua implantação. Sobre a importância de sua obra no período, a historiadora Ângela de Castro Gomes afirma: 85 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL A década de 1930 registra, dessa forma, uma espécie de desdobramento do pensamento do autor, que, da formulação de diagnósticos sobre os problemas do País, passa a se dedicar à implementação de políticas públicas que visavam enfrentá-los, pela via da intervenção de um Estado autoritário de tipo corporativo. Esses foram os anos em que alcançou maior prestígio, pela ação no MTIC, pelas polêmicas que travou em defesa de suas ideias, pela publicação de novos livros e pela reedição de trabalhos anteriores (GOMES apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2009, p. 150). Essa autora nos ajudará a percorrer o pensamento de Oliveira Vianna e compreendê-lo. O seu conceito chave foi o insolidarismo, em oposição ao solidarismo, teoria filosófica que vincula indivíduo e comunidade na organização social. Em contexto no qual se investigavam as mazelas sociais, políticas e culturais brasileiras, Vianna atribuía à nossa incapacidade de construir formas de solidariedade social modernas autônomas a impossibilidade de fazer surgir uma sociedade urbano-industrial. Daí a necessidade de o Estado assumir o papel de construir o povo e suas formas associativas de expressar a solidariedade social. Isso se consubstanciaria no estado autoritário corporativista. Na contramão de versões otimistas sobre o futuro brasileiro, Vianna ofereceu uma visão mais “realista” do País, cujos males estariam na inexistência de uma sociedade e de um governo modernos. Solucionar essa condição exigia a instauração de um governo forte, autoritário. Dessa forma, o Brasil engrossava a corrente dos países de “modernização retardatária” que no período entre guerras desacreditavam do Estado liberal e se encaminhavam para governos interventores e autoritários. O projeto de organização corporativa do Estado e da sociedade brasileira proposto por Vianna situa-se nesse contexto. Para esse teórico do Estado Novo, o mundo do trabalho era particularmente propício à “organização do povo” na forma de corporativismo de Estado. Sua visão sobre as corporações, como forma de regular e coordenar setores econômicos e sociais das sociedades modernas, considerava que os interesses do Estado-nação se combinassem com os empregadores e empregados. Como explica Ângelade Castro Gomes: Em sua proposta, o sindicato precisava ser único e por ofício (e não empresa), exercendo prerrogativas de autoridade pública, o que o tornava sujeito à tutela estatal. Devido a tais características, seus podres representativos iam além de seu corpo de associados, garantindo-lhe, por exemplo, a capacidade de firmar acordos coletivos, de atuar como ator coletivo no espaço público. Esse monopólio de representação e o poder de regulamentação davam-lhe um “direito” de tributação, que também ia além de seu corpo de associados, o que foi entendido como crucial para deslanchar a proposta, consolidando uma elite dirigente e atraindo trabalhadores para o sindicato. O sucesso desse modelo de sindicalismo corporativista, assim, era visto como tarefa precípua e condição básica para o próprio exercício das funções de um Estado moderno no Brasil (GOMES apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2009, p. 157-58). 86 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Essas ideias estiveram nas bases da organização sindical brasileira formulada durante o Estado Novo e que se prolonga em nossos dias. Isso demonstra o alcance do pensamento de Oliveira Vianna que se insere em um determinado modo de pensar dessa época. Em meados da década de 1940, com os fracassos militares políticos e ideológicos dos regimes autoritários europeus no contexto do final da Segunda Guerra Mundial, novas formas de pensamento começam a se firmar no panorama internacional e também no Brasil. Nesse momento Oliveira Vianna publica Instituições Políticas Brasileiras (1949), livro no qual demonstra um abandono progressivo de suas teses deterministas, biológicas ou climáticas e um direcionamento para perspectivas mais culturalistas e de valorização do ambiente social. Antes de aprofundar as formas de pensamento então surgidas, vamos nos deter um pouco mais no contexto intelectual do Estado Novo buscando ampliar nossa visão sobre as formas de se compreender a História nesse período. 7.3 O Estado Novo, os intelectuais e a cultura A defesa do estado autoritário que se fortalecera nos anos 1920 encontrava ressonância na escalada europeia dos regimes nazifascistas que causavam admiração em diversos intelectuais no Brasil, assim como em outros países, no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. A Crise de 1929 e seus efeitos no Brasil tornaram mais intensa a ideia de um Estado forte como solução para conduzir a modernização econômica do País. A década de 1930, iniciada com o movimento que colocou Getúlio Vargas no poder, trouxe radicalização política crescente tanto à direita, com o Integralismo, quanto à esquerda. Neste último caso, chegou-se a assistir à Intentona Comunista (1934) organizada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) do Partido Comunista. A perseguição às manifestações operárias e as perseguições políticas indicavam a intensificação das tensões e abriam caminho para o surgimento de um regime autoritário. Isso acabou por acontecer em 1937 com a instalação da ditadura do Estado Novo. O regime político implantado assumiu a forma de um autoritarismo corporativista que indicou os rumos da modernização econômica. Conduziu-se o avanço do processo de industrialização com forte contenção e controle do operariado, configurando-se uma “modernização conservadora”. Modernizava-se a economia no rumo da industrialização e mantinham-se as estruturas políticas e sociais conservadoras que afastavam a participação popular do poder. A regulação do mercado de trabalho passou a contar com o corporativismo sindical – cujas bases estudamos na parte anterior desta unidade – e com uma legislação trabalhista. Esta consolidou leis promulgadas antes, atendendo reivindicações do movimento operário e, ao mesmo tempo, promovendo a regulação e o controle do mercado de trabalho. A economia organizou-se em bases nacionalistas, com ênfase na indústria de base. Procurou-se romper a extrema dependência da exportação agrícola. A intervenção econômica do Estado foi o modelo econômico criado. 87 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Assistimos também nessa época a um forte aparelhamento e a uma intensa burocratização do Estado, com a criação de ministérios, institutos e outros organismos oficiais. Avançava-se no sentido da unificação da administração pública e do mercado nacional. Defendia-se a ditadura como a forma de se alcançar o desenvolvimento econômico e social. Na verdade, do ponto de vista da retórica oficial do regime, estaríamos vivendo uma “democracia social” na qual o governo assumiria a tarefa de garantir esse avanço para a nação. Havia, nisso, uma intensa identificação entre Estado e Nação que nos aproximava do fascismo que se consolidava na Europa. A inexistência de partidos políticos e de representação social se justificava pelo fato de que o Estado teria o papel de traduzir diretamente os interesses e as necessidades do povo, sem intermediação da classe política. O corporativismo, instaurando a “colaboração entre as classes”, seria a maneira de se alcançar a “harmonização social”. Certamente, esse discurso servia para justificar o Estado de exceção vigente que se valia da repressão intensa exercida pelo governo e da forte censura para manter as oposições e dissidências amordaçadas. A intensa propaganda ideológica feita pelo Estado Novo a partir do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável também pela censura, visava garantir uma ampla adesão ao regime. O Estado Novo se anunciava também como o Estado Nacional. A ideologia nacionalista permeou todas as suas realizações. A nacionalidade brasileira, antes apenas um projeto, agora já se estaria consolidando. O Estado Novo iria retomar a construção da nacionalidade e sedimentar a “raça brasileira” a partir do amálgama das três raças fundadoras. Não por acaso, tivemos nesse período uma grande aceitação de Casa-Grande & Senzala, cuja interpretação servia de sustentáculo para essa ideia. No escopo da nacionalidade a ser forjada, o Estado Novo visava construir o homem-novo brasileiro transmudando as características que comprometiam nossa condição como povo. Nossa composição racial deficiente havia nos tornado um povo mestiço, indolente e preguiçoso. A imagem do Jeca-Tatu criada por Monteiro Lobato em Urupês (1918) era um triste retrato do brasileiro. Na década de 1930 não foram poucas as propostas de mudar essa condição do brasileiro de forma que o tornasse forte, vigoroso e até mesmo eugenizado. Cumpre lembrar o discurso da Educação Física da época. Tornada obrigatória em todos os níveis de ensino pela Constituição de 1937, sua prática deveria auxiliar a “construção de indivíduos fortes, sadios, robustos e cheios de vigor” (BERCITO, 1991, p. 115). Sua disseminação pelo conjunto da sociedade conduziria à superação de nossa condição racial deficiente, produto da miscigenação, encaminhando a construção de uma nação vigorosa. Interessava ao Estado Novo, preocupado com a construção do cidadão trabalhador no escopo de uma ideologia do trabalho, fazer do brasileiro um trabalhador eficiente, saudável, produtivo e disciplinado. O Estado Novo criou diversos órgãos e instituições de educação e cultura que abrigaram vários intelectuais em seus quadros, alguns provenientes do modernismo. O Ministro da Educação, Gustavo Capanema, cercou-se de vários deles, tendo, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade como seu chefe de gabinete. Mário de Andrade trabalhou no Instituto Nacional do Livro e colaborou no Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (Sphan), órgão então dirigido por Rodrigo Melo Franco Andrade. Nem todos, no entanto, atuaram próximos ao governo. Graciliano Ramos, Mário Pedrosa ouCaio Prado Junior, por exemplo, mantiveram-se distantes e engajados em correntes de oposição que resistiam durante a ditadura. 88 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Para entender a participação dos intelectuais nos quadros culturais institucionais do Estado Novo, mesmo daqueles que não comungavam com a política do regime, é preciso ir além da ideia de cooptação. Na verdade, havia um terreno comum no reconhecimento da existência de uma cultura nacional latente a ser identificada, missão para a qual os intelectuais julgavam-se destinados, ou seja: A participação de intelectuais de peso na administração pública e na realização de trabalhos patrocinados pelo governo durante o Estado Novo é fenômeno complexo. Sua explicação não conduz diretamente à existência de mecanismos de cooptação e envolvimento orgânico desses intelectuais no regime implantado. Algumas vezes, as relações pessoais facilitaram as aproximações, como por exemplo, a amizade entre Capanema e Melo Franco e Carlos Drummond de Andrade, todos mineiros. Mas há que se considerar também que, de alguma forma, havia um terreno comum de identificação que possibilitava a aproximação entre os intelectuais e o Estado naquela época. Isso ia além de uma possível crença na superioridade das atividades intelectuais e artísticas em relação às questões políticas conjunturais. É possível encontrar uma convergência na concepção comum a ambos, de que havia uma necessidade premente de empreender a construção nacional, tarefa que deveria caber às elites. Nesta fórmula, em que a construção nacional se faria “por cima”, à nossa elite intelectual seria reservado o papel de traduzir a expressão cultural inscrita na sociedade brasileira e interpretá-la como cultura nacional. Tendo como horizonte comum a construção da nacionalidade brasileira, os projetos dos intelectuais se imbricavam nos institucionais que muitas vezes ajudavam a formular (BERCITO, 1999, p. 85-6). Daniel Pécaut (1990) considera que entre as décadas de 1920 e 1940 uma geração de intelectuais brasileiros acreditava que lhes caberia grande responsabilidade na construção nacional, institucionalmente, e no reconhecimento da nacionalidade que já existia inscrita na realidade. Em face da realidade brasileira, cujo povo seria ignorante de seu destino, com as classes sociais ainda em formação, os intelectuais teriam o papel de formular um “projeto nacional” para o País. Caberia à elite intelectual interpretar os sinais dessa nação subjacente ao qual o locus principal seria a cultura popular a ser transformada em nacional. Mário de Andrade é citado como exemplo desse movimento, com sua busca das raízes da brasilidade no folclore, nas modinhas, no patrimônio histórico e nas tradições populares em geral, como foi visto anteriormente (PÉCAUT, 1990, p. 38). Os intelectuais, de acordo com Pécaut, projetavam-se acima do social e assumiam uma vocação dirigente. Aproximavam-se do Estado, com o qual assumiram conjuntamente a construção nacional “pelo alto”. Se o Estado constrói a nação, os intelectuais no Brasil aliaram-se a essa tarefa colocando-se perante a sociedade em posição homóloga à do Estado. A recíproca era verdadeira. O Estado apresentava- se como responsável por identificar e trabalhar em prol da identidade cultural brasileira e, para isso, recorria aos intelectuais. A ideia da existência de uma cultura nacional a ser desvendada foi o ponto de aproximação de intelectuais, entre matizes diversos, e o Estado Novo (PÉCAUT,1990, p. 57). 89 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL 7.4 O nacional e a formação de uma cultura histórica Eric Hobsbawn, em Nações e Nacionalismos desde 1780, classifica em três fases os momentos de surgimento de ideias nacionais nos países e do reconhecimento da existência de uma cultura nacional. De início, o sentimento nacional se expressaria em uma cultura literária e folclórica. Na sequência, surgiriam pioneiros e militantes da ideia nacional. Por fim, surgiriam programas nacionalistas com sustentação de massa (HOBSBAWN, 1990, p. 20-2). Seguindo essa análise, podemos considerar que estaríamos no Estado Novo nesse terceiro momento. Nessa fase, em que estava em curso a modernização dos aparelhos de Estado, seria necessária a produção de uma nova legitimidade para garantir a identificação do povo com a Nação. A fim de produzir uma “consciência nacional”, o Estado Novo empenhou-se na comunicação de massa para a propaganda ideológica do regime e formulou um projeto educacional alinhado com esses propósitos. A produção de um “passado comum” estava também relacionada a esses objetivos. Na verdade, de acordo com Ângela de Castro Gomes (1996), nação e nacionalismo se configuram como construções políticas estatais para as quais concorrem de forma fundamental os componentes culturais. Nessa visão, a nação se define internamente a partir de “elementos integradores” e externamente por meio de “elementos diferenciadores”. Esses elementos podem ser encontrados não apenas em componentes culturais comuns como a língua mas também na consciência étnica, em tradições religiosas ou em um “passado histórico comum” (GOMES, 1996a, p. 18). É nesse último aspecto que se fixam as reflexões da autora que iremos acompanhar. Para essa historiadora, na política cultural do Estado Novo tivemos o estabelecimento de uma cultura histórica com reflexos até hoje. Até esse momento os historiadores estavam integrados numa categoria mais ampla de intelectuais do pensamento social brasileiro. Até a década de 1940, médicos, literatos, sociólogos ou engenheiros estavam envolvidos da mesma forma nos dilemas da realidade brasileira. Nesse momento, assiste-se a uma especialização da história como área diferenciada. Para Ângela de Castro Gomes, “a história lutava para demarcar sua especificidade, distinguindo-se e aproximando-se ao mesmo tempo da literatura e dos ensaios político-sociais” (GOMES, 1996a, p. 22). Na verdade, a ligação entre historiografia e Estado já marcara a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Ângela destaca que, assim como D. Pedro II, Getúlio Vargas visava lograr a legitimação de seu poder chegando mesmo a exercer a mesma função de mecenato que seu antecessor. Mas o momento histórico era outro. Não se tratava mais de um esforço pioneiro do Estado, pois já existia uma acumulação de representação e memória coletiva, que já definiam uma nação. Tratava-se, agora, sobretudo, da “recriação de uma tradição coletiva entendida como nacional” (GOMES, 1996a, p. 17). Para delinear os contornos dessa cultura histórica e as representações construídas sobre a existência de um passado comum dos brasileiros, Ângela de Castro Gomes analisou dois periódicos da época. Acompanhou artigos publicados de 1941 a 1945 no Suplemento Literário do jornal A Manhã e na Cultura Política, revista mensal de estudos brasileiros do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dois veículos oficiais de divulgação da ideologia do regime. 90 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III A política cultural do Estado Novo visava à produção do apoio de massas para o nacionalismo estatal. Não se tratava exatamente de “manipulação de massas” em uma aproximação simplista, mas, como alerta Ângela de Castro Gomes, os elementos simbólicos utilizados pela política estatal estariam vinculados a tradições e valores preexistentes, o que facilitava sua aceitação. A busca de uma “origem comum”, em um “passado único” no contexto de uma história nacional, auxiliaria na construção de uma homogeneidade política(GOMES, 1996a, p. 21). Dessa forma, como nos deixa claro a autora: Projetar o Estado nacional significa construir uma “nova” nação, o que se faz através de um “novo” modelo técnico administrativo de Estado. É exatamente nesses períodos que a atenção dos que dirigem o aparelho de Estado busca uma “nova” legitimidade, voltando-se para a mobilização de recursos simbólicos considerados essenciais, e de forma alguma secundários ou reflexos da realização de seus projetos, sobretudo, quando estes assumem uma perspectiva de longo prazo. Era o que ocorria no Estado Novo, que, buscando demarcar “seu” lugar na história, precisava refazer o próprio sentido da história do País. Para tanto, tornava-se imprescindível a ação de especialistas capazes de recuperá-la e divulgá-la não só através do sistema de educação formal, que então se ampliava enormemente para os parâmetros da época, como também através de uma política cultural destinada a um público muito mais amplo, e em princípio fora do alcance desse sistema escolar. Projetar um novo Estado era, assim, investir na produção de lealdade-legitimidade, que englobaria os futuros cidadãos e, sem dúvida, aqueles já definidos (ou ao menos potencialmente definidos) como tais. O futuro não se faz sem o passado, e este é um ato humano de rememoração. Seria básica a realização de um processo de “narração” da história, que identificasse os acontecimentos, os personagens e os “sentidos” e seus atos. Postulamos que o Estado Novo foi um momento particularmente rico para a delimitação de uma construção intelectual da história do Brasil, o qual, por sua competência e pelo volume de recursos investidos, foi capaz de deixar marcas profundas em nossa tradição historiográfica (GOMES, 1996a, p. 22-3). Podemos considerar que, se nos momentos de implementação de grandes projetos políticos há uma tendência a se voltar ao passado para se “reescrever” a história, isso também se observou no Estado Novo. Nesse momento, em que se pretendia construir uma “nova” nação, com a criação de uma consciência cívica, capaz de conferir legitimidade e adesão coletiva ao regime instalado, visava-se investir na constituição de uma narrativa da história do Brasil bastante específica lançando-se os fundamentos de uma cultura histórica nesse período. 91 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Lembrete O regime implantado por Getúlio Vargas a partir de 1937, ao ser chamado de Estado Novo ou Estado Nacional, já deixava claros os fundamentos de seu escopo ideológico. Anunciava um novo tempo procurando se vincular ao que era novo, moderno. Sublinhava, com isso, a ruptura com o passado político do País e com a forma econômica tradicional. Ao mesmo tempo, buscava na tradição e nos valores nacionais sua legitimação. Se o Estado Novo apregoava que encaminharia o progresso social do País sob a tutela do Estado sem a intermediação entre o povo e o regime, prescindindo de partidos políticos, isso não se faria sem bases sociais. Estas seriam encontradas nas tradições profundas da sociedade. Para trazê-las à luz, seria necessária a existência de “intérpretes”, ou seja, intelectuais, como literatos, filósofos, historiadores ou artistas. Na explicação de Ângela de Castro Gomes, mais uma vez, a figura do intelectual aparece vinculada ao aparelho de estado na tradução das características definidoras da nossa nacionalidade. O esforço de recuperação do passado empreendido pelo Estado Novo tinha coloração conservadora. Tratava-se de buscar no passado explicações para o presente, dando-lhe significado e justificativa. Isso levou a algumas iniciativas governamentais que ressaltaram a presença da História no panorama cultural e educacional do período. Na Lei Orgânica do Ensino Secundário (1942), elaborada sob o comando do ministro Gustavo Capanema, manteve-se a separação entre História Geral e História do Brasil que havia sido criada na Reforma Francisco Campos de 1931. Foi estabelecido o ensino cíclico pelo qual, no Secundário, seriam aprofundados os temas tratados no Ensino Elementar. Nas primeiras séries desse nível, as biografias seriam privilegiadas para auxiliar a formação da consciência cívica dos alunos por meio de exemplos. Observação A História, como disciplina escolar, surgiu no Brasil relacionada à produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que exercia influência nos programas de ensino do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Esses programas balizavam o que se ensinava em todas as províncias do Império. A Reforma Francisco Campos (1931) procedeu a uma tentativa de organização dos programas de ensino em nível nacional. Órgãos relacionados à História e vinculados ao Estado foram criados dando curso à oficialização de uma narrativa histórica. É o caso de museus como o de Petrópolis e do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (Sphan). Subsídios foram oferecidos a 23 associações históricas que deles se beneficiaram. As comemorações oficiais de cunho histórico se multiplicaram em meio aos frequentes eventos de massa, organizados para demonstrar a adesão coletiva ao regime. Como exemplos, podemos destacar: 92 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Centenário de Morte de José Bonifácio; 100 anos de Fundação do Colégio D. Pedro II; Centenário da Maioridade de D. Pedro II; e 4º Centenário da Fundação da Companhia de Jesus (GOMES, 1996a, p. 146). Ao longo das décadas de 1930 e 1940, o mercado editorial se expandiu, sob os auspícios do governo, com a Imprensa Nacional, por exemplo, ou de forma independente. No âmbito da historiografia, alguns historiadores e intelectuais que se aproximaram de temas históricos se destacaram. Na revista Cultura Política encontramos alguns deles, como Nelson Werneck Sodré, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo ou Hélio Viana. A eles podemos acrescentar Afonso Taunay, Sérgio Milliet, Basílio de Magalhães, Cassiano Ricardo e Alfredo Ellis. Em seu conjunto, como nos indica Ângela de Castro Gomes, os principais temas tratados foram o pacto colonial, as missões religiosas, a atividade bandeirante, as questões de fronteiras, os movimentos separatistas do período imperial, e começaram a aparecer estudos sobre o café. Chama a atenção nessa listagem de temas a ênfase no processo de consolidação do território nacional como lastro para a construção de uma narrativa histórica para o País. No longo percurso de construção da nacionalidade brasileira, com a frequente recorrência à história, chegava-se a um importante ponto de inflexão. De acordo com o discurso estadonovista, a “nação já fora criada, possuindo referências geográficas, históricas e culturais” (GOMES, 1996a, p. 208). A própria identidade brasileira já não estava projetada para o futuro, para o branqueamento da raça. A mestiçagem seria a partir daí nossa marca singular como povo e nação. No escopo do projeto estadonovista, a recuperação do passado seria feita a partir da história do povo brasileiro. Esta seria encontrada com o estudo das tradições e do folclore desse povo. Caberia aos especialistas reunir esses elementos para dotar o povo brasileiro de uma história única, nacional. Com esse discurso que apontava para aspectos que remetiam à unidade do povo e da nação, dissolviam-se as desigualdades existentes, o que se ajustava perfeitamente à ideologia de harmonia social apregoada pelo Estado Novo. Da mesma forma, nesse período, consolidaram-se duas ideias relacionadas igualmente diluidoras das diferenças reais encontradas na sociedade brasileira. São elas a ideia das três raças formadoras do povo brasileiro e a da existência de uma democracia racial no País. A mestiçagem seria a traduçãode uma sociedade sem conflitos expressa na democracia racial. Confirmava-se, com isso, que o Estado Novo teria uma forma peculiar de democracia. Se não vivêssemos sob uma democracia política, teríamos, em contrapartida, uma forma mais desejável: a democracia social. Esse período foi crucial para a consolidação da ideia da existência de uma democracia racial no Brasil. Com efeito, Casa-Grande & Senzala invertera radicalmente a visão sobre a mestiçagem como causadora de danos irreparáveis à formação da nacionalidade brasileira. Ao contrário, a partir dessa obra, os brasileiros poderiam se orgulhar de sua original civilização tropical e mestiça, daí deduzindo nossa singularidade como povo. Não se tratava, é certo, de promover sentimentos igualitários quanto às raças formadoras, mas de equacionar a composição étnica e racial, de acordo com os parâmetros da época, como características singulares do povo brasileiro. De toda forma, nessa visão, a elite branca ainda estava no centro de tudo e teria absorvido traços culturais dos outros dois grupos, do africano em especial. 93 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Para deixarmos clara de que forma a visão de história produzida no Estado Novo marcou a historiografia brasileira, podemos, mais uma vez, acompanhar Ângela de Castro Gomes, que diz: [...] vale a pena ressaltar a versão de história do Brasil que o Estado Novo sanciona e propaga. Tratando-se de um Estado autoritário, centralizador e estranho aos procedimentos eleitorais, nada mais congruente do que uma leitura de nossa história que privilegiasse todos esses aspectos e denunciasse as experiências liberais da Primeira República ou os arroubos “demagógicos”, ainda que fossem os da princesa Isabel. Nada mais natural também do que uma grande ênfase em nossas tradições de luta – nunca de conquista – no momento em que o mundo era abalado por uma Segunda Guerra Mundial. Uma história do Brasil semelhante a uma epopeia, encenada por um povo “bom e pacífico”. O interessante é de que forma essa história tem como ator principal uma “raça mestiça”, ela mesma fonte de resistência e coragem para a luta, e explicação para uma igualdade “despolitizada”, pois realizada no chão da mestiçagem dos corpos e das almas: das cores que matizavam nossa sociedade, tornando-a “democrática”. Democracia, por conseguinte, social e não política, mas que se realizava por meio de um regime político que era a República. Essa raça mestiça, lutadora e pacífica era, portanto, democrática e republicana. Jesuítas, índios, negros escravos ou não, bandeirantes, soldados, brancos senhores, literatos, imperadores, presidentes e deputados, todos integravam-se no enredo que culminava na grandeza e na unidade da pátria. Esta era uma história gloriosa, sem diversidades ou desigualdades, que glorificava os heróis e não se esquecia do povo comum. Era, nesse sentido, uma história político-militar e uma história econômico-social, abarcando aspectos até da vida cotidiana dos brasileiros. Mais interessante ainda, entretanto, é refletir sobre como essa história continua. Ela foi solidamente cultivada e ainda hoje não é tarefa fácil narrar uma “outra” história. Uma história onde o Brasil não tenha uma cara, mas muitas, diversas e desiguais (GOMES, 1996a, p. 209-10). 7.5 O Serviço do Patrimônio Histórico Nacional A criação do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (Sphan), em 1937, é um caso emblemático que mostra como um projeto de intelectuais ligados ao Modernismo se materializou durante o Estado Novo. O surgimento desse órgão conjugou a relação de intelectuais com o Estado, nem sempre alinhados politicamente, mas tendo em comum o reconhecimento da existência de uma tradição histórica nacional a ser preservada. Interessante notar a ambiguidade do Estado Novo na questão cultural, que era semelhante ao posicionamento dos intelectuais da geração modernista. Ao mesmo tempo que esse regime anunciava 94 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III o novo e o moderno, dedicava-se ao reconhecimento das raízes da cultura brasileira. Assim, tivemos no mesmo momento histórico a implantação de um edifício icônico da arquitetura modernista, a sede do Ministério da Educação e Saúde (MES), o mesmo ministério criador do Sphan, que se dedicou fortemente a preservar obras arquitetônicas do passado. O edifício Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, inaugurado em 1945, originalmente como sede do Ministério da Educação e Saúde (MES). Projeto de Lucio Costa, à frente de equipe que incluiu, entre outros, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, os dois em início de carreira, com assessoria de Le Corbusier. Conforme a lei que o criou, a finalidade do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional seria “promover, em todo o País e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional”. Nesse documento, esse patrimônio se definia como “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Incluíam-se, também, nessa definição “monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana” (BRASIL, 1937). A iniciativa pela criação de um órgão nacional de defesa do patrimônio histórico apoiou-se em estudos anteriores feitos na década de 1920, por Mário de Andrade, quando este esteve à frente do Departamento de Cultura de São Paulo. Após sua criação no Ministério de Gustavo Capanema, o Sphan foi dirigido durante décadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade, que traçou os rumos do órgão norteados pelos valores de tradição e de civilização, com ênfase em sua relação com o passado. Nessa visão, os bens culturais classificados como patrimônio deveriam fazer a mediação entre os heróis nacionais, os personagens históricos, os brasileiros de ontem e os de hoje. Essa apropriação do passado era concebida como um instrumento para educar a população a respeito da unidade e da permanência da nação (FGV – CPDOC, 2016). Cumpre lembrar que, historicamente, a noção da existência de um patrimônio histórico surgiu relacionada à ideia de pertencimento a uma nação, o que tornava a sua valorização com a criação do Sphan no contexto do Estado Novo – ou Estado Nacional – especialmente significativa. Como nos esclarece um verbete da página do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas (CPDOC): Os chamados patrimônios históricos e artísticos têm nas modernas sociedades a função de representar simbolicamente a identidade e a memória da nação. O pertencimento a uma comunidade nacional é produzido com a ideia de propriedade (daí a palavra “patrimônio”) sobre um conjunto de bens, relíquias, monumentos, cidades históricas, entre outros (FGV – CPDOC, 2016). Dessa forma, a primeira instituição oficial criada para proteger o patrimônio histórico brasileiro se concretizou em momento singular da construção da nacionalidade brasileira. No âmbito do Estado Novo, a memória do passado e seu legado passavam a figurar no escopo da nacionalidade pretendida. A política do órgão levada a efeito nas décadas seguintes vai deixar clara a visão predominante, que será 95 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL a valorização de exemplares de valor artístico excepcional e de obrasque servissem para fazer perdurar a memória das elites. Em seus primeiros anos, o Sphan contou com a colaboração de intelectuais ligados ao modernismo para realização de inventários e pesquisas de bens a serem protegidos pelo tombamento. Dentre eles podemos destacar Lucio Costa, Gilberto Freyre e Oscar Niemeyer. Durante o período em que o Sphan foi dirigido por Rodrigo Melo Franco, os tombamentos incidiram, acima de tudo, sobre o Barroco mineiro, destacando exemplares de arte e arquitetura barrocos, especialmente os religiosos. Isso correspondia, sobretudo, à ideia do barroco como uma manifestação artística que, adaptada em nosso País, traduzia uma identidade brasileira que se anunciava na colônia. Nos primeiros tempos do Sphan também foram tombados edifícios de “pedra e cal”, como diversos fortes e igrejas litorâneas. Além desses exemplares coloniais que foram o maior número tombado por décadas, a política inicial de tombamento selecionou remanescentes bandeiristas paulistas construídos em taipa de pilão. A política empreendida pelo Sphan nos primeiros tempos anunciou muito do que seria a prática classista desse serviço por décadas. Este conduziu um inventário das grandes obras relacionadas aos feitos e ao modo de vida das elites brasileiras. A hegemonia dos arquitetos na formulação da política de preservação conduziu à predominância dos bens arquitetônicos entre os tombados, em detrimento dos arquivos, bibliotecas e outros lugares de memória. O patrimônio tombado resultante foi um conjunto de bens representativo de “todas as frações da classe dirigentes brasileira, em seus ramos público e privado, leigo e eclesiástico, rural e urbano, afluente e decadente”. Essa política produziu o seu reverso: a amnésia da experiência dos grupos populares e das populações negra e indígena (MICELI, 2001, p. 360). Mais recentemente tem havido uma maior preocupação com a inserção de outros momentos históricos e grupos sociais, e com a preservação de bens imateriais, atualizando a perspectiva tradicional do órgão às novas demandas sociais. Saiba mais O Sphan, desde sua criação, foi transformado em Secretaria, Departamento e, atualmente, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. No endereço digital você encontra muitas informações sobre processos de tombamento e conceitos relacionados ao patrimônio histórico material e imaterial. Esse portal define que: “cabe ao Iphan proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras”. Para saber mais acerca do assunto, acesse: <http://portal.iphan.gov.br/>. 96 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III 7.6 A História na universidade O Brasil, diferentemente de outros países latino-americanos, não tinha até essa altura uma tradição universitária. Alguns poucos e prestigiosos cursos de direito, medicina ou engenharia funcionavam como celeiros de intelectuais que se juntavam e, muitas vezes, se confundiam com “homens de cultura” provenientes das elites ilustradas. Isso começou a mudar na década de 1930 com a criação da Universidade de São Paulo (1934), na capital paulista, e da Universidade Federal (1937), no Rio de Janeiro. Na área da História, a Universidade de São Paulo (USP) merece destaque. Criada sob o impulso de Armando de Salles Oliveira, interventor do estado, com importante articulação de Júlio de Mesquita, reuniu os cursos já existentes de Farmácia e Odontologia, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a de Medicina e a Escola Politécnica. A esses cursos foi agregada a nova Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Para a formação dessa faculdade, foi patrocinada a vinda de professores europeus em início de carreira, especialmente franceses, que vieram a se tornar nas décadas seguintes intelectuais de grande importância mundial. Foi o caso do historiador Fernand Braudel, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, do geógrafo Pierre Monbeig, do sociólogo Roger Bastide e do poeta Giuseppe Ungaretti, que ministrou aulas de literatura italiana. Com a contribuição dos mestres franceses e seus discípulos, a História teve condições de assumir um comportamento acadêmico e científico. A contribuição desses intelectuais foi fundamental para o modelo de universidade então criado e para a introdução de novas maneiras de se pensar e exercer a atividade intelectual. Deu-se início, na área das Ciências Humanas e Sociais, ao estabelecimento de um instrumental conceitual e metodológico específico. A formação de uma mentalidade universitária caminhou junto com a profissionalização de especialistas nessas áreas. Os primeiros frutos de uma metodologia aplicada às Ciências Humanas começam a surgir inicialmente na Antropologia, na Geografia e na Sociologia. Ainda que na História isso tenha demorado ainda um pouco para aparecer, em 1950 foi criada pela FFLCH-USP a Revista de História, uma das primeiras do gênero. Essa revista divulgou inúmeras pesquisas acadêmicas realizadas pelos historiadores egressos da universidade. Em seu primeiro número, trouxe a conferência proferida por Lucien Febvre, naquela universidade, em 1949, “O homem do século XVI”. Manifestando caráter interdisciplinar, a revista tornava clara sua inspiração na congênere francesa Annales (GUIMARÃES, 2011, p. 28). Importante ressaltar que a fundação da Universidade de São Paulo não pode ser entendida de forma isolada, como nos lembra Heloísa Pontes no trecho a seguir que reproduz uma frase de Antonio Candido, no qual dá conta do afã renovado de se estudar o País: A fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, ocorreu no interior de um contexto intelectual mais amplo de interesse renovado pelo Brasil que se expressou nos mais variados setores da vida cultural do País: na instrução pública, nas reformas do ensino primário e secundário, na produção artística e literária, nos meios de difusão cultural e, sobretudo, na ênfase posta no conhecimento do País. “O Brasil começou a se apalpar”. A realidade brasileira tornou-se o conceito-chave do período, encarnando-se nos estudos 97 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL histórico-sociológicos, políticos, geográficos, econômicos e antropológicos. Pautados por um frenesi de reinterpretar o passado nacional, interpretar e diagnosticar o presente, tais estudos foram veiculados principalmente através das coleções Brasiliana e Documentos Brasileiros (PONTES, 1998, p. 145). 7.7 Ressurgem as dissidências e emerge um pensamento radical No final do Estado Novo assistimos a um ressurgimento das dissidências silenciadas pela repressão e pela censura durante o período ditatorial. Sabemos que nem todos os intelectuais se alinharam com o Estado Novo. Nesse momento, aqueles que se mantiveram distantes do regime voltaram a se manifestar, engrossando o coro dos que se colocavam politicamente contra o regime. Dentre as primeiras manifestações contrárias à permanência de Getúlio no poder, tivemos a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores. Esse congresso foi organizado pela Associação Brasileira de Escritores (ABDE), entidade que desde sua formação, três anos antes, já se colocava contra a ditadura. Os participantes do congresso deram ao encontro um tom político e destacaram o papel do intelectual como agente da redemocratização. Ao seu final, divulgaram uma Declaração de Princípios, documento que foi distribuído de mão em mão, pois nenhum jornal quis publicá-lo. Nele defendiam a legalidade democrática, a liberdade deexpressão e a realização de eleições. Assinaram esse documento diversos intelectuais de peso, como Caio Prado Jr., Dionélio Machado, Paulo Emilio Salles Gomes, Jorge Amado, Moacir Werneck de Castro, Antonio Candido de Melo e Sousa, Aníbal Machado, Sérgio Milliet e Abguar Bastos (BERCITO, 1999, p. 56). Durante o congresso, formulou-se um manifesto-proposta sobre o que os intelectuais ali reunidos entendiam por uma política democrática de educação e cultura. O documento foi apresentado por Fernando de Azevedo, tendo sido assinado por Astrojildo Pereira, Antonio Candido, Carlos Lacerda e João Cruz Costa, entre outros. Nesse documento se definia um papel intelectual e uma visão de cultura popular, emanando do povo, que obteve longo alcance nas décadas posteriores. Nele, os intelectuais se comprometiam a proceder “de acordo com a ciência” para diagnosticar os problemas da população brasileira” e contribuir no processo de democratização da cultura pela: Força interna de criação e de renovação, de uma cultura de mandato social, enraizada na vida do povo, e alimentada nas suas tradições e lembranças, nas suas necessidades e nos seus problemas, nos seus sofrimentos e nas suas aspirações (MOTA, 1978, p. 146). Ao poucos as oposições intensificam as pressões sobre Getúlio, que acabou por se afastar do poder. O cenário político mundial relacionado à Segunda Guerra e as questões colocadas no País pela experiência da ditadura exigiam esforço de reflexão dos intelectuais. A crise política fazia o Brasil se repensar. Renovava-se o interesse pelo exame da realidade brasileira, que passava a contar com o instrumental teórico acadêmico. A radicalização política se manifestava também na produção intelectual, pela qual emergiu um “pensamento radical”, não propriamente revolucionário, na acepção de Carlos Guilherme Mota, tendo como expoente Antonio Candido. Este seria um representante de um novo tipo de intelectual que 98 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III emergia, desvinculado das visões senhoriais predominantes e mais próximo de um pensamento de classe média vinculado ao processo de urbanização e industrialização que se vivia em São Paulo. Ele pertenceria a um grupo portador de uma visão crítica tributária dos meios intelectuais acadêmicos recém-formados – com elementos da Antropologia, da Sociologia e da Linguística – na qual não se pensava a produção cultural desvinculada da política (MOTA, 1978, p. 126). Heloísa Pontes analisou a Revista Clima, veículo de divulgação das ideias de um grupo de intelectuais, que se situavam nesse mesmo campo e atuavam como críticos de cultura, como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio Prado Lourival Gomes Machado, Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza. Publicada na década de 1940, essa revista trazia contribuições que expressavam a função de ponte que o “grupo Clima” exercia entre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e as instâncias de produção e difusão cultural da cidade (PONTES, 1998, p. 2). Para Carlos Guilherme Mota, a conjuntura do final do Estado Novo tinha sabor de fin-de-siécle. Prenunciava-se uma nova etapa em que despontava a ideia do desenvolvimento planejado da economia liberal. Os intelectuais começavam a se empenhar na construção de modelos de desenvolvimento nacional em uma linha de reformismo desenvolvimentista que se consolidaria na década seguinte. Tratava-se de um pensamento progressista, mas não revolucionário. Nesse contexto, o intelectual se distanciava do burocrata do Estado Novo para se definir como ideólogo do desenvolvimentismo (MOTA, 1978, p. 152-3). 7.8 Novos parâmetros para se entender o Brasil Após anos de ditadura, com a queda do Estado Novo, entramos em um período de normalidade constitucional e com governos escolhidos em pleitos eleitorais. Entretanto, isso não ocorreu sem tensões. Embarcamos em um projeto de desenvolvimento econômico que não considerou as profundas desigualdades sociais existentes no País. A vida política conheceu pressões dos movimentos de esquerda ao provocarem reações que se intensificaram até que mergulhássemos novamente em regime de exceção com um golpe civil-militar que trouxe de volta a ditadura ao País em 1964. Nesse período, foram muitas as mudanças no modo de viver. O cenário urbano, cada vez mais, dava os parâmetros de modernidade, em um país cuja população ainda vivia majoritariamente no campo. O projeto desenvolvimentista desencadeado por Juscelino Kubitschek estendia a industrialização nacional com participação do capital estrangeiro considerando de maneira pragmática que importava mais onde as indústrias estavam que a origem do capital. Eletrodomésticos de todo tipo, automóveis e a nova capital em Brasília figuravam como os símbolos da época. As inquietações sociais e a concepção de que o povo brasileiro seria o agente de sua própria história produziam um teatro vigoroso e os primeiros tempos do Cinema Novo, embalados ao som da Bossa Nova. Em meio a tudo isso, pensava-se o Brasil de muitas formas. Nos anos de 1950 e 1960, os frutos de um saber acadêmico já eram reconhecidos com facilidade. A problemática política e social ocupava o centro das preocupações. Surgiam autores que iriam se colocar à frente no processo político e social elaborando trabalhos que influenciariam discípulos e outros depois deles. 99 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL As preocupações da época exigiam um diálogo com as teses econômicas e sociológicas que se ofereciam para ajudar a compreender o País no passado e naquele momento em diálogo com a produção historiográfica do período. Ao lado disso, tinha continuidade a historiografia de cunho laudatório e tradicional ligada ou não aos institutos históricos. 7.9 O nacionalismo desenvolvimentista A ideia de se construir um Brasil moderno, que foi pano de fundo de muitos debates intelectuais em nosso País, teve novas angulações nas décadas de 1950 e 1960, repercutindo nas explicações sobre o passado brasileiro. O nacionalismo foi a corrente de pensamento de maior influência na época. A nação já se tinha como constituída. O esforço se daria em outra direção: promover o desenvolvimento econômico nacional. Figura 10 – Juscelino Kubistchek (JK) em Brasília, 1957 Juscelino Kubitschek (1955-1960), o presidente “bossa-nova”, com o lema de “50 anos em 5” colocava em cena a possibilidade de um Brasil moderno e desenvolvido economicamente a partir de uma política em que preponderavam a ideologia nacionalista e a defesa do rápido crescimento econômico a partir de um acelerado crescimento industrial. Presidente carismático com alto poder de negociação, ele conquistou significativa adesão a seu projeto desenvolvimentista pelo significado do que anunciava, como nos explicam as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling: O estilo fazia a diferença na hora de Kubitschek abordar problemas e conquistar a máxima simpatia de cada grupo social, mas não explica tudo. A outra parte do segredo de Juscelino está provavelmente no fato de que ele conseguiu transformar o Plano de Metas no projeto de um Brasil possível. Seu programa de governo dava voz a uma nova e entusiástica condição de ser brasileiro que poderia contribuir pra reparar as injustiças de uma herança histórica de miséria e desigualdades profundas, e serviria para abrir as portas da modernidade. A chave para construir esse novo país chamava-se “desenvolvimentismo” e defendia a ideia de que nossa sociedade, defasada 100 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III e dependente dos países mais avançados,repartia-se em duas: uma parte do Brasil ainda era atrasada e tradicional; a outra já seria moderna, e estava em franco desenvolvimento. Ambas, o centro e a periferia, conviveriam no mesmo país, e essa era uma dualidade que se devia resolver pela industrialização e pela urbanização. A confiança que Juscelino depositou nesse projeto de Brasil foi contagiosa, e não é muito difícil entender o porquê. O projeto de JK sustentava-se na crença de que a construção de uma nova sociedade dependia da vontade do Estado e do desejo coletivo de um povo que, enfim, teria encontrado seu lugar e destino (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 417). É de se notar que, por essa época, e sob a influência dos trabalhos efetuados pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), difundiam-se explicações que inseriam os países então chamados de subdesenvolvidos em princípios dualistas. Nessa visão, esses países conviviam com realidades opostas, já que neles haveria regiões industrializadas desenvolvidas e outras agrárias muito atrasadas. No caso brasileiro, entendia-se que os interesses da burguesia industrial se colocariam em oposição aos dos latifundiários defensores da agricultura de exportação. As razões do subdesenvolvimento estavam relacionadas à dependência dos países periféricos, dentre os quais estaríamos com o centro do sistema capitalista. Centro e periferia seriam as duas faces da mesma moeda. Essas ideias influenciaram economistas e demais intelectuais que pensavam o Brasil à época, em amplo espectro ideológico. Para comunistas, por exemplo, justificavam a luta contra o imperialismo. Para nacionalistas em geral, serviam como fundamentação para convicções industrialistas e de intervenção do Estado na economia. Saiba mais A Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) foi estabelecida em 1948 e, a partir de 1984, passou a se chamar Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Sua sede fica no Chile, e sua fundação visava contribuir para o desenvolvimento econômico da América Latina e reforçar as relações econômicas dos países que a compunham. Acesse o endereço digital e veja publicações e informações atualizadas sobre os países latino-americanos: <http://www.cepal.org/pt-br>. Um exemplo de obra que teve grande impacto nesse momento foi o livro Os dois Brasis (1959), de Jacques Lambert. Nele, o autor atribui a essa condição dual a dificuldade em se alcançar um desenvolvimento harmônico da sociedade brasileira, e o caminho para alcançá-lo seria a modernização da agricultura (GUIMARÃES, 2011, p. 29). 101 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Algum tempo depois, a implantação da ditadura militar, que recebeu apoio de setores da burguesia industrial e agrária, mostrou que os interesses desses dois grupos sociais não eram tão diferentes. A teoria dualista foi revista na década de 1970 de maneira contundente por Francisco de Oliveira em A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista, que ressaltou a complementaridade dos setores agrário (regressivo) e industrial (moderno) (OLIVEIRA, 1975). O nacionalismo dos anos 1950 tinha como tese central a possibilidade de haver um desenvolvimento independente no Brasil, por meio de uma industrialização comandada pela burguesia e pelo capital nacionais. A participação do capital estrangeiro se aceitava na medida de seu controle pelo capital brasileiro. Esse modelo se desdobrava na ideia de ser necessário o desenvolvimento de uma cultura autenticamente nacional (RODRIGUES, 1992, p. 20). 7.10 Pensar o Brasil em novos termos Para compreender as raízes da formação econômico-social brasileira, os pensadores nacionais contavam com as matrizes teóricas oferecidas pela Cepal em torno das teorias dualistas e das questões acerca da inserção do Brasil nas definições do capitalismo dependente. Alguns se reuniram no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) produzindo teses e argumentos que influenciaram debates e medidas governamentais, tendo o Iseb sido extinto no governo militar. O Iseb foi uma instituição cultural ligada ao Ministério da Educação e Cultura com sede no Rio de Janeiro. De acordo com a historiadora Marly Rodrigues (1992): O Iseb gozava de autonomia de opinião. Destinava-se ao estudo, ensino e divulgação das Ciências Sociais aplicadas à compreensão da realidade brasileira, e à elaboração dos suportes teóricos para o desenvolvimento do capitalismo nacional. Por meio de publicações, seminários, cursos e conferências, inicialmente voltados para um público envolvido com o trato de problemas nacionais em instituições públicas ou privadas, o Iseb difundiu suas propostas de desenvolvimento nacional. Com algumas variantes, relativas à posição nacionalista radical ou moderada dos estudiosos, as propostas baseavam-se no desenvolvimento industrial autônomo, apoiado politicamente por uma “frente única” composta pela burguesia nacional, pelo proletariado, por grupos de técnicos da administração intelectuais – setores da sociedade interessados na superação do desenvolvimento capazes de enfrentar os opositores da industrialização, isto é, a burguesia latifundiária e mercantil e o imperialismo (RODRIGUES, 1992, p. 22). Hélio Jaguaribe foi um dos principais ideólogos do Iseb. Em 1958 as polêmicas em torno de seu livro O Nacionalismo na Sociedade Brasileira dividiram o grupo, o que culminou na saída dos moderados. A partir daí, o Iseb foi se tornando um “instrumento da esquerda para proteção da indústria nacional e de nacionalização das empresas estrangeiras”. Cumpre lembrar que seus conceitos: 102 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Difundiram-se pela sociedade e serviram de paradigma para a apreensão da “realidade brasileira” durante as décadas de 1950 e 1960. Sua influência foi particularmente notável na formação de intelectuais e artistas, além da produção cultural, em destaque o teatro e o cinema. A concepção de cultura como um dos instrumentos de transformação social, conscientizador, e da intelectualidade como vanguarda dessa transformação, implicou incorporação de temas sociais nas manifestações artísticas e ampla polêmica sobre o que era cultura popular e seu papel na elaboração da cultura nacional. O caráter revolucionário da cultura, absorvido por grande parte da esquerda, marcou a produção dos anos 60, em especial dos grupos de teatro Arena e Oficina, do Cinema Novo e a ação do CPC (Centro Popular de Cultura), da UNE (RODRIGUES, 1992, p. 23). Na verdade, nessa visão, o subdesenvolvimento econômico estaria implicado na situação cultural dependente. A superação da condição econômica deveria ser acompanhada do mesmo movimento com relação à cultura. Defender a cultura brasileira seria também uma forma de afirmação nacional. Cumpre ressaltar que nas décadas de 1950 e 1960 o debate sobre cultura popular e seu papel na cultura nacional tiveram grande destaque no cenário intelectual. Da mesma forma, a função do intelectual como vanguarda e impulsionador de mudanças sociais foi sublinhada, conferindo-lhe o papel de agir para promover a consciência social do povo por meio de seu trabalho. Assim, temos que no período em estudo os principais temas que ocuparam as discussões giravam em torno do nacionalismo desenvolvimentista e da planificação econômica, por um lado, e, por outro, da importância da cultura popular nacional, ainda que houvesse entendimentos diferentes quanto a esses assuntos. Questões sobre a formação de uma consciência nacional que nos encaminhasse para uma situação de independência e sobre uma possível revolução burguesa no Brasil despertavam polêmicas entre ospensadores da esquerda. O Iseb congregava intelectuais de diferentes orientações, como Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto, Roberto Campos, Cândido Mendes de Almeida, Hélio Jaguaribe, Miguel Reale e Nelson Werneck Sodré. Este último era o responsável pelo Departamento de História do Instituto. O militar Nelson Werneck Sodré (1911-1999), dos historiadores de esquerda da época, foi o mais identificado com o PCB, o que lhe valeu muitas críticas na avaliação de sua obra em décadas posteriores. Comungou com o partido a ideia de conciliação entre as classes para fazer avançar a revolução burguesa como etapa para se chegar ao comunismo, o que foi considerado por alguns como tendo contribuído para o golpe civil-militar em 1964. Enxergava a contradição entre a nação e o imperialismo como a principal existente em nosso País, suplantando a do capital e do trabalho, por isso propunha a mediação à luta de classes como uma solução para o momento que se vivia e a mobilização de todo o povo brasileiro, composto por proletariado, campesinato, pequena burguesia e burguesia nacional, em torno da nação. 103 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Com essa percepção, teria se alinhado aos propósitos da burguesia assumindo a bandeira do anti-imperialismo e a defesa do nacional, desenvolvimentismo, apoiando o “erro histórico” do PCB. Em sua visão da História do Brasil, contestada em décadas seguintes, reconhecia a existência de traços feudais no País que teriam dificultado sua industrialização. Somente em 1930, em que haveria iniciado nossa revolução burguesa, teria começado um verdadeiro surto industrial no qual a burguesia, incapaz de fazer frente ao imperialismo, teria necessitado se aliar aos trabalhadores urbanos e camponeses, já que os latifundiários não teriam interesse no avanço industrial. Escreveu vários livros, dentre eles: Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro (1958), Formação Histórica do Brasil (1962) e História da Imprensa no Brasil (1966). Em meio à preocupação dos meios intelectuais de esquerda quanto aos debates nacionalistas e às propostas de desenvolvimento econômico, assume destaque a discussão sobre “revolução burguesa” na historiografia. De fato, a discussão sobre a existência de uma revolução brasileira e os moldes em que esta se daria, na perspectiva de uma revolução burguesa ou não, fez-se presente no cenário intelectual da época. No âmbito dos historiadores marxistas, o já estabelecido Caio Prado Jr. também se ocupou da questão defendendo que se levasse em conta o processo histórico real e não se tentasse adaptar o esquema europeu ao nosso País. Na verdade, Caio Prado divergia de Nelson Werneck Sodré, voz autorizada do PCB, também na questão da existência de um passado feudal no Brasil colonial. Considerava que desde o início a América Portuguesa estava inserida em relações capitalistas com o continente europeu. Outro importante ponto de divergência de Caio Prado que o afastava da tônica nacional-desenvolvimentista da época era a consideração de que não haveria verdadeira oposição entre a burguesia agrária e a industrial, já que o capital que havia impulsionado a indústria era proveniente do café. Considerava também que os dois segmentos da burguesia se dirigiriam, em última instância, para uma submissão ao imperialismo. Nem todos os intelectuais que partilhavam do ideal do desenvolvimento nacional estavam ligados ao Iseb. O economista Celso Furtado (1920 – 2004), por exemplo, trilhou caminho independente, embora de forma paralela aos integrados ao Instituto. Seu livro Formação Econômica do Brasil (1956) teve grande repercussão, para muito além da época em que foi escrito. Analisando os movimentos da economia brasileira, destacava a importância do Estado nesse setor, defendendo uma política econômica apoiada na intervenção governamental. 7.11 Outras possibilidades para pensar o País Se a tônica da década de 1950 foi dada pelo nacional-desenvolvimentismo, nem todos os intelectuais comungaram dessa ideia mestra. Podemos citar, como exemplo, Antonio Candido e Florestan Fernandes, os dois vinculados aos desdobramentos da implantação da Universidade de São Paulo e à instalação de metodologias de trabalho acadêmico. 104 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Antonio Candido (1918), em Parceiros do Rio Bonito (1964), sua tese de doutorado defendida em 1954 na área de Sociologia, dedicou-se ao estudo da formação histórica e social dos trabalhadores rurais pobres e do mundo caipira resultante. Já em A Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1959), produziu crítica literária com teor histórico. Essa obra acompanhou o movimento de progressiva autonomização da literatura brasileira em relação à portuguesa remetendo-a à sua dimensão social e histórica e conferindo-lhe valor equivalente. Trata o fenômeno literário em dupla direção: como obra literária com realidade própria e em seu contexto histórico de produção. Esse trabalho inovador exerceu grande influência em historiadores e cientistas sociais. Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo de orientação marxista, teve grande importância na instauração da linguagem e da metodologia das Ciências Sociais no Brasil. A análise que empreendeu sobre a escravidão no País revelava impasses da formação da sociedade brasileira que funcionavam como entraves ao desenvolvimento ao mesmo tempo que colocavam em evidência mecanismos do preconceito racial. Em A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), de acordo com Maria Arminda do Nascimento Arruda: Situando a problemática do negro na passagem da sociedade escravista para a sociedade de classes, o sociólogo analisa as relações raciais no prisma da dinâmica global da modernização brasileira, acentuada na cidade de São Paulo. A rápida transformação urbana, ocorrida entre o final do século XIX e o começo do século XX, impossibilitou a inserção do negro e do mulato no estilo urbano de vida, por não possuir recursos para enfrentar a concorrência dos imigrantes. Ou, para acompanhar as suas categorias, a heteronomia presente na “situação de castas” impediu aos negros assimilar as potencialidades oferecidas pela “situação de classes”. Resulta desse processo o desajustamento estrutural e a desorganização social típicas da condição dos descendentes de africanos, relegados a viver um estado de marginalidade social, verdadeiros proscritos das conquistas civilizadas. O preconceito e outras expressões de discriminação exerceram a função de manter a distância social e reproduzir o isolamento sociocultural, tendo em vista a preservação das estruturas sociais arcaicas (apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2009, p. 317-8). O propósito de estudar as relações escravistas na constituição da sociedade brasileira teve continuidade em trabalhos produzidos por assistentes de Florestan Fernandes, como Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Octavio Ianni. É preciso ressaltar que no final dos anos 1950 crescia na universidade um interesse pelo marxismo distanciado da vinculação direta com o Partido Comunista e depurado de esquematizações doutrinárias ou reducionistas. Intelectuais se propunham a fazer uma leitura independente de Marx como recurso instrumental para produzir análises sobre a sociedade brasileira e sua história. Como comenta Leandro Konder, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP): 105 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL Formou-se um grupo de estudos para a leitura de O Capital,de Marx, integrado pelo filósofo José Arthur Gianotti, pelos sociólogos Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso (discípulos de Florestan Fernandes), pela antropóloga Ruth Cardoso, pelo economista Paul Singer e pelo historiador Fernando Novais. Outros intelectuais mais jovens também foram envolvidos pela atividade do grupo, como Bento Prado, Francisco Weffort, Roberto Schwarz, Gabriel Bolaffi e Michael Löwy. Entre os integrantes desse círculo, predominava claramente a disposição de primeiro entender bem Marx para que depois cada um resolvesse em que condições poderia adotar (ou não) a perspectiva do pensador alemão (apud FREITAS, 1998, p. 372). O grande interesse despertado entre os intelectuais da época pelas ideias de Marx, ou delas tributárias, teve grande repercussão. Vale lembrar que vivíamos um período de forte militância de esquerda e entusiasmo pelos sucessos havidos com a Revolução Cubana em 1959. Dessa forma, na década de 1960 e na seguinte, apesar da intensa perseguição aos intelectuais que ocasionou o exílio de muitos e a aposentadoria compulsória de vários professores universitários, o marxismo ocupou posição destacada na produção historiográfica, especialmente a acadêmica, sobre o Brasil. 7.12 Em tempos de radicalização Com o golpe de 1964, os intelectuais brasileiros tiveram de se defrontar com um gradativo cerceamento da liberdade de expressão à medida que a ditadura se consolidava. Foram tempos difíceis, e embora a insegurança fosse grande, as produções intelectual, artística e acadêmica tiveram continuidade nas brechas deixadas pela forte repressão. Na verdade, durante as décadas de 1960 e 1970 há uma quase hegemonia da produção marxista na historiografia brasileira. Temas como revolução burguesa, características do modo de produção escravista brasileiro, luta de classes e movimentos revolucionários no período colonial recebem atenção de muitos pesquisadores. Cumpre ressaltar que alguns desses temas são comuns também a trabalhos realizados no campo das Ciências Sociais, pois estavam no centro das discussões políticas da época. De verdade, há uma fronteira, por vezes, imperceptível entre os estudos de historiadores e cientistas sociais nesse momento. Discutir rupturas ou continuidades, conciliação ou radicalização das posições, saber se a revolução e o socialismo estavam por vir e com que velocidade, todas essas questões figuravam nos debates de intelectuais engajados à esquerda na luta política daqueles anos de ditadura, independentemente de sua área acadêmica. Debates econômicos e políticos ocuparam a cena. O golpe de 1964 e o populismo trouxeram consigo questões relativas ao desenvolvimento e à ampliação do poder do capitalismo industrial e financeiro, ao crescimento da classe média e do operariado, além da presença norte-americana na América Latina. 106 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 Unidade III Lembrete Na década de 1960, cresce o interesse dos Estados Unidos pela América Latina no contexto da Guerra Fria. Os chamados brasilianistas – historiadores estrangeiros, especialmente americanos, que se dedicaram ao estudo da História do nosso País – tiveram intensa atuação nessa época. Sua produção foi bastante significativa e intensa nas décadas que se seguiram. Esses historiadores tiveram acesso a arquivos e documentos que não estavam disponíveis ao seu colegas brasileiros na época. Alguns deles: Charles Boxer, Waren Dean, John W. F. Dulles, Richard Graham, Keneth Maxwell, Richard Morse, Thomas Skidmore e Stanley Stein. No campo da história política, os temas de preferência eram o capitalismo, a escravidão, os movimentos sociais, os sindicatos, entre outros. Conforme destaca Fernando Novais: O Golpe de 1964 e os desdobramentos do regime militar-autoritário levaram a uma espécie de exame de consciência da intelectualidade brasileira e dos historiadores – daí as constantes reavaliações, as variações dos focos de preocupação, por exemplo, o reestudo do significado do tenentismo; daí a preocupação com a história mais recente na sua dimensão política (NOVAIS, 2005, p. 299-300). Também a esse contexto se relaciona o debate que orientou diversos estudos de cunho marxista sobre a revolução burguesa no Brasil. É o caso de Estado e Planejamento Econômico (1975), de Otávio Ianni, e A Revolução Burguesa no Brasil (1975), de Florestan Fernandes. De acordo com Maria de Lourdes Janotti, para os historiadores das décadas de 1960 e 1970, importava compreender “os limites da proposta ideológica da revolução burguesa e dos insucessos dos movimentos revolucionários do operariado”: Nos anos 1960, descobriu-se um novo campo para a pesquisa histórica – o período republicano – a partir do trabalho de brasilianistas. O interesse crescente dos círculos acadêmicos dos Estados Unidos tinha relação com o aumento da importância da América Latina para o conjunto da política exterior americana naquela época. O modelo de Cuba ameaçava transformar em barril de pólvora o continente americano ao sul do Rio Grande, colocando em risco os interesses dos Estados Unidos nesse território (GUIMARÃES, 2011, p. 54-5). Nessa época, a politização do tema da cultura popular se intensificou e se ampliou muito, reforçando o entendimento da cultura como objeto de ação política. Vale lembrar que as discussões sobre a cultura brasileira estiveram sempre relacionadas às preocupações com os destinos do País e sua vinculação com as influências culturais estrangeiras, uma forma de se tomar consciência de nossa condição e nosso 107 HI ST - R ev isã o: A na - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 2/ 09 /2 01 6 HISTORIOGRAFIA DO BRASIL destino. Nesse campo de discussões, insere-se o debate sobre o nacional e o popular que assumiram contornos diferentes de acordo com o contexto em que se vivia. Nos anos 1960, esse debate assumia coloração revolucionária para os grupos de esquerda. Depois disso, o debate sobre o nacional na cultura popular vai ceder lugar para o tema da cultura de massas. Questões relativas à indústria cultural e ao imperialismo nessa área foram colocadas na centralidade das discussões. De lá para cá, esse debate incluiu a cultura na problemática trazida pela globalização. 8 A HISTORIOGRAFIA RECENTE Em história, não pode haver nunca a obra definitiva; tudo a que podemos aspirar são explicações mais ou menos felizes. Fernando Novais Acompanhamos neste livro-texto a formação da historiografia brasileira desde seus primeiros tempos e chegamos agora à situação mais recente. Ao longo de mais de um século, a produção historiográfica no Brasil amadureceu e se encorpou. Contou para isso com o entusiasmo de muitos historiadores que abriram trilhas por onde outros seguiram. Pioneiros inauguraram metodologias e procedimentos, reuniram documentação e informações que servem de base, ainda, para muitos trabalhos. A formação específica veio a seguir, e chegamos ao século XXI com uma produção intensa e variada proveniente, especialmente, das diversas universidades existentes por todo o País. Após uma discussão inicial sobre questões recentes que têm influenciado a produção historiográfica atual, apresentaremos um breve panorama das possibilidades que se abrem para o historiador em nossos dias. 8.1 As principais influências e questões a enfrentar Os historiadores dos tempos mais recentes tiveram de se defrontar com questões externas e internas que repercutiram em sua produção. É digno de destaque, com certeza, o intenso processo de profissionalização na área como resultado da multiplicação dos cursos de pós-graduação e dos esforços de muitos pesquisadores. Com isso, no cenário atual, assistimos ao predomínio de uma produção acadêmica majoritária oriunda
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