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HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever o reflexo da política na construção da historiografia nacional. > Identificar a influência internacional no olhar político na historiografia brasileira. > Reconhecer os principais analistas dos movimentos políticos da história brasileira. Introdução A historiografia é o produto da escrita da história, o trabalho realizado por inte- lectuais que analisam e interpretam o passado a partir de uma perspectiva e de uma metodologia. Dessa forma, a operação historiográfica também está sujeita às transformações do tempo, e os acontecimentos políticos refletem diretamente nesse processo. Como diz Manoel Luiz Salgado Guimarães (2010, p. 9–10): [...] a historiografia se interroga de modo sistemático sobre as diferentes formas de transformar o passado nesse objeto de investigação, materializado num conjunto de textos dados à leitura de uma coletividade como parte de seu próprio esforço de construção identitária. O passado como parte da construção do presente e como desejo de projeção para o futuro, como projeto social, portanto, inscreve necessariamente a investigação de natureza historiográfica numa teia em que o diálogo com outros campos da pesquisa histórica se faz necessário. Assim, é correto afirmar que a escrita da história do Brasil possui caracterís- ticas análogas ao seu tempo, já que é o presente que dita a interpretação dos documentos. Por exemplo, análises sobre o período colonial têm focos diferentes Historiografia política brasileira Ana Carolina Machado de Souza de acordo com a época. Enquanto, no século XIX, a perspectiva geral e a exaltação da monarquia eram comuns, na década de 1980, a escravidão se tornou uma temática protagonista, assim como outros assuntos, vide os estudos feministas, dos movimentos sindicais e dos personagens que não faziam parte do “lado vencedor” da história. Neste capítulo, falaremos sobre a importância e a influência dos processos políticos na produção historiográfica brasileira. Você vai observar que diferentes épocas possuem olhares específicos para os temas e eventos do passado e presente do Brasil. Como a historiografia está sujeita aos desdobramentos do tempo, cada obra feita tem uma ideia, uma teoria, um método por trás, ou seja, não é verdade absoluta, mas tem um ponto de vista contemporâneo. A história e o século XIX A questão política faz parte do processo histórico brasileiro desde o início do País. Autores como Frei Vicente do Salvador (1564–1636) e Pero de Magalhães Gândavo (1540–1579) foram testemunhas oculares, mas também discutiam o passado próximo. Suas agendas, que podiam ser desde apresentar o desenvolvimento administrativo na colônia até a busca por títulos e riquezas pessoais, ajudam a entender a complexidade da construção da narrativa. São documentos importantes para a compre- ensão dessa época. Salvador, por exemplo, escreveu a História do Brasil, que foi publicada em 1620 e é considerada a primeira obra do tipo feita no Brasil. Os cinco volumes narram a formação dos Governos-gerais, que começaram a partir de 1548. Um episódio importante que demonstra a influência direta de questões políticas na construção historiográfica é o da França Antártica. Em 1555, os franceses criaram uma colônia na região do Rio de Janeiro, e o autor des- creveu o evento como parte de uma conspiração dos invasores contra os portugueses. Inclusive, acusava-os de armarem conluio com os índios para expulsarem aqueles que chegaram ao Brasil anteriormente. Ou seja, toda sua escrita valorizava a metrópole em detrimento de qualquer outra nação que buscasse tomar posse do País indiscriminadamente. Apesar dessa longa história de produção historiográfica, o destaque aqui residirá nos trabalhos feitos a partir do século XIX, quando a história como ciência e disciplina científica surgiu. Historiografia política brasileira2 As transformações dos oitocentos O contexto político brasileiro era de profunda transformação. A Família Real se mudou para a colônia em 1808 fugida de Portugal por causa da expansão napoleônica. O Rio de Janeiro se tornou a capital do Império português, sendo modernizada e reformada para receber toda a corte. Em 1815, a colô- nia foi alçada a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, considerado um dos primeiros momentos para a separação, que se concretizou em 1822. O Primeiro Reinado (1822–1831), as Regências, o Segundo Reinado (1840–1889) e a Proclamação da República (1889) foram grandes eventos da política brasi- leira, mas permeados por outros, que só tiveram destaque na historiografia no final do século XX. A Lei de Terras (1850), a Lei Eusébio de Queirós (1850), os movimentos abolicionista e republicano, além da Lei Áurea (1888), são exemplos de mudanças políticas e legislativas que alteraram os rumos do País. É importante lembrar que o Brasil viveu constantes crises políticas e econômicas desde o período colonial. No final do século XVIII e início do seguinte, revoltas separatistas como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Carioca (1794), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambu- cana (1817) desestabilizaram a já frágil organização política da colônia. Durante o século XIX, mesmo com a independência e com o Poder Moderador da Constituição de 1824, a quantidade de conflitos não diminuiu. A Confedera- ção do Equador (1824), a Revolta dos Malês (1835), a Cabanagem (1835–1840), a Sabinada (1837–1838), a Balaiada (1831–1841) e a Farroupilha (1835–1845) foram episódios que demonstram o descontentamento com o governo vigente. Em relação à ciência, foi nesse período, em 1838, que surgiu o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Dessa maneira, a história oficial da nação foi normatizada, isto é, criaram práxis e metodologias a serem seguidas pelos historiadores. Foi o processo de formação de uma identidade, além de ser um marco para a construção historiográfica, sobretudo no Segundo Reinado. A narrativa era teleológica, com o presente ditando a evolução do passado e do futuro. Enxergavam o documento como verdade absoluta e que os acontecimentos seguiam uma ordem específica a fim de alcançar aquele presente. Havia uma manipulação do tempo a favor do argumento construído pelo historiador. Nesse momento, as obras dos séculos coloniais foram descobertas e/ ou resgatadas pelos pesquisadores, que queriam cada vez mais ampliar o conhecimento acerca do passado. Portanto, o IHGB institucionalizou a prá- Historiografia política brasileira 3 tica historiográfica, além de consolidar o processo de formação do Estado Nacional. As obras tinham objetivos claros de discutir a formação do Brasil, mas pela via tradicional, abordando “grandes fatos”, eventos e personagens. Um exemplo disso foi o texto do alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868) intitulado “Como se deve escrever a história do Brasil”, publicado pela Revista do IHGB em 1843. Esse texto foi eleito como o mais importante para se estabelecer as diretrizes temáticas e metodológicas para as futuras historiografias. Todos os conflitos citados anteriormente, fora a profunda desigualdade racial e de classe, foram motivos para que a história nacional prezasse pela união e grandeza do País. Von Martius discorre sobre a impor- tância das três raças (brancos, índios e negros) para a constituição do Brasil. Contudo, não significa que eram paritários, pois os portugueses eram vistos como superiores. Na época, vigorava a ideia de superioridade racial. Em 1859, foi pu- blicada A origem das espécies, de Charles Darwin (1809–1882), que abordava a teoria da evolução. Da mesma maneira como revolucionou a biologia e a ciência no geral, essa ideia foi analisada sob o viés social. O darwinismo social, por exemplo, foi o conceito criado por Herbert Spencer (1820–1903) que aplicava a evolução para o desenvolvimento da sociedade. Suas ideias embasaram práticas preconceituosas, de higienização social, que perdurarampor décadas, como o Neocolonialismo na África e na Ásia e o surgimento da ideia de superioridade racial ariana no século XX. Ainda que Von Martius tenha sido escolhido como matriz ideológica e metodológica, outro nome importante é o de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816–1878), que escreveu a História Geral do Brasil entre 1854 e 1857, reedi- tada em 1877. Conhecido como Visconde de Porto Seguro, sua obra exalta a figura de Dom Pedro II (1825–1891), a Monarquia e, sobretudo, a busca pela unidade nacional. No século XX, ficou conhecido o nome de João Capistrano de Abreu (1853– 1927), pertencente a uma geração influenciada por Varnhagen, Spencer, Hip- polyte Taine (1828–1893) e Auguste Comte (1798–1857), mas com latente viés crítico a eles. O desenvolvimento do povo brasileiro era o tema abordado pelos novos historiadores, que deixavam de lado, aos poucos, a narrativa dos grandes heróis da Monarquia. A Proclamação da República (1889) mu- dou sensivelmente a forma de se escrever História. A memória que queriam construir exaltaria figuras que condissessem com o ponto de vista político da época. Tiradentes, por exemplo, tornou-se herói nacional por simbolizar Historiografia política brasileira4 uma luta separatista, que visava ao fim do Antigo Regime. Essa representação era escrita ou imagética, já que muitas pinturas foram feitas sobre ele. Pedro Américo (1843–1905) e Décio Villares (1851–1931) foram artistas que o retrataram de maneira divina, em uma alusão a Jesus Cristo (Figura 1). Figura 1. (a) Tiradentes Esquartejado (Pedro Américo, 1893, Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora. (b) Tiradentes (Décio Villares, 1893, Coleção Privada). Fonte: (a) Tiradentes... ([2020], documento on-line); (b) Retrato... ([2013], documento on-line). Capistrano de Abreu escreveu análises literárias, biografias, mas a obra historiográfica mais importante foi Capítulos de história colonial (1907), que apontava o meio como parte da construção da sociedade. Abrangia tanto a história tradicional como a de Leopold von Ranke (1795–1886), como o cientificismo da história natural. Segundo Nicodemo, Santos e Pereira (2018, p. 41): A produção histórica de finais do século XIX e início do século XX vai procurando, pelo menos no discurso, se afastar das práticas históricas dos historiadores anteriores. [...] As diferenças se colocam sobretudo em termos discursivos e geracionais: os historiadores formados no contexto de crise da Monarquia e nos primeiros anos republicanos procuravam se diferenciar das gerações anteriores, mostrando-se atualizados nas discussões científicas típicas da Belle Époque. As diferenças de fato, técnicas, vão se colocando em um tempo mais lento, mas geram efeitos importantes na experiência histórica. Nesse período de transição, autores plurais ganharam destaque, como Sílvio Romero (1851–1914), Oliveira Lima (1867-1928) e Euclides da Cunha (1866– 1909), que rompiam com a tradição erudita encabeçada pelos primeiros nomes do IHGB, consolidada com Varnhagen (1977). Historiografia política brasileira 5 O Modernismo e a geração de 1930 A Primeira República (1889–1930), também conhecida como República Oligár- quica e República Velha, foi um período de mudanças estruturais na política, ainda que, para a sociedade, o efeito tenha sido moderado. Getúlio Vargas (1882–1954) foi uma figura que personalizou a política, concentrando o poder em suas mãos. Porém, essa percepção está diretamente conectada à produção histórica feita sobre esse momento, que exaltou o processo revolucionário, inclusive o chamando como tal. Nos anos 1930, além do rompimento institucional, o surgimento das univer- sidades atingiu profundamente a produção intelectual, que criou conceitos, ideias, esquemas explicativos que dominaram o meio acadêmico, como: República Nova e República Velha, Revolução de 1930 e Golpe de 1930, Revo- lução de 1932 e Contrarrevolução, etc. (BORGES, 2007). Ainda que a Historia magistra vitae permeasse alguns trabalhos, as fontes da época, assim como os trabalhos focados em política, trouxeram a novidade para o campo de pesquisa. Segundo Borges, (2007, p. 160): O campo da história política evidencia, mais do que qualquer outro, os laços inex- tricáveis entre essa forma de conhecimento e o poder, os laços entre uma história política vivida e uma história política escrita por memorialistas e historiadores. Escrever história sob essa perspectiva nos faz rever nossa posição ante as relações de poder, aos conflitos sociais. Com as mudanças, ocorrem os discursos legitimadores, e aí entra o campo da historiografia política, que debate as ideias do momento — e que é in- fluenciado por elas, ainda que para contestá-las. Ocorre, no Brasil, uma nova urgência da produção intelectual, similar ao que aconteceu no século anterior. A vanguarda modernista dos anos 1920 era plural não só em conceito, mas na prática. Influenciados pelas discussões modernas que ocorriam, principalmente, na Europa, músicos, pintores, escritores e poetas buscavam uma representação artística que fosse tipicamente brasileira. O movimento fez parte dessa necessidade de se entender o Brasil, e estudos históricos e sociológicos encabeçariam esse projeto. Em 1927, o historiador Paulo da Silva Prado (1869–1943) publicou Retratos do Brasil, uma obra pouco tradicional e que analisava o passado do País pelo prisma da decadência comportamental, moral e política. Esse é um exemplo de uma nova perspectiva que nascia e que ganhou espaço em diversos campos científicos, inclusive no debate político. Um dos nomes mais influentes foi o do sociólogo fluminense Francisco José de Oliveira Viana (1883–1951), que Historiografia política brasileira6 escreveu, em 1920, Populações meridionais do Brasil, em 1938, Problemas de Direito Corporativo, em 1934, Raça e assimilação e, em 1949, Instituições polí- ticas brasileiras. Esses títulos demonstram sua diversa produção intelectual e a profundidade de suas contribuições, já que participou ativamente do debate sobre a criação da Legislação e do Direito Trabalhista. A obra de 1920 influenciou Getúlio Vargas e seus apoiadores da Aliança Liberal, sobretudo no processo de formulação do projeto político de 1930 e posteriormente. As constituições de 1934 e 1937 instituíram mudanças impor- tantes, como o voto feminino na primeira, e o caráter autoritário da segunda. O presidente assumiu um poder considerável a partir da possibilidade de se assinar Decretos-Lei. Vianna diz (2005, p. 50): Para a perfeita compreensão do passado, a investigação científica arma hoje os estudiosos com um sistema de métodos e uma variedade de instrumentos, que lhes dão meios para obterem dele uma reconstituição, tanto quanto possível, rigorosa e exata. No estado atual da ciência histórica, o texto dos documentos não basta só por si para permitir reviver uma época ou compreender a evolução particular de um dado agregado humano. É preciso que várias ciências, auxiliares da exegese histórica, completem com os seus dados as insuficiências ou obscuridades dos textos documentários ou expliquem pelo mecanismo das suas leis poderosas aquilo que estes não podem fixar nas suas páginas mortas. O culto do documento escrito, o fetichismo literalista é hoje corrigido [...] e nas suas insuficiências pela contribuição que à filosofia da história trazem as ciências da natureza e as ciências da sociedade. Estas, principalmente, abrem à interpretação dos movimentos sociais do passado possibilidades admiráveis e dão à ciência histórica um rigor que ela não poderia ter, se se mantivesse a descrita ao campo da pura exegese documentária. Ele aponta mudanças no fazer histórico, sobretudo a importância de se encarar a documentação com questionamentos e problemáticas, influenciados pelas conjunturas do momento. Apesar da relevância de Oliveira Viana, os autores mais conhecidos dos anos 1930 foram Gilberto Freyre (1900–1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902–1982) e Caio Prado Júnior (1907–1990).Eles encabeçaram estudos seminais para as ciências humanas por abordarem a formação do Brasil e do brasileiro. A importância de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda Gilberto Freyre escreveu, em 1933, a obra Casa grande e senzala, um clássico da análise da formação da sociedade brasileira. Freyre, assim como outros atores citados acima, sofreu influência da produção científica de outros países. Seu trabalho, pautado pelas discussões raciais que ocorriam nos Historiografia política brasileira 7 Estados Unidos, abordou o patriarcalismo de nossa política, além de embasar a teoria da democracia racial. Apesar de manter elementos muito analisados anteriormente, seu foco era entender como o Brasil chegara ao estado em que estava, destacando o processo de dominação que ocorria desde a colônia, seu ponto de partida cronológico. A economia açucareira deu início à coloni- zação, então as relações sociais da época criaram raízes a partir daí. Ou seja, a monocultura baseada na mão de obra escrava e na forte hierarquia social ditou a formação do nosso povo, segundo o autor (FREYRE, 2003). O ponto importante da argumentação de Freyre foi sua análise sobre as raças, sobretudo as que constituiriam a população. Essa ideia seria criticada com a nova tradição historiográfica das décadas 1960 e 1970, cujo apogeu criativo se deu nos anos 1980. Porém, a construção do autor foi tão influente que até hoje vemos argumentos baseados em sua proposição para justificar atitudes racistas. Primeiro que, assim como Von Martius sugeriu, ele apontava o protagonismo de brancos, índios e negros na sociedade brasileira. Acreditava que a mesti- çagem, ou hibridismo, era parte natural da transformação social, visto que os europeus também eram formados por vários povos, sobretudo os da Península Ibérica. Essa configuração social dava ao Brasil seu caráter particular e essen- cial, pois a cultura também se mescla e modifica, criando elementos, de fato, nacionais. Por isso a valorização do cotidiano no engenho e em outras formas de socialização: por serem fundamentais na construção do que seria o Brasil. Até aí, não há uma aproximação de Freyre com as teses eugenistas que circulavam na época. Inclusive, ele destacava a força e a virilidade do negro por conseguir se adaptar ao clima, ao local e, até, à dominação. Ele dá aos negros (já que sua abordagem é mais abrangente do que individualizada) agência, isto é, protagonismo. A crítica que surgiu depois foi que Freyre, com sua retórica permeada por adjetivos, ajudou a solidificar a ideia de que haveria uma democracia racial no Brasil. Cada uma das raças teria seu “papel” na formação do Brasil, com uma paridade social e de classe que nunca existiu. O próprio descrevia o negro como uma figura sexualizada e, dessa forma, parte do processo de miscigenação, vide o capítulo IV, intitulado “O escravo negro na vida sexual e da família do brasileiro” (FREYRE, 2003). Outro ponto importante é que Freyre dialogava com seus contemporâ- neos modernistas, que escolheram os índios como o ponto de partida para a construção da memória nacional. Obras como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), e até as românticas de José de Alencar (1829–1877), como O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), ainda que diferentes no escopo, elencaram os nativos como símbolo do Brasil. Freyre (2003, p. 368), contudo, dizia que “Ideia extravagante para os meios ortodoxos e oficiais do Brasil Historiografia política brasileira8 essa do negro superior ao indígena e até ao português, em vários aspectos de cultura material e moral. Superior em capacidade técnica e artística [...]”. Ele se aprofunda ao dizer que a cultura africana não era inferior e que essa afirmação era anticientífica. Porém, ao tentar demonstrar que eram equivalentes, ele atenua os efeitos da violência colonial, monárquica e republicana, visto que não houve um processo compensatório para os séculos de escravidão. Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, tratou desde o período colonial até o século XIX, com foco nos rompimentos institucionais ocorridos no País, como a Independência, a Abolição e a Proclamação. Além de dialogar com a historiografia tradicional feita até então, criticava-a a partir do que acredi- tava ser a melhor perspectiva para se compreender o passado e o presente, sobretudo. O caráter patriarcal e pessoal da política brasileira também era parte da construção social (HOLANDA, 1995). Ao se colocar as ideologias pessoais acima dos interesses públicos, a sociedade se tornou errática e submissa às próprias vontades. Faltaria es- trutura, como o autor diz (HOLANDA, 1995, p. 146): No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema adminis- trativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo família — a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós [...]. O autoritarismo fascista do Estado Novo (1937–1945) era o entrave para o desenvolvimento social e político, mas as raízes criadas desde o período colonial contribuíram para essa situação. É importante destacar que o autor se tornou parte do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) na década de 1960, o que simboliza outro momento importante para a historiografia política brasileira. As universidades e a produção acadêmica a partir dos anos 1990 Na década de 1930, duas grandes instituições de ensino e pesquisa foram criadas: a USP, em 1934, e Universidade do Distrito Federal, em 1935. No caso Historiografia política brasileira 9 paulista, o Departamento de História surgiu logo no início, com o foco no desenvolvimento científico. Para isso, buscaram a contratação de docentes estrangeiros para contribuírem na consolidação desses novos centros de pesquisa. Claude Lévi-Strauss (1908–2009) e Fernand Braudel (1902–1985) assumiram aulas nas ciências sociais e história, respectivamente. Essa vinda dos europeus foi um processo comum às ciências brasileiras, que desde a chegada da Família Real e das Missões Artísticas e Científicas se fiavam no ponto de vista do outro para construir o próprio. A diferença é que, nos anos 1930, a ideia era solidificar o campo de pesquisa a partir de métodos consagrados e trabalhar temas nacionais. Outra questão era a difi- culdade de se encontrar profissionais qualificados. A primeira universidade, a Universidade do Rio de Janeiro, surgiu apenas em 1920. Foi Getúlio Vargas que sancionou leis e decretos autorizando a criação de centros de ensino superior. Um exemplo disso foi o nascimento da Escola Livre de Sociologia e Política, em 1932, em São Paulo, outro local que enfatizava os estudos sociológicos e políticos. Dessa forma, apesar da importância de historiadores como Buarque de Holanda e Freyre, o campo historiográfico floresceu a partir dos anos 1960. E os motivos são diversos. Primeiramente, sugiram mais profissionais no Brasil, ampliando as vozes e as interpretações. Porém, as mudanças teóricas e meto- dológicas que ocorreram em outros países também influenciaram o trabalho desenvolvido aqui. A escola dos Annales (criada em 1927, na França), assim como o Marxismo, transformaram a história. Os historiadores começaram a questionar os paradigmas vigentes como os determinismos explicativos, os grandes esque- mas de compreensão do passado, pouco pessoais. Istoé, não se reconheciam os personagens “comuns” da história, ainda que os antigos “grandes heróis” já não tivessem sido revisados. Cada vez mais a micro-história, ou a “história vista de baixo”, se tornou a perspectiva mais atraente para a análise histórica. José Honório Rodrigues (1913–1987) foi um dos primeiros historiadores a estudar a produção historiográfica feita no Brasil, enquanto o campo ainda era perene. Obras como Teoria da História do Brasil (1949), A pesquisa histórica no Brasil (1952), História e historiografia (1970) foram publicadas em diferentes períodos, mas debatem a construção da narrativa histórica. Novamente, o cenário político influenciou diretamente a produção aca- dêmica. Em 1964, o país viveu o golpe civil-militar e entrou no Regime Militar, que só terminou em 1985, com profundas consequências para a economia e a Historiografia política brasileira10 política. Recortes cronológicos mais curtos, personagens específicos e novas problemáticas ganharam espaço. A ideia de democracia racial de Gilberto Freyre, por exemplo, foi contestada. A escravidão passou a ser tema constante nas análises sobe a formação do País e sob a compreensão de que o racismo era estrutural. Contudo, a ideia, que hoje é solidificada, surgiu nesse momento de desvinculação e debate contra o sistema políticos e autoritário que o País vivia. E isso acontecia com outros temas, como os movimentos sindicais, as greves da década de 1910, o golpe de 1930, etc. Em relação à escravidão, nomes como Florestan Fernandes (1920–1995), Octavio Ianni (1926–2004), Fernando Henrique Cardoso (1931), Jacob Gorender (1923–2013) se destacaram como os primeiros a questionarem a historiografia sobre os negros no Brasil. As portas para novos trabalhos foram abertas. Influenciados pelas mudan- ças metodológicas, autores como Silvia Hunold Lara, que escreveu Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750–1808, de 1988, Kátia de Queirós Mattoso, que fez Ser escravo no Brasil, de 1982, e Sidney Chalhoub, com o já clássico Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, de 1990, solidificaram a nova abordagem para a produção historiográfica brasileira. Eles apresentaram a individualidade do negro escravizado, as reações ao processo violento aos quais foram subme- tidos, seus laços culturais, que se tornaram sociais e políticos. O Brasil era analisado, então, sob a ótica da violência, dos conflitos e das problemáticas que moldaram a sociedade. A década de 1980 representou o fim do Regime Militar e a aprovação da Constituição de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, que trazia à tona pontos fundamentais para o funcionamento do País, como a expansão da educação básica, leis para a erradicação da fome e das consequências da seca, além da criação de um sistema público de saúde. Os direitos civis eram debatidos junto da nova política, que abria espaço para o diálogo. Brasilianistas e a produção historiográfica feita até hoje É importante destacar o papel dos pesquisadores estrangeiros que se de- dicaram a estudar o Brasil, os brasilianistas, e que também influenciaram a produção nacional. Em relação à escravidão, a forma como o País conduziu o fim dessa violência abria questionamentos em outros locais. O fato de não ter ocorrido um processo segregacionista como nos Estados Unidos ou na África do Sul despertava curiosidades. Um dos principais nomes que se estabeleceram aqui foi o americano Robert W. Slenes. Professor da Univer- Historiografia política brasileira 11 sidade Estadual de Campinas (instituição que surgiu no contexto autoritário da década de 1960), ele faz parte do grupo que mudou a forma de se analisar os negros escravizados e o impacto social e político disso. Seu artigo “Malungu, Ngoma vem!: África coberta e descoberta no Brasil”, publicado em 1992, aprofundou a pesquisa sobre a cultura desses povos afri- canos e sobre como essa identidade atingia as relações individuais. A partir da análise dos dialetos originais, ele demonstrou a forma de comunicação criada entre os diferentes povos que foram trazidos compulsoriamente ao Brasil (SLENES, 1992). Essas relações afetivas eram necessárias para a própria sobrevivência. A pesquisa nos arquivos nacionais, sobretudo em documentos jurídicos, ajudou a pintar um novo cenário para a compreensão do negro. O mesmo ocorreu com sua obra Na senzala, uma flor — esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX, de 1999, na qual se dedicou a entender a constituição familiar dos escravizados, abordagem inédita e revolucionária, dando mais um passo na análise de um povo que sofreu violência por séculos e que a historiografia silenciara. Outro nome que compõe esse grupo de brasilianistas exemplifica algu- mas facilidades que o fato de ser estrangeiro traria ao pesquisador. Thomas Skidmore publicou, em 1969, no Brasil (e dois anos antes nos Estados Unidos), sua obra Brasil: de Getúlio a Castelo, que criticava o Regime Militar em pleno vigor. Seu recorte cronológico era inovador por tratar de um assunto recente (o golpe militar de 1964) e por questionar o governo, que, em 1968, adquiriu um caráter mais autoritário com o AI-5. Muitos perseguidos políticos foram exilados, enquanto estrangeiros puderam pesquisar no País. Skidmore (2010) criticava não só os militares, mas também atitudes do presidente deposto, João Goulart. No contexto internacional, a Guerra Fria ficava cada vez mais tensa, e as tendências à esquerda de Jango não eram bem vistas por muitos americanos. Apesar dessa abordagem ter sofrido críticas, a pesquisa que envolvia sua obra auxiliou no estabelecimento de fatos que foram analisados posteriormente. A relação entre Brasil e Estados Unidos, nessa época, pode ser compreendida por meio de visitas aos arquivos americanos, já que esses documentos ainda estão em sigilo por aqui. Não foram só os americanos que estudaram o Brasil e as Américas, no geral. O inglês Kenneth R. Maxwell (1941) escreveu um dos principais livros sobre a Inconfidência Mineira, intitulado A devassa da devassa: a inconfidência mi- neira: Brasil–Portugal, 1750–1808, de 1973. Até então, havia sido construído todo um misticismo simbólico ao redor das figuras do movimento, como descrito acima. A comparação com a Revolução Francesa de 1789 aprofundava ainda Historiografia política brasileira12 mais o caráter “progressista” e “libertador” dos eventos em Minas Gerais. O que Maxwell fez foi apontar novas perspectivas sociais e econômicas sobre a região e as consequências que experienciou no início do século XIX, além dos resultados práticos que se relacionaram ao processo de emancipação e chegada dos portugueses ao Brasil. Dessa forma, a historiografia que exaltava os inconfidentes foi questionada. Dos anos 1990 até hoje, a proliferação de universidades e centros de pesquisa ampliou o escopo analítico brasileiro. Os programas de intercâmbio na pós- -graduação auxiliaram na consolidação dessas instituições como fundamentais para a ciência brasileira. A produção historiográfica sobre a escravidão, por exemplo, despertou questionamentos sobre o racismo atual e influencia trabalhos feitos no exterior, já que, em muitos assuntos, o Brasil é vanguarda na pesquisa. Com a proliferação das universidades federais nos anos 2000, novas temáticas ganharam espaço no cenário acadêmico. A expansão das ciências humanas ajudou no aprofundamento das questões relacionadas ao interior e a locais por muito tempo negligenciados e longe dos centros urbanos e capitais. A internet e as facilidades que dela advêm, como a consulta em arquivos e bibliotecas digitalizadas, aceleram a produção historiográfica. Além disso, novas necessidades foram criadas, como a atualização dos arquivos e da forma de se cuidar dos documentos. Referências BORGES, V. P. Anos trinta e política: história e historiografia. In: FREITAS, M. C. (org.). Historiografiabrasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2007. FREYRE, G. Casa-grande e senzala: a formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003. GUIMARÃES, M. L. S. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 2010. HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26. ed. 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