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A PSICANÁLISE E A CLIVAGEM DA SUBJETIVIDADE


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PARTE ÍII 
A PSICANÁLISE E A CLIVAGEM DA SUBJETIVIDADE 
,\ 
FUNDAÇÃO GETOLIO VARGAS 
INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICOSSOCIAIS 
CENTRO DE pdS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 
PSICOLOGIA E SUBJETIVIDADE 
LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA 
FGV/ISOP/CPGP 
Praia de Botafogo, 190 - sala 1108 
Rio de Janeiro - Brasil 
_~ ,,'<~c 
,: . 
FUNDAÇAp GETOLIO VARGAS 
INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICOSSOCIAIS 
CENTRO DE POS-GRADUAÇAO EM PSICOLOGIA 
PSICOLOGIA E SUBJETIVIDADE ~ 
Por 
LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA 
Tese submetida como requisito parcial 'para 
obtenção do grau de 
DOUTOR EM PSICOLOGIA 
Rio de Janeiro, 
A G R A D E C I M E N TOS 
Quero agradecer a três colegas e amigos que, em 
momentos diversos e d~ maneiras diversas, contribuiram para 
a elaboração deste trabalho. são eles os professores: 
Antonio Gomes Penna 
Clauze Ronalde de Abreu 
Claudio Ulpiano 
iv 
Para Livia, minha mulher. 
" 
R E S U M O 
Este ~rabalho se propoe como uma anilise histórica 
da questão da subjetividade tal como ela foi pensada desde sua 
emergência com Descartes,até Freud. Não se trata propriamen-
te da história' de um conceito mas de uma abordagem h'istórica 
a um espaço mais amplo de questões que tem como referencial 
'0 sujeito e a subjetividade. 
o texto esti dividido em três partes. Na Parte I, 
é analisada a emergência da subjetividade como objeto do sa-
ber e o esforço do racionali~mo para identifici-Ia com a ra-
zão. A Parte 11, é dedicada ã abordagem empirista e seus des-
. . 
dobramentos psicológicos. 'A Parte 111 é toda ela qcupada pela 
questão da clivazem da subjeti~idade operada pela teoria psi-
canalítica. 
o objetivo mais imediato do trabalho, é o de con -
frontar as virias concepções da subjetividad~ considerada co-
mo una e identificada com a consciência, ã concepção que nos 
é oferecida por'Freud e que implica numa subjetividade cliva-
da e num descentramento da razão. Face a este objetivo, a di-
visão do trabalho em suas duas partes iniciais, não se ofere-
ce como' rigorosa mas visa apenas uma maior comodidade exposi-
tiva. 
o objetivo mais amplo do trabalho é, no entanto 
v 
a 'delimitação da questão do platonismo que serve de tessitura 
~o conj~nto dos discursos que compoem o texto, inclusive ao 
discurso psicanalítico. 
Vi 
S U M M A R Y 
This work· proposes to be a historical analysis of 
the question of subjectivity such as it has been underst00d 
since its inception from Descartes until Freud. It is not ·the 
history of a concept actually, but rather the historical 
approach of a broader area of matters with the in~ividual and 
subjectivity as references. 
The text is divided into three parts. In Part I 
it is analysed the emergence of subjectivity as object of 
knowledge, and the effort of ·rationalism to identify it with 
the reason. Part 11 is concerning the empiricism approach and 
its psychological unfoldings. Part 111 is alI concerned with 
the question ofcleavage of subjectivity operated by 
psychoanalytical theory. 
The most immediate purpose of the work is to 
confront the various conceptions of subjectivity co~sidered 
as one and identified with consciouness, with the conception 
as offered by Freud which implies a cleaved subjectivity and 
decentraIization ofreason. In the light of this purpose, the 
two initial parts ofthe work do not stand fo~ a strict divi-
sion, but are rather 50 divided for greater expIanatory conve 
nience. 
The braader purpose of the work, however, is the 
vii 
setting of the boundaries of the question of platonism that 
serves as tissue to the set of discourses which make up the 
text, including the psychoanalytical discourse. 
viii 
S .U M Ã R I O 
Agradecimentos --------------------- iv 
Resumo ---------------- .. ------------ v 
Summary ---------------------------- vi 
PAkTE I:A SUBJETIVIDADE FEITA RAZÃO 
CAP!TULO 1: Descartes e a emerg~ncia da subjetividade 005 
CAP!TULO 2: A teoria das idéias de Ma1ebranche ----------- 033 
CAPfTULO 3: Spinoza e a subjetividade como o lugar da i1u-
- . 
sao ------------------------------------------
CAPfTULO 4: A mônada 1eibniziana ---------~---------------
CAP!TULO 5: Kant e a consciência transcendental 
044 
056 
075 
CAPfTULO 6: Hege{ e a subjetividade feita razão ---------- 095 
CONCLUSÃO ----------------~------------------------------- 115 
PARTE 11: A SUBJETIVIDADE FEITA EXPERIENCIA 
CAPfTULO 1: O empirismo de Locke ------------------------- 120 
CAPfTULO 2: O fenomenismo de Berke1ey -------------------- 152 
CAPfTULO 3: Hume e o delírio da subjetividade ------------ 168 
CAPfTULO 4: O associacionismo inglês --------------------- 191 
CAPfTULO 5: A psicofísica de Fechner --------------------- 226 
CAP!TULO 6: Wundt: psicologia atualista vs. psicologia dos 
conteGdos mentais 236 
CAPfTULO 7: William James e o fluxo da consciência ------- 249 
CAPrTULO 8: Bergson e o devir -------------------------- 280 
CAPrTULO 9: Dilthey e a psicologia descritiva e analíti-
ca ----------------------------------------- 307 
CAPrTULO 10: Brentano e a psicologia empírica ----------- 329 
CAPrTULO 11: Husserl e a subjetividade transcenãental --- 345 
CONCLUSÃO 380 
PARTE 111: A PSICANÁLISE E A CLIVAGEM DA SUBJETIVIDADE 
INTRODUÇÃO: --------------------------------------------- 383 
CAPrTULO 1: A P~-HIST6RIA DA PSICANÁLISE I ------------- 391 
A consciência da .loucura. O saber p~iquiátri­
co. O interrogatório e a confissão. A loucura 
experimental. A hipnose. Charcot e a histeria. 
Trauma e ab-reação. Trauma e defesa psíquica. 
A sexualidade. 
CAPfTULO 2: A PRg-HIST6RIA DA PSICANÁLISE Ir· O "Projeto" 418 
de 1895 -------------------------------------
O aparelho psíquico. A noção de quantidade 
(Q). O princípio de inércia. Os neurônios ~ , 
~ e w • A experiência de satisfação. A emer -
gência do "ego". Processo primário e processo 
secundário. Os sonhos. 
CAP!TULO 3: O DISCURSO DO DESEJO: A Interpre~ação de So- 448 
nhos ----------------------------------------
·Sentido e intepretação. Elaboração onírica e 
interpretação. O simbolismo nos sonhos. O Ca-
pítulo VII e a primeira tópica. Os sistemas 
Ics, Pcs e Cs. Regressão. A realização de d~ 
sejos. A concepção e~olutiva do aparelho psi 
quico~ O recalcamento. 
CAPITULO 4: O DISCURSO DA PULsA0: OS,Três Ensaios sobre 
a Sexualidade. ----------------------------- 496 
Os perversos. A sexualidade infantil. O auto-
erotismo. Zonas erógenas e pulsões parciais. 
As fases de organização da libido. As trans -
formações da puberdade. A teoria da libido. 
CAPITULO 5: PULSÃO E REPRESENTAÇÃO --------------------- 525 
O conceito de pulsão. Pulsões do ego e pul-
sões sexuais. Os destinos da pulsão. Pulsões 
de vida e pulsões de morte. 
CAPITULO 6: O DESEJO 
O modelo hegeliano do desejo. Hegel, Freud e 
Lacan 
CAPITULO 7: O RECALCAMENTO 
O recalcamento e os representantes da pulsão. 
O recalcamento originirio. O recalcamento se 
cundário. O retorno do recalcado. 
CAPITULO 8: O INCONSCIENTE 
A psicani1ise e a psicologia da consciência. 
Os fenômenos lacunare~. O inconsciente e o 
simbólico. A estrutura do inconsciente. As 
característ icas do sistema inconscien·te. "O 
inconsciente ~ estruturado como uma lingua -
569 
588 
614 
gem". Processos metafórico e metonímico. A 
emerg~ncia do inconsciente. A c1ivagem ori 
ginária. 
CAP!TULO 9: O SUJEITO E O EU ------------------------- 658 
A no~io de Ego nos textos metapsico16gicos. 
"Wo Es war, 5011 Ich werden". O estágio do 
espelho e o imaginário. O fenômeno edípico. 
Psicanálise e subjetividade. 
CONCLUSÃO FINAL -------------------------------------- 714 
BIBLIOGRAFIA -----------------------------------------
738 
INTRODUÇÃO 
Este, é um discurso universitário. Discurso que 
se propoe como .retransmis·sor de um saber e, ao mesmo . tempo, 
discurso marcado pelo comentário. 
Enquanto retransmissor de um saber, expoe-se ao 
risco de ser tomado como um mero recitativo do saber veicula-
do pela história; enquanto comentário, é ameaçado pela prete~ 
sao de dizer algo mais do que· aquilo que foi dito no texto 
uma espécie de' discurso epifânico, revelador de uma 
ocul ta nos textos dos Mes t·res . 
. 
verdade 
. g, ainda, um discurso que se coloca no lugar da 
doxa, da opinião, muito mais do que no lugar da sophia, do Sa 
ber. Portan'to, discurso de um aspirante ao saber, cujo recur-
so aos Mestres mal consegue disfarçar uma reverênc~a semi-re-
ligiosa. Essa ieverência é,. no entanto, ilus6ria, posto que 
esse "amateur" da Sabedoria esconde em seu íntimo a pretensão 
de dizer a verdade que o Mestre não disse. 
O que esse discurso-comentá!io pretende portanto, 
nao é apenas ~reencher o vazio da ignorância mas assinalar 
ainda o desconhecimento de que é marcado o texto do Mestre 
isto é, aquilo que esse texto oculta como verdade. 
Ter consciência dessa ambivalência que atravessa 
... 
2 
o discurso universitário nao nos coloca a salvo dos seus efei 
tos mas, ao contrário, nos torna conscientes da luta de morte 
que através dele travamos. Tal como nos enígmas propostos pe-
la esfinge tebana, ou deciframos os textos ou somos por eles 
devorados. Reviv~ncia cotidiana aa situação edípica. Não da-
quele 'Edipo, imerso ainda na aleatoriedade do acontecimento 
mas desse outro, mais, próximo, protegido pelo simbólico. 
Mas esse discurso que nos ameaça, nos fornece tam 
bém a garantia. Discurso platônico sobre ~ platonismo, está 
ao abrigo dos acontecimentos. O simbólico é para ele a media-
ção irredutível. Se ele não é neutro enquanto manifestação das 
nossas idéias, ele é neutro enquanto significação das Idéias 
ou dos conceitos universais. E assim, escapamos cotidianamen-
te da morte real com a condição, é verdade, de não vivermos 
esse real. Essa é, porém, a marca distintiva do platonismo 
astúcia maior do homem ocidental face à exigência irredutível 
do desejo. 
Evidentemente, nao posso negar aqui meu compromi~ 
so com esse discurso. Antes mesmo de nascermos para o saber , 
já somos (com)prometidos. O rompimento desse compr,omisso, no 
meu caso, é lento e penoso. Talvez esse seja o momento catár-
tico que antecede à ruptura. Só que uma catarse invertida. En 
; 
quanto que para os gregos a catarse tinha por objetivo purifi 
car a alma das falsas opiniões, trata-se aqui de purificar a 
alma da Verdade d~s. Idéias. 
-O tema desse discurso e a subjetividade. Esta 
" 
3 
não é tomada aqui como algo acabado que se apresentará ã aná-
lise e em relação à qual cada filósofo colocará seu ponto de 
vista. Não é um objeto já pronto que se oferece aos vários 
olhares e que se sub,meterá às várias "grades" teóricas, mas 
algo que irá se constituindo ne próprio caminhar do pensame~to 
'filosófico. Esta é a razão pela qual não começo pelo que tra-
dicionalmente € considerado como o ponto de partida: à defini 
çao do objeto. Isso seria come~ar pelo fim. 
Sabemos que algo emergiu no interior do saber 
século XVII e que se apresentou como contraposto ao corpo, 
do 
, 
a 
matéria, ao comportamento manifesto, aos acontecimentos ditos 
.:.. 
objetivos e que, por esta razao, se'apresentóu como subjetivo. 
Podemos constatar ainda que esta realidade ,subjetiva se pro-
pôs como sendo mais "real'" e mais "evidente" do que . qualquer 
objeto do mundo. ,yerificamos também que esta subj eti vidade 
foi considerada como estritamente· individual, isto é. como pe.E 
tencente a ,um sujeito e acessível somente a ele. Finalmente , 
tomamos conhecimento de que essa subjetividade foi apresenta-
;.. da como substancial. Ist·o pode parecer mui to, mas e apenas o 
começo. Sua história se desenrola por mais de três séculos. 
Este, é mais o trabalho de um inventariante do 
que o trabalho de um historiador; mais o trabalho de um pro -
fessor do que o trabalho de um pensador. 
4 
Como todo inventário, ele é longo e por vezes ma-
çante. 
Paciência . 
. , 
PARTE I 
A SUBJETIVIDADE FEITA RAZÃO 
5 
CAP!TULO I . 
DESCARTES.E A.EMERGENCIA DA SUBJETIVIDADE 
o século XVII foi um momento da históría do saber 
ao qual estamos, de alguma maneira, até hoje ligados. A par-
tir das críticas de Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e Galileu 
Galilei ele presenciou o progressivo e inexorável declínio do 
modo de pensar aristotélico e viu surgir a nova concepçao do 
mundo produzida por Newton. A.nova física, juntamente com as 
descobertas e a invenção de novas técnicas, ampliaram enorme-
mente os domínios da exterioridade, transportando-nos "do mun 
do fechado ao universo infinito". O modelo mecânico da física 
de Newton é aplicado a uma nova concepção do corpo e um novo 
saber sobre o homem começa a se consti tuir. Em meio a esse no 
vo modo de pensar que reune o céu e a terra numa só explica -
çao, surge a figura complexa de René Descartes, ao mesmo tem-
po revolucionário e herdeiro do pensamento grego e medieval. ~ 
com Descartes que a subjetividade emerge como tema para o sa-
ber e is·to no exato . momento em que este saber se volta para a 
, 
exterioridade de um mundo novo. Duplo movimer.to, em di reção a 
i, • 
exterioridade do mundo e à interioridade da consciência. 
Estas 'duas direções do pensamento moderno nao es-
tão, porem, desvinculadas uma da outra. Na verdade, a investi 
6 
gaçao da subjetividade se coloca como prioritária em relação 
ã investigação do mundo, a consc~ência é o problema primeiro 
a ser resolvido para que possa ser colocada em termos corre -
tos a questão do -mundo. Durante séculos, o saber ocidental 
confundiu o olho e o olhar, acumulou um imenso conjunto de c~ 
nhecimentos a respei to çlo mundo sem se perguntar sobre o suj ei to 
desse conhecimento. Os pensadores procederam como se a subj eti. 
vidade fosse o lugar neutro aonde a realidade se deixaria reve -
lar docilmente. Oque Descartes deixa bem claro é que o objeto 
pri vile giaco a se pensar, naquele momen to, não é o universo que 
se abre ao olhar dos fil6sofos, mas sim esse pr6prio olhar. 
Trata-se de pensar o pr6prio pepsamen~o para em seguida, sobre 
a base s6lida dos seus fundamentos, edificar a ciência. O que 
Descartes procura é uma ga.rantia para o sa.ber, e esta' garantia 
não será procurada na realidade externa mas na pr6pria subjetividade . 
... O ponto de partida de sua filosofia sera, pois, o 
método. Est'e, deverá ser independente de qualquer conteúdo 
particular, para poder ser aplicado a todas a~ ciências e nes 
te caso, o modelo' ideal a s~r imitado é o da matemática. Des-
cartes entende esse método como um conjunto de regras para a 
direção do espírito e estas podem ser reduzidas às quatro se-
guintes: la.) Não aceitar como verdadeiro senão o que é tão 
claro e, tão distinto que não possa ser ~olocado em dúvida 
2a.) Dividir ~ada dificuldade em tantas parcelas quantas fo -
rem possíveis; 3a.) Começar pelos objetos mais simples para 
ascender gradualmente aos mais complexos; 4a.) Fazer em todos 
os sentidos enumerações tão completas e revisões tão gerais 
qu~ se possa ter certeza de nada haver omitido (Dascartes, 48 
7 
11). Dessas quatro regras, a primeira é a mais importante e é 
ela que impõe o critério de certeza, as outras três sao ape-
nas indicações complementares. 
Entendido como "regras para a orientação do espír,i 
to", o método de'fato orienta o espírito para duas operaçoes 
intelectuais que são fundamentais: a intuição e a dedução. O 
privilégio atribuido a estas Juas
operações assinalam ji a di 
reçã~ racionalis~a que vai tomar a filosofia cartesiana. A in 
tuição nos fornecerá evidências, isto é, idéias claras que se 
apresentam imediatamente à razãp e sobre as quais não pode re 
cair qualquer dúvida. Escreve Descartes (48), 
"Entendo por intuição - não a crença ou o teste-
munho variável dos sentidos ou 09 juizos ilu~6-
rios da imaginação" mas 'a concepção de um eSI}í-
rito são e atento, tão fácil e tão distinta que 
nenhuma dúvida possa restar sobre o que compre-
endemos" ; , 
Sobre as evidências fornecidas pela intuição seri aplicada a 
dedução, a' qual nos conduziri às noções derivadas. ~ sobre 
este segundo momento que devem ser aplicadas as r~gras do mé-
todo; o primeiro momento, o da intuição, é anterior à aplica-
ção das regras" e é ele que fornece os princípios que são ad'-
mitidos como inconstestáveis pela razão, independente de qual 
quer prova ou de qualquer argumentação. 
A primeira das regras que Descartes enuncia, as-
sim como o trecho acima no qual ele nos esclarece o que ente~ 
de porintuiçio~ terminam com a afirmação categ6rica de que 
"nenhuma 'dúvida possa restar"'. Este é talvez o ponto fundamen 
tal do pr6cedimento estabelecido por Descartes e sua importa~ 
8 
cia pode ser avaliada pelo fato dele permanecer corno ponto de a-
poio de toda uma linha de pensamento que vai de Descartes a Hegel. 
Vimos que o saber ocidental acumulou, durante vin, 
te s~culos, um conjurito de conh~cimentos que, pela áutoridade 
de seus autores ou pela "evidência" d!l. realidade, parecia ser 
eterno. No entanto, a partir do s~culo XVI este conjunto de 
conhecimentos começa a dar sinais de sua fragilidade e pouco 
a pouco vai cedendo lugar a novos conhecimentos decorrentes 00 
novas descobertas ou de novos modos de pensar. E de repente , 
o mundo, com toda a sua solidez aparente, deixa de ser um cri 
tério crível de verdade, pois que ele próprio começa a ser 
colocado em dúvida. Verdades consagradas há dois mil' anos sao 
questionadas e não resis.tem a' ess.e questionamento. Não há mais 
garantia para o saber. Nem a autoridade dos filósofos ou a 
dos santos, nem o peso da realidade objetiva podem, a partir 
de então, ser considerados como garantia suficiente para o co 
nhecimento. 
Assim, quando Descartes pede uma intuição - e uma 
apenas basta - sobre a qual não possa recair nenhuma dúvida , 
o que ele está procurando ~ a garantia de um fundamento sóli-
do e irrecusável para a filosofia que pretende construir. Eis 
aí a extensão da chamada dúvida metódica: "rejeitar como abs~ 
lutamente falso, tudo aquiÍo sobre o qual possa se imaginar a 
menor dúviqa, a fim de ver se, após isso, não restará algo 
que seja inteiramente indubitável" (Descartes, 48, IV). Veja-
mos o que restou. 
Descartes faz incidir a dúvida, inicialmente, so-
9 
bre os dados sensíveis. Sabemos que os sentidos nos enganam 
freqUentemente; de~endendo das circunstâncias, os objetos se 
nos àpresentam de diferentes maneiras, alterando sua forma 
sua cor, seu tamanho. O'mesmo objeto apresentado dentro de um 
determinado contexto, apresenta certas características qu~ se 
.a1teram quando ele é apresentado em outro contexto. Assim sen 
do, não podemos conferir ao dado dos sentidos uma credibi.1ida 
de como a que Descartes exigia para um fundarr~nto originário. 
Ou seja, não podemos confiar nos sentidos, eles nos enganam 
quanto ã realidade e como não dispomos de. um critério seguro 
de correção desse engano, temos que duvidar do c onhe ci men to 
sensível. Não há nada, ao nível do sensível que possa ser con 
s.iderado como indubi táve 1. 
Se ao nível da sensibilidade nao encontramos uma 
evidência, poderíamos admitir que ao nível da razão ela seria 
encontrada em grande quantidade, posto que a universalidade e a 
necessidade lógica que lhe são inerentes garantiriam a exigên 
cia de indubitabi1idade feita por Descartes. Porém, é um enga 
no, pensarmos assim~ Descartes é muito'mais radical, na ap1i-
cação da dúvida metódica, do que poderiamos supor ã primeira 
vista. 
"Considerando que todos os pensamentos que temos 
quando despertos podem nos ocorrer quando dormi 
mos, sem que haja nerihum, neste caso. que sejã 
verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as 
coisas que até então haviam entrado no meu espí 
rito, não eram mais verdadeiras que as ilusões-
dos meus sonhos" (Des cartes, 48, IV). 
Descartes coloca-se assim, na posição do.poeta chinês que a-
firmou: "Na noite passada, sonhei que eu era uma borboleta, e 
la 
agora nao sei se sou um homem que sonhou que era borboleta 
ou talvez uma borboleta que agora está sonhando que é homem". 
g claro que Descartes nio colocava em dGvida se ele era uma 
borboleta ou um homem, mas nao era uma certeza psicológica' 
que ele estava procurando. Ele podia acreditar que era um ho-
mem, mas não podia encontrar nesta crença a certeza de sê-lo. 
o que ele estava exigindo do seu procedimento metodológico 
era uma certeza que, de forma alguma, pudesse ser questionada. 
O altamente provável, não era suficiente, era preciso uma cer 
teza. Desta forma, a própria existência da realidade acabou 
sendo colocada em dGvida, pois aquilo que se apresenta a -nos 
como sendo o mundo externo póde não ser senão produto de nos-
sos sonhos ou de nossos delírios. Assim, a dGvida que de iRí-
. , 
cio recaiu sobre o conhecimento sensível, passa a incidir so-
bre a própria razão. Não somente o que me é dado pela sensi-
bilidade, mas at6 mesmo aquilo ao qual eu chego pela razio 
pode ser colocado em dGvida, posto que posso estar louco e, 
assim sendo, aquilo que julgo ser lógico, nãó passa de delí -
rio. 
Ampliáda dessa forma a dGvida, parece que nada 
lhe escapa, tudo é dubitável, não há evidência possível. Mas 
na verdade, ao duvidar de tudo. resta algo do qual não pode -
mos duvi,dar: é que estamos duvidando, pois mesmo que duvide 
, 
mos que estamos duvidando. continuamos duvidélndo. Estranha 
conclusão a que chega Descartes, a Gnica certeza é a dGvida . 
Mas, se duvi~o, penso, pois a dGvida é uma forma de pensamen-
to. Assim sendo, a única coisa que resiste ã dúvida é o pens~ 
mento, ou melhor, é que pensamos. 
"Logo me adverti de que. enquanto eu queria pen-
sar que tudo era falso, cumprla necessarlamente 
que eu, que pensava, fosse alguma coisa, e no-
tando que esta verdade: eu penso, logo existo, 
era tão firme e tão certa que todas as mais ex-
travagantes suposições dos críticos não seriam 
capazes de a abalar, julguei que podia aceitá -
la. sem escrúpulo, como o primeiro princípio da 
filosofia que procurava". (Descartes. 48. IV). 
· 11 
Da dúvida chegamos. portanto. à consciência. 'A 
única coisa que se apresenta como indubitável é o sujeito pe~ 
sante. portanto, uma subjetividade individual. g aqui que ap~ 
rece. pela primeira vez no vocabulário filosófico, a palavra 
"consciência". que Descartes identifica com o pensamento: 
"Pelo nome de ~nsamerito. entendo tudo o que em 
nós se dá, de tal maneira que o percebemos ime-
diatamente por nós mesmos tendo dele um conheci 
mento interior; de modo que todas as operações-
da vontade. do entendimento, da imaginação e 
dos sentimentos. são pensamentos" (Descartes 
5 O) • 
ou ainda, 
"pela palavra ~~ar. entendo tudo o que nos a -
contece. de tal maneira que o percebemos imedia 
tamente em nós mesmos; por isso, não 'apenas en~ 
tender. querer, imaginar, mas' também sentir, é 
aqui o mesmo que. pens ar" (Des cartes, 53, I, art. 
9) • 
Conclui-se destes trechos, que Descartes não somente'identifi 
ca o pensamento com a consciência, como também identifica a 
consciência com o psiquismo. Não há, em seu sistema. lugar p~ 
raoinconsciente psíquico. Q in·consciente ou um pensamento in-
consciente, seria um
pensamento que não se daria como tal, i5 
to é, um pensamento que não poderia se pensar, o que, para o 
filósofo, era um absurdo. 
Dessa forma. se até o século XVII o mundo era a 
I 
12 
reálidade e a garantia de toda verdade, como consequência da 
dúvida cartesiana o que restou foi a consciência. Desse momen 
to em diante, o mundo fica redizido i representaçio. 
A extensio dessa nova concepçao é bastante discu-
tida e a questão 40 "idealismo" em Descartes, é, desde entio, 
um tema acadêmico inesgotável. Hamelin (119, cap. XII)" dis-
'tingue duas fases na caracterização do pensamento por Descar-
.tes: uma dualista (realista) e uma monista (idealista). Napri 
meira fase, o pensamento é definido por oposição i coisa não-
pensante" isto é, existe o pensamento e frente a ele existe 
a coisa(não-pensante) que é ao mesmo tempo sua causa e seu oh 
jeto. O pensamento (ou consciência} 'nada mais seria, neste ca 
so, que uma realidade secundaria, um epifenômeno. Sendo ele 
uma representação da coisa', é esta que detérmina sua -existên-
cia. O dualismo é aqui bastante ,~laro,: de um lado temos o peg 
samento - a 'tIres cogi tans" - e 'de, outro te'mos a realidade ma-
terial - a tIres extensa". O que caracteriza a realidade mate-
rial é a extensio e o que caracteriza o pensa~ento é a nao-ex 
tensão. Assim, é precisamente essa característica 'da coisa não-
pensante, a extensão, que vái servir de critério distintivo en 
tre ela e o pensamento: a coisa não-pensante é extensa e o 
pensamento é inextenso. Entre uma arvore real e uma .. arvore 
pensada, a diferença está em que a primeira é material (exteg 
sal e a segunda é imaterial (inextensa); 
"Me referi muitas vezes ao verdadeiro critério 
pelo qual podemos conhecer que o espírito é 
diferente do corpo; é que a essência ou natu-
reza do espírito consiste apenas em pensar , 
enquanto que a natureza do corpo consiste ap~ 
nas em ser extenso; de' modo que não há absolu 
tamente nada de comum entre o pensamento e a 
extensão" (Descartes, 50) 
13 
o caráter realista desse dualismo está também cla 
ramente·caracterizado. Ao rejeitar o pensamento como extenso 
e ao afirmar que ele se cons.tiiui por oposição i extensão que 
lhe é exterior, Desc~rtes está supondo a existência desse ex-
terior que é a realidade material. Seu dualismo implica, por-
tanto, no postulado realista. 
Mas, e é aqui que se inicia o movimento em dire 
.çao à fase monista, a função do pensamento é representar a 
coisa extensa e nada há na realidade extensa que não seja re-
presentável pelo pensamento. Nesse dualismo não há lugar para 
o mistério, para o insondável; nã~ existe realidade alguma 
que o pensamento não possa conter. Tal ponto de vista é sufi-
ciente para não deixar margem i hip6tese .da existência de um 
inconsciente, seja ele de que natureza for. Para Deséartes 
pensamento e consçiência sao uma'só e mesma coisa, não sendo 
admissível um pensamento que não 'fizesse parte da consciência. 
Foi a afirmação de que o pensamen~o expressa a re~ 
lidade total da coisa não-pensante, que deu margem'ao apareci. 
mento da segunda fase a que·se refere Hamelin - a fase idea -
lista. Vejamos porque: l')Descartes admite duas realidades: a 
tIres cogi tans" e a tIres extensa"; 2') O que distingue uma da 
outra é a extensão; 3') A função da tIres cogitans" é a de re-
presentar a tIres extensa"; 4') A tIres cogi tans" (o pensamen -
to) representa a realidade total da tIres extensa"; 5') Logo. 
representa da " res extensa", a pr6pria extensão; 6 ') Se isto 
ocorre, como dintinguir a coi~a pensante (res cogitans) da 
coisa não-pensante (res extensa)? 
14 
Dito de outra maneira: se meu pensamento de uma 
árvore ~eproduz da árvore todas as suas características, como 
posso distinguir a árvore real "da árvore pensada? Escreve Ha-
melin: 
"Com efeito, o peculiar da coisa não pensante ter 
minou por absorver-se no pensamento Réplica-
da coisa, o pensamento reproduzia todos os deta-
lhes do original que duplicava; eis que agora re 
p.róduz inclusive a' característica que perruitiaao 
original distinguir-se dele: a cópia suplanta o 
original (H ame lin, 119). 
'Aqui s.e encontra e.m germe a tese idealista de que nao há coi-
sas independentes da consciência; toda a realidade está encer 
da na subjetividade individual. Se esta tese não fica total -
mente explícita em Descartes, com o desenvolvimento do racio-
nalismo a encontraremos claramente exposta por Leibnii. pelo 
menos no que diz respeito ã realidade material. 
Enquanto que para Déscartes a extensão é uma subs 
tincia independente da consciênc~a e existente por si mesma • 
para a filosofia racionalista posterior ao cartesianismo ela 
se reduz a algo mental. Assim, para Leibniz e ,Kant, a exten -
sao não é uma realidade absoluta existente em si mesma. mas 
uma "ordenação" ideal dos fenômenos (Leibni z) ou uma forma a 
priori da sensibilidade (Kant). Este aspecto da questão ... sera 
trat.ado mais amplamente nos capítulos 4 e 5. De qualquer for-
ma, nao me parece que este sej a o aspecto mais importante a 
se destacar no momento, voltarei a ele mais adiante. 
Retornemos ã questão da dfivida e da consci~ncia. 
Vimos que a consequência imediata da dúvida metódica é a exis 
t~ncia da consci~ncia. Creio, ~orém, que se faz necessário 
15 
precisar um pouco mais como Descartes entende a ambas. Pri 
meiramente a consciência. Esta, não era compreendida por Des-
cartes como uma consciência qualquer, nada tinha a ver com a 
concepção da consciência exposta pelos espiritualistas, pelos 
românticos, pela psicologia ou pela psicanálise: 'a consciên -
cia de' que nos fala Descartes, é .!,.azão, ou pelo menos, o e~ -
forço cartesiano se dirige no sentido 'dessa identificação. Se 
tal esforço não foi totalmente bem sucedido em DesGartes, po-
demos chegar à compreensão deste "insucesso" parcial analisan 
do um pouco mais o seu método. 
Em primeiro lugar, temos que precisar melhor os 
limites da dúvida metódica para,' em seguida, compreen:dermo~ o 
seu racionalismo e como nele se insere sua conce~ção da cons-
ciência. 
A dúvida de Descartes nao é total, ela se restrin 
ge à ordem do conhecimento. Isto significa que há questões 
que permanecem aquém da dúvida limitando, de fora, o espaço 
da filosofia ()6). são questões acei tas provisoriamente e que 
são tratadas de outra maneira. Isto nao está em desacordo com 
o que foi dito anteriormente acerca da aplicação raàical da 
dúvida. Este radicalismo dizia respeito ao espaço do conheci-
mento e apenas a ele. Não se pode, face à realidade, simples-
mente duvidar de tudo, posto que aquele que d~vida, exerce es 
ta dúvida a partir de algum lugar e este lugar. por definição, 
está aquém da dúvida. A dúvida ~elimita os espaços da verdade 
científica e dos valores relativos à condução da vida. Mas a-
té chegar às últimas consequências da dúvida metódica, isto é, 
" 
16 
à aplicação extensiva a estes espaços, impunha-se a Descartes, 
viver. Ou seja, Descartes antes de elaborar sua filosofia,não 
. 
dispunha ainda das verdades que essa mesma filosofia iria lhe 
fornecer e, sobretudo. não dispunha ainda daquelas verdades' 
relativas ao viver posto que est'as só seriam obt';;'das ao final 
de sua elaboração filosófica. Assim sendo. era imperioso que 
ele acei tasse como provisoriamente verdadeiras, uma série de 
questões que servissem para orientar a sua vida. Escreve Des -
cartes: 
"Como nao basta, antes de começar a .reconstruir a 
casa onde se mora, derrubá-la, o~ prover-se de 
materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mes-
mo na arquitetura. nem, além disso, ter traçado 
cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também 
ter-se provido de outra casa qualquer onde a gen 
te possa se alojar cômodamente
durante o tempõ 
em que nele se trabalha; assim. a fim de não per 
manecer irresoluto em minhas ações, enquanto a 
razão me obrigasse ~ s~-lo em meus juizos, e de 
não deixar de viver desde então o mais felizmen-
te possível. formei para mim mesmo uma moral pro 
visória". (Descartes. 48, lI!) -
Desta forma, antes de delinear e.concluir sua fi-
losofia, cumpria ao filósofo. agir, controlar seu corpo e seus 
afetos, limitar seus desejos, orientar-se quanto aos valores e 
a Deus. Isso s5mente seria possível na medida em que' ele acei 
tasse como pressupostos necessários as leis, os costumes e as 
práticas da sociedade. segundo o bom senso e a moderação. E é 
sob essa guia provisória q~e Descartes se lança ao conhecer . 
Portanto. a moral, a religião e o próprio método, ficam fora 
do espaço de abrang~ncia da dGvida. 
Feita essa delimitação, Descartes se lança i cons 
trução de sua filosofia. Essa filosofia, construida de confor 
· 17 
midade com o método, era concebida como uma ciência cujo mode 
10 era a matemitica. Tal é a Filosofia Primeira ou Metafísica 
da qual Descartes nos fornece três versões: a do Discurso do 
Método, a das Medi tações Metafís icas e a Cios Princípios de Fi-' 
losofia. 
Não pretendo apresentar aqui uma anilise detalha-
da des·sa filosofia. mesmo porque não é esse o meu propósito, 
o que me interessa é a concepção cartesiana da subjetividade, 
suas condições de emergência e a importância que ela teve no 
desenvolvimento posterior do saber ocidental. 
Já foi assinaladó. anteriormente, o cariter de des 
continuidade de que se reveste a concepção cartesiana, em re-
lação ao pensamento que a precedeu. Claro esti que esta des -
continuidade não pode ser atribui da específicamente a uma pe~ 
soa - no caso, Descartes - nem ao conteúdo particular de um 
discurso. mas a um conjunto de condições históricas que abar-
ca a produção discursiva, as mudanças sociais. a emergência de 
novas .técnicas, a trans.formações econômicas e políticas, etc 
A descontinuidade de um pensamento esti necessiriamente liga-
da ao problema das relações entre este pensamento e a cultura. 
E a descontinuidade que marca o aparecimento de Descartes, re 
fere-se .muito mais ?- uma mudança no modo de pensar do que a 
um conteúdo pa!ticular do discurso cartesiano. O pensamento de 
Descartes move-se dentro do que Foucault chamou de uma nova 
episteme (66·, capo 111) - em que pese o desagrado manifestado 
posteriormente por Foucault em relação a essa noção. 
O século XVI encerra um período da história do sa 
18 
ber no qual o pensamento é dominado pelo conceito de similitu 
de. Era inteligível, aquilo que era semelhante, e a ciência 
consistia em procurar semelhanças na realidade. Face ã incrí-
vel diversidade do re~l, cabia ao pensamento procurar caracte 
rísticas comuns entre os seres a'fim de agrupá-los em classes. 
Essas características comuns representavam o mesmo, aquilo que 
se mantinha imutável, a essência das coisas. A diferença, o 
fato único, era o impensável. 
Como já foi dito, a ruptura co~ esse modo de pen-
sar nao deve ser atribuída exclusivamente a Descartes. A crí-
ti ca da seme lhança, j á se insinvava com Bac.on e Gal i leu, mas 
é sem dúvida com Descartes que ela vai se fazer de modo mais 
radical. A nova episteme surgida no século XVII é regida pela 
categoria da ordem e não mais pela da semelhança. O projeto 
de todo o saber passa a ser o da constituição de uma ciência 
geral da ordem. A idéia que sustenta esse novo modo de pensar 
é a de que o real pode ser reduzido a um quadro que é a esque 
matização da ordem e a p~ssibilidade desse quadro é dada pelo 
conceito de representação que é o grande instrumento operató-
rio dessa nova episteme. Se na episteme anterior, a relação 
entre o signo e o significado era regida pela semelhança, na 
nova episteme ela p~ssa a ser considerada arbitrária. Assim , 
os sistemas de signos podem representar tudo, e tudo pode ser 
representado pelos signos. Se todo o real é representável, o 
quadro geral. do saber pode abrigar a totalidade do ser (205). 
Esse e o ideal da Mathesis Universalis: a ciência geral da me 
dida e da ordem. 
19 
Agora. a palavra vale na medida em que ela expri-
me uma representação. Todas coisas podem ser representadas e 
todas a~ representações podem ser articuladas pelo discurso . 
O obj eti vo final é, como j á foi di to, o de formar um "quadro": 
Este, pode ser visto como um sis"tema explicativo, como um cor 
po uni.tário de conhecimentos exatos, ~omo um dicionário enci 
clopédico, etc. O fundamental é compreendermos o discurso co-
mo o ponto de encontro entre a representação e o ser. O sonho 
da Mathesis Universalis é o de constituir o discurso totalmen 
te transparente através do qual os seres se tornarão visíveis 
na sua verdade (Foucault. 66, p. 405). Podemos ver a linha 
racionalista da filosofia moderna, como o esforço concentrado 
de tornar esse sonho uma realidade. Spinoza, Leibnize He~el 
sao os grandes representantes dessa nova epistem~, e a esco -
lha do modelo matemático por parte de Descartes decorre do fa 
to de que, para que o discurso possa desempenhar este papel 
que lhe foi conferido, torna-se necessário que a razao se mo-
va sobre princípios a priori. O fim para o qual tende o ideal 
da mathesis, é oda racionalidade integral do real. 
Esse discurso todo-poderoso, lugar oride a realida 
... de se torna transparente e no qual toda a opacidade e relega-
da ao absurdo, cada vez mais se recusa a pensar o homem en-
quanto s'ubjetividade individual e concreta. Uma ciência do ho 
mem nao tem lugar nessa episteme. O "eu pensu" de Descartes , 
não é a afirmação de uma consciência individual mas a própria 
razao colocando se~ valor universal, seus principios inatos, 
necessários e verdadeiros e se afirmando como suficiente para 
dizer o ser. 
20 
Essa consciência, porém, nao fala apenas de si 
mesma, fala também do corpo, posto que o homem não é somente 
"res cogi tans il , ele é também "res extensa"., Se a consciência, 
por nao ser material, é regida por leis próprias e irredutí -
veis, o corpo permanece sendo material e, portanto, um obj~to 
do mundo como qualquer outro. Cumpre. pois, determinar as 
leis de _seu fun'cionamento paralelamente às leis da consciên -
cia. 
Maravilhado com o modelo mecânico oferecido pela 
física galileana. Descartes tenta aplicá-lo ao ho~em, desvin-
culandó a explicação do comportamento de qualquer compromisso 
com o animismo vitalista até então dominante. Galileu. e so-
bretudo Newton. são os grandes inspiradores dessa nova conceR 
ção do homem. Se o mundo pode ser pensado,- segundo o. modelo 
mecânico. como redutível a maté~ia e mavimento. porque não fa 
zer o mesmo' com o corpo humano' j ~ que ele também é material ? 
Juntando a concepção newtoniana do mundo com as descobertas 
de Harvey sobre a circulação sanguínea, Descartes procura con~ 
truir uma fisiologia na qual as coisas pudessem ser explica -
das segundo processos mecânicos, sem a intervenção de nenhuma 
outra realidade 'que não fosse matéria e movimento. 
Dessa forma, é suprimida a antiga doutrina da al-
ma como princípio vital do corpo, passando a vida a ser com -
preendida essencialmente em termos de movimentos mecânicos 
dos mfisculos e dos nervos . Descartes não conseguiu se liber-
tar da antiga concepção dos "espíri tos animais", mas estes se 
rao compreendidos de uma forma inteiramente materialista. Pa-
21 
ra Descartes, todos os movimentos dos músculos, assim como to 
dos os sentidos, dependem dos nervos que são concebidos como 
pequenos tubos cuj a origem está no cérebro e por dentro dos 
quais circulam os "espíri tos animais" (entendidos como partí- . 
cuIas materiais).
Descartes não admite mais a divisão que fa-
zia Galeno entre os espíritos animais, espíritos vitais e es-
píritos naturais, originados respectivamente do cérebro. do 
coraçao e do fígado. A diferença qualitativa que havia sido 
estabelecida entre eles por Galeno. é substituida por uma di-
ferença meramente quantitativa. "diferença de calibre e mobi:. 
lidade entre elementos mais ou menos refinados". O . ... prlnclplo 
material do movimento e dos sentidos ~ um calor localizado no 
coraçao, "uma espécie de fogo aí mantido pelo sangue das 
veias". A localização do fogo no coraçao se deve ao fato de 
que Descartes julgava ser este o mais quente de todo os órgãos 
do corpo. A função principal deste fogo é a de dilatar o san-
gue que enche as cavidades do coração. fazendo-o circular. Os 
espíritos animais seriam constituido~ por pequeninas partícu-
las de sangue, muito fin,as, que se filtram através de diminu-
tos poros e passam das artérias para as cavidades do cérebro 
e daí para os nervos atE os músculos. produzindo sua disten-
sao e os movimentos das partes dos corpos. 
"Enfim, é preciso notar que a máquina de nosso cor 
po é de tal modo composta que todas as mudanças 
que ocorrem no movimento dos espírito~ podem levá-
los a abrir alguns poros do cérebro mais do que ou 
tros. e reciprocamente que, quando alguns desses-
poros. estão mais ou menos abertos que de costume 
pela ação dos nervos que servem aos sentidos, is-
so altera algo no movimento dos espíritos e deter 
mina que sejam conduzidos aos músculos destinados 
a mover o corpo da forma como ele é comumente mo-
vido por ocasião de tal ação. De sorte que todos 
os movimentos que fazemos sem que para isso a nos 
sa vontade contribua (como acontece muitas vezes 
quando respiramos, andamos, comemos e enfim quan 
do praticamos todas as ações que são comuns a nOs 
e aos animais) não dependem senão da conformação 
de nossos membros e do curso que os espíritos, ex 
citados pelo calor do coração, se~uem naturalmen 
te no céreb ro, nos ne rvos e nos mus culos, tal co 
mo o movimento de um relógico é produzido pela 
exclusiva força de sua mola e pela forma de suas 
rodas" (Descartes, 51, art. 9-16) 
22 
o passo seguinte é explicar os sentidos.Estes sao 
divididos por Descartes em duas classes: os sentidos externos 
°e os internos. Os .primeiros se identificam com os cinco senti 
dos habitu8is: visão, audição, tato, gosto e olfato; os segu~ 
dos abarcam as afecções dos nervos )que vao até o estômago, e-
s5fago e partes adjacentes, caracterizando principalmente a 
fome e a sede, junto is quais Descartes coloca a dor e a irri 
tação que a alma percebe c.omo interiores· c.~rett. 24). A estru 
tura fundamental dos modos de sensaçoes pode ser representada 
pela relação entre o objeto externo, os nervos e a alma sensi 
tiva, funcionando os nervos como intermediarias entre o obje-
to externo e a alma. 
A relação entre o objeto externo e o corpo, nao 
apresenta grand~s problemas, já que se trata da relação entr~ 
duas realidades materiais. Tanto o objeto externo como o cor-
°po são materiais; trata-se, portanto, do contato entre uma 
"re s exte ns a" e outra "res extensa", o que nao ap resent a qual. 
quer problema !undamentalmente insolfivel já que a física o en 
carava como uma questão simples de coextensão e movimento (2~. 
O mesmo, porém, nao ocorria com a relação entre a realidade ex 
terna, material, ou seu intermediário (o ~ervo) e a alma, já 
· 23 
que se trata aí da relação entre uma realidade extensa e outra 
inextensa. O estudo dessa relação será tratado na obra de Des 
cartes intitulada As Paixões da Alma e se constituirá na psi-
cofísica cartesiana~ 
O estudo das paixõe~ da alma se refere is mo~ifi­
caçoe~ que esta sofre por influ~ncia de agentes e~ternos. ~o­
mo veremos mais adiante, a alma possui atividades que decor -
rem da ação de elementos estranhos a ela assim come possui a-
tividades que decorrem dela mesma, sendo estas últimas denomi 
nadas por Descartes de atividades puras da alma. As primeiras, 
estão ligadas is sensações como fonte de informações e sao es 
sas atividades que são chamadas de pai~ões~ As paixões sao 
portanto, estados de consci~n~ia decorrentes da ação de ele -
mentos externos sobre a alma e. como tais, sao irredutíveis 
a "res extensa", apesar de possuirem nesta última, sua origem. 
Em contraposi"ção is paixões, as volições seriam ati vidades pr~ 
prias da alma e que teriam nela própria a sua origem. 
Essa distinç.ão coloca um problema particularmente 
interessante. Se paixão e volição são atividades distintas e 
irredutíveis uma ã outra, isto significa que o conhecimento 
adquirido pelo contato com a realidade externa, nada tem a ver 
com a atividade pura da alma, funcionando esta como passiva 
quando ele ocorre. Ou seja., a alma só é ativa quando é vonta-
de; quando é conhecimento do mundo externo, ela é passiva. I~ 
to significa afirmar que, se alma fosse sempre passiva, isto 
é, se sua atividade· única fosse a cognição, nunca haveria er-
ro, pois o conhecimento seria pura impressão da realidade ex-
terior sobre a alma. Mesmo que o pensamento não reproduzisse 
24 
exâtamente o objeto, ele lhe seria adeqaudo porque naohave-
Tia a intromissão de nenhum elemento extranho. No entanto,De~ 
cartes considera que a alma, enquanto volitiva, tem a capaci-
dade de agir e, portanto, de modificar as paixões, tornando o 
pensamento inadequado ã realidade que ele pretende represen -
tar. 
o problema fundamental permanece, porém, nao re -
solvido: como é possível a ação do corpo sobre a alma e vice-
versa~ Descartes afirma que a alma esti ligada ao corpo intei 
ro, mas nao exerce suas funções sobre todas as partes do cor-
po da mesma maneira. Hi uma dentre todas as demais partes do 
corpo humano com a qual a alma esti.ligadade forma mais es-
treita; esta parte é o cérebro porque é através dele que ela 
se relaciona com os sentidos. Descartes precisa melhor o pon-
to de articulação entre a alma e o corpo, dizendo que não -e 
cérebro. em sua t~talidade, o local dessa articulação, mas uma 
pequena parte dele, uma glândula "situada no meio de sua subs 
tância" que vai ser apontada como o lugar aonde se localiza a 
relação do corpo com a alma e desta com o corpo. Esta glându-
la (glândula pineal}, seria~ portanto, a se~e da alma. Situa-
da no meio da substância cerebral e suspensa por cima do con-
duto por onde os espíritos das cavidades anteriores mantém 
comunicação com o das cavidades posteriores, ela se encontra 
numa posição tal, que qualquer movimento que nela ocorra, por 
menor que seja, pode contribuir para modificar o curso dos es 
piritas e, reciprocamente, sofrer modificações decorrentes da 
ação deles. 
25 
Qualquer que tenha sido a tentativa de solução a-
presentada para o problema das relações entre a alma e o cor-
po, permanece como característica fundamental do pensamento 
cartesiano. a irredutibilidade de uma ao outro. Corpo e alma 
permanecem sendo definidos por e"xclusão: enquanto o primeiro é 
tIres extensa", o segundo é tIres cogi tans", sendo que esta ... e 
definida pela exclusão da propriedade fundamental do corpo - a 
extensão. Se o corpo é substância extensa, a alma é substân -
cia não-extensa. 
No entanto. apesar de serem duas substâncias sepa 
radas, algumas atividades da alma possuem sua origem no corpo, 
enquanto que outras são atividades exclusivas da própria alma. 
A atividade que pertence ã alma e que é totalmente independe~ 
te do corpo, é o pensamento. "Verfico - escreve Descartes 
que o pensamento é um atrihuto que me pertence; só ele nao p~ 
de ser separado de mim". (Descartes. 49. 11). A alma quando 
pensa, pensa idéias; idéias que não dependem de modo algum do 
corpo. Como estas
não tem origem em causas externas ao ... pro-
prio pensamento, Descart'es as considera inatas. isto é, qued~ 
correm da atividade pura da alma e não do contat~ desta com 
a realidade externa. As idéias que decorrem de condições ex-
ternas são chamadas "adventícias". Descartes distinguia ainda 
um terciiro tipo de idéias que, apesar de serem produzidas 
pela alma, não eram consideradas inatas. são· as idéias fictí-
cias. 
Referindo-se aos virios tipos de idéias,Descartes 
escreve: 
"ora, destas idéias, umas me parecem ter nasci-
do comigo, outras serem extranhas e virem de 
fora, e outras serem feitas e inventadas por 
mim mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade de 
conceber o que é aquilo que geralmente se cha-
ma uma coisa ou uma verdade ou um pensamento , 
parece-me que não o obtenho em outra parte se-
não em minha'própria natureza; mas se ouço al-
gum ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até 
o presente julguei que estes sentimentos proce 
diam de algumas coisas que existem fora de mim; 
e, enfim, parece-me que as sereias, os hipogri 
fos e todas as outras quimeras semelhantes são 
ficções e inveções do meu espíri to". (Descartes 
49, 11). 
26 
Esta concepçao inatista gozou de enorme prestígio na filoso -
fia moderna de inspiração racionalista e ~erviu de ponto fo-
cal da crítica dos empiristas.. O desenvolvimento do inatismo 
cartesiano ficari claro nos capítulos seguintes, particular -
mente no que se refere a Leihniz. 
A questão do inatismo esti íntimamente ligada 
da universalidade da razão. A dGvida metódica nos conduziu 
-a 
-a 
subjetividade como sendo a Gnica realidade que se apresentava 
com evidente, mas o conteGdo dessa. svbjetivicade era todo ele 
questionivel. De que me adiantaria chegar i conclusão de que 
o pensamento é a Gnica verdade, se aquilo que este pensamento 
pensa é totalmente falso ou falseivel7 A primeira consequên -
cia do método - o "penso" - só teria algum sentido se, a par-
tir del~, algo mais. pudesse ser afirmado. Não é preciso ser 
nenhum Descartes para se chegar à conclusão de que se pensa. O 
importante não é propriamente o ter-se atingido este ponto 
mas sim o como sair dele. Como não permanecer prisioneiro da 
subjetividade? Co~o evitar o solipsismo? A Gnica forma de se 
evitar o enclausuramento total da subjetividade nela mesma, é 
encontrar em seu interior algum sinal inequívoco de transcen-
27 
d~ncia; algo que nesta subjetividade escape ao contingente, 
ao part~cular e que se imponha a ela com uma força tal que ela 
pr6pria tenha que se submeter. 'Trata-se de .encontrar no inte-
rior da subjetividade, algo que pela sua universalidade e pe-
la sua necessidade escape às ficções elaboradas por esta s~b­
jetivid~de. Este algo é a Razão. A razão é o lugar da subjeti 
vidade que por 'se exercer segundo princípios lógico uni ver 
sais, escapa ao psicologismo q1le am~açava a fiJ.osofia cartesi 
.ana. Se a razão está sujeita à universalidade da lógica, ela 
não pode ser dependente da minha vontade individual, das fic-
ções da 'minha imaginação ou do delírio da minha loucura. Aliás, 
a maneira como Descartes v~ a loucura é bas.tante.~expressiva 
desse racionalismo. A loucura é algo que pode atingir o homem 
mas não o pensamento; este só é ameaçado'pe10 erro e pela i1u 
sao e contra ambos a razão possui remédios eficazes. A loucu-
ra, porém, pertence a outro espaço, o que ela ameaça é o ho-
mem enquanto tal e não o pensamen'to. Não existe, segundo Des-
cartes, um pensamento louco, estes termos se excluem mutuamen 
te de tal modo que a loucura da razão é o próprio não-ser da 
razão. Não é o conteúdo do pensamento do louco que é atingido 
pela loucura ma~ o indivíduo enquanto tal. e o indivíduo lou-
co não pensa. O que garante o pensamento contra a loucura não 
. é o conteúdo deste pensamento mas o sujei to que pensa: " 
Não se pode supor,·mesmo através do pensamento, que se é lou-
co, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade 
do pensamento" C.Foucau1t. 68, p. 46). A razão é o lugar de a-
brigo contra a loucura; não existe loucura na razão assim co-
mo nao existe razão na loucura'. Uma "razão irrazoave1" ou um 
28 
"razoavel desatino" - como diz Foucault, - ficam definitivamen 
te banidos a partir de Descartes e só vão recuperar direito 
de cidadania na subjetividade, a partir da segunda metade so 
século XIX. 
o ideal da Mathesis Universalis, que é o de cons-
'truir o discurso totalmente transparente, só pode pois ser rea 
lizado neste espaço da subjetividade que é ocupado pela razão. 
Melhor ainda, para que esta "mathesis" possa se concretizar 
de forma plena. é necessário ampliar os limites da razão até 
que ela se identifique com a própria subjetividade. Mas isto 
somente vai ser atingido com Hegel; Descartes apenas inicia o 
empreendimento da racionalidade integral. 
A força do modelo, no entanto, já era evidente. O 
modelo de racionalidade imposto ao social, sonho platônico de 
vinte séculos, mostrou-se extremamente eficaz, e não é exage-
ro afirmar que vivemos atualmente sua plenitude. A teoria do 
"animal máquina" proposta por Descartes articula~se perfei ta-
mente com este modo de pensar. 
A definição da alma como substância pensante, co-
loca para Descartes um problema que não poderia mais ser re-
solvido segundo os esquemas vigentes desde Aristóteles: Pos -
suem os animais, alma? Desde 'Aristóteles que se distinguiatuna 
alma vegetal, uma alma animal e uma alma humana. Quando, po-
rém, Descartes identifica a razão com a alma, ele se vê'na si 
tuação de ter que optar por uma das seguintes soluções: ou ad 
mite que os animais possuem alma e, neste caso, eles também 
seriam racionais; ou afirma que os animais não possuem alma. 
29 
Descartes optou pela segunda. Os animais sao máquinas; eles 
são em sua totalid,ade o que o homem é em parte. Assim como o 
corpo humano é concebido por ele como uma máquina, os animais, 
por nao possuírem alma, sao em sua totalidade máquinas regi -
das por leis mecânicas. 
Temos. portanto, de um lado o Cogito, encerrado 
em si mesmo. falando uma linguagem universal segundo o modelo 
matemático e incapaz de dizer alguma coisa sobre o homem con-
creto; de outro lado, um corpo funcionando como uma máquina, 
segundo o modelo da física newtoniana. Este, definido como e,! 
tensão pura. como matéria; aquele, definido como nao extensão, 
puro espírito. 
Aparentemente, o "cogite" e o " an imal-máquinà' são 
concepçoes mutuamente excludentes. A verdade, porém, pode ser 
be'm outra. Como nos mostra Canguilhem em seu belo artigo "Ma-
chine et Organisme" (26). a teoria dos animais-máquina é inse 
parável do "penso. logo exis to". Tomando por base o trabalho 
de P.M. Schuhl: "Machinisme et Philosophie" (212), no qual o 
autor demonstra que na filosofia'antiga a oposição entre a ci 
ência e a técnica correspondia ã oposição entre o liberal o 
servil, entre a cidade do homem livre e a dos escravos, Can-
guilhem nos mostra o fundamento da teoria do animal máquina. 
Segundo ele, Descartes teria feito com o animal o que Aristó-
teles havia feito com o escravo: desvaloriza-o com a finalida 
de de utilizá-lo como instrumento. 
O capítulo 11 do Livro I dlA'Política de Aristóte 
les é quase todo dedicado à análise das relações entre o sc-
30 
nhor e o escravo. Concebendo o Estado como uma reunião de fa-
mílias, o filósofo estagirita passa a fazer uma exposição a 
respei to da economia doméstica na qual o escravo desempenha um 
papel de suma importância. Se todas as artes precisam de ins-
trumentos, diz Aristóteles, a ci~ncia da economia doméstica 
também deve ter os seus. Alguns instrumentos são inanimados 
outros são animados. O operário é· um instrumento animado. O 
trabalhador é o primeiro
dentre os instrumentos, e·sendo o 
instrumento uma propriedade, o escravo é uma propriedade viva. 
No entanto, o escravo não é escravo por acidente, ele é "natu 
ralmente" escravo. Ser escravo é uma propriedade que pertence 
a certos homens como uma natureza. ~ verdade que há certos ho 
mens que são reduzidos à escr~vidão, mas esta não lhes é natu 
ral, posto que lhes é imposta pela violência. "Mas há na esp~ 
cie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o 
é em relação ã alma ou a fera aos homens; são os homens nos 
quais o emprêgo da força física é o melhor que deles se obtém' 
(Aristóteles, 2, L.I, capo 2, par. 13). Tais . indivíduos sao 
destinados. por naturez~. à escravidão, nao possuem razao se-
nao a necessária para dela experimentar um sentimento vago 
"Desta maneira - conclui o filósofo no mesmo texto - a utili-
dade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais doméstí 
cos: ajudam-nos com.sua força física em nossas necessidades co 
tidíanas" . 
O mesmo faz Descartes com relação ao animal. O fa 
to dele não possui,r. alma, transforma-o num instrumento. Assim 
como para a economia doméstica, segundo Aristóteles, o escra-
vo era um instrumento chave, para a estrutura econômica e p~ 
· 31 
lítica das sociedades ocidentais a mecanização da vida e a u-
tilização da técnica nos animais são teórica e práticamente ig 
dispensáveis. Mas com"o desenvolvímento das sociedades ociden 
tais, fez-se necessário submeter não apenas os animais, mas 
também os homens. Estes, no entanto, eram dotados de razão 
Não sendo possível subtrair-lhes a ra2.ão. foi-lhe retirada to 
da possibilidade de inteligibilidade de seu trabalho. As fá -
bricas, os escritórios, as grandes empresas, elimi~aram a po~ 
sibilidade de urna razão individual a nao ser aquela necessá -
ria para que o corpo pudesse funcionar com.o um instrumento e-
ficaz. Para que o corpo possa ser submetido, seja ele animal 
ou humano. é necessário que e·le não pense, ou como di zia Aris 
tóteles, "que não possua razão senão a necess ária para de.la 
experimentar um sentimento vago". A doutrina do animal-máqui-
na e o cartesianismo das sociedades contemporâneas estão, por 
tanto, perfeitamente articulados. 
Evidentemente nao pretendo atribuir a Descartes a 
responsabilidade da mecanização da vi·da na sociedade atual 
assim como entendo também que a análise feita por Aristóteles 
do escravo-instrumento pertence a outro solo histórico e que 
só recorrentemente toma o caráter odioso de que se reveste p~ 
- -ra nos. Mas o fato e que a mesma razao que foi por ele apont~ 
da como fator distiritivo entre o homem e o animal, voltou- se 
contra o homem, reduzindo sua subjetividade, com suas incerte 
zas, suas fantasias e suas opacidades, ao erro e ã ilusão. Se 
Descartes não afirma ainda, corno Hegel, que o real é o racio-
nal, ele já está no caminho que conduz ã inexistência o impe!! 
sável logicamente. 
32 
Assim, se sob certos aspectos se abre com Descar-
tes uma nova "episteme", mantém-se também entre ele e o pens!!: 
mento aristótelico'um fio de continuidade, o que faz do autor 
do Discurso do Método, ao mesmo tempo um revolucionário e um 
herdeiro da tradição medieval, como foi dito no início do ca-
pítulo. 
33 
CAP!TULO 1-1 
A TEORIA DAS IDfIAS DE MALEBRANCHE 
A filosofia de Descartes, ao manter a crença na 
existência de duas substâncias distintas e irredutíveis uma à 
outra - a substância pensante e a substância extensa - conce-
de relevo a um problema que se tornará, durante muito tempo, 
foco de atenção dos pensadores modernos: como é possível a co 
municação entre estas duas substâncias? Como o espírito, que 
é uma substância simples. pode atuar sobre o corpo que é com-
posto e como a matéria composta pode sofrer a ação do espíri-
to que é simples? 
Admitimos sem grandes questionamentos que a maté-
ria possa agir sobre a matéria; admitimos também que o espíri:. 
to possa agir sobre ele pr6prio; trata-se nestes casos, de 
substâncias de igual natureza interatuando. Mas não é tão fá-
cil de se compreender como a matéria pode atuar sobre a nao -
matéria e vice-versa. 
O dualismo de Descartes coloca o problema mas nao 
o resolve. O apêlo à glândula píneal não se fez no sentido 
de solucionar a qu~stão, pois que, como solução, era ingênua 
demais para ser proposta por Descartes; podemos supor que se 
tratou mui to mais de localizar o problema do que de solucioná-
10. 
34 
-Durante o seco XVII, duas novas propostas foram 
feitas. Estas, não consistiram em manter o mesmo equacionameQ 
to do problema, mas sobretudo em reformular sua apresentação: 
foram as propostas de Malebranche e de Spinoza. 
Para Malebranche, espírito e matéria continuavam 
a ser concebidos como duas substâncias distintas, mas a união 
entre elas só poderia ser explicada através da introdução de 
uma terceira substância, Deus, que interviria sempre que a co 
municação entre espírito e matéria, alma e corpo, se fizesse 
necessária. 
Para Spinoza, a comunicação entre o espírito e a 
matéria nao se constitui como.problema, pois que nao se tra -
tam de duas substâncias distintas, mas de uma só substânciacom 
dois atributos. Desta forma, a comunicação não se faz entre 
substâncias diferentes, mas entre atributos ou modos da mesma 
substância. 
A concepçao de Malebranche pode ser resumida da 
seguinte forma: Há o espaço e há os corpos que nele se movem. 
Este é um fato da observação que pode ser constatado por qua.!. 
quer um de nós. Mas se os corpos se movem, é necessário que 
alguma coisa seja a causa do movimento, pois que este não po-
de estar contido nos próprios corpos, já que o corpo é maté -
ria e matéria é extensão e esta não pode conter um princípio 
de movimento porque é, por natureza, inerte. Para Malebranche, 
assim como para Descartes, não havia distinção entre a maté -
ria e a extensão. Um corpo nada mais era, para eles, que uma 
extensão limitada, resultando daí que o conceito de corpo se 
35 
identificava com o conceito geométrico de figura. Não podendo 
o corpo conter seu próprio princípio de movimento, posto que 
sua natureza é" idêntica a de uma figura geométrica, a causa 
do movimento que percebemos no corpo tem que estar fora dêle .. 
Mas a realidade não é constituida apenas por corpos; há tam -
bém os" espíritos. No entanto, estes também não podem ser a 
causa do movimento dos corpos, porque sendo os espíritos uma 
natureza simples, não podem exercer influência sob~e o corpo 
que é composto. Também não pode, pela mesma razao, o espírito 
ser causa de movimento do próprio espírit~. Assim, nem o cor-
po pode mover o corpo, nem o espírito pode mover o espírito, 
nem corpo e espíri to podem se"r movidos um pelo outro. A causa 
do movimento não pode, portanto, estar contida nem no corpo, 
nem no espírito; só pode estar contida em outra substância 
que, de fora, atue sobre ambas. Esta substância só pode ser 
Deus, princípio de todo movimento e fonte de toda energia. 
o caminho tomado por Malebranche .segue uma dire -
çao teológica e apologética do cristianismo. No entanto, ele 
nao é tão simplista como pode dar a parecer o resumo acima a-
presentado. Partindo de uma crítica ao cogito cartesiano, de 
uma rejeição das idéias inatas, Malebranche professará um ra-
cionalismo inflexível. Vejamos seus pontos essenciais de for-
ma mais detalhada. 
Se temos por habito apontar nos autores que estu-
damos um ponto de partida - no caso de Descartes, o método 
em Malebranche este ponto seria o de uma ciência descritiva 
da natureza, sobretudo a fisiologia. O porque deste ponto de 
36 
partida nao é difícil de compreendermos~ Assim como Descartes 
procurava, através do método, afastar
a dúvida para poder al-
cançàr as certezas.da razão, Malebranche se preocupa inicial-
mente em afastar as ilus6es dos sentidos e as fantasias da i-
maginação. 
A verdade só pode ser alcançada pela dedução. Só 
há conhecimento quando um procedimento estritamente dedutivo 
é desenvolvido a partir de definiç6es rigorosas. Estas, no en 
tanto, são impossíveis de serem estabelecidas se não forem a-
fastadas as causas psicológicas do erro. ·Di.to de outra manei-
ra não encontramos na consciência. no campo dos nossos fenôme 
nos psíquicos. a garantia de nenhuma idéia que possamos tomar 
como base para empreendermos. a partir dela. o caminho deduti 
vo ~m direção i verdade. Os sentidos são fonte de ~rros e de 
ilus6es. Daí a necessidade de partirmos de uma análise fisio-
lógica das sensaç6es. sobretudo da ótica fisiológica, para que 
possam ser descobertas e eliminadas as causas do êrro. Sobre 
este ponto. é oportuno reproduzir aqui a observação de Cangui 
lhem de que 
lia psicologia se constitui, pois, como um empre 
endimento de desculpa do espírito. Seu projeto 
é o de uma ciência que, face ã física. expli -
que porque o espírito é por .natureza obrigado 
a enganar inicialmente a razã'o relativamente i 
realidade. A psicologia se faz física do senti 
do externo. para dar .conta dos contra-sentidos 
de que a física mecanicista acusa o exercício 
dos sentidos na função de conhecimento" (Can -
guilhem, 27). 
A' análise empreendida por Malebranche' sobre o pr~ 
blema da percepção antecipa em muitos pontos a teoria de Ber-
keley. o que faz com que Cassirer o considere como "o primei-
37 
rO'verdadeiro psicólogo da filosofia moderna" (Cassirer, 31 , 
V. I, L .. I I I, cap. I I c). 
Se Descartes via no "eu penso" uma ponto de parti 
da irrefutável, o mesmo não acontecia com Malebranche. Para 
este, a.consciência não pode se constituir como garantia para 
o saber, pois não temos dela senao uma sensaçao vaga. O que 
chamamos' de "eu" não corresponde, para usarmos a terminologia 
de Descartes, a uma idéia clara e distinta. A idéia que temos 
do eu .não é uma idéia que pela sua clareza possa se apresentar 
como o ponto de partida de uma série de deduç6es rigorosas já 
que, pela mesma razão não pode ser objeto de Uma definição ri 
gorosa. Quando falamos do "eu", o ql!e é designado por este 
termo, é uma série de estados particulares aos quais atribui-
mos uma unidade. Não há, portanto, idéia cJara e distinta do 
"eu", e para Malebranche. uma idéia ~onfusa e obscura não ... e 
uma idéia. 
Tanto a alma como o corpo nos fornecem uma certe-
za quanto as suas existências, mas não nos fornecem certeza 
alguma sobre a sua natureza. Em outras palavras, eu sei que a 
consciência existe, mas não sei o que ela é~ Não há um conhe-. 
cimento da alma, há apenas uma certeza da sua existência. 
Malebranche afirma repetidas vezes que uma idéia 
clara diz sempre respeito a relaç6es. Nó que se refere aos 
corpos, podemos reduzir seu caráter empírico a relaç6es mate-
máticas e a proporçoes numéricas; mas no que se refere à cons 
ciência isto não é tão simples., pois é praticamente imposssí-
velestabelecer uma relação numérica entre dois de seus csta-
38 
do~. Não ~ possível medir duas sensaçoes enquanto fenômenos 
s·ubjetiv.os; o máximo que podemos fazer ~ reduzí-Ias às suas 
causas, aos estímulos objetivos' que a produziram. Estes, por 
serem dá ordem dos corpos, podem ser determinados matematica-
mente, mas nao as sensações enquanto tais. Para que a subjeti 
vidade ascenda à ordem do conhecimento. faz-se necessário en-
contrar •. no mundo físico, um termo que lhe seja correlato. g 
sua relação com a realidade material que lhe possibilita uma 
inteligibilidade. A relação corpo-alma não se constitui, para 
Malebranche. num problema de r~lação entre duas substâncias; 
nao ~ um" problema da ordem do ser. mas ~a ordem do conhecimen 
to. Os fenômenos psíquicos só podem ser objeto da ciência na 
medida em que puderem ser enquadrados num determinado proces-
so fisiológico. g a correlação constante entre os processos 
psíquicos e os processos ccrporais que lhes conferir~ um est~ 
tuto de cientificidade ou mesmo de inteligibilidade. O que t~ 
mos aqui ~ uma antecipação da psicofísica que será desenvolvi 
da posteriormente por Fechner. 
Não há causalidade entre o psíquico e o físico 
entre o subjetivo e o objetivo, há correspondência. E tampou-
co esta correspondência é referida a substâncias, mas a fenô-
menos. Para Malebranche, o paralelismo entre corpo e alma não 
~ um paralelismo de substâncias mas de fenômenos e é a estes 
que a ciência deve se referir. A ciência não pode tratar de 
substâncias, de coisas que estariam por detrás dos fenômenos; 
seu objeto são os conceitos e a experiência. Isto não signifi 
ca que Malebranche negue a existência de uma realidade em si, 
significa que, metodolõgicamente, esta realidade em si" deve 
39 
ser afastada para que se possam atingir as idéias claras e 
distintas e proceder a deduções rigorosas. 
2 essa correspond~ncia entre os fen6menos do cor-
po e da alma que ficou conhecido com o nome de ocasionalismo. 
Nem o córpo atua sobre a alma. nem esta atua sobre o corpo.Eg 
tre ambas as sé.ries de fenômenos há um paralelisIJo. e .este p~ 
ralelismo é garantido por Deus. Quer dizer. cada vez que se 
,produz um movimento na alma, Deus intervém para produzir um 
movimento correspondente no corpo e vice-versa. O mesmo se dá 
com a origem das idéias. Estas não se originam nem do corpo , 
nem do próprio espírito. O homem possui apenas a capacidade de 
receber idéias mas nao de produzí-lás. As id&ias sao criadas 
por Deus sempre que há ocasião para o conh~cimento. 
Dizer, porém, que Deus é a causa dos fenômenos fí 
sicos e dos mentais, assim como da ordem existente entre am-
bos, não é propriamente o ocasionalismo. Este diz respeito 
mais à ordem do conhecimento, pois para Maleb~anche a 
de causa ocasional está indissoluvelmente ligada à-noção 
lei. 
noçao 
de 
A "causa ocasional" nao é anárquica. Há em Male 
'branche um determinismo cujas leis estabelecem rigorosamente 
as várias séries de fenômenos. A causa ocasional ,não é a cau-
sa do real, m~s apenas a expressão de um acontecimento parti-
cular que não contém em si mesmo sua razão de ser. A razão de~ 
te acontecimento é dada pela lei que o preside. Assim, quando 
na experi~ncia se dá o choque 'entre dois corpos, parece- nos 
40 
que ocorre a passagem de uma força de um a outro, mas na ver-
dade trata-se sômente de uma relação constante e sujeita -a 
lei do movimento. E a lei e não os corpos o que confere inte-
ligibi lidade ao fenômeno. (Malebranche, 189, I I I, P. I, cap. 3). 
Diz Malebranche que por mais que se esforce, nao 
descobre nenhuma idéia que represente aquilo que os outros a~ 
tores chamam "força" ou "causa" nos fenômenos mate~iais. Aqu~ 
les que acreditam encontrar esta idéia numa experiência "int~ 
rior", deixam-se apenas levar por urna ilu~ão que não resiste 
a uma análise mais aprofundada. As pessoas acreditam que qua~ 
do dois fenômenos se apresentam sempre juntos e em sucessao 
temporal, um é a causa do outro. Entre o ato de vontade - qu~ 
rer mexer o braço - e a mudança verificada no mundo exterior-
o movimento do braço - não há !lenhuma conexão necessária, nem 
sequer uma conexão conceitual. E um êrro procurar um nexo ló-
gico onde há apenas sucessão e justaposição de fenômenos(Ibid.). 
Não foi sem razao que se comparou Malebranche a 
Hume. Apesar das profundas diferenças que verificamos entre 
ambos, o fenomenismo do primeiro contém uma notável antecipa-
ção de algumas teses do filósofo inglês. Convém, no entanto , 
assinalar que ao monismo (mesmo que metodológico) de Malebran 
che se
contrapõe o pluralismo radical de Hume, assim como se 
opõem o racionalismo do primeiro e o empirismo do segundo. 
Ao contrário do que afirmarão mais tarde os empi-
ristas, Malebranche sustenta que as sensações tem por função 
apenas a conservação da vida e não o conhecimento da verdade. 
41 
Elas nao nos permitem o acesso ao ser concreto de uma coisa, 
apontam-nos apenas suas reaçoes e suas diferenças com relação 
às outras coisas. 
o eu, na medida em que toma consciência de si, tor 
na-se um prisioneiro dele próprio; vê-se enclausurado num cír 
eulo de sensações·e representações, tal como em Descartes. O 
que chamamos de' "realidade", concebendo-a como algo transcen-
dente, não é para Malebranche nais uo que um complexo de i-
'déias que obedecem a determinadas leis de conexão. As coi~as, 
enquanto transcendentes, nunca nos são dadas, é impossível co 
nhecê-Ia's a partir de nossa experiência interior. 
Enquan to Des cartes desenvolve todo o esforço pos-
sível para superar a imanência, para atestar a existência de 
uma realidade exterior à consciência, Malebranche éonsidera 
essa exigência como fruto do hábito e do preconceito, nao nos 
levando a nada que seja de fato concludente. "O mundo é minha 
representação", tal é a fórmula de Malebranche. Procurar de -
monstrar a existência dos corpos é um esforço 'inútil. g claro, 
afirma o filósofo, que podemos construir o conceit~ de maté-
ria e, uma vez feito isto, devemos estabelecer suas qualida 
des e suas características, como por exemplo a extensão e a 
·divisibilidade, mas nada nos autoriza a afirmar a existência 
dessa matérIa a partir de sua idéia. 
Mas se a análise da consciência nos conduz a sabe 
res limitados, particulares, marcados pela finitude do eu, a 
análise dos conhecimentos fundamentais nos remete à infini tu-
de. Se a idéia do círculo é para mim uma imagem imprecisa e 
42 
confusa, resultado de uma multiplicidade de percepçoes de cír 
culos reais, o conceito de círculo se me apresenta como algo 
claro e nítido e como resultado de um processo lógico que 
distinto em todos os seus momentos. 
-e 
Entre o conteúdo confuso de uma idéia e a nature-
za precisa e clara de um conceito, existe uma diferença funda 
men tal. "Res uI ta, pois, para Malebranche, que a origem deste 
conhecimento conceitual não se encontra em nós mesmos, mas nu 
-ma entidade espiritual que se encontra fora de nos mas que se 
comunica ccnosco a cada instante, permitindo que o conhecimen 
to de tais realidades se faça. 
Aqui se manifesta com toda clareza a crítica de 
Malebranche i teoria das idéias inatas de Descartes. Não hi 
idéias inatas. Os princípios lógicos universais, as verdades 
da matemitica, nio estão em nós, mas em Deus. O homem as per-
cebe em Deus e por Deus. O mesmo se di com os corpos. Nós -so 
os conhecemos por intermédio das idéias, mas estas são produ-
-zidas por Deus, ou melhor, existem em Deus, portanto e nele 
que as percebemos: intuimos todas as coisas em Deus, diz Male 
branche. 
O racionalismo de Malebranche se acentua ainda 
mais quando ele procura estabelecer a relação entre a Razão 
e Deus. Se as leis e as verdades eternas dependessem de Deus, 
escreve ele na parte 11 de La Recherche de la Vérité, se fos-
sem estabelecidas pela livre decisão da vontade divina, se 
nao houvesse independ5ncia da !azão com relação a Deus, então 
nao haveria diferença possível entre as verdades matemiticas e 
43 
as verdades dos sentidos. No entanto, é indiscutível a dife -
rença existente entre as idéias decorrentes dos sentidos e os 
conceitos elaborados pela razão. ~ssim, é indispensivel que a 
razão seja independente de Deus. Isto, porém, não significapi 
ra o filósofo que o próprio Deus' tenha que se submeter aos 
princípios da razão, mas que a própria razão se faz divina. 
Apesar da intolerância de Malebranche com relação 
às idéias de Spinoza, vemos esboçar-se aqui uma direção pan -
teísta de seu pensamento que muito o aproxima do spinozismo . 
Podemos mesmo pensi-lo como uma transição entre o dualismo de 
Descartes e o monismo de Spinoza. 
44 
CAP fTULO I I 'I 
SPINOZA E A SUBJETIVIDADE COMO O LUGAR DA ILUSÃO 
Uma das características mais importantes da filo 
sofia de Descartes é sua tentativa de manter a união substan 
cia1 da alma com o corpo. Como esta união era ininte1igÍvel 
para o entendimento, Descartes faz da finalidade divina sua 
garantia. Tanto a tese da união su.bstancia1 alma-corpo, como 
a tese da finalidade divina serão combatidas e negadas por-
Spinoza. A primeira é negada através da ~eoria do paralelis-
mo; a segunda por meio da crítica ã doutrina do fina1ismo. 
Não há, segundo Spinoza, relação de causalidade 
entre corpo e alma nem tampouco predomínio _ de um sobre o ou-
tro. Isto porque corpo e alma nao são duas subst~ncias dis -
tintas, mas dois atributos de uma só e mesma substância. "En 
tendo por substância o que é em si e é concebido por si, is-
to é, aquilo cujo conceito pode ser formado sem haver neces-
s idade do conce i to de outra cois a" (Spinoz a, 215, I). Se gun-
do o panteísmo spinozista. há uma única substância. Como to-
das as coisas existentes t~m sua causa em"outra, nada haven-
do de concreto que tenha sua causa em si mesmo, nenhuma coi-
sa em particular é uma substância. A única substância exis -
tente é Deus ou Natureza. Neste ca~o, em que consiste o ser 
45 
das coisas que fazem parte do Universo? São atributos divi -
nos, responde Spinoza. Só há uma substância: Deus. o resto 
-e atributo ou modo divino. "Entendo por atributo aquilo que 
a razão concebe na substância como constituindo sua ess~nci~' 
... "Entendo por modo as afecções da substância ou o que -e 
em outra coisa e é concebido por esta mesma coisa" (ibid.) 
Resumindo: o que existe em si é" a substância; o que existe em 
outra coisa chama-se atributo ou modo; atributo quando é con 
cebido na substância como constituindo sua ess~ncia; modo 
quando exprime simplesmente alguma afecção da substância. 
Assim, extensão e pensamento sao atributos da 
substância e não duas substâncias distintas como em Descar -
teso Isto significa dizer que Deus não criou as coisas, es-
tas são modos da substância divina, isto é, sao Deus também. 
Não há distinção entre criador e criatura. 
Dentre os infinitos atributos divinos, sõmente 
dois sao por nós conhecidos: a extensão e o pensamento. Por-
tanto, só destes dois atributos é que podemos considerar os 
modos. Há, pois, os modos da extensão e há os modos do pens~ 
mento. Os modos da extensão são os corpos; os modos do pens~ 
mento são as idéias. Os modos da substância em geral, são as 
coisas". Se as coisas são modos da substância e se a substân-
cia cont"em necessariamente extensão e pensamento como seus 
atribu~os, cada coisa deve conter não s6mente um modo da ex-
tensão, mas também um modo do pensamento. Portanto, corpo e 
idéia, corpo e alma são, não duas substâncias distintas, mas 
dois registros diferentes de uma mesma substância. Tudo en -
46 
cerra um corpo e uma idéia. "A ordem ~ a conexao das idéias 
é a mesma que a ordem e a conexão dos corpos" (Spinoza, 215, 
11; 7). Eis aí as bases da douttina do paralelismo. 
o paralelismo de Spinoza nega, portanto"qualquer 
relação causal entre a mente e o corpo, assim como qualquer 
sujeição de um sobre o outro. A afirmação do paralelismo tem 
implicações bem mais amplas do que parece ã primeira vista , 
pois. significa a retirada do apoio que a filosofia dava 
moral ao conceder ã alma o poder e a missão de governar o co.!: 
po impedendo-o de cair em tentação. Em As. Paixões da Alma 
(art. 2), Des cartes afirmava que "não notamos que haj a algum 
sujei to que atue mais imediatamente contra

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