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132 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Unidade III 7 A POLÍTICA NO ÂMBITO INTERNACIONAL Mas os preconceitos contra a política, a concepção de a política ser, em seu âmago interior, uma teia feita de velhacaria de interesses mesquinhos e de ideologia mais mesquinha ainda, ao passo que a política exterior oscila entre a propaganda vazia e a pura violência, têm data muito mais remota do que a invenção de instrumentos com os quais se pode destruir toda a vida orgânica da face da Terra. No que diz respeito à política interna, são pelo menos tão antigos quanto a democracia de partidos – quer dizer, pouco mais de 100 anos –, a qual alega, pela primeira vez, representar o povo na história mais recente, se bem que o povo jamais acreditou nisso. A política externa surgiu, de fato, na primeira década da expansão imperialista, por volta da virada do século, quando o Estado nacional – não por incumbência da nação, mas sim por causa de interesses econômicos nacionais – começou a levar o domínio europeu para todo o planeta. Mas o verdadeiro ponto principal do preconceito corrente contra a política é a fuga à impotência, o desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir, outrora preconceito e privilégio de uma pequena camada que, como lorde Acton, achava que o poder corrompe e a posse do poder absoluto corrompe em absoluto. O fato de essa condenação do poder corresponder por inteiro aos desejos ainda inarticulados das massas não foi visto por ninguém com tanta clareza como Nietzsche, em sua tentativa de reabilitar o poder – se bem que ele também confundisse, ou seja, identificasse, bem ao espírito da época, o poder impossível de um indivíduo ter, visto ele surgir somente pelo agir em conjunto de muitos, com a força cuja posse qualquer pessoa pode deter (ARENDT, 2002, p. 27-28). No tom dado por Hannah Arendt (2002), temos a verdadeira medida da expansão levada a cabo pelos aventureiros europeus. A política externa como extensão do “impulso” político direto, de um projeto de europeizar o mundo com seus joint ventures de armadores, banqueiros e coroas, promovendo um mundo maior, expandindo-se como uma enxurrada que carrega a todos. Considerando a noção de desenvolvimento corrente e majoritária, adota-se o estilo eurocêntrico das mudanças sociais (crescimento, modernização e desenvolvimento), que é difundindo por formas e inovações às franjas ou periferias do sistema internacional, isto é, para o conjunto dos países subordinados às nações mais ricas. Muitas vezes o desenvolvimento é um fim em si mesmo. 133 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA 7.1 Colonização e autodeterminação: decolonização O colonialismo e o imperialismo são os principais instrumentos da difusão das experiências europeias e, mais tarde, também estadunidense. Trataremos dos aspectos mais destacados da “história do mundo determinado”: generalização do desenvolvimento único de matriz europeia (esta, a determinante), com ajuda do colonialismo e do imperialismo, que serão estudados adiante. A linha básica da apresentação desse modelo de desenvolvimento leva em conta os seguintes eventos instauradores e condutores da modernidade: as revoluções promovidas pela burguesia, viabilizadas pela criação dos Estados nacionais, o campo das relações interestados e a expansão comercial acentuada com as grandes navegações e correspondentes sistemas de apropriação de riquezas, como mercantilismo, colonialismo, neocolonialismo, imperialismo e globalismo, cujos sentidos obedecem à diretriz elementar da reprodução ampliada de valor: movimento orgânico de capital, nas formas dinheiro-mercadoria-dinheiro com lucro (D-M-D). Tais regimes de produção e apropriação são tratados aqui como organizações históricas, do ponto de vista dos agentes em busca da realização da racionalidade capitalista, isto é, da expansão socioespacial das relações regidas pela lógica da mercadoria, desses valores no mercado, ao mesmo tempo que ocorre a concentração dos agentes, de detentores a zeladores do capital. Parece oportuna a lembrança do discurso do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, no Congresso Nacional, em 1938, preocupado com os impactos da “concentração opressora” da livre iniciativa estadunidense. Entre nós, atualmente, está se desenvolvendo uma concentração de poder particular na história [...] Hoje muitos americanos perguntam uma coisa difícil de responder: Esse clamor de que nossas liberdades estão ameaçadas é justificado pelos fatos? [...] A resposta é que, se existe uma ameaça, ela provém do poder econômico concentrado, que está lutando para dominar o nosso governo democrático [...] Essa mão pesada, representada pelo controle integrado, financeiro e administrativo, abate-se sobre grandes áreas estratégicas da indústria americana. O pequeno negociante infelizmente é colocado numa posição cada vez menos independente. A empresa privada está deixando de ser empreendimento livre para se tornar um grupo de coletivismos particulares; disfarçada de sistema de livre empresa, calcada no modelo americano, está na verdade transformando-se num sistema mascarado de cartel, segundo modelo europeu [...] Nenhum povo, e muito menos um povo que tem as nossas tradições de liberdade pessoal, suportará essa lenta erosão das oportunidades oferecidas ao homem comum, ou a sensação deprimente de impotência sob o domínio de alguns homens, fatos que estão obscurecendo nossa vida econômica (SANCHEZ, 1999, p. 15). Algumas das ideias de Singer (2004) e de Dowbor (1982) estão presentes no ponto de partida (no questionamento sobre os envolvidos e a finalidade do desenvolvimento) e na chegada (na politização 134 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III das alternativas). Na partida, ao identificar as necessidades fundamentais de nosso desenvolvimento, e no desfecho de suas obras com suas ideias de economia social e solidária. Eles não estão sós, pois nomes como Enrique Leff (sociólogo), Ricardo Abramovay (economista) e José Eli Veiga (agrônomo e economista) integram o rol dos que se preocupam com o futuro comum, sustentável de fato. Assim, da derrocada do feudalismo à consolidação e aceleração do capitalismo, temos um longo período de construção material (aparato produtivo ou território) e institucional (leis, tratados, protocolos de intenções, acordos). A perda do poder do senhor feudal e da Igreja acarretou ganhos de importância da nacionalidade para as populações europeias, tendo como símbolo o monarca. Estava associada e foi motivada pela luta por territórios e pela manutenção da identidade da nação pela língua, moeda e legislação nacionais, além de por conquistas decorrentes da centralização do poder nos Estados-nação. A Revolução Industrial na Inglaterra teve desdobramentos no século XIX, em especial no que diz respeito à crise do capitalismo entre 1873 e 1893 e ao neocolonialismo. Como momentos agudos de crises, citamos as duas Guerras Mundiais e a Crise de 1929. A industrialização inglesa apoiou-se no setor têxtil, siderúrgico e de mineração de carvão. Totalmente mecanizada, a fabricação de tecidos de algodão (acelerada pela utilização da lançadeira volante e do tear mecânico) permitiu o incremento da produção e a exportação do produto. A siderurgia possibilitou a construção de estradas de ferro, e a mineração do carvão (combustível da máquina a vapor) acompanhou a expansão. O imperialismo na África e na Ásia ocupava a agenda das potênciasocidentais europeias e dos Estados Unidos. França Alemanha Inglaterra Itália Portugal Espanha Bélgica Países independentes Figura 2 – A ocupação da África pelas potências europeias no século XIX 135 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Ou, ainda, na gravura: Figura 3 A Ásia esteve bastante isolada dos europeus durante séculos. Os contatos comerciais, travados desde a época moderna, restringiam-se a alguns portos. No século XIX, essa situação se alterou e as potências estrangeiras passaram a disputar entre si para ver quem conseguiria estabelecer zonas de influência no continente. O novo colonialismo atingiu a Ásia com a dominação inglesa sobre a Índia. A partir de 1763, o país foi administrado pelos ingleses, através da Companhia das Índias, que empreendeu a exploração econômica e estendeu a ocupação para o interior. Em 1858, estourou a Revolta dos Cipaios, um movimento de soldados hindus que serviam nos exércitos coloniais e lutavam para ter os mesmos privilégios dos soldados ingleses. O levante, duramente reprimido, adquiriu aspectos sociais e assumiu feições nacionalistas. 136 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Legenda Potências coloniais em 1870 Ingleses Franceses Portugueses Otomanos Holandeses Espanhóis Russos 1846 Data do controle europeu Estados principescos da Índia Portos chineses abertos às potências imperialistas a partir de 1842 Figura 4 Crescia o interesse europeu pelos mercados asiáticos, que relutavam em abrir seus portos ao comércio estrangeiro. As investidas diplomáticas europeias para penetrar nesses países se alternavam com a força das armas. 137 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Na China, a Guerra do Ópio (1840-1842), motivada pela destruição de carregamento de ópio dos ingleses que vinham fazendo esse comércio na região, permitiu à Inglaterra assumir o controle dos importantes portos de Hong Kong, Xangai e Nanquim. Com tais acontecimentos, outras expedições militares dos europeus levaram à abertura de novos portos. A China acabou sendo dividida em áreas de influência entre Inglaterra, Rússia, Alemanha, França, Itália e Japão. Em reação a essa invasão, uma sociedade secreta passou a efetuar atentados em ferrovias, matando missionários e diplomatas ocidentais. Originou-se, assim, a Guerra dos Boxers (1898-1900), que foi reprimida por tropas ocidentais, intensificando-se a influência europeia na China. O Japão havia ficado isolado do Ocidente, pois receava ser dominado (invadido e controlado) pelas potências europeias. Foi por essa razão que começou a estabelecer os primeiros tratados comerciais com os EUA. A partir de 1860, japoneses foram enviados à Europa e aos EUA para estudar principalmente ciência e tecnologia. Com isso, foi possível iniciar um processo de industrialização e modernização do país, levando-o a participar da corrida imperialista na região e obter influência sobre parte da Coreia e da Manchúria, área da porção nordeste da China. A Revolução Industrial britânica não teria ocorrido sem a contribuição das condições fornecidas pela indústria do algodão, ou seja, sua familiaridade com o ambiente fabril (e a necessidade dele derivada de manutenção física das fábricas), o emprego de numerosa mão de obra e seu peso no montante total do comércio inglês: A indústria algodoeira foi assim lançada, como um planador, pelo empuxo do comércio colonial ao qual estava ligada; um comércio que prometia uma expansão não apenas grande, mas rápida e sobretudo imprevisível, que encorajou o empresário a adotar as técnicas revolucionárias necessárias para lhe fazer face. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de algodão aumentou mais de dez vezes (HOBSBAWM, 2010, p. 68). Até mesmo a Índia deixou de representar um continente exportador e passou a ter o papel de comprador dos produtos de algodão, já que perdia a corrida industrial. Pela primeira vez, invertia- se a relação de comércio mantida por um longo período entre Oriente e Ocidente. À Inglaterra, coube o monopólio do mercado exportador, sobretudo por meio dos acessos obtidos nas colônias, que, por sua vez, passaram a depender das importações britânicas – ainda mais em períodos de guerra na Europa. Hobsbawm (2010) nos relata que, em 1814, a exportação inglesa era de 4 jardas de algodão para cada 3 jardas usadas internamente; em 1850, essa proporção subiu de 13 para 18 jardas Do ponto de vista urbano-industrial, a paisagem inglesa transformou-se profundamente. Centenas de fábricas se espalharam pelas cidades, e essas cidades aglomeravam-se cada vez mais. As grandes potências avaliaram que a conquista de novas fatias de mercado só aconteceria caso houvesse briga entre si. 138 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Contudo, como tais nações não queriam brigar, decidiram não competir. Você deve se perguntar quais foram as estratégias formuladas pelas grandes empresas. Elas resolveram criar trustes, grupos que reuniam entidades coligadas que recebiam parcelas dos lucros conforme a porcentagem de participação. Quando os trustes foram declarados ilegais, criou-se o dispositivo que permitia às organizações a compra de ações de outras empresas, em um verdadeiro processo de fusão. Nos EUA, só na manufatura e na exploração de minério, ocorreram 43 fusões em 1895 [...]; 26 fusões em 1896; e 69 em 1897. Em 1898, havia 303 – e finalmente, em 1899, um clímax de 1208 fusões combinavam 2,26 bilhões de dólares em ativos corporativos (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 111). Com o objetivo de firmar monopólios, o capitalismo (monopolista) tinha que resolver problemas, o que explica a sucessão do colonialismo (produção) para o neocolonialismo (produção e consumo). A premência em expandir os horizontes fez com que esses países dirigissem seus olhares para territórios estrangeiros não industrializados. Os países centrais, interessados em controlar seu próprio suprimento de matérias-primas para a produção monopolista, não mais encontravam a segurança devida em seu fornecimento por meio das trocas comerciais existentes. Fazia-se necessário para a manutenção da exploração capitalista, então, controlar as regiões de onde provinham os recursos primários. Havia a preocupação, também, de aumentar a demanda cujo consumo escoaria a produção em larga escala dos países industrializados. A desigualdade de renda interna desses países não permitia a definição de um mercado que se encarregasse de consumir a produção, e a competição internacional era inerente à exportação. Assim, o neocolonialismo servia e respondia à “necessidade como frente de investimento dos excedentes econômico-financeiros das economias industriais”. Daí, nessas condições, “a melhor saída que se apresentava era a conquista de mercados externos, ainda que fosse pelo comércio, não envolvendo dominação política”, ao menos não pelas armas, isto é: O imperialismo levou à formação de grandes impérios coloniais [...], mas essa foi apenas uma de suas formas de ação. Em muitas ocasiões não era possível ou vantajoso submeter politicamente uma determinada região ou país, às vezes nem sequer necessário. A evolução das forças produtivas nas economias industrializadas fora tão grande e tão rápida, e o poderio econômico desses países crescera de tal forma que asoutras nações, quisessem ou não, haviam passado a depender deles, e de seus grandes monopólios (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 331). Explorar economicamente países periféricos, entretanto, não era tarefa simples ou justa. A ação capitalista trouxe consigo a responsabilidade pela dependência comercial, pela subjugação política e, por vezes, pela eliminação da cultura e da população locais. 139 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Observação Neocolonialismo é o terceiro componente fundamental do imperialismo (os outros dois são o capitalismo monopolista e o oligopolista), ou seja, a evolução do capitalismo contemporâneo. Assim, a divisão dos territórios não industrializados pelas grandes potências no fim do século XIX e começo do século XX segue se desdobrando, trazendo consequências negativas no processo de desenvolvimento econômico dos países colonizados (ou cujo mercado interno foi monopolizado) nos dias atuais. A África, em especial, foi devastada por esse processo. Saiba mais Sobre o tema do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo, sugerimos os seguintes filmes: DIAMANTE de sangue. Dir. Edward Zwick. EUA: The Bedford Falls/Virtual Studios/Initial Entertainment Group, 2006. 143 minutos. O MOTIM. Dir. Ketan Mehta. Índia: Inox Leisure. 2005. 150 minutos. GANDHI. Dir. Richard Attenborough. Reino Unido; Irlanda do Norte: Columbia Pictures, 1982. 191 minutos. HOTEL Ruanda. Dir. Terry George. Reino Unido; Itália; África do Sul; Estados Unidos: Lions Gate Entertainment/United Artists, 2004. 121 minutos. Jeffry A. Frieden afirma que a corrida para a independência no período entre 1914 e 1945 não afetou apenas a América Latina, mas todo o mundo em desenvolvimento. A maior parte da África, do Oriente Próximo e da Ásia continuava colonial. Nas colônias, o isolamento em relação à economia mundial também estimulou a urbanização e a industrialização, fortalecendo o comércio local e os interesses da classe média, enfraquecendo também a economia exportadora. Esse isolamento arruinou os defensores do sistema colonial e reforçou a influência dos que viam o colonialismo com desconfiança ou hostilidade. Na época da Segunda Guerra Mundial, os impérios europeus estavam no auge; fora da América Latina, apenas alguns países pobres eram teoricamente 140 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III independentes. Os franceses e os britânicos prometiam conceder direitos adicionais aos seus subordinados mais rebeldes, e os Estados Unidos, a independência das Filipinas. No entanto, os resultados ainda estavam por vir. Em 1945, com exceção da América Latina, o mundo em desenvolvimento continuava colonial e não havia perspectivas de mudança. O colonialismo, contudo, entrou em colapso com uma velocidade impressionante. Até 1965, havia desaparecido, apesar de algumas exceções e do anômalo Império fascista Português, que resistiu por mais dez anos. Alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, quase toda a Ásia colonial tornou-se independente. Os japoneses saíram da Coreia e de Taiwan; os franceses deixaram a Indochina; e os holandeses, as Índias Ocidentais. Os protetorados franceses e britânicos no Oriente próximo (Síria, Líbano, Israel e Jordânia) estavam todos livres. E o mais importante: a menina dos olhos do Reino Unido, a Índia britânica, que havia se expandido do Irã ao Laos, deu origem – após uma guerra sangrenta e mutuamente destrutiva – a quatro nações livres: Índia, Paquistão, Burma e Sri Lanka. A maior parte do norte da África se tornou independente durante a década de 1950. A partir de 1957, a África subsaariana foi rapidamente liberada (com a exceção, mais uma vez, das colônias portuguesas) e o mesmo ocorreu na Malásia, última possessão na Ásia. Em meados da década de 1960, o controle norte- americano sobre Porto Rico transformou os Estados Unidos na principal potência colonial do mundo – embora o título fosse discutível. Tal situação era irônica, dada a longa tradição anticolonialista no país. O fato de que 20 anos após a Segunda Guerra Mundial a maior colônia de uma das principais nações do planeta ser não mais a Índia ou a Argélia, o Congo ou a Indonésia, mas uma pequena ilha do Caribe, mostrava o quanto o mundo havia mudado. [...] A velocidade com que o colonialismo ruiu pode ser atribuída a uma série de motivos. O primeiro foi a evolução social e política das sociedades coloniais. Após 1914, a riqueza, o poder e a influência daqueles que rejeitavam ou desejavam modificar a economia colonial clássica aumentavam de forma contínua. Os mesmos processos econômicos e políticos que mudaram o rumo do desenvolvimento latino-americano estavam em curso na Ásia e na África: crescimento dos centros urbanos e industriais; insatisfação com a produção de matérias-primas para exportação; e desejo por diversificação e industrialização. O colonialismo também fora destruído por problemas globais, que isolaram as colônias do resto do mercado mundial, desorganizaram a economia exportadora, estimularam a urbanização e a industrialização, e consolidaram os interesses da classe média e dos comerciantes locais. 141 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA As dificuldades econômicas do entreguerras enfraqueceram os colonialistas e fortaleceram os incrédulos ou hostis ao colonialismo. Às vezes, os conflitos entre as potências coloniais e os novos grupos sociais se transformavam em rebeliões militares contra o regime, como na Indonésia e na Indochina. Nos outros lugares, a ameaça de levantes anticoloniais refreou bruscamente as ambições das grandes potências (FRIEDEN, 2010, p. 456-457). Figura 5 – Os impérios Lembrete A Revolução Industrial na Inglaterra teve desdobramentos no século XIX, em especial no que diz respeito à crise do capitalismo entre 1873 e 1893 e ao neocolonialismo. Quanto aos mecanismos do processo de colonização ou conquista descritos por Jeffry A. Frieden, destacamos: Os colonizadores, então, tentaram suprir as demandas locais. A Índia, que já havia conquistado o direito de decidir sobre suas próprias tarifas, conseguiu estabelecer um governo quase autônomo em 1937. Outras possessões foram contempladas com benefícios semelhantes para o poder local. No entanto, para muitos dos líderes das colônias, isso apenas enfatizava a irrelevância da ordem colonial. O controle imperial podia ser apenas aparente ou existir de fato. Se o caso fosse o primeiro, não haveria razões para ser mantido; se o caso fosse o segundo, haveria ainda mais motivos para que se abandonasse a metrópole. Essa perspectiva se tornou especialmente atrativa quando a população colonizadora, grande na Argélia, modesta na Rodésia e pequena no Quênia, conseguiu adiar ou impedir as reformas. Se alguns poucos milhares de colonos europeus no Quênia conseguiam impedir o Império 142 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Britânico de conceder direitos básicos aos africanos, por que um africano não deveria considerar a colonização como nada mais que uma ferramenta de opressão? Também havia forças favoráveis às mudanças nas próprias potências coloniais. Antes da Segunda Guerra Mundial, o colonialismo podia ser justificado por argumentos econômicos e diplomáticos. Agora, as justificativas geopolíticas não convenciam mais. A posição estratégicada Grã-Bretanha, da França, da Holanda e da Bélgica era de se manter debaixo do guarda-chuva nuclear norte-americano, e para tal não havia a necessidade de possessões coloniais, também desestimuladas pelo próprio dono do guarda-chuva. Do ponto de vista econômico, a importância das colônias diminuiu de forma contínua após a guerra. Os europeus, cada vez mais, trocavam mercadorias e investimentos com seus vizinhos e os Estados Unidos. Além do mais, as colônias eram desprezíveis para as novas indústrias que se tornaram importantes: automóveis, bens de consumo duráveis, aviões e computadores. Como os investimentos estrangeiros haviam mudado de direção – das matérias-primas e plantações para os produtos industriais –, o apoio econômico ao regime colonial diminuiu ainda mais. As multinacionais de produtos manufaturados pouco precisavam do colonialismo e, com frequência, obtinham belos lucros com as altas tarifas impostas pelas nações recém-independentes. Mesmo nos países onde o comércio colonial e os investimentos continuavam interessantes, os Estados Unidos pressionavam os europeus para que abrissem os mercados coloniais. E que bem econômico seria uma colônia se era preciso compartilhá-la? O motivo final e decisivo para a rápida marcha rumo à independência foi a insistência norte-americana. Há décadas que os Estados Unidos eram contra o colonialismo. Ideologia e moral devem ter influenciado a posição do país, mas o autointeresse foi o principal motivo. Os Estados Unidos entraram muito tarde na corrida colonial e quando o período chegou ao fim, o país possuía muito poucas colônias. A exclusividade econômica colonial atingiu duramente os produtos e o capital norte-americanos. Além disso, a Guerra Fria também contribuiu para o anticolonialismo dos Estados Unidos. A União Soviética possuía boas credenciais anticoloniais e usava os impérios europeus para mostrar que o capitalismo ocidental dominava o mundo em desenvolvimento. Após 1949, a voz da China passou a ser ouvida com grande credibilidade na discussão, uma vez que o país foi um dos que mais sofreu com o imperialismo ocidental. Como boa parte do mundo estava sob o domínio colonial europeu, era difícil para os Estados Unidos argumentar sobre os males do controle soviético. Quanto mais os europeus governavam, mais eles empurravam os asiáticos e africanos na direção dos comunistas, que estavam em busca de aliados (FRIEDEN, 2010, p. 458-459). 143 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Figura 6 – O império norte-americano Ainda citando as palavras de Frieden: O anticolonialismo norte-americano americano afetou as metrópoles europeias, em especial durante a Crise de Suez. Em outubro e novembro de 1956, tropas francesas, britânicas e israelenses atacaram o Egito, aparentemente para tomar o Canal. Todavia, a verdadeira intenção era derrubar o regime do nacionalista radical Gamel Abdel Nasser. A ação enfureceu o secretário de Estado dos Estados Unidos John Foster Dulles, mas não por qualquer simpatia por Nasser. A invasão fortaleceu o argumento dos soviéticos e chineses, que desejavam convencer o mundo em desenvolvimento da brutalidade e da injustiça do capitalismo. Da mesma forma, provocou ainda mais irritação por ter ocorrido durante a ação soviética para suprimir uma revolta anticomunista na Hungria, desviando a atenção mundial de uma demonstração de brutalidade soviética para outro exemplo de agressão ocidental. Na visão de Dulles, um mês que deveria ter sido uma propaganda do triunfo ocidental acabara tornando-se um desastre. Para piorar, a invasão anglo-franco-israelense aproximou o regime egípcio ainda mais da União Soviética. [...] A Grã-Bretanha e a França logo se deram conta do quanto o peso econômico norte-americano restringia as opções dos dois países. A crise levou a uma desvalorização da libra e os Estados Unidos cortaram a ajuda financeira à 144 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Grã-Bretanha. O governo britânico, que cinco anos antes considerava o Egito um protetorado eficiente, não tinha outra escolha a não ser reconhecer a humilhação. Os ativistas anticoloniais se sentiram revigorados diante dessa demonstração de impotência por parte do regime e, principalmente, por causa do enfraquecimento da posição colonialista. Um ano mais tarde, Gana foi o primeiro país da África subsaariana a se tornar independente da Grã- Bretanha. Depois, em 1958, a Guiné francesa se libertou dos colonizadores. À medida que o colapso colonial aumentava o impasse entre França e Argélia, o sistema político francês se deteriorava. Charles de Gaulle, intimado a deixar a nação africana, supervisionou a retirada da França da terra que sempre considerou ser tão francesa quanto Marselha. Em quatro anos a partir da Crise do Suez, toda a África francesa se tornou independente, e logo em seguida o mesmo ocorreu com a britânica (FRIEDEN, 2010, p. 449-461). 7.2 Blocos, grupos e demais associações de poder por interesses, “espaço interestatal” As novas geopolíticas, não por coincidência surgidas na “era da globalização” e enfraquecimento (relativo) dos Estados nacionais, normalmente não são feitas “para o Estado” e tampouco o veem como o único ator na política mundial. Novos atores ou sujeitos são levados em consideração, desde as civilizações ou grandes culturas até as ONGs, passando pelas empresas multi ou transnacionais, pelas organizações internacionais (ONU, OMC, FMI etc.) e pelos “blocos” ou mercados regionais (União Europeia, Nafta, Mercosul etc.). E novos campos de luta são agora vistos como importantes para a compreensão das relações de poder no espaço mundial, desde a questão ambiental (embates sobre o uso dos oceanos ou do espaço cósmico ao redor do planeta, a emissão de gases do efeito estufa, os desmatamentos e a perda de biodiversidade, o que é desenvolvimento sustentável etc.) até as lutas pelos direitos das mulheres, de minorias étnico-nacionais, de grupos com diferentes orientações sexuais, de povos sem território reconhecido, de populações excluídas na sociedade global ou em sociedades nacionais etc. (VESENTINI, 2012, p. 12). Não deve escapar à vista que os blocos regionais mais representativos de hoje, os blocos econômicos, já haviam sido alvo de atenção do grande estrategista Haushofer, que tinha por missão reconhecer e estabelecer as racionalidades geográficas e políticas continentais (recursos, perfis e alcances de governos e estados). Encontramos tais considerações em José William Vesentini (2012). Os arranjos entre Estados nacionais e corporações foram feitos de modo a criar reservas de mercado e concentração de poder: são os blocos políticos e econômicos. Sua configuração, como podemos ver no mapa a seguir, toma boa parte do planeta. 145 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Figura 7 Vesentini (2012, p. 36) aponta os megablocos ou mercados regionais como sendo evocações, as “mais populares, a respeito da disputa pelo poder no mundo pós Guerra Fria [...] é a dos megablocos ou ‘blocos regionais’”. E faz o adendo de que tal ideia (a dos blocos) não tem propriamente uma paternidade ou um “teórico principal”, tal como ocorre com outras ideias similares (a nova competição/cooperação econômica, o choque de civilizações, a geoeconomia substituindo a geopolítica ou o fim da história, por exemplo) (VESENTINI, 2012, p. 36). O geógrafo afirma que a questão avançou ao longo da Guerra Fria e em meio as própriaspreocupações de organismos internacionais como a CEE (atual União Europeia), além dos meios de propagação de informações e notícias. A noção de fundo é a das transformações dos Estados nacionais, principalmente no que concerne à sua relativização política no cenário global: Essa interpretação consiste basicamente na ideia de que são os megablocos, e não mais os Estados nacionais, que dominam o cenário mundial ou as relações de poder no espaço planetário. Normalmente se divide o mundo em três “blocos regionais” preponderantes: o americano (liderado pelos Estados Unidos), o europeu, que incluiria a África (comandado pela Alemanha) e o asiático ou “oriental”, que incluiria a Oceania (capitaneado pelo Japão e/ou pela China). Também se especula a respeito de um “bloco” liderado pela 146 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Rússia (a CEI – Comunidade dos Estados Independentes) e de um potencial ou hipotético “bloco islâmico”. O momento em que essa interpretação se consolidou ajudou a elucidá-la. Foi por volta de 1989-1990, quando parecia já certo o fim da bipolaridade e da disputa entre os “blocos da Guerra Fria”: o capitalista, liderado pelos EUA, e o socialista, liderado pela ex-URSS. Assim sendo, a primeira reação de alguns foi a de identificar “novos blocos” no espaço mundial. E como já existia um crescimento econômico da Europa Ocidental e do Japão, que desde os anos 1970 constituíam junto com os EUA a chamada “tríade” do mundo capitalista, nada mais natural que substituir os dois “blocos” da Guerra Fria pelos três “blocos” que aparentemente dominariam o mundo pós Guerra Fria (VESENTINI, 2012, p. 36-37). O autor explica que tal “interpretação” está baseada no “sucesso da integração europeia”, com reprodução parcial em várias regiões, como Nafta, Mercosul, Apec e as tentativas de se criar a Alca ( Área de Livre Comércio nas Américas). Nos anos 1980 alguns autores, e inúmeros jornalistas, falavam em “fortaleza europeia”, sugerindo um progressivo fechamento do continente com o avançar da integração. A partir daí, muitos começaram a interpretar como “natural” a formação de mercados regionais nos diversos continentes, vendo nesse processo o nascimento de uma nova ordem geopolítica mundial “plural”, marcada pelas associações de países ao redor de um Estado núcleo ou central. Alguns dos adeptos dessa interpretação, exagerando a importância desses mercados regionais (e inclusive homogeneizando-os, não percebendo as suas diferenças e vendo todos a partir do prisma da União Europeia, o único que caminha de fato no sentido de construir uma confederação), passaram a falar numa “nova geografia regional do mundo” ou até mesmo em “blocos internacionais de poder” [...] (VESENTINI, 2012, p. 37). Apesar de termos fatos novos que atenuam (ou mudam, pelo menos) o ritmo da integração da União Europeia – e o maior deles é o Brexit –, é preciso reconhecer a importância política e econômica dessas entidades. Importância nem sempre medida em termos de produto financeiro das transações. E não destacamos isso apenas por conta da saída dos britânicos, o valor da política ou da geopolítica é duvidoso, pois, segundo Vesentini, nem sempre parceiros comerciais fecham questão em frentes diplomáticas nas relações nacionais e internacionais; isto é, nem sempre suas posições políticas convergem, passo fundamental para se tornarem agentes ou sujeitos coletivos de ações políticas, de fato, em bloco. Do ponto de vista geopolítico, essa ideia de “blocos de poder” é duvidosa, pois esses mercados regionais, ou áreas de livre-comércio, na maior parte das vezes (Nafta, Apec, Alca), possuem uma coesão político- diplomática menor ainda que um mercado regional, têm uma atuação essencialmente comercial e, nos assuntos políticos e militares, eles – com a exceção parcial da União Europeia – não atuam conjuntamente como 147 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA sujeitos. Os Estados Unidos, por exemplo, não têm a menor preocupação em consultar seus parceiros do Nafta (e muito menos da virtual Alca) ao liderarem incursões militares como a Guerra do Golfo, em 1991, ou os bombardeios sobre a Sérvia em 1999, entre outros. E mesmo a União Europeia, o exemplo mais acabado do que seria um “bloco” (e, pelo menos até o momento, o único exemplo de fato), normalmente tem uma atuação geopolítica dividida, com o Reino Unido de um lado (que quase sempre se alinha aos Estados Unidos nos conflitos mundiais) e a França do outro (que, dentro de certos limites, é o Estado mais eurocêntrico e relativamente antinorte-americano). Ademais, os avanços no processo de globalização relativizam esses mercados pretensamente fechados. Existe sem dúvida uma globalização com regionalização (que lhe é complementar, e não oposta), ou seja, a expansão da interdependência econômica não se dá por igual em todas as partes do globo, e sim por degraus ou etapas, primeiramente – e de forma mais acelerada – entre associados em algum mercado regional, em especial se forem economias desenvolvidas. Esses mercados regionais são na realidade a forma pela qual a globalização avança, e não uma nova divisão do mundo ou um fechamento dos continentes em “blocos” alternativos (VESENTINI, 2012, p. 38-39). O que foi o Brexit? No dia 23 de junho de 2016, os cidadãos da Grã-Bretanha foram às urnas votar o referendo que decidiria a saída ou permanência do Reino Unido na União Europeia. A opção pela saída foi vitoriosa, com cerca de 17,4 milhões de votos. O anseio dos defensores dessa saída ficou caracterizado pela expressão Brexit, que é uma abreviação das palavras inglesas Britain (Bretanha) e exit (saída). A vitória pela saída do Reino Unido da União Europeia também resultou no pedido de demissão do primeiro-ministro britânico David Cameron, que advogava contra a saída. Foi Cameron que, ao ser eleito primeiro-ministro em 2015, fez a promessa de realizar o referendo como forma de lidar com a pressão de seus oposicionistas, isto é, do Partido Conservador inglês e do Ukip (United Kingdom Independence Party – Partido da Independência do Reino Unido). Compreender a importância do Brexit no cenário internacional requer uma introdução sobre a formação da União Europeia (a união aduaneira mais representativa) e sobre a relação que manteve com o Reino Unido. A União Europeia é uma associação política e econômica de 28 países do continente europeu (27 agora, com a saída do Reino Unido) que surgiu em 1957, por meio do Tratado de Roma, sob a alcunha de Comunidade Econômica Europeia (CEE). Os objetivos mais óbvios da então CEE eram: integrar política e economicamente a Europa e evitar novas guerras (como 148 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III as duas guerras mundiais) que derivassem da rivalidade nacionalista dos países europeus. Além do Tratado de Roma, de 1957, que criou a CEE e instituiu o Mercado Comum Europeu, a União Europeia foi sendo gradativamente articulada por outros tratados. Os principais foram: o Tratado de Maastricht, de 1992, que estabeleceu a união monetária e resultou na criação da moeda Euro; o Tratado de Amsterdã, de 1997, que instituiu a Política Estrangeira de Segurança Comum (Pesc); a Constituição Europeia, de 18 de junho de 2004; e o Tratado de Lisboa, de 2007, assinado no dia 13 de dezembro, que reformou alguns pontos da Constituição Europeia. Além disso, a União Europeia é também composta de quatro instituições políticas principais:o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu (FERNANDES, 2016). Observação O ingresso do Reino Unido na CEE ocorreu em 1º de janeiro de 1973, e de prontidão já houve discussões intensas tanto entre a população quanto entre os políticos a respeito da perda da soberania nacional e da ameaça de o Reino Unido ter que cobrir gastos irresponsáveis de outros membros da Comunidade. Esse impasse só foi resolvido com um referendo realizado em 5 de junho de 1975, que ratificou a permanência do Reino Unido no bloco, com 67,2% dos votos válidos. O fato é que os ingleses, mesmo permanecendo no bloco, sempre foram reticentes com a estrutura supranacional da União Europeia. A recusa em integrar a “zona do Euro”, isto é, em submeter a moeda nacional, libra esterlina, à zona comum da moeda da UE, era um sintoma flagrante disso. Cláudio Fernandes (2016) acentua que há opiniões a favor e contrárias ao Brexit: Com a aprovação da saída da União Europeia, um dos nomes de maior vulto será o do parlamentar Boris Johnson, ex-presidente da Câmara dos Lordes e chefe da campanha pró-Brexit. Johnson foi um dos parlamentares que mais criticaram as políticas da UE, acusando-as de invadir a vida particular dos cidadãos europeus e violar a soberania dos países-membros por meio do que ele qualificou como “superestado de Bruxelas” (Bruxelas, capital da Bélgica, é o centro de decisões da UE). Além de Johnson, Nigel Farage, líder do Ukip (United Kingdom Independence Party – Partido da Independência do Reino Unido) e defensor ferrenho das posições anti-imigração, também é uma das figuras que tendem a ter maior projeção no contexto político britânico daqui para frente. 149 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Por outro lado, David Cameron, do Partido Conservador, e líderes de países-membros da União Europeia, como a premiê da Alemanha, Angela Merkel, lamentaram a saída do Reino Unido. Julgaram tal fato como extremamente prejudicial à integração da Europa e à situação dos imigrantes que vivem na Inglaterra. O Brexit foi decidido em um plebiscito de 2016, motivado pela aversão à entrada de migrantes e pela intenção do Reino Unido em retomar as rédeas de sua economia (BERCITO, 2018). Assim, a tal “bloquização” ou formação de blocos regionais está vinculada tanto aos processos de reconfiguração do capitalismo internacional quanto a aspectos culturais próprios das formações nacionais, com suas histórias peculiares. Conforme Bercito (2018), os eventos que culminam na globalização do capital do século XX são decorrentes de convenções e acordos que visaram corrigir rumos da institucionalização e manutenção da “economia internacional”. Desse modo, Bretton Woods, Consenso de Washington e as reuniões do FEM (Fórum Econômico Mundial) são representantes dos ajustes requeridos pelos agentes do “sistema”. Seguindo a cadeia de acontecimentos ocasionada pela Crise de 1929 e ainda sob os efeitos catastróficos causados pela Segunda Guerra Mundial, os países industrializados acordaram normas para a “paridade cambial”, indexando as moedas ao dólar, ancorando este na conversibilidade ao ouro (padrão-ouro). É dessa época o surgimento do Banco Internacional de Reconstrução de Desenvolvimento (Bird), integrante do Banco Mundial, e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como mais um dos resultados de Bretton Woods. Conforme Manzalli e Gomes (2006, p. 89-90): [...] o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes organismos criados para promover a coordenação de políticas entre países, notadamente na área financeira, mas muitas vezes tal coordenação ocorre em detrimento de interesses de sociedades. Com o avanço do comércio de longa distância na Europa, surge certa tendência de que as coordenações financeiras, predominantemente administradas por famílias dos comerciantes locais, passem a desempenhar um papel primordial na definição dos interesses políticos e econômicos de diversos grupos no continente. Com o tempo, o desenvolvimento do comércio privado de moedas e instrumentos financeiros. Um instrumento eficaz foi o Plano White, que se ocupava do funcionamento do comércio internacional. Assim, foram criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. As medidas adotadas foram as do Plano White. 150 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Conforme Sandroni (1996), a criação do FMI, em 1944, foi impulsionada pela tentativa de promover a cooperação monetária entre todos os países do mundo, o que ocorreu devido à necessidade de equilibrar paridades monetárias justas entre diferentes moedas, evitando desvalorizações concorrenciais e formando um grande fundo com recursos dos países-membros. Esses recursos seriam usados para beneficiar nações com dificuldade nos pagamentos internacionais, sobretudo aquelas com recorrentes déficits em sua conta de transações correntes. Uma das principais funções do Fundo era regular as paridades das moedas. Tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio praticamente fixo, promovendo a cooperação monetária internacional mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para consulta e colaboração sobre problemas monetários. Em seu instrumento constitutivo estabeleceu-se, ainda, que recursos financeiros do Fundo seriam oferecidos temporariamente aos países-membros para proporcionar-lhes oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos, sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da prosperidade internacional (MANZALLI; GOMES, 2006, p. 96). Lembrete Os arranjos entre Estados nacionais e corporações foram feitos de modo a criar reservas de mercado e concentração de poder: são os blocos políticos e econômicos. 7.2.1 Governança supranacional: a Organização das Nações Unidas Antes de começar a falar sobre Governança Global, é preciso entender como este conceito vem sendo utilizado. A Comissão sobre Governança Global da ONU define governança como “a soma das várias maneiras de indivíduos e instituições, público e privado, administrarem seus assuntos comuns. É um processo contínuo por meio do qual conflito ou interesses diversos podem ser acomodados e a ação cooperativa tem lugar... No nível global, governança era vista primeiramente como sendo apenas as relações intergovernamentais, mas hoje já pode ser entendida como envolvendo organizações não governamentais, movimentos de cidadãos, corporações multinacionais e o mercado de capitais global” (ABREU, 2001, p. 2). Em sentido lato, voltando-se para a dimensão produtiva da governança, Assume-se que o conceito tradicional de governança (coordenação de transações) não supera as limitações da chamada governança corporativa (propriedade e gestão de empresas), e deve ser conectado com a lógica 151 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA da coordenação institucional (meso e macro), especialmente presente nos sistemas produtivos e inovativos (BARBOSA, 2003, p. 8). Também é geral a abordagem sobre as atribuições dos agentes estatais e não estatais nas relações internacionais sob a globalização do capital: O fenômeno da globalização, entendido como um processo não exclusivamente econômico, mas também que envolve aspectos sociais, culturais, políticos e pessoais, recolocou, de maneira dramática, as relações entre sociedade e Estado. Trouxe como consequênciauma mudança no papel do Estado nacional (não sua extinção, mas certamente uma reconfiguração) e suas relações no cenário internacional. Impulsionou, portanto, a discussão sobre os novos meios e padrões de articulação entre indivíduos, organizações, empresas e o próprio Estado, deixando clara a importância da governança em todos os níveis (GONÇALVES, 2006, p. 4). Ngaire Woods (apud ABREU, 2001, p. 6-7) apresenta três princípios fundamentais da boa governança de organizações internacionais. Segundo o autor, são: – O da participação (a participação nos processos daria às pessoas o senso de propriedade ou autoria de um projeto) requer muito mais do que envolvimento institucional, pois as partes afetadas devem encarar as decisões organizacionais como suas próprias. – O da responsabilidade (clareza sobre para quem ou em prol de que a instituição está tomando e implementado decisões, prestando contas ou respondendo não apenas para seus Estados membros, mas também para organizações não governamentais – accountability). – O da justiça, que tem dois aspectos: procedimental e substantivo, sendo a justiça procedimental uma noção legalista, enquanto a justiça substantiva refere-se a quão equitativo são os resultados de uma instituição, a quão igualitária é a distribuição de poder, influência e recursos nas organizações. Retomando o foco na dimensão política, destacamos: Feita a distinção entre governabilidade e governança, fica claro que [...] “governança não é o mesmo que governo” [...] “governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de polícia que garante a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências”. Vale notar ainda que a governança é um 152 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III conceito suficientemente amplo para conter dentro de si a dimensão governamental [...]. “Governança é um fenômeno mais amplo que governo; abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não governamental, que fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas’ (GONÇALVES, 2006, p. 5). Analisando o campo internacional, cuja dinâmica é a da globalização, caberiam algumas palavras sobre o papel do Estado na governança: A globalização, como um fenômeno multidimensional que envolve a mudança na organização da atividade humana e no deslocamento do poder de uma orientação local e nacional no sentido de padrões globais, com uma crescente interconexão na esfera global, dá outra pista importante para o conceito de governança [...]. Com a diminuição dos poderes soberanos nacionais, a partir da emergência de organizações supranacionais, e com a presença crescente das Oings (Organizações Não Governamentais Internacionais) e empresas multinacionais, o balanço do poder e o conceito de poder político alterou-se de forma significativa. Assim, estaríamos assistindo à mudança do governo para a governança global. “Estes processos limitaram a competência, mandato e autoridade dos Estados nacionais – o declínio do governo – enquanto outras instituições, como organizações internacionais e supranacionais, Oings e empresas multinacionais preencheram este vácuo de poder – a emergência da governança Global” [...] (GONÇALVES, 2006, p. 4). O Banco Mundial é uma instituição financeira internacional ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) e também criada em 1944 que tinha como propósito o financiamento de projetos de recuperação e de promoção de desenvolvimento econômico dos países atingidos pela guerra (SANDRONI, 1996). Na prática, essa função ficou a cargo do chamado Plano Marshall, e o banco passou a lidar de modo crescente com o tema do desenvolvimento econômico e a atuar, sobretudo, com os países subdesenvolvidos. Formalmente, seu intuito era canalizar capital para investimentos que permitissem elevar a produtividade das empresas, o padrão de vida das pessoas e as condições de trabalho nos países-membros. Assim, a preocupação primordial do Banco Mundial seria aquela ligada à melhoria das condições de vida da população, quer dizer, às questões de cunho qualitativo (e não quantitativo-financeiro, a exemplo do FMI). Conforme salientam Manzalli e Gomes (2006, p. 95), o objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar a reconstrução e o desenvolvimento de territórios dos países-membros atingidos pela destruição da guerra. Esse objetivo deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a: 153 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA – prover capital para fins produtivos; – promover o investimento externo privado; – complementar o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins produtivos; – promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional; – manter o equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos. Os Estados-nação, Estados territoriais modernos, constituem a base jurídica, política e econômica das relações internacionais, sejam elas profícuas ou não. Assim, estão também na base da economia mundial, ou melhor, entre os Estados com saldos mínimos para liquidarem suas dívidas. No texto em destaque a seguir, Milton Santos convida à dialética. O capitalismo tem por vocação a internacionalização e esta, perseguindo seu projeto de mundialização, desdobra-se nas redes de lugares da globalização (SANTOS, 1988). A dimensão material do desenvolvimento capitalista ampara-se nas redes de transporte, dados e informações (e seu gerenciamento, a logística), cuja marca principal é a concentração e expressão territorial. Para entender tanto a gênese quanto a consolidação das formas capitalistas, é preciso considerar em nosso raciocínio uma série de instrumentos eficazes à propagação do sistema, a exemplo da restrição democrática à propriedade, em geral, e da terra, em particular; isso, em razão da necessidade de liberar o trabalho de seus afazeres particulares para o assalariamento. “Tornou-se claro para os que desejavam reproduzir as relações capitalistas de produção no novo país que a pedra fundamental de seus esforços devia ser a restrição da propriedade da terra a uma minoria e a exclusão da maioria quanto a qualquer participação na propriedade” (DOBB, 1986, p. 160). O texto a seguir, de Milton Santos, apresenta-nos as dimensões de projeto, processo e de objetivo da racionalidade capitalista de modo bastante claro. Capítulo l – A redescoberta e a remodelagem do planeta no período técnico‑científico e os novos papéis das ciências Entre os múltiplos aspectos do período atual, é obrigatório reconhecer as relações entre as condições de realização histórica e a nova revolução científica. Essa revolução histórica e científica atribui às ciências do homem e da sociedade um lugar ainda mais privilegiado no conjunto dos conhecimentos. Num mundo assim reestruturado, um papel particular deve incumbir à ciência geográfica – uma ciência do espaço do homem – e devemos 154 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III interrogar-nos sobre os problemas que, nessaótica, se abrem à sua realização, diante do conflito entre tudo o que acarretam os novos conteúdos prometidos à atualização da disciplina e suas atuais estruturas. Pode-se pensar que a inércia se imporá ao movimento, impedindo-lhe o desenvolvimento, ou se deve acreditar que uma geografia renovada poderá afirmar-se? 1. Da internacionalização à globalização Não sem razão, K. Polanyi falou de uma “grande transformação” para saudar as profundas mudanças impostas à nossa civilização desde o início do século1. Que dizer, então, da verdadeira subversão que o mundo conheceu a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando, por intermédio da globalização, uma fase inteiramente nova da história humana teve início? Essa civilização repousava sobre quatro instituições. A primeira era o sistema de equilíbrio de forças que durante um século permitiu evitar a deflagração de grandes e devastadoras guerras entre as Potências. A segunda foi o padrão-ouro como referência internacional, que simbolizava a organização única da economia mundial. A terceira era o mercado autorregulado que gerou um bem-estar sem precedentes. A quarta era o Estado liberal. Segundo uma certa classificação, duas delas eram nacionais, e as duas outras internacionais. Juntas, determinaram as grandes linhas da história de nossa civilização”. POLANYI, K. A The Great Transformation (1944). Bos-on, Beacon, 1957, p. 2. Decerto, o que estamos vivendo agora foi longamente preparado, e o processo de internacionalização não data de hoje. O projeto de mundializar as relações econômicas, sociais e políticas começa com a extensão das fronteiras do comércio no princípio do século XVI, avança por saltos através dos séculos de expansão capitalista para finalmente ganhar corpo no momento em que uma nova revolução científica e técnica se impõe e em que as formas de vida no planeta sofrem uma repentina transformação: as relações do Homem com a Natureza passam por uma reviravolta, graças aos formidáveis meios colocados à disposição do primeiro. Houve mudanças qualitativas surpreendentes, a mais notável das quais foi a possibilidade de tudo conhecer e tudo utilizar em escala planetária, desde então convertida no quadro das relações sociais. Pode-se falar de mundialização, enquanto [outrora] se tratava de mera internacionalização2. 1 A civilização do século XIX naufraga. Este livro trata das origens políticas e econômicas do acontecimento e da grande transformação que o seguiu. 2 O sistema capitalista foi sempre um sistema mundial. Não poderemos compreendê-lo se excluirmos a interação entre o efeito interno de uma de suas partes e os efeitos externos sobre essa parte. Por isso a contribuição daqueles que enfatizaram o papel da periferia no estabelecimento do capitalismo desde o seu início não é nem pequeno nem suplementar [...]” (AMIN, S. 1980, p. 187). 155 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA “Embora tenha sido sempre um sistema mundial, o sistema capitalista passou por diversos estágios [...]” (AMIN, S. 1980, p. 188). Dado o novo alcance da história, importa “rever totalmente toda a estrutura dos postulados e preconceitos nos quais assentava a nossa visão do mundo”, nas palavras de G. Barraclough (1965, p. 10). Mais recentemente, Katona e Strumpel (1978, p. 2-3) criticam uma visão econômica pouco penetrada pelas novas realidades, lamentando que fatores como as finanças sejam ainda estudados num quadro puramente nacional, e não em seu contexto global. A sociologia, tal como foi fundada na segunda metade do século XIX, deveria ser substituída, segundo A. Bergensen (1970, p. 1), por uma “visão sistemática mundial”, mais adaptada às novas realidades. Mas será possível afirmar a existência desse sistema mundial (BERGENSEN; SCHOENBERG, 1980), chame-se ele sociedade mundial (PETTMAN, 1979) ou sistema global (MODELSKI, 1972)? Isso resultaria da interconexão sob todos os pontos de vista, entre as mais afastadas e disparatadas sociedades nacionais, por força das novas condições de realização da vida social, ou seja, de uma divisão mundial capitalista do trabalho, fundada no desenvolvimento das forças produtivas em escala mundial e conduzida através dos Estados e das corporações gigantes ou firmas transnacionais3. A universalização do mundo pode ser constatada nos fatos. Universalização da produção, incluindo a produção agrícola, dos processos produtivos e do marketing. Universalização das trocas, universalização do capital e de seu mercado, universalização da mercadoria, dos preços e do dinheiro como mercadoria-padrão, universalização das finanças e das dívidas, universalização do modelo de utilização dos recursos por meio de uma universalização relacional das técnicas, universalização do trabalho, isto é, do mercado do trabalho e do trabalho improdutivo, universalização do ambiente das firmas e das economias, universalização dos gostos, do consumo, da alimentação. Universalização da cultura e dos modelos de vida social, universalização de uma racionalidade a serviço do capital erigida em moralidade igualmente universalizada, universalidade de uma ideologia mercantil concebida do exterior, universalização do espaço, universalização da sociedade tornada mundial e do homem ameaçado por uma alienação total. 3 Na fase do monopólio múltiplo transnacional, o desenvolvimento das forças produtivas ocorre na escala do planeta. A divisão mundial capitalista do trabalho daí decorrente é ao mesmo tempo uma especialização adiantada e uma integração. A possibilidade concreta de localizar ramos, processos, fábricas, explorações econômicas, de utilizar redes de transporte e de comercialização, de obter de toda parte informações praticamente instantâneas e de processá-las eletronicamente nesses centros estrategicamente distribuídos, de influenciar de maneira decisiva nas determinações políticas nacionais ou multinacionais, de mobilizar rapidamente funcionários e agentes através do mundo, tudo isso transforma as corporações múltiplas em fatores poderosos de uma combinação complexa das forças produtivas, com variáveis muito numerosas e parâmetros operacionais que atuam em variados níveis de agregação” (MAZA ZAVALA, D. 1976, p. 43). 156 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Vivemos num mundo em que a lei do valor mundializado comanda a produção total, por meio das produções e das técnicas dominantes, aquelas que utilizam esse trabalho científico universal previsto por Marx. A base de todas essas produções, também ela, é universal, e sua realização depende doravante de um mercado mundial. Será que essa mundialização é completa? Para muitos, não haveria, por exemplo, mundialização das classes sociais [...] nem uma moralidade universal, ainda que fosse a moralidade dos Estados. Se as firmas multinacionais criam em toda parte burguesias transnacionais [...], e se instituições de natureza semelhante estão presentes em todos os países, as classes são ainda definidas territorialmente, assim como as aspirações e o caráter de um povo ainda o são em razão das heranças históricas. Os Estados, cujo número se multiplicou devido às novas condições históricas, constituem um sistema mundial, mas individualmente eles são, ao mesmo tempo, uma porta de entrada e uma barreira para as influências exógenas. Sua ação, embora autoritária, assenta nas realidades preexistentes e por isso jamais induz uma mundialização completa das estruturas profundas da Nação. Mas isto não basta para impedir que se fale de globalização. Hoje, o que não é mundializado é condição de mundialização. 2. Um período técnico‑científico? E possíveldiscordar quanto à denominação e às características do atual período histórico. Nós o vivemos, e nada é mais difícil que definir o presente. Porém já sabemos que nossa época implicou uma revolução global não totalmente acabada, mas cujos efeitos são perceptíveis em todos os aspectos da vida. Como disse Lucien Goldmann, “[...] a partir da Segunda Guerra Mundial, torna-se cada vez mais evidente para os pesquisadores sérios que temos um terceiro tipo de capitalismo, para o qual se emprega toda uma série de expressões: capitalismo de organização, sociedade de massa etc. Trata-se, sempre, do capitalismo, sem dúvida, mas mudanças essenciais surgiram”. Nossa época sugere que devemos ter bem presente no espírito a advertência de Marx, para quem “o destino das novas criações históricas é o de serem consideradas como se nada mais fossem que uma contrapartida das formas antigas e mesmo defuntas da vida social, às quais se assemelham”. Acreditamos, como tantos outros, que as perturbações que caracterizam esta fase da história humana decorrem em grande parte dos extraordinários progressos no domínio das ciências e das técnicas. Estaríamos no período do capitalismo tecnológico [...], ou da sociedade tecnológica [...]. Sem dúvida, podemos perguntar-nos, de um lado, se o desenvolvimento econômico não dependeu sempre do progresso científico [...], ou lembrar, como fez E. Mandel (1980), que esta é apenas a terceira revolução científica; e, por outro lado, seria bom levantar com frequência a questão: “As máquinas fazem a história?” Há os que creem numa espécie de determinismo tecnológico e os que se põem em guarda contra todo risco implícito na crença em uma “ilusão tecnológica”. Preferimos a companhia destes últimos, sem com isso minimizar o papel fundamental desempenhado pelos progressos científicos e técnicos nas transformações recentemente 157 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA sofridas pelo planeta. Esta “transformação total dos fundamentos da vida humana” de que fala Bernal teria sido impossível de outra forma. Trata-se agora de [uma] verdadeira interdependência entre a ciência e a técnica, contrariamente ao que acontecia outrora. De fato, como observou R. Richta, hoje “a ciência precede a técnica” [...], embora sua realização lhe seja cada vez mais subordinada. A tecnologia daí resultante é utilizada em escala mundial, e nada mais conta a não ser uma busca desenfreada do lucro, onde quer que as condições o permitam. Este é um dado fundamental da situação atual. O fato de a tecnologia ter se tornado um elemento exógeno para grande parte da humanidade [...] acarreta consequências de enorme alcance, já que sua utilização universal, quase sempre sem relação com os recursos naturais e humanos locais, é causa de graves distorções. Ora, tudo isso só foi possível porque o trabalho científico foi praticamente colocado a serviço da produção. A ciência tem, doravante, um papel produtivo [...]. 3. Mundialização perversa e perversão das ciências A mundialização que se vê é perversa [...]. Concentração e centralização da economia e do poder político, cultura de massa, cientificização da burocracia, centralização agravada das decisões e da informação, tudo isso forma a base de um acirramento das desigualdades entre países e entre classes sociais, assim como da opressão e desintegração do indivíduo. Desse modo, compreende-se que haja correspondência entre sociedade global e crise global. É igualmente compreensível, mas lamentável, que esse movimento geral tenha atingido a própria atividade científica. A redescoberta do planeta e do homem, isto é, a amplificação do saber que lhes diz respeito, são apenas os dois termos de uma mesma equação. Essa equação é presidida pela produção em suas formas materiais e imateriais. Os conhecimentos atuam sobre os instrumentos de trabalho, impondo-lhes modificações não raro brutais e produzindo males ou benefícios, segundo as condições de utilização. Quando a ciência se deixa claramente cooptar por uma tecnologia cujos objetivos são mais econômicos que sociais, ela se torna tributária dos interesses da produção e dos produtores hegemônicos e renuncia a toda vocação de servir a sociedade. Trata-se de um saber instrumentalizado, [no qual] a metodologia substitui o método. Um saber comprometido com interesses e institucionalizado em razão de conhecimentos estritamente delimitados acaba por sofrer uma fragmentação cujo resultado é não a autonomia desejável das disciplinas científicas, mas a sua separação. A evolução econômica agrava essa distância e nos afasta cada vez mais de um enfoque global e da visão crítica que ele permite. Então, o trabalho do cientista se vê despojado de seu conteúdo teleológico e deve ser feito segundo uma ótica puramente pragmática para atender aos que pedem as pesquisas ou dirigem as instituições de ensino. Quando o trabalho científico deve atender a objetivos utilitariamente estabelecidos, temos diante de nós o divórcio entre a teoria e a práxis (GOULDNER, 1976). Daí a possibilidade 158 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III de um sucesso prático das teorias falsas (BUNGE, 1968). Eis por que já se falou, e com razão, de uma perversão da ciência4. As ciências sociais não fazem exceção nesse contexto. O mesmo movimento também as deformou e descaracterizou. Nunca é demais insistir no risco representado por uma ciência social monodisciplinar, desinteressada das relações globais entre os diferentes vetores de que a sociedade é constituída como um todo. Pode-se talvez encontrar uma das principais causas da crise atual das ciências sociais em sua insalubridade. Boa parte da produção intelectual nesse domínio despreza os estudos mundiais globalizantes. Esse atraso em relação ao mundo é uma das marcas desse desatino das ciências humanas. Incapazes de apreender a separação entre princípios e normas (CATEMARIO, 1968, p. 74) e por isso mesmo empobrecidas, não surpreende constatar as múltiplas formas de sua submissão a interesses quase sempre inglórios do mundo da produção. Elas se põem, por vezes sem julgamento crítico, a serviço do marketing, daquilo que se chama relações humanas, de toda sorte de social engineering e de produção, sob encomenda das ideologias [...], reduzindo assim gradualmente suas possibilidades. Desse modo, as ciências sociais se interessam por uma amostragem tendenciosa das contradições mais importantes; o Estado e as firmas transnacionais, o Estado e a nação, o crescimento e o empobrecimento, o Leste e o Oeste, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento etc., de modo a ocultar as causas reais e os resultados previsíveis dos encadeamentos entre fenômenos. Assim, reduzindo seu alcance e fragmentando seu campo de ação, elas se internacionalizam, tornando-se incapazes de uma visão mundial e crítica. Os excessos de especialização e a perda de ambição de universalidade são dois aspectos de uma mesma questão e permitem a utilização perversa das ciências sociais. A geografia não escapa a essa tendência. Desenvolvida parcialmente sob o signo do utilitarismo, fundada na economia neoclássica – portanto aespacial –, ela era chamada a negar-se a si mesma. Por isso ela conta entre suas fraquezas o fato de não ter um objeto claramente definido e a pobreza teórica e epistemológica sobre a qual repousa sua prática. A inexistência de um sistema de referências mais sólido, de resto, explica o papel de relevo que essa disciplina desempenhou na reorganização não igualitária do espaço e da sociedade, tanto ao nível mundial como no local. 4. As possibilidades entreabertas às ciências do homemEmbora assinalado por atividades quase sempre desviadas para preocupações imediatistas e utilitaristas, o atual período histórico encerra igualmente o germe de uma mudança de tendência. 4 Um traço notável do período atual é que as análises vivamente críticas da empresa científica vêm de universitários respeitáveis, cujo radicalismo é moderado ou nulo. Essa crítica da ciência, respeitável e feita do interior, exprime a nova consciência da ciência e o abandono de sua segurança de outrora. Quando se consideram as declarações de porta-vozes da ciência, fica-se chocado por seu caráter de propaganda. [Milton Santos lembra que, para os grandes cientistas do século XIX], o cientista era um exemplo das maiores virtudes intelectuais e morais” [...] (RAVETZ, J. P. 1977, p. 79). 159 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Se, por um lado, a ciência se torna uma força produtiva, observa-se, por outro, um aumento da importância do homem – isto é, de seu saber – no processo produtivo. Esse saber permite um conhecimento mais amplo e aprofundado do planeta, constituindo uma verdadeira redescoberta do mundo e das enormes possibilidades que ele contém, visto ser revalorizada a própria atividade humana. Só falta colocar esses imensos recursos a serviço da humanidade. Trata-se de uma tarefa de longo fôlego, mas não impossível, que supõe a existência de uma ciência autônoma, conforme a definiu R. Wuthrow (1980, p. 30). No momento, as condições locais de realização da economia internacional acabam por dar a primazia ao imperativo tecnológico, a conjuntos técnicos considerados como fixos, pois a própria ciência econômica parece organizar seus postulados [pautada em] equações técnicas rígidas. Cumpre agora chegar a uma liberação desse imperativo tecnológico e subordinar as escolhas técnicas a finalidades bem mais amplas que a própria economia. Vê-se, assim, que não se trata absolutamente de uma questão técnica nem do domínio das ciências exatas, pois o problema diz respeito às ciências sociais, cuja responsabilidade se vê assim aumentada. Conquanto imposta por necessidades históricas, a redescoberta da natureza e do homem deve ser creditada, sobretudo às disciplinas naturais, biológicas e exatas, ou seja, às “ciências”. Isso insuflou nas “não ciências”, disciplinas do homem e da sociedade, um novo valor, ainda insuficientemente avaliado, na construção racional da história. Os novos conhecimentos “científicos” apontam para o reino do possível, enquanto sua realização concreta pertence mais ao domínio das condições econômicas, culturais e políticas. Como o futuro não é único, mas deve ser escolhido, são as ciências sociais que se tornam as ciências de base para uma construção voluntária da história. Como? Trata-se de alargar sua base filosófica de tal modo que as preocupações teleológicas não constituem obstáculo à fiel transcrição dos fenômenos. As novas realidades são ao mesmo tempo causa e consequência de uma multiplicação de possibilidades, potenciais ou concretizadas, cuja multiplicidade de arranjos é fator de complexidade e de diferenciação crescentes. Não se trata aqui de adaptação do passado, mas de subversão das concepções fundamentais, das formas de abordagem, dos temas de análise. Isso equivale a dizer que mudam ao mesmo tempo o conteúdo, o método, as categorias de estudo e as palavras-chave. Enquanto promessa, o crescimento das possibilidades diz respeito ao mundo inteiro e a toda a humanidade, mas a historização e a geografização das possibilidades estão sujeitas à lei das necessidades. A divisão dos domínios nem sempre é nítida, mas se pode pensar que num mundo assim construído são as ciências do homem que ganham em alcance. Ademais, inúmeras combinações doravante possíveis não são desejáveis; outras, igualmente numerosas, não convêm a todos os países ou regiões. Adaptado de: Santos (1988, p. 11-22). 160 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Os 7 bilhões de habitantes da espaçonave Terra enfrentam um cenário de mudanças econômicas, políticas, climáticas e culturais. É uma verdadeira crise civilizatória e de valores. O cientista político francês Dominique Moïsi, autor de A Geopolítica das Emoções (2009), sentencia que “o Ocidente perde peso relativo, a Ásia renasce, os emergentes ganham novo peso. A política está em franca transformação”. É um mundo multipolar e pluricultural. Moïsi tece ao longo de seu livro os elos que lhe permitiram entrever as emoções como motivações, claras ou não, residuais ou presentes. Cita casos e apresenta exemplos nos quais os sentimentos profundos, em várias escalas, por exemplo, como indivíduo e povos, respondem diante de demandas complexas. Houve uma época em que os estudantes de assuntos internacionais descontavam tacitamente a importância das emoções. A política global era o campo reservado a uma casta especial de profissionais, aristocratas europeus, em sua maioria, que viam a política mundial como um jogo de xadrez. Estados e governos deveriam agir racionalmente. As emoções deviam ser mantidas a distância, pois introduziam irracionalidade adicional ao mundo, que já estava em um estado natural de desordem. Portanto, as emoções eram contidas e organizadas por acordos internacionais destinados a fornecer estrutura a um mundo ingovernável. Assim, o Tratado de Westphalia (1648), produto do grande congresso internacional da história, terminou com a Guerra dos Trinta Anos e estabeleceu uma comunidade europeia que deteria paixões, com fervor religioso (MOÏSI, 2009, p. 3-4). Moïsi agracia-nos com uma aproximação complexa da realidade internacional, propiciando um cotejamento com o ensaio sobre a política de Bauman (2000). 8 O PENSAMENTO CLÁSSICO SOBRE A POLÍTICA E A VARIEDADE DE ORGANIZAÇÕES DE PODER: O CRIVO DA FILOSOFIA Um dos ensinamentos mais preciosos de Norberto Bobbio (1909-2004) no campo da teoria política é saber ouvir as lições dos clássicos. Essas lições permitem estudar os temas recorrentes que se colocam em relação aos grandes problemas, igualmente recorrentes, da reflexão política. O estudo desses temas, que atravessam toda a história do pensamento político, tem como função, segundo Bobbio, “individuar certas categorias que permitem fixar em conceitos gerais os fenômenos que passam a fazer parte do universo político”. A primeira função, portanto, é a de determinar os conceitos políticos fundamentais, enquanto a segunda consiste em estabelecer entre as diversas teorias políticas, de diferentes épocas, as possíveis afinidades e diferenças (PERRONE-MOISÉS, [s.d]). 161 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a CIÊNCIA POLÍTICA Trataremos das principais ideias de intelectuais que marcaram o pensamento acadêmico e muito do que se criou em organização política do poder em nossas sociedades ocidentais. Suas principais ideias virão, contextualizadas, num esforço de leitura dos tópicos iniciais sobre poder e política, pela via da proximidade ontológica (nascimento dos objetos e das ideias correlatas), da interpretação dos acontecimentos, como as constituições de estruturas estatais e suas ações no espaço global. Cada um desses intelectuais leva mais longe nossas reflexões sobre os assuntos tratados, e somente são clássicos por serem convergentes e contemplarem o bom senso. Eles são destacados de modo grosseiro, estereotipado, com rotulações repletas de preconceitos, colocados como de ideais opostos em apresentações com vistas às facilidades didáticas. Contudo, sua complexidade
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